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Document 62008CC0265

Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 20 de Outubro de 2009.
Federutility e outros contra Autorità per l'energia elettrica e il gas.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia - Itália.
Directiva 2003/55/CE - Mercado interno de gás natural - Intervenção do Estado no preço do fornecimento de gás natural a partir de 1 de Julho de 2007 - Obrigações de serviço público das empresas que operam no sector do gás.
Processo C-265/08.

Colectânea de Jurisprudência 2010 I-03377

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2009:640

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER

apresentadas em 20 de Outubro de 2009 1(1)

Processo C‑265/08

Federutility

Assogas

Libarna Gas spa

Collino Commercio spa

Sadori gas spa

Egea Commerciale

E.On Vendita srl

Sorgenia spa

contra

Autorità per l'energia elettrica e il gas

[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Tribunale Amministrativo Regionale della Lombardia (Itália)]

«Fixação de preços de fornecimento de gás natural a clientes domésticos – Obrigações de serviço público – Interesse económico geral»





I –    Introdução

1.        Nos primórdios do Estado Providência, certos domínios económicos foram subtraídos à lógica do mercado, com o objectivo de reduzir o fosso entre o «espaço vital dominado» e o «espaço vital efectivo» (2). Em nome de valores não estritamente económicos – consagrados na clássica noção jurídica ocidental do serviço público – intensificou‑se a intervenção do Estado nalguns domínios, criaram‑se monopólios e reforçou‑se a regulação.

2.        A partir do Acto Único Europeu, quando se entroniza a concorrência como novo ícone «no altar das ideias políticas», o serviço público erige‑se em obstáculo que é preciso superar, em prol de uma liberalização na qual se depositam todas as esperanças (3).

3.        A implantação de um mercado aberto constitui o primeiro passo desta política mas, uma vez eliminadas as barreiras, subsistem determinadas necessidades que o mercado não é capaz de satisfazer por si só. Nasce assim uma intervenção pública, sob a forma de «serviços de interesse geral» e de «obrigações de serviço público», que as autoridades impõem às empresas dos sectores liberalizados para salvaguardar os interesses públicos cuja satisfação, por ser irrenunciável, não pode ser deixada ao livre jogo das forças do mercado.

4.        O grande desafio do direito económico actual reside em delimitar estas actuações públicas. Até este momento, esse desafio só se colocou em relação à subsistência de direitos exclusivos ou ao financiamento dos referidos serviços, mas raramente na sequência das obrigações de serviço público. A questão prejudicial, agora submetida, versa precisamente sobre este ponto.

5.        O gás tem tido, desde o século XIX, uma importância única para o desenvolvimento das sociedades modernas. A literatura fez‑se eco das suspeitas que, num primeiro momento, o gás levantou (4) e do impacto que teve depois (5), até passar a fazer parte da vida quotidiana, como recordava Pérez Galdós (6). A Directiva 2003/55/CE (7) prevê a abertura total do mercado do gás, a partir de 1 de Julho de 2007, e o Tribunale Amministrativo Regionale della Lombardia pergunta se, depois dessa data, é possível as autoridades italianas participarem a título excepcional na fixação dos preços de fornecimento de gás, numa situação de falta de concorrência.

6.        Se, como recordou o Conseil d’État francês (8), se entender por serviço público «o prolongamento do mercado por outros meios, quando o mercado fracassa, e não o seu contrário», numa conjuntura de deterioração da concorrência o Estado deve intervir para paliar as consequências dessa situação. No entanto, a actuação pública no mercado deve ser limitada a fim de não adiar sine die a verdadeira liberalização, orientando‑se no sentido da protecção dos direitos dos consumidores.

II – Quadro jurídico

A –    Direito comunitário: Directiva 2003/55

7.        A Directiva 2003/55 visa a realização do mercado interno de gás natural.

8.        De acordo com o seu segundo considerando, a experiência adquirida com a Directiva 98/30/CE (9), que a directiva de 2003 revogou, demonstrou os benefícios que resultariam da criação desse mercado, salientando que subsistem deficiências significativas e que se poderia melhorar o seu funcionamento através de «medidas concretas, nomeadamente, para assegurar condições de concorrência equitativas e para reduzir os riscos de ocorrência de posições dominantes no mercado e de comportamentos predatórios […], garantindo a protecção dos direitos dos pequenos clientes e dos clientes vulneráveis».

9.        O décimo oitavo considerando da Directiva 2003/55 contempla um dos elementos essenciais do processo liberalizador: a livre escolha do fornecedor pelos consumidores de gás. Para alcançar este objectivo, a directiva prevê uma abordagem por etapas, combinada com um prazo específico, a fim de permitir às empresas adaptar‑se e assegurar a protecção dos interesses dos clientes e do seu direito, real e efectivo, de escolher um fornecedor.

10.      O vigésimo sexto considerando refere‑se às decisões dos Estados‑Membros para conseguir elevados padrões «de serviço público na Comunidade», precisando que devem ser notificadas periodicamente à Comissão e que «poderão ser diferentes consoante se trate de consumidores domésticos ou de pequenas e médias empresas». O vigésimo sétimo considerando refere o serviço público como «uma exigência fundamental» da directiva, que deve especificar «normas mínimas comuns […] que tenham em conta os objectivos de protecção do consumidor, de segurança do fornecimento, de protecção do ambiente e de equivalência dos níveis de concorrência em todos os Estados‑Membros». Salienta ainda a importância de esses requisitos serem interpretados tendo em conta as circunstâncias nacionais, no respeito do direito comunitário.

11.      Nos termos do artigo 2.°, n.° 25, da directiva entende‑se por «cliente doméstico», o cliente que compra gás natural para uso doméstico próprio e, nos termos do n.° 28 do mesmo artigo, por «cliente elegível», o cliente livre de comprar gás ao fornecedor da sua escolha, na acepção do artigo 23.° da directiva. O artigo 23.°, n.° 1, alínea c), impõe aos Estados‑Membros que, a partir de 1 de Julho de 2007, todos os clientes sejam elegíveis.

12.      O artigo 3.° da directiva tem como epígrafe «Obrigações de serviço público e protecção dos consumidores». No seu n.° 1, obriga os Estados‑Membros a «assegurar [...] que as empresas de gás natural sejam exploradas de acordo com os princípios constantes da presente directiva, na perspectiva da realização de um mercado de gás natural competitivo, seguro e ambientalmente sustentável» e a não fazerem «discriminações entre essas empresas no que respeita a direitos ou obrigações».

13.      O referido anteriormente deve entender‑se «sem prejuízo do disposto no n.° 2» deste artigo 3.°, no qual se estabelece que «tendo plenamente em conta as disposições pertinentes do Tratado, nomeadamente do artigo 86.°, os Estados‑Membros podem impor às empresas que operam no sector do gás, no interesse económico geral, obrigações de serviço público em matéria de [...] preço dos fornecimentos [...]». Estas obrigações devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis e garantir a igualdade de acesso das empresas do sector do gás da União Europeia aos consumidores nacionais.

14.      O artigo 3.°, n.° 3, introduz uma obrigação de protecção dos utentes, com especial atenção aos mais carenciados: Os Estados‑Membros devem adoptar medidas adequadas para garantir a protecção dos clientes finais e assegurar níveis elevados de protecção dos consumidores e devem, em especial, garantir a existência de salvaguardas adequadas para proteger os clientes vulneráveis, incluindo medidas adequadas que contribuam para evitar o corte da ligação especialmente no que respeita à transparência das condições contratuais gerais, às informações gerais e aos mecanismos de resolução de litígios. Devem ainda assegurar que os clientes elegíveis possam efectivamente mudar de fornecedor. Pelo menos no que respeita aos clientes domésticos, essas medidas devem incluir as fixadas no anexo A (10).

15.      Segundo o artigo 3.°, n.° 6, «ao darem execução à presente directiva, os Estados‑Membros devem informar a Comissão de todas as medidas adoptadas para o cumprimento das obrigações de serviço público, incluindo a protecção dos consumidores e do ambiente, e dos seus eventuais efeitos na concorrência a nível nacional e internacional», independentemente de tais medidas implicarem ou não uma derrogação à directiva.

B –    O direito italiano

16.      Poucos dias antes de 1 de Julho de 2007, data‑limite para completa liberalização do mercado do gás em conformidade com o previsto no artigo 23.° da Directiva 2003/55, foi aprovado em Itália o Decreto‑Lei n.° 73, de 18 de Junho de 2007, que atribuiu à Autorità per l’energia elettrica e il gas o poder de fixar «preços de referência» para a venda de gás a certos clientes, já depois da abertura total do mercado.

17.      O referido decreto‑lei foi confirmado pela Lei n.° 125 de 3 de Agosto de 2007, cujo artigo 1.°, n.° 3, dispõe que:

«Para garantir o cumprimento das disposições comunitárias em matéria de serviço universal, a Autorità per l’energia elettrica e il gas estabelecerá as condições padrão de prestação do serviço e definirá transitoriamente, com base nos custos efectivos do serviço, preços de referência [...] para o fornecimento de gás natural aos clientes domésticos, que as empresas de distribuição ou de venda, no âmbito das obrigações de serviço público, devem incluir nas suas ofertas comerciais, contemplando igualmente a possibilidade de opção entre planos tarifários e faixas horárias diferenciados [...], ficando ressalvados os poderes de fiscalização e de intervenção da Autorità para a protecção dos direitos dos utentes, incluindo nos casos de aumentos de preço demonstrados e injustificados e de alteração das condições do serviço para os clientes que ainda não tenham exercido o direito de opção» (11).

18.      O órgão jurisdicional de reenvio italiano considera que esta disposição proporciona uma «cobertura legal do exercício do poder de regulação da Autorità em matéria de preço do gás também para o período posterior a 1 de Julho de 2007».

III – O litígio no processo principal e a questão prejudicial

19.      Em 29 de Março de 2007, a Autorità per l’energia elettrica e il gas adoptou a Deliberação n.° 79/07 relativa à redefinição das condições económicas de fornecimento de gás para o período compreendido entre 1 de Janeiro de 2005 e 31 de Março de 2007, fixando os critérios de actualização das referidas condições económicas. Segundo o ponto 1.3.1. desta deliberação, as fórmulas de cálculo aprovadas para efeitos da actualização do montante variável do preço relativo à comercialização por grosso seriam aplicáveis até 30 de Junho de 2008; no ponto 1.3.2. da mesma deliberação, reservava‑se à Autorità a faculdade de verificar a subsistência das condições para efeitos da prorrogação deste direito até 30 de Junho de 2009.

20.      A Federutility, a Assogas, a Libarna Gas s.p.a., a Collino Commercio s.p.a., a Sadori gas s.p.a., a Egea Commerciale, a E.On Vendita srl e a Sogenia s.p.a. (empresas e associações de empresas que operam no mercado italiano de gás natural) interpuseram cinco recursos da deliberação n.° 79/07 e de outras tantas decisões posteriores da Autorità (deliberações n.os 80/07, 158/07, 242/07 e 346/07) (12).

21.      Invocam como principal argumento uma alegada violação da Directiva 2003/55, que previa a liberalização total do sector do gás a partir de 1 de Julho de 2007. As recorrentes sustentam que, para garantir a todos os clientes a possibilidade de escolher livremente o fornecedor a partir desta data, o preço de venda do gás deve ser determinado pelo jogo da oferta e da procura, sem ingerência das autoridades públicas. Portanto, segundo as recorrentes, a manutenção dos «preços de referência» para além do segundo trimestre de 2007 (como prevê a Deliberação n.° 79/07), viola o direito comunitário.

22.      O Tribunale Amministrativo Regionale della Lombardia (4.ª Secção) que conhece dos referidos recursos, entendeu que a solução do litígio depende da interpretação da Directiva 2003/55 e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, nos termos do artigo 234.° CE:

«O artigo 23.° da Directiva 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que regula a abertura do mercado do gás, deve ser interpretado, em conformidade com os princípios consagrados no Tratado [CE], no sentido de que essa disposição e esses princípios se opõem a uma norma nacional (e subsequentes actos de execução) que mantém em vigor, posteriormente a 1 de Julho de 2007, o poder da autoridade reguladora nacional de definir preços de referência dos fornecimentos de gás natural aos clientes domésticos (categoria indeterminada e não definida nos grupos de referência que não implica, por si só, a consideração de situações especiais decorrentes de dificuldades socio‑económicas que poderiam justificar a fixação dos referidos preços de referência), que as empresas de distribuição ou de venda, no âmbito das respectivas obrigações de serviço público, estão obrigadas a incluir nas suas ofertas comerciais?

ou,

Essa norma (o artigo 23.°) deve ser interpretada, em conjugação com o disposto no artigo 3.° da Directiva 2003/55/CE (que prevê a possibilidade de os Estados‑Membros, no interesse económico geral, imporem às empresas que operam no sector do gás obrigações de serviço público em matéria, na parte que ora nos interessa, de preço dos fornecimentos), no sentido de que não se opõe a uma norma nacional que, tendo em conta a situação especial do mercado, que é ainda caracterizado pela falta de condições de ‘concorrência efectiva’, pelo menos no segmento da comercialização por grosso, permite a fixação por via administrativa do preço de referência do gás natural, que deve ser obrigatoriamente incluído nas ofertas comerciais de todos os vendedores aos seus clientes domésticos no âmbito do conceito de serviço universal, apesar de todos os clientes deverem ser considerados ‘livres’?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

23.      O pedido prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 20 de Junho de 2008.

24.      Foram apresentadas alegações pela Federutility, pela Libarna Gas spa, pela Sorgenia e pela Assogas, bem como pela Comissão e pelos governos da Polónia, Estónia e Itália.

25.      Num anexo à convocatória para a audiência, foi perguntado às partes no processo principal e à República Italiana se a obrigação de indicar os «preços de referência» de fornecimento de gás natural aos particulares nas ofertas comerciais das empresas, implica a obrigação de propor e aplicar os referidos preços aos seus clientes, estando consequentemente proibidas de contratar condições tarifárias diferentes, ou se esses preços têm um valor puramente indicativo. Foi‑lhes igualmente colocada uma pergunta sobre o âmbito de aplicação desta obrigação, tendo‑lhes sido solicitadas informações sobre se os clientes afectados são unicamente particulares, com exclusão das pessoas colectivas. A Federutility, a Libarna Gas spa, a Sorgenia, a Assogas e o Governo italiano responderam ao Tribunal por meio dos documentos respectivos datados do mês de Julho de 2009.

26.      Na audiência, realizada em 8 de Setembro de 2009, compareceram para apresentar oralmente as suas alegações, os representantes de Federutility, da Assogas, da Libarna Gas spa, da Sorgenia spa, da Comissão e dos Governos estónio e italiano.

V –    Introdução: a intervenção tarifária num quadro de concorrência formal

A –    A falta de concorrência real no mercado do gás

27.      O processo liberalizador do sector da energia, iniciado com as Directivas 96/92/CE (13) e 98/30/CE, sofreu uma aceleração notável com a aprovação das Directivas 2003/54/CE (14) e 2003/55/CE, que estabeleceram a abertura dos mercados da electricidade e do gás a todos os clientes não domésticos a partir de 1 de Julho de 2004 e a todos os utentes, sem qualquer distinção, a partir de 1 de Julho de 2007 (15).

28.      A realização desta ambiciosa agenda cabia aos Estados‑Membros. No entanto, os progressos foram muito desiguais. Foi o que a Comissão constatou na Comunicação ao Conselho e ao Parlamento Europeu de 10 de Janeiro de 2007 (16), na qual reconhece que, embora «os conceitos básicos do mercado interno da energia [tenham sido] incorporados em termos de quadro jurídico, disposições institucionais e infra‑estrutura física [...] não existe concorrência significativa em muitos Estados‑Membros. Frequentemente os clientes não têm qualquer possibilidade real de optar por um fornecedor alternativo» e, em geral, não existe ainda uma grande confiança no mercado interno (17).

29.      Consciente do carácter incompleto do processo liberalizador, a Comissão lançou um «terceiro pacote energético» destinado a atenuar as insuficiências da regulamentação vigente. Inclui uma proposta de alteração da Directiva 2003/55 que prevê, por exemplo, uma separação efectiva entre as actividades de produção e as de fornecimento e exploração da rede (18).

30.      A Comissão considera que a intervenção nas tarifas do gás (e também nas da electricidade) é uma das causas e, ao mesmo tempo, uma das consequências da actual falta de concorrência no sector energético. Por um lado, entre as principais deficiências observadas na transposição das recentes directivas, a Comissão inclui os «preços regulados que impedem a entrada de novos operadores no mercado» (19). Por outro, acrescenta que, com estas irregularidades, «as empresas históricas de electricidade e de gás mantêm largamente as suas posições dominantes», o que « levou muitos Estados‑Membros a reter um controlo apertado dos preços da electricidade e do gás imputados aos utilizadores finais. Infelizmente, esta é frequentemente uma grande condicionante em termos de concorrência» (20).

31.      A coexistência de mercados da energia abertos e com preços regulados é bastante frequente nos Estados‑Membros da UE; segundo a própria Comissão admite no seu Relatório de 15 de Abril de 2008 (21), esta situação «verifica‑se num terço dos mercados do gás [...] e em mais de 50% dos mercados da electricidade. Na maioria dos Estados‑Membros com preços regulados, a regulamentação não abrange apenas os pequenos clientes – todos os segmentos da clientela podem ser abastecidos a preços regulados».

32.      A situação descrita coincide com a do sector do gás em Itália. Segundo o Governo desse país afirmou nas suas alegações escritas, o mercado do gás natural assume um carácter singular devido ao papel preeminente da Eni, empresa que é simultaneamente monopolista da importação de gás, proprietária da maior parte da rede de transporte, titular de uma posição absolutamente dominante na produção e principal vendedora por grosso. Esta falta de concorrência no mercado grossista possibilitou a subsistência dos monopólios locais de venda a retalho, muitas vezes verticalmente integrados com os exploradores da rede de distribuição. Neste contexto, a entrada de outros fornecedores parece extremamente complicada: em primeiro lugar, porque teriam de comprar o gás à Eni, que lhes imporia as condições que lhe conviessem, reduzindo ao mínimo as eventuais margens de lucro desses fornecedores; e, em segundo lugar, pela dificuldade de concorrer, no âmbito local, com operadores verticalmente integrados.

B –    A regulação dos preços do fornecimento num contexto de falta de concorrência

33.      Estas circunstâncias, aliadas a uma tendência altista do preço dos produtos petrolíferos nos mercados internacionais, motivaram a intervenção das autoridades italianas, aqui em causa. Para impedir que o aumento do custo da matéria prima se repercuta negativamente nos utentes, foi decidido prorrogar o poder da Autorità per l’energia elettrica e il gas de fixar «preços de referência» para o abastecimento de gás natural aos clientes domésticos para além de 1 de Julho de 2007, data da passagem à completa liberalização do mercado italiano do gás de acordo com as disposições de transposição da Directiva 2003/55.

34.      Em conformidade com o artigo 1.°, n.° 3, da lei italiana de 3 de Agosto de 2007, o poder controvertido caracteriza‑se pelo seguinte:

1)      define «preços de referência» para o fornecimento de gás natural que as empresas devem incorporar «nas suas ofertas comerciais, com a possibilidade de escolher entre planos de tarifas e faixas horárias diferenciadas».

Questionadas as partes no processo principal e o Governo italiano sobre o alcance desta obrigação, as primeiras responderam negando que os mencionados «preços de referência» sejam de natureza meramente indicativa. Alegam que, na prática, as empresas de gás natural não podem propor aos seus clientes tarifas alternativas e mais interessantes do que as indicadas pela Autorità, cujos «preços de referência» estão já abaixo da média europeia. Se acrescentarmos a isso o grande número de utentes aos quais os fornecedores devem oferecer e aplicar estes preços protegidos, há que concluir, segundo as recorrentes no processo principal, que a possibilidade de outras tarifas é puramente teórica (22).

2)      Os ditos «preços de referência» são calculados em função dos «custos efectivos do serviço». De acordo com as informações que constam dos autos, as condições económicas fixadas pela Autorità resultam da soma de quatro factores: o preço da distribuição, o do transporte e armazenamento, um montante variável correspondente à venda a retalho e outro relativo aos custos de aquisição da matéria‑prima, incluindo os associados à compra do gás, por grosso. A discussão no processo principal gira em torno do cômputo deste último factor pois, face ao mercado grossista, no qual o preço do gás acompanha o dos produtos petrolíferos, a tarifa para a venda a retalho está protegida por uma «cláusula de salvaguarda», através da qual a Autorità evita repercutir a totalidade do custo da matéria prima quando este é muito elevado. Desta forma, os fornecedores de gás devem facturar aos seus clientes um preço que não inclua tudo o que foi pago pela matéria‑prima. Para impedir que o peso económico da operação recaia exclusivamente sobre estas empresas, a Autorità obrigou os grossistas a renegociar os contratos de venda de gás (23).

3)      No que respeita ao âmbito de aplicação destes «preços de referência», o artigo 1.°, n.° 3, do decreto‑lei, exige apenas que os mesmos sejam propostos «aos clientes nacionais». O despacho de reenvio prejudicial qualifica esta categoria de utentes como «indeterminada»; ao invés, a Comissão sugere que «os preços de referência se aplicam às famílias e às casas em edifícios com aquecimento central, com um consumo anual inferior a 200 000 metros cúbicos».

Com maior precisão, as respostas do Governo italiano e das partes no processo principal, apresentadas no final do mês de Julho de 2009, tal como as declarações na audiência, tornam claro que a obrigação de manter os «preços de referência» afecta duas categorias de utentes:

a)      Os clientes finais que, sendo elegíveis antes de 1 de Janeiro de 2003 (por terem um consumo anual de gás superior a 200 000 metros cúbicos ou por outras razões) ainda não celebraram um novo contrato de fornecimento de gás.

b)      Os clientes finais com um consumo anual inferior nos referidos 200 000 metros cúbicos.

As recorrentes no processo principal alegaram na audiência e nos articulados apresentados em Julho de 2009 que ambas as categorias de clientes finais incluem tanto particulares como empresas, sem excluir as pessoas colectivas (24). Trazem à colação a deliberação n.° 64/09 da Autorità, cujo artigo 4.° alargou os preços protegidos aos condomínios, mesmo quando o titular do ponto de distribuição for uma pessoa colectiva que assume as funções de administrador do condomínio. No entanto, o artigo 5.° da Deliberação n.° 64/09 destaca que os clientes finais que não tenham celebrado novos contratos e que não sejam particulares continuam a beneficiar do regime de protecção até 30 de Setembro de 2009 ou até 30 de Setembro de 2010, se o seu consumo anual não exceder 200 000 metros cúbicos.

O Governo italiano defende, pelo contrário, que o sistema de «preços de referência» só deve ser aplicado aos particulares.

4)      O decreto‑lei, na sua versão confirmada pelo Parlamento italiano, atribui carácter provisório ao poder da Autorità para fixar tarifas, alterando assim a redacção original do decreto‑lei, que mantinha silêncio sobre este aspecto.

As empresas recorrentes alegaram, na audiência, que o referido carácter transitório do poder de fixar tarifas não é suficiente, pois nunca foi estabelecido um prazo máximo para o seu exercício. Neste sentido, invocaram a recente Lei n.° 99 de 23 de Julho de 2009 que, em sua opinião, atribui à Autorità um poder regulador geral e sem qualquer limitação temporal.

5)      Por último, o legislador italiano acrescenta que a definição dos «preços de referência» se faz «no âmbito das obrigações de serviço público» e com a finalidade de «garantir o cumprimento das disposições comunitárias em matéria de serviço universal».

35.      O Tribunale Amministrativo Regionale della Lombardia pergunta ao Tribunal de Justiça se uma intervenção pública deste carácter, num mercado liberalizado como o do gás, mas com um défice de concorrência real, viola o artigo 23.° da Directiva 2003/55 ou se pode socorrer‑se do seu artigo 3.° Importa, por isso, analisar estas disposições.

VI – Análise da questão prejudicial

A –    O artigo 23.° e a liberalização dos preços

36.      A criação de um mercado interno do gás natural, objectivo prioritário da Directiva 2003/55, exige que se leve a cabo uma liberalização total.

37.      O legislador comunitário compreendeu rapidamente que a abertura deve ser feita gradualmente. O ponto de partida eram mercados fortemente regulados, estritamente nacionais e frequentemente monopolistas (25). O desafio consistia em convertê‑los num único mercado europeu completamente livre, no qual todos os utentes pudessem comprar o gás ao vendedor da sua escolha. A Directiva 93/80 constituiu um passo tímido e preliminar, a que se seguiu o artigo 23.° da Directiva 2003/55, que anuncia um calendário progressivo até garantir a todos os clientes, incluindo os domésticos, o estatuto de elegíveis (26).

38.      A data‑limite para atingir esta meta era 1 de Julho de 2007. Consegui‑lo implicava eliminar as barreiras que dificultavam a concorrência no mercado do gás, entre as quais se contam as intervenções nas tarifas, sempre que desincentivem o investimento. O artigo 3.°, n.° 1, da directiva, obriga os Estados‑Membros «a assegurar […] que as empresas de gás natural sejam exploradas de acordo com os princípios constantes da presente directiva, na perspectiva da realização de um mercado de gás natural competitivo, seguro e ambientalmente sustentável».

39.      Nos termos da directiva e da clara intenção liberalizadora que a anima, parece difícil sustentar, como fez o Governo da Polónia nas suas alegações, que a determinação dos preços através do simples jogo da oferta e da procura não seja condição indispensável para assegurar o direito de escolher o fornecedor que mais lhe convenha. No entanto, nem o artigo 23.° nem qualquer outra disposição da directiva impõem expressamente aos Estados‑Membros a obrigação de deixar a formação dos preços do fornecimento a esse livre jogo do mercado, sem que nada impeça discutir, em teoria, se se trata de uma medida sempre benéfica para o consumidor.

40.      É contudo, é significativo que o legislador comunitário preveja que as autoridades reguladoras aprovem as tarifas de transporte e distribuição do gás (artigo 25.°, n.° 2, da directiva) e que, por sua vez, contemple a fixação de preços para o fornecimento como simples faculdade excepcional, no âmbito das obrigações de serviço público (artigo 3.°, n.° 2).

B –    O artigo 3.° e as obrigações de serviço público

41.      A liberalização do mercado não exclui, por conseguinte, qualquer tipo de intervenção no preço de venda do gás. O referido artigo 3.° da directiva abre várias vias para legitimar a actuação dos Estados‑Membros neste âmbito.

42.      Em primeiro lugar, o artigo 3.°, n.° 2, autoriza‑os a «impor às empresas que operam no sector do gás, no interesse económico geral, obrigações de serviço público» relativamente ao preço dos fornecimentos. E, em segundo lugar, o artigo 3.°, n.° 3, estabelece que os Estados devem adoptar medidas adequadas para garantir a protecção dos clientes finais e, em especial, dos clientes vulneráveis, garantindo um elevado nível de defesa do consumidor.

43.      Ambos os números reflectem o objectivo plural da Directiva 2003/55: o estabelecimento de um mercado interno do gás como meio de salvaguardar os interesses das empresas e, simultaneamente, dos consumidores. Liberalização, mas não a qualquer preço, aos particulares, pelo que se exige um certo grau de regulação quando o mercado não funcionar adequadamente. As obrigações de serviço público tornam‑se um instrumento para estruturar essa intervenção pública excepcional, mesmo depois da data‑limite de 1 de Julho de 2007.

44.      A fórmula já tinha sido amplamente testada na altura em que foi aprovado o segundo pacote energético. Uma vez eliminados os monopólios públicos (27) no sector, sujeito às regras do mercado, faltava ainda assegurar a satisfação de certas necessidades de interesse geral. Com esta finalidade, o legislador comunitário previu a possibilidade de exigir obrigações de serviço público e de serviço universal logo nos primeiros sectores liberalizados, como o postal, o dos transportes e o das telecomunicações. O Tribunal de Justiça tratou com especial atenção estes mecanismos derrogatórios, especialmente em relação ao seu financiamento, declarando que não implicam auxílios de Estado (28) os subsídios pagos a título de «compensação» pelas obrigações de serviço público e que não violem o Tratado, desde que satisfaçam determinadas condições (29).

45.      O artigo 3.°, n.° 2, da Directiva 2003/55 integra a figura no catálogo de instrumentos destinados à organização do sector do gás, permitindo aos Estados‑Membros impor certos encargos às empresas que operam no sector do gás, sempre que imprescindível para preservar um «interesse económico geral» cujo alcance não define concretamente (30).

46.      A indeterminação da directiva revela a ampla margem de manobra que o legislador comunitário concedeu aos Estados‑Membros. Isto mesmo é confirmado pelo vigésimo sétimo considerando, que refere o estabelecimento de «normas mínimas comuns» relativas ao cumprimento dos requisitos de serviço público, um núcleo duro que tem em conta «os objectivos de protecção do consumidor, de segurança do fornecimento, de protecção do ambiente e de equivalência dos níveis de concorrência em todos os Estados‑Membros», interpretados à luz das particularidades de cada país, «tendo em conta as circunstâncias nacionais, e sujeitos ao respeito do direito comunitário».

47.      Mas a liberdade dos Estados‑Membros nesta matéria não é absoluta, pois o artigo 3.°, n.° 6, da directiva, prevê um controlo de «todas as medidas adoptadas para o cumprimento das obrigações de serviço público, incluindo a protecção dos consumidores e do ambiente, e dos seus eventuais efeitos na concorrência a nível nacional e internacional» que devem ser comunicadas à Comissão na altura da transposição da norma. Subsequentemente, os Estados‑Membros devem informar a Comissão, de dois em dois anos, das alterações de que tenham sido objecto essas medidas (31).

48.      Além disso, a própria directiva define parâmetros bastante estritos para a imposição de obrigações de serviço público, que devem:

–        satisfazer o «interesse económico geral»;

–        desenvolver‑se «tendo plenamente em conta as disposições pertinentes do Tratado, nomeadamente do artigo 86.°»;

–        ser claramente definidas, transparentes e susceptíveis de controlo;

–        não originar discriminação; e

–        garantir às empresas de gás da União Europeia igualdade de acesso aos consumidores nacionais.

49.      A viabilidade do poder da Autorità per l’energia elettrica e il gas para intervir na fixação de tarifas, que se discute no caso em apreço, depende do respeito destes parâmetros, que têm de ser verificados por um órgão jurisdicional nacional segundo a interpretação da directiva efectuada pelo Tribunal de Justiça (32).

50.      Importa, portanto, ponderar tanto a exigência de «um interesse económico geral» (C), acatando o Tratado e, em especial, o seu artigo 86.° (D), como o carácter não discriminatório (E).

C –    A necessidade de preços razoáveis como causa de «interesse económico geral»

51.      A existência de um «interesse económico geral» para justificar as obrigações de serviço público é o primeiro aspecto controvertido no presente caso.

52.      Como a Comissão observa, com razão, nas suas alegações (33), a dupla referência que o artigo 3.°, n.° 2, da directiva faz ao artigo 86.° CE e ao «interesse económico geral» significa que as obrigações aí contempladas correspondem às das empresas encarregadas de «serviços de interesse económico geral» na acepção daquele artigo do Tratado (34).

53.      O Tribunal de Justiça declarou de interesse económico geral um vasto e variado grupo de serviços, como o abastecimento de água (35), de gás (36) e de electricidade (37), a recolha e distribuição do correio em todo o território nacional (38), a exploração das linhas aéreas não rentáveis (39), o transporte em ambulância (40), ou a actividade dos grossistas farmacêuticos (41), para mencionar apenas alguns exemplos. É difícil extrair destas decisões um conceito unívoco e preciso (42). A directiva, o Tratado e a jurisprudência inspiram‑se na mesma ideia de equilíbrio entre o mercado e a regulação, entre a concorrência e as implicações do interesse geral, coincidindo também, em meu entender, em que incumbe aos Estados‑Membros definir os serviços de interesse económico geral que desejam preservar, sem prejuízo do poder de controlo das instituições comunitárias (em especial do Tribunal de Justiça) sobre essas decisões e de impedir os excessos (43).

54.      Se se quisesse encontrar algum elemento comum, haveria que recordar as célebres leis de Rolland, que os acórdãos Corbeau (44) e Ayutamento de Almelo e o. (45) indirectamente evocam, ao expor as circunstâncias em que os serviços de interesse económico geral são prestados: de forma ininterrupta (continuidade); em benefício de todos os utentes e em todo o território do Estado‑Membro em causa (universalidade); com tarifas uniformes e qualidade semelhantes, sem ter em conta situações especiais nem o grau de rentabilidade económica de cada operação individual (igualdade).

55.      Continuidade, universalidade e igualdade. A estas clássicas regras é costume acrescentar actualmente a transparência e o carácter economicamente acessível do serviço. Assim, a Directiva 2003/55 visa a continuidade, a universalidade e a não discriminação na actividade de abastecimento de gás (46) mas também a salvaguarda do direito dos clientes ao «fornecimento de gás natural de uma qualidade específica a preços razoáveis» (vigésimo sexto considerando). Daí a possibilidade de intervenção no preço do fornecimento, prevista no artigo 3.°, n.° 2, da directiva.

56.      Com estes antecedentes, pode concluir‑se que a finalidade de evitar aumentos indesejados e desproporcionados dos preços, que prejudiquem os consumidores, constitui uma causa de «interesse económico geral» que, se se verificarem as restantes condições da directiva, legitimaria uma intervenção pública nas tarifas de fornecimento do gás natural.

D –    O teste da proporcionalidade e o respeito dos interesses comunitários

57.      O segundo parâmetro centra‑se no pleno respeito do Tratado e, em especial, do seu artigo 86.°

58.      Reveste grande relevância o n.° 2 do artigo 86.° CE que, como a jurisprudência tem salientado, pretende «conciliar o interesse dos Estados‑Membros em utilizar certas empresas, nomeadamente do sector público, como instrumentos de política económica ou fiscal com o interesse da Comunidade em que sejam respeitadas as regras de concorrência e preservada a unidade do mercado comum» (47).

59.      De acordo com esta disposição, as «empresas encarregadas da exploração de serviços de interesse económico geral» submetem‑se ao Tratado e ao seu regime relativo à concorrência, na medida em que a sua aplicação não constitua obstáculo ao cumprimento, de facto ou de direito, da missão que lhes foi confiada; e, de qualquer maneira, o desenvolvimento das trocas comerciais não deve ser afectado contra o interesse da Comunidade.

60.      No caso agora em apreço, importa analisar, em primeiro lugar, se a intervenção das tarifas de fornecimento de gás é uma medida indispensável para garantir «preços razoáveis» (o chamado controlo da proporcionalidade) e, em segundo lugar, se essa opção viola «o interesse da Comunidade».

1.      O teste da proporcionalidade

61.      O número da disposição antes referido, por força do qual a excepção às regras do mercado não deve impedir, nem de facto nem de direito, a realização do trabalho de interesse económico geral, introduz na discussão o chamado «teste de proporcionalidade», autêntica chave do artigo 86.° CE, n.° 2, pois torna mais fácil adaptar a sua utilização.

a)      Jurisprudência

62.      O acórdão Sacchi despertou uma crescente expectativa quanto a este artigo, deixando a cargo dos Estados a prova de que a livre concorrência constituiria um obstáculo insuperável à função atribuída à entidade em causa (48). Posteriormente, o acórdão Höfner confirmou que o Tratado não se opõe à missão atribuída a um serviço público de colocação «quando este não se encontra manifestamente em condições de satisfazer a procura existente neste sector de mercado» e tolera que outras sociedades actuem em detrimento do seu monopólio (49).

63.      Todavia, até ao acórdão Corbeau, já referido, o princípio da proporcionalidade não aparece no raciocínio do Tribunal de Justiça. Na jurisprudência Corbeau e, mais tarde, no acórdão Ayuntamiento de Almelo, foram declaradas admissíveis as excepções às regras do mercado necessárias para assegurar o «equilíbrio económico» do serviço, consoante o peso relativo das actividades que são rentáveis e das que não são.

64.      Posteriormente, três decisões relativas aos direitos exclusivos para a importação e exportação de energia conferidos nos Países Baixos, na Itália e na França (50) vieram acrescentar alguns detalhes. Por um lado, aludiram à proporcionalidade no quadro do artigo 86.° CE, permitindo invocar o seu n.° 2 «para justificar a concessão, por um Estado‑Membro, a uma empresa encarregada da gestão de serviços de interesse económico geral, de direitos exclusivos [...], na medida em que o cumprimento da missão particular que lhe foi confiada só possa ser assegurado pela concessão desses direitos e desde que o desenvolvimento das trocas comerciais não seja afectado de maneira que contrarie os interesses da Comunidade» (51). Por outro lado, acrescentaram que, para contornar as normas do Tratado, «basta que a aplicação dessas regras constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, das especiais obrigações que incumbem a essa empresa. Não é necessário que a própria sobrevivência da empresa seja ameaçada» (52) e mesmo que o ónus da prova caiba ao Estado‑Membro em causa, não se lhe pode exigir que demonstre «que nenhuma outra medida imaginável, e por definição hipotética, poderia permitir garantir o cumprimento dessas missões nas mesmas condições» (53).

65.      Da jurisprudência depreende‑se que só é possível derrogar as regras relativas à concorrência ex artigo 86.° CE quando tal for indispensável para o desempenho da tarefa de interesse geral em questão, incumbindo aos Estados‑Membros a apreciação dessas circunstâncias, segundo a sua política nacional e no respeito do Tratado.

b)      Aplicação ao caso controvertido

66.      O Governo italiano, através de um decreto‑lei, decidiu conferir à sua autoridade nacional de regulação um poder de intervenção nas tarifas de fornecimento do gás natural, alegando a falta de concorrência real no mercado nacional do gás e a tendência altista dos produtos petrolíferos nos mercados internacionais.

67.      Em meu entender, uma conjuntura como a descrita poderia eventualmente constituir um obstáculo à realização do «interesse económico geral», que consiste em garantir o abastecimento de gás a preços razoáveis, legitimando a ingerência do Estado no livre jogo das regras do mercado.

68.      Na sua Comunicação de 10 de Janeiro de 2007, já referida, a Comissão reconhece que «a experiência adquirida até à data demonstrou que os preços grossistas da energia apresentam uma volatilidade considerável. Este facto levanta a questão de determinar se e como os clientes finais, incluindo os clientes vulneráveis, devem estar expostos a essas flutuações». Com esta preocupação, acrescenta que «[e]mbora os controlos de preços impeçam o envio de sinais adequados de preços aos clientes sobre custos futuros, a regulamentação orientada para os preços pode ser necessária a fim de proteger os consumidores em determinadas circunstâncias específicas, por exemplo no período de transição para uma concorrência efectiva». Esses controlos «devem ser equilibrados de modo a não impedir a abertura do mercado, a não criar discriminações entre fornecedores de energia da UE e a não reforçar distorções da concorrência ou restringir a revenda» (54).

69.      Deste modo, a intervenção tem de ser proporcional ao objectivo prosseguido o que, de acordo com a jurisprudência, pressupõe que não exceda o indispensável para conseguir o pertinente propósito «de interesse económico geral»: no presente caso, a moderação dos preços. Para levar a cabo o referido teste de proporcionalidade, utilizam‑se como orientação os seguintes critérios, derivados da jurisprudência comentada:

i)      Transitoriedade e adaptabilidade

70.      O carácter temporário da medida é, em minha opinião, a primeira e principal consequência do princípio da proporcionalidade, pois a excepção às regras do mercado interno perde a sua justificação se a situação mudar: é o que acontece se forem admitidos novos concorrentes no mercado grossista ou se os preços estabilizarem. Por isso, um eventual poder de fixação das tarifas, sem limite de tempo, violaria esta regra (55) mas não exigiria fixar uma data para a caducidade do poder de intervenção. Além disso, a sua adaptabilidade a um novo contexto e a sua actualização periódica (56) são aspectos que têm de ser avaliados positivamente.

ii)    Conteúdo

71.      Em segundo lugar, deve ponderar‑se o conteúdo da intervenção controvertida. Assim, se se quiser evitar que o montante que o consumidor final de gás natural tem de pagar aumente excessivamente devido à subida do custo do petróleo, a intervenção pública tem de cingir‑se a esse componente do preço de venda relativo à matéria prima (57).

iii) Destinatários

72.      Em terceiro lugar, a proporcionalidade obriga a restringir os destinatários da decisão estatal. As tarifas exigidas para utentes comerciais (que não sejam famílias ou «clientes domésticos») excederiam o objectivo de defesa dos consumidores que, em último caso, serve de justificação à intervenção pública no mercado. No caso em apreço, tal levaria a averiguar se a categoria de «clientes nacionais» que o decreto‑lei refere, reveste esse carácter. Na audiência, o Governo italiano e as recorrentes no processo principal manifestaram as suas divergências nesta matéria. Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se, segundo a regulamentação italiana, e sobretudo à luz da deliberação n.° 65/09 da Autorità, a protecção tarifária se aplica a empresas; se decidir pela afirmativa, deve concluir‑se que essa intervenção é desproporcionada e, portanto, contrária ao direito comunitário.

73.      A Federeutility, a Assogas e a Libarna criticam também a extensão dos «preços de referência» a categorias além dos «clientes vulneráveis» referidos no artigo 3.°, n.° 3, da directiva. Esta disposição revela uma preocupação especial com este grupo de pessoas (aludindo depois aos que residem em zonas periféricas) mas no quadro mais geral da protecção dos consumidores. Por conseguinte, nem com base nesse n.° 3 nem no n.° 2 imediatamente anterior se deduz que as obrigações de serviço público tenham de se basear sempre em preocupações de solidariedade social.

iv)    Comparação com outros instrumentos

74.      Em quarto lugar seria de escolher, entre todas as soluções possíveis, a menos lesiva para a livre concorrência. Nesta matéria, a jurisprudência conferiu uma ampla margem de manobra aos Estados‑Membros, aos quais não se pode exigir a probatio diabolica de que «nenhuma outra medida imaginável [...] poderia permitir garantir o cumprimento dessas missões nas mesmas condições» (58). Assim, o acórdão Albany (59) não aceitou que as autoridades se inclinassem para a solução menos restritiva da concorrência.

75.      A Federutility entende que o Estado italiano protege a qualidade e o preço do fornecimento (além da sua segurança e regularidade) mediante a designação de um fornecedor de último recurso. Compete ao órgão jurisdicional italiano verificar se a intervenção tarifária e o serviço universal (previsto no artigo 3.°, n.° 3, da directiva), confluem num mesmo objectivo ou se têm fins distintos e complementares.

76.      O «benchmarking» da Comissão com base no artigo 3.°, n.° 6, da directiva, podia ser utilizado para um controlo deste tipo, comparando o que foi posto em prática nos diferentes Estados‑Membros. Este tipo de comparação, no entanto, deve ser feito com o maior cuidado, pois a própria directiva dispõe que é importante que «os requisitos de serviço público possam ser interpretados numa base nacional, tendo em conta as circunstâncias nacionais, e sujeitos ao respeito do direito comunitário» (vigésimo sétimo considerando).

2.      A violação do «interesse da Comunidade»

77.      Sem prejuízo do referido teste de proporcionalidade, o artigo 86.° CE, n.° 2, dispõe que a medida adoptada não deve afectar o desenvolvimento das trocas comerciais de maneira que «contrarie os interesses da Comunidade».

78.      Nos três acórdãos de 23 de Outubro de 1997 acima referidos (60) o Tribunal de Justiça pediu à Comissão para definir esse interesse. Todavia, como o advogado‑geral Léger adverte nas conclusões que apresentou no processo J.C.J. Wouter e outros (61), essas decisões explicar‑se‑iam pelas normas que regulam o ónus da prova nas acções por incumprimento. Concordo com o meu antigo colega em que apreciar um prejuízo para as trocas comerciais intracomunitárias na acepção do referido artigo 86.° CE, n.° 2, pressupõe – contrariamente ao conceito clássico de medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa – a prova de que a actuação controvertida perturbou substancialmente o funcionamento do mercado interno.

79.      No caso sub iudice, o órgão jurisdicional italiano deve apurar se a intervenção da Autorità nos preços gerou essa perturbação. No seu despacho de reenvio, refere a incidência negativa da «manutenção de uma regulamentação destinada a conter o custo de matéria‑prima» no direito de escolher o fornecedor, que a directiva protege. O órgão jurisdicional de reenvio também tem de comprovar que houve um dano real e se, como indicado (62), impede a abertura do mercado.

E –    Carácter não discriminatório das obrigações de serviço público

80.      De acordo com o artigo 3.°, n.° 2, da directiva, as obrigações de serviço público impostas às empresas que operam no sector do gás não devem gerar discriminações.

81.      O objectivo desta disposição é que as referidas obrigações vinculem por igual todos os operadores do sector, a fim de evitar um agravamento da falta de concorrência.

82.      Por exemplo, introduzir «preços de referência» exclusivamente para o operador dominante, com a vantagem concorrencial adicional que isso implicaria, constituiria uma violação da directiva. Esta circunstância – e a vigência indeterminada da medida – levou Conseil constitutionnel francês a considerar inconstitucional uma disposição legal que sujeitava os «operadores históricos» a tarifas obrigatórias para o abastecimento de electricidade e de gás natural (63).

83.      Ora, uma aplicação geral e indiferenciada também não assegura o princípio da igualdade. A empresa Assogas acrescenta que as decisões da Autorità originam uma disparidade entre os fornecedores de gás que são simultaneamente grossistas e os que não são, pois, estando ambos obrigados a respeitar os preços mínimos «de referência», nada impediria os primeiros de se ressarcirem, nas vendas aos segundos, do excesso de custo da matéria prima. Dos autos depreende‑se que a Autorità tentou atenuar este prejuízo para os retalhistas, fazendo pressão no sentido de uma renegociação dos contratos de venda por grosso (64). A Assogas sugere que o contexto exposto não basta, já que a Autorità não pode imiscuir‑se nas relações de direito privado. O órgão jurisdicional de reenvio deve, pois, averiguar se houve uma discriminação que tenha provocado um prejuízo real a certos retalhistas de gás natural.

F –    Quanto ao papel do artigo 3.°, n.° 3, da directiva, no caso em apreço

84.      Enquanto no n.° 2 do artigo 3.° da directiva se prevê a criação de obrigações de serviço público «no interesse geral» como uma mera faculdade dos Estados, no n.° 3 os Estados assumem o compromisso genérico de «adoptar medidas adequadas para garantir a protecção dos clientes finais e assegurar níveis elevados de protecção dos consumidores».

85.      A possibilidade de aplicar o n.° 3 ao caso em apreço é referida nalguns articulados das partes que apresentaram alegações neste processo prejudicial, para ser afastada de forma mais ou menos acertada.

86.      Algumas das recorrentes no processo principal alegam que as decisões controvertidas não são legitimadas pelo n.° 3, dado que se estendem a todas as categorias de utentes e não apenas aos «vulneráveis». Este argumento é desprovido de fundamento, pois aquela disposição não se circunscreve a essas pessoas, embora as mencione expressamente, a fim de lhes assegurar uma protecção especial.

87.      Partilho com a Comissão a tese de que as resoluções que os governos nacionais devem aprovar com base no artigo 3.°, n.° 3, da directiva, «não se referem directamente à fixação de obrigações tarifárias, pois existe uma regra mais específica no n.° 2».

88.      O n.° 3 só alude indirectamente a disposições que afectam os preços do fornecimento de gás, ao incorporar no seu Anexo A, para o qual remete, a necessidade de informar os consumidores do seu «direito de serem abastecidos [...] com gás natural de qualidade especificada, a preços razoáveis» [alínea g)].

89.      A intervenção no preço do fornecimento é, portanto, uma mera autorização, que se rege pelo n.° 2 e não pelo n.° 3.

90.      O artigo 3.°, n.° 3, reforça os poderes dos Estados‑Membros, permitindo‑lhes – e, inclusivamente, compelindo‑os – a intervir num mercado liberalizado como o do gás, quando dêem conta de alguma ameaça real para os utentes, impossível de contornar com os instrumentos do n.° 2.

VII – Conclusão

91.      Nos termos das reflexões que antecedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Tribunale Amministrativo Regionale della Lombardia (Itália) declarando que:

«Os artigos 3.° e 23.° da Directiva 2003/55/CE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma disposição nacional que, tendo em conta a situação peculiar do mercado, ainda caracterizado pela falta de condições de ‘concorrência efectiva’, admita a fixação por via administrativa do preço de referência do gás natural, que deve ser iniludivelmente incluído nas ofertas comerciais aos clientes domésticos, desde que se observem os parâmetros fixados no artigo 3.°, n.° 2, da Directiva 2003/55 e, em especial:

–        a medida vise um interesse económico geral; por exemplo, a necessidade de manter os preços num nível razoável;

–        a medida passe o chamado «teste de proporcionalidade», no que diz respeito à sua vigência, ao seu conteúdo e aos seus destinatários;

–        não se perturbe de modo substancial o funcionamento do mercado interno; e

–        não se estabeleçam discriminações entre os operadores do sector».


1 – Língua original: espanhol.


2 – Terminologias utilizada por Forshoff na sua teoria sobre a «procura existencial» (Daseinsvororge) [Forshoff, E., Sociedad Industrial y Administración Pública, Escuela Nacional de Administración Pública, Madrid, 1967 (1958)].


3 – Como assinalou de forma exemplar Fernández, T. R. in «Del servicio público a la liberalización desde 1950 hasta hoy», Revista de Administración Pública, n.° 150, Setembro‑Dezembro 1999, pp. 57 a 73).


4 – Em 1846, Alexandre Dumas, na sua pequena novela «A Mulher do Colar de Veludo», Histórias Sobrenaturais», Guimarães Editores Lda., Lisboa, 2003, p. 171 [Mil y un fantasmas, Editorial Valdemar, Madrid, 1996, p. 20], escrevia que «Nodier, sentia horror por todas as invenções: o gás deixava‑o fora de si, o vapor de água exasperava‑o; entrevia o fim do mundo próximo na destruição dos bosques e no esgotamento das minas de carvão».


5 – Uma das primeiras aplicações do gás foi inventada pelo francês Montgolfier, ao fazer subir os seus famosos balões, aproveitando a característica de o hidrogénio ser mais leve do que o ar.


Mariano José de Larra escreveu em 1833 três artigos com o mesmo título, «Ascención aerostática», Artículos completos, Ed. RBA e Instituto Cervantes. No primeiro, a pp. 482 e segs., relata a tentativa do espanhol Garcia Rojo de fazer voar um balão no parterre do parque do Retiro em Madrid, em 28 de Abril de 1833, na presença dos Reis e perante uma extraordinária expectativa. A experiência malogrou‑se por várias circunstâncias e devido à chuva. No segundo artigo, pp. 546 e segs., a narração centra‑se noutra tentativa de Garzia Rojo, na praça de Oriente, uns dias mais tarde, na qual não conseguiu insuflar o balão, repetindo‑se a cena de Don Quixote e Sancho Pança quando, montados no Cravilenho, julgavam estar viajando pela terra do fogo ao leve sopro dos foles da casa do Duque. No terceiro, mais curto, não recolhido na obra citada, refere‑se novamente ao fiasco da praça de Oriente.


Posteriormente, o gás aparece como um avanço dos tempos modernos:


José Maria Eça de Queirós, em «A Relíquia», põe na boca do protagonista: «Perdera eu irremediavelmente a minha individualidade de Raposo, de católico, de bacharel, contemporâneo do Times e do gás – para me tornar um homem da Antiguidade clássica, coevo de Tibério?».


Finalmente, o gás passa a fazer parte do quotidiano, iluminando as ruas ou as casas:


Irene Nemirovsky, em El Baile (trad. espanhola De Gema Moral, Ed. Salamandra, Barcelona, 2006, p. 14), conta que a mãe de Antoinette, a protagonista, lia novelas dobrada debaixo de um candeeiro em forma de globo de vidro esmerilado, onde brilhava o impetuoso jacto de gás; e, na p. 53, menciona que Antoinette, num anoitecer de Paris, encontra o homem que acendia os candeeiros públicos a gás e que, enfiando um a um nos candeeiros de rua uma longa vara, os alumiava repentinamente.


Recentemente, Ana Maria Matute, vencedora dos prémios Planeta, Nadal ou Café de Gijon e candidata ao Nobel, em Paraíso inhabitado (Ed. Destino, Barcelona, 2008, p. 11), fala do homem que, nos entardeceres dos anos anteriores à segunda República espanhola, «ia acendendo com uma longa vara chamazinhas azuladas, trémulas, dentro dos seus candeeiros a gás».


6 – M. del C. Simon Palmer, «El gás en la obra de Galdós», Actas del IV Congreso internacional de estudios galdosianos de 1990, editadas pelo Cabildo Insular de Gran Canaria, Las Palmas, 1993, vol. II, pp. 565 e segs., recolhe numerosas passagens dos «Episodios Nacionales», de «Fortunata y Jacinta», de «Tormento», de «La desheredada» e de «Doña Perfecta».


7 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Directiva 98/30/CE (JO L 176, p. 57).


8 – Rapport public du Conseil d’État, 1994, Considérations générales: Service public, services publics: déclin ou renouveau, Études et Documents n.° 46, Paris, 1995.


9 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, relativa a regras comuns para o mercado do gás natural (JO L 204, p. 1).


10 – A alínea g) do Anexo A estabelece a obrigação de garantir que os clientes «ligados à rede de gás sejam informados do seu direito de serem abastecidos, nos termos da legislação nacional aplicável, com gás natural de qualidade especificada, a preços razoáveis».


11 –      A redacção do artigo 1.°, n.° 3, do Decreto‑lei, era ligeiramente diferente da do mesmo artigo da lei de confirmação, que introduziu a precisão de que o poder da Autorità é transitório.


12 – Recursos R.G. 1276/07, R.G. 1279/07, R.G. 1285/07, R.G. 1359/07 e R.G. 1490/07.


13 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (JO L 27, p. 20).


14 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE (JO L 176, p. 37).


15 – Artigos 21.° da Directiva 2003/54 e 23.° da Directiva 2003/55.


16 – Comunicação sobre as perspectivas para o mercado interno do gás e da electricidade (COM/2006/841 final).


17 – Mais ainda, como faz notar Peter D. Cameron, «os benefícios da liberalização dos mercados da energia não têm sido até agora tão evidentes como se previa: a descida dos preços não é um efeito inevitável da liberalização, como também não o é a diminuição da interferência estatal; o poder comercial das empresas já implantadas aumentou e a entrada de novos actores nos mercados da electricidade e do gás assumiu um cariz de ‘à espera de Godot’» (Cameron, P., Legal aspects of EU energy regulation. Implementing the New Directives on Electricity and Gas Across Europe, Oxford University Press, 2005, p. 36).


18 – Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Directiva 2003/55/CE, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural [COM (2007) 529 final].


19 – Comunicação de 10 de Janeiro de 2007, já referida, n.° 1.3.


20 – Comunicação de 10 de Janeiro de 2007, já referida, n.° 1.4.


21 – Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobre os progressos realizados na criação do mercado interno do gás e da electricidade [COM(2008) 192 final).


22 –      Articulados da Federutility, de 31 de Julho de 2009, pontos 7 a 9, e da Sorgenia, de 31 de Julho de 2009, n.° 1.


23 –      Neste sentido, v. alegações escritas da Sorgenia, pp. 5 e 6.


24 –      Articulados da Federutility de 31 de Julho de 2009, pontos 12 e 13, e da Sorgenia, também de 31 de Julho de 2009, n.° 2.


25 – Não poucas vezes com monopólios de propriedade pública.


26 – Na acepção do artigo 2.° da directiva.


27 – Que, como escreveu Jones, C. W., EU Energy Law, Volume I, The International Energy Market, Second Edition, Leuven: Caléis & Castells, 2006, p. 223 «se presumia que actuavam sempre no interesse público».


28 – Na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.


29 – Acórdão de 24 de Julho de 2003, Altmark (C‑280/00, Colect., p. I‑7747, n.os 84 a 95). O acórdão de 27 de Novembro de 2003, Enirisorse (C‑34/01 a C‑38/01, Colect., p. I‑14243) aplicou as condições enunciadas na decisão anterior a um caso em que se discutia a natureza de uma taxa portuária parcialmente recebida por uma empresa pública. Antes da jurisprudência Altmark, o acórdão de 22 de Novembro de 2001, Ferring (C‑53/00, Colect., p. I‑9067) já tinha especificado os elementos indispensáveis para uma isenção fiscal de que beneficiam empresas incumbidas da gestão de serviços públicos ser compatível com o Tratado.


30 – A directiva limita‑se a assinalar que as obrigações de serviço público são estabelecidas no interesse económico geral, podendo incluir «obrigações […] em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, qualidade e preço dos fornecimentos, assim como de protecção do ambiente, incluindo a eficiência energética e a protecção do clima». Não faltou quem qualificasse este elenco de numerus clausus como causas de «interesse económico geral» susceptíveis de legitimar a actuação estatal (Geldhoff, W., e Vandenriessche. F., «Chapter 1: European Electricity and Gas Market Liberalisation. Background, Status, Devevelopment», EU Energy Law and Policy Issues, Ed. Por Delvaux, B., Hunt, M. e Talus, K. Euroconfidential, p. 48, que por sua vez citam Jones, C. W., op. cit., p. 230). Em minha opinião, no entanto, a disposição especifica os tipos de acções em que devem concretizar‑se as referidas obrigações de serviço público, e não uma lista das circunstâncias que lhes devem servir de fundamento, embora ambos os aspectos se encontrem fortemente relacionados. Do artigo 3.°, n.° 2, da directiva, é possível depreender que os Estados‑Membros podem criar obrigações de serviço público relativas ao preço de venda do gás, mas essa simples referência não é suficiente. Há que comprovar, caso a caso, se se está perante uma missão de interesse económico geral.


31 – A Comissão não deixou de especificar as exigências da directiva, numa nota não vinculativa, que aplica em parte ao levar a cabo o controlo ex ante das obrigações de serviço público notificadas pelos Estados‑Membros («Note de la DG Energie et Transports sur les Directives 2003/54/CE et 2003/55/CE du marché interieur de l’électricité et du gaz natural. Document n’engageant pas la Commission», disponível em http://ec.europa.eu/energy/electricity/legislation/doc/notes_for_implementation_2004/public_service_obligations_fr.pdf). Pretendendo reforçar a sua posição nesta actividade de comprovação, o terceiro pacote energético preconiza que a Comissão aprove directrizes para a execução do artigo 3.° da directiva (artigo 3.°, n.° 4, da proposta de directiva que altera a Directiva 2003/55, já referida, que introduz um novo n.° 7 no artigo 3.° da Directiva 2003/55).


32 – Segundo o artigo 3.°, n.° 6, da directiva, estas medidas devem ser comunicadas à Comissão. Foi o que fez o Governo italiano depois de ter sido instado nesse sentido (alegações da Comissão, n.° 42).


33 – N.° 38.


34 – A expressão «serviços de interesse económico geral» refere‑se a serviços de natureza económica que um Estado‑Membro sujeita a obrigações, em função de um certo interesse geral (Szyszczak, E., The Regulation of the State in Competitive Markets in the EU, Ed. Hart, 2007, p. 211). A formulação do artigo 3.°, n.° 2, da directiva, decorre, nas palavras de Laget‑Annamayer, do cruzamento «entre o conceito francês de serviço público e a noção comunitária de ‘serviço de interesse económico geral’ (Laget‑Annamayer, A., La régulation des services publics en réseaux. Télécommunications et électricité, Ed. Bruylant, Bruxelas, 2002, p. 98).


35 – Acórdão de 8 de Novembro de 1983, NV IAZ International Belgium e o. (96/82 a 102/82, 104/82, 105/82, 108/82 e 110/82, Colect., p. 3369).


36 – Acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/França (C‑159/94, Colect., p. I‑5815).


37 – Acórdão de 27 de Abril de 1994, Ayuntamiento de Almelo e o. (C‑393/92, Colect., p. I‑1477).


38 – Acórdãos de 19 de Maio de 1993, Corbeau (C‑320/91, Colect., p. I‑2533), de 10 de Fevereiro de 2000, Deutsche Post AG (C‑147/97, Colect., p. I‑825), e de 17 de Maio de 2001, TNT Traco (C‑340/99, Colect., p. 4109).


39 – Acórdão de 11 de Abril de 1989, Ahmed Saeed Flugreisen e Silver Line Reisebüro (66/86, Colect., p. 803).


40 – Acórdão de 25 de Outubro de 2001, Firma Ambulanz Glöckner (C‑475/99, Colect., p. I‑8089).


41 – Acórdão Ferring, já referido.


42 – Todas referidas, de resto, a empresas com direitos exclusivos e especiais e não a entidades que operam em sectores liberalizados nem àquelas às quais são impostas obrigações de serviço público. A sua aplicação neste caso deve basear‑se, portanto, neste contexto peculiar, de momento ainda sem reflexo na jurisprudência.


43 – Esta é a concepção também subjacente ao artigo 16.° CE, por força do qual «sem prejuízo do disposto nos artigos 73.°, 86.° e 87.°, e atendendo à posição que os serviços de interesse económico ocupam no conjunto dos valores comuns da União e ao papel que desempenham no promoção da coesão social e territorial, a Comunidade e os seus Estados‑Membros, dentro do limite das respectivas competências e no âmbito de aplicação do presente Tratado, zelarão por que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições que lhes permitam cumprir as suas missões». Esta disposição foi incluída em Amesterdão, em pleno processo de liberalização de sectores estratégicos, em resultado de uma «grande preocupação, nalguns sectores sociais, com a deriva liberal a nível europeu» (Sarmiento, D., «La recepción en el derecho de la Unión Europea y en su jurisprudencia de las técnicas de regulación económica», Derecho de la regulación económica. I. Fundamentos y instituciones de la regulación, dir. Muñoz Machado, S. e Esteve Prado, J., Ed. Iustel, Fundación Ortega y Gasset, 2009, p. 259).


44 – Já referido, n.° 15.


45 – Já referido, n.° 48. Na mesma linha, acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Francis (C‑159/94, p. I‑5818, n.° 57).


46 – Confirmam‑no o conjunto de obrigações previstas no artigo 3.°, n.° 2, e a possibilidade de «designar um fornecedor de último recurso» (artigo 3.°, n.° 3).


47 – Acórdão de 19 de Março de 1991, França/Comissão (C‑202/88, Colect., p. I‑1223, n.° 12).


48 – Acórdão de 30 de Abril de 1974 (155/73, Colect., p. 409). No mesmo sentido, acórdão de 11 de Abril de 1989, Ahmed Saeed Flugreisen e Silver Line Reisebüro (66/86, Colect., p. 803).


49 – Acórdão de 23 de Abril de 1991, Höfner e Elser (C‑41/90, Colect., p. 1979, n.° 25).


50 – Acórdãos de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Países Baixos (C‑157/94, Colect., p. I‑5699); Comisssão/Itália (C‑158/94, Colect., p. I‑5789) e Comissão/França (C‑159/94, Colect. p. I‑581). Uma quarta acção por incumprimento, proposta contra a Espanha foi julgada improcedente [acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Espanha (C‑160/94, Colect., p. I‑5851)].


51 – Acórdãos Comissão/Países Baixos, já referido, n.° 32, Comissão/Itália, já referido, n.° 43 e Comissão/França, também já referido n.° 49.


52 – Acórdãos Comissão/Países Baixos, n.° 43 e Comissão/França, n.° 59. V. também acórdão TNT Traco, já referido, n.° 54; e de 15 de Novembro de 2007, International Mail Spain (C‑162/06, Colect., p. I‑9911, n.° 35).


53 – Acórdãos Comissão/Países Baixos, já referido, n.° 58, Comissão/Itália, já referido, n.° 54; e Comissão/França, já referido, n.° 101.


54 – N.° 2.6.2.


55 – Aqui radica provavelmente a razão de, no processo parlamentar de confirmação, ter sido enfatizado o carácter transitório do poder da Autorità.


56 – Segundo o Governo italiano, é feita trimestralmente (n.° 60 das observações).


57 – A Comissão (ponto 56) sustenta que é o que acontece em Itália, circunstância que, como as outras, compete ao órgão jurisdicional nacional comprovar.


58 – Acórdãos Comissão/Países Baixos, já referida, n.° 58, Comissão/Itália, também já referida, n.° 54 e Comissão/França, igualmente referida, n.° 101.


59 – Acórdão de 21 de Setembro de 1999 (C‑67/96, Colect., p. I‑5751, n.os 99 e 104).


60 – Acórdãos Comissão/Países Baixos, já referido, n.° 69, Comissão/Itália, também já referido, n.° 65 e Comissão/França, igualmente referido, n.° 113.


61 – Conclusões de 10 de Julho de 2001 [acórdão de 19 de Fevereiro de 2002, J. C. J. Wouters, J. W. Savelbergh e Price Waterhouse Belastingadviseurs (C‑309/99, Colect., p. I‑1577)].


62 – Alegações da Federutility, n.° 62.


63 – Decisão n.° 2006‑543, de 30 de Novembro de 2006. O Conseil constitutionnel declarou as referidas tarifas para os operadores históricos manifestamente incompatíveis com os objectivos liberalizadores das directivas comunitárias, sem qualquer justificação no serviço público. Em relação a esta decisão, Schoettl, E. «Les problèmes consitutionnels soulevés par la loi relative au secteur de l’énergie», Petites affiches, 395.° ano (2006), n.° 244, pp. 3 a 23.


64 – Alegações da Sorgenia, p. 6. São medidas de incentivo económico à renegociação, introduzidas pela Decisão n.° 79/07 da Autorità, referida nos n.os 22 e 23 das alegações do Governo italiano.

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