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Document 62005CJ0370

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 25 de Janeiro de 2007.
Processo-crime contra Uwe Kay Festersen.
Pedido de decisão prejudicial: Vestre Landsret - Dinamarca.
Liberdade de estabelecimento - Livre circulação de capitais - Artigos 43.º CE e 56.º CE - Restrições à aquisição de explorações agrícolas - Obrigação de o adquirente estabelecer a sua residência permanente na propriedade agrícola.
Processo C-370/05.

Colectânea de Jurisprudência 2007 I-01129

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2007:59

Processo C‑370/05

Processo penal

contra

Uwe Kay Festersen

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vestre Landsret)

«Liberdade de estabelecimento – Livre circulação de capitais – Artigos 43.° CE e 56.° CE – Restrições à aquisição de explorações agrícolas – Obrigação de o adquirente estabelecer a sua residência permanente na propriedade agrícola»

Conclusões da advogada‑geral C. Stix‑Hackl apresentadas em 3 de Outubro de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 25 de Janeiro de 2007 

Sumário do acórdão

Livre circulação de capitais – Restrições à aquisição de bens imóveis

(Artigo 56.° CE)

O artigo 56.° CE opõe‑se a que uma legislação nacional submeta a aquisição de uma propriedade agrícola à condição de o adquirente estabelecer a sua residência permanente nessa propriedade por um período de oito anos, independentemente de circunstâncias particulares relativas às características próprias da propriedade agrícola em causa.

Pode, na verdade, admitir‑se que uma regulamentação nacional que comporta essa obrigação de residência, destinada a evitar a aquisição de terrenos agrícolas por razões puramente especulativas, e que tem assim como finalidade facilitar a apropriação desses terrenos prioritariamente por pessoas que desejem cultivá‑los, satisfaz um objectivo de interesse geral num Estado‑Membro cujos terrenos agrícolas constituem um recurso natural limitado. Contudo, a obrigação de residência constitui uma medida que vai além do que é necessário para atingir tal objectivo. Com efeito, por um lado, afigura‑se particularmente coerciva, na medida em que restringe não só a liberdade dos movimentos de capitais mas também o direito de o adquirente escolher livremente a sua residência, garantido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, violando, por isso, um direito fundamental. Por outro lado, nada permite concluir que outras medidas menos restritivas que esta obrigação podiam ser adoptadas para alcançar o objectivo pretendido. A obrigação em questão, e por maioria de razão quando é acompanhada de uma condição que consiste no facto de a residência ser mantida durante vários anos, vai além do que poderia considerar‑se necessário.

(cf. n.os 33‑37, 41‑42, 50, disp. 1)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

25 de Janeiro de 2007 (*)

«Liberdade de estabelecimento – Livre circulação de capitais – Artigos 43.° CE e 56.° CE – Restrições à aquisição de explorações agrícolas – Obrigação de o adquirente estabelecer a sua residência permanente na propriedade agrícola»

No processo C‑370/05,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Vestre Landsret (Dinamarca), por decisão de 5 de Outubro de 2005, entrado no Tribunal de Justiça em 10 de Outubro de 2005, no processo penal contra

Uwe Kay Festersen,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, A. Tizzano, A. Borg Barthet, J. Malenovský (relator) e U. Lõhmus, juízes,

advogada‑geral: C. Stix‑Hackl,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 12 de Julho de 2006,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação de U. Festersen, por K. Berning, advokat,

–       em representação do Governo dinamarquês, por J. Molde, na qualidade de agente, assistido por P. Biering, advokat,

–       em representação do Governo norueguês, por K. Moen e I. Holten, na qualidade de agentes,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Støvlbæk, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 3 de Outubro de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 43.° CE e 56.° CE.

2       Este pedido foi apresentado no quadro de um processo penal instaurado contra U. Festersen por não ter respeitado a obrigação de estabelecer a sua residência permanente na propriedade agrícola que adquiriu na área territorial da comuna de Bov, no Departamento da Jutlândia do Sul (Dinamarca).

 Quadro jurídico nacional

3       Nos termos do § 2 da landbrugsloven (Lei relativa à agricultura dinamarquesa), na versão decorrente do lovbekendtgørelse nr. 598 (Decreto de Codificação n.° 598), de 15 de Julho de 1999 (a seguir «lei relativa à agricultura»):

«1.      As propriedades agrícolas estão sujeitas à obrigação de cultivo, nos termos das normas da presente lei.

2.      Considera‑se propriedade agrícola uma propriedade descrita como tal no registo predial.

[...]»

4       O § 4, n.° 6, da lei relativa à agricultura prevê:

«Quando uma propriedade agrícola estiver fraccionada ou reduzida a uma superfície inferior a 2 ha, a obrigação de cultivo é suprimida, a menos que o proprietário deseje mantê‑la. […]»

5       Nos termos do § 7 da mesma lei:

«1.      Uma propriedade agrícola deve ser mantida como exploração autónoma e estar provida de uma casa de habitação adequada, a partir da qual os seus habitantes exploram as terras, sem prejuízo do disposto no § 8, n.os 4 e 6, no § 9, n.os 1 e 2, e no § 10.

2.      A propriedade deve ser devidamente explorada, tendo em conta as possibilidades de utilização económica, as condições de sanidade da exploração pecuária, a natureza e o ambiente.

[...]»

6       O § 16 da referida lei dispõe:

«1.      A aquisição de uma propriedade agrícola situada em zona rural e cuja área exceda 30 ha está sujeita à condição de:

[...]

4)      o adquirente estabelecer a sua residência permanente na mesma no prazo de seis meses a contar da sua aquisição,

5)      o adquirente explorar ele mesmo o terreno

[...]

2.      A aquisição de uma propriedade agrícola cuja área não exceda 30 ha está sujeita à condição de o adquirente preencher os requisitos previstos no n.° 1, pontos 1 a 4.

[...]»

7       Nos termos do § 18 da lei relativa à agricultura:

«1.      Sem prejuízo dos casos previstos nos §§ 16, 17 e 17 a, a aquisição de uma propriedade agrícola numa zona rural depende da autorização do ministro da Alimentação, da Agricultura e das Pescas.

[...]

4.      O ministro pode autorizar a aquisição de uma propriedade agrícola quando:

1)      a aquisição tenha por fim a utilização prevista no § 4, n.° 1, ponto 1, e se possa prever que a propriedade será afecta num futuro próximo à finalidade em causa;

2)      a aquisição tenha por fim uma utilização não agrícola com fins lucrativos, que, além disso, deve ser considerada desejável com base num interesse social geral;

3)      a aquisição tenha uma finalidade específica, designadamente a utilização para fins de carácter científico, didáctico, social, sanitário ou recreativo;

4)      a aquisição tenha por fim a criação de prados húmidos, a recuperação da natureza ou fins análogos, ou

5)      outras circunstâncias especiais o aconselhem.

[...]»

8       O § 27, n.° 2, da lei relativa à agricultura prevê:

«Se o requerimento de autorização para aquisição ou o requerimento de autorização para arrendamento de uma propriedade agrícola não for apresentado nos termos legais, o ministro pode intimar o proprietário a alienar a propriedade no prazo mínimo de seis meses e máximo de um ano ou intimar o rendeiro a desistir da exploração no mesmo prazo. O mesmo se aplica se a autorização for recusada ou caducar ou se não estiverem preenchidas as condições fixadas para a autorização. [...]»

9       Segundo o § 33 desta lei:

«1.      Será punido com multa quem:

[...]

3)      não der cumprimento à intimação, nos termos do § 8, n.os 5 e 7, do § 9, n.° 5, ou do § 27.

[…]»

10     Nos termos do § 62 da circular n.° 26, de 22 de Fevereiro de 2000, respeitante à lei relativa à agricultura:

«Só em casos excepcionais pode ser concedida a autorização prevista no § 18 da [lei relativa à agricultura] para a aquisição de propriedades agrícolas com dispensa da obrigação de residência sem limite de tempo (v. § 16, n.° 1, ponto 4). Isto aplica‑se, por exemplo, quando, devido a razões relativas à situação do prédio, é fisicamente impossível cumprir a obrigação de residência durante uma grande parte do ano. Esta disposição deve ser aplicada restritivamente.»

11     Segundo o § 4, n.° 1, do Decreto n.° 627, de 26 de Julho de 1999, relativo às condições de formação e de residência em ligação com a lei relativa à agricultura (bekendtgørelse nr. 627 af 26. juli 1999 om uddannelseskrav og bopælskrav m.v. i henhold til landbrugsloven), a obrigação de residência numa propriedade agrícola pressupõe que a pessoa resida de forma permanente e aí passe as noites, salvo em caso de superveniência de circunstâncias especiais de duração determinada. A referida pessoa deve estar inscrita no registo da população da comuna como habitando na referida propriedade, de tal forma que esta constitua a sua residência principal do ponto de vista fiscal.

12     O § 4, n.° 2, do mesmo decreto prevê que o adquirente deve satisfazer a obrigação de residência durante oito anos a partir da aquisição de uma propriedade agrícola.

 O litígio no processo principal e as questões prejudiciais

13     U. Festersen, cidadão alemão, adquiriu em 1998 no Departamento da Jutlândia do Sul um prédio designado, segundo o registo predial, como propriedade agrícola. Esta compreende duas parcelas: uma, com 24 a, situada numa zona urbana e destinada à construção, a outra, com 3,29 ha, situada numa zona rural e que é um prado.

14     Não tendo o interessado cumprido a obrigação de estabelecer a sua residência nessa propriedade, a Comissão de Agricultura do Departamento da Jutlândia do Sul interpelou‑o para regularizar a sua situação, ordenando‑lhe, em 8 de Setembro de 2000, que cedesse a sua propriedade no prazo de seis meses, a menos que tivesse, entretanto, legitimado o seu título de propriedade obtendo uma isenção da obrigação de cultivo ou preenchendo o requisito de residência.

15     Em 16 de Julho de 2001, a referida comissão concedeu a U. Festersen um novo prazo de seis meses para ceder a sua propriedade, salvo se tomasse, antes de esse prazo expirar, as medidas necessárias para reduzir a sua propriedade para menos de 2 ha e solicitar, ao mesmo tempo, uma isenção da obrigação de cultivo ou para nela estabelecer a sua residência.

16     Em 18 de Agosto de 2003, U. Festersen foi condenado pelo tribunal de Gråsten numa multa de 5 000 DKK por ter infringido os §§ 33, n.° 1, ponto 3, e 27, n.° 2, da lei relativa à agricultura, porquanto não dera cumprimento à intimação da Comissão de Agricultura do Departamento da Jutlândia do Sul. Foi‑lhe igualmente aplicada uma sanção pecuniária compulsória de 5 000 DKK por mês de mora se não desse cumprimento a essa intimação antes de 1 de Dezembro de 2003.

17     U. Festersen, que se instalou na propriedade em 12 de Junho de 2003, está inscrito no registo da população da comuna de Bov como residindo nesse endereço desde 12 de Setembro de 2003.

18     Recorreu da sua condenação para o Vestre Landsret e pediu a sua absolvição. O Ministério Público pediu a confirmação da decisão proferida em primeira instância.

19     U. Festersen e o Ministério Público divergem quanto à questão de saber se a obrigação de residência prevista pela lei relativa à agricultura era compatível com os princípios da liberdade de estabelecimento e da livre circulação de capitais tal como consagrados pelos artigos 43.° CE e 56.° CE.

20     Foi nestas condições que o Vestre Landsret decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 43.° CE e o artigo 56.° CE opõem‑se a que um Estado‑Membro imponha, como condição para a aquisição de uma propriedade agrícola, que o adquirente fixe residência nessa propriedade?

2)      É relevante para a resposta à primeira questão o facto de a propriedade não poder constituir uma unidade de exploração directa e de a casa de habitação estar situada numa zona urbana?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

21     Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as disposições do Tratado CE relativas ao direito de estabelecimento (artigo 43.° CE) e à livre circulação de capitais (artigo 56.° CE) se opõem a que uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, submeta a aquisição de uma propriedade agrícola à condição de o adquirente estabelecer a sua residência permanente nessa propriedade.

22     A título preliminar, deve recordar‑se que o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro, que constitui o complemento necessário da liberdade de estabelecimento, como resulta do artigo 44.°, n.° 2, alínea e), CE (acórdão de 30 de Maio de 1989, Comissão/Grécia, 305/87, Colect., p. 1461, n.° 22), gera, quando é exercido, movimentos de capitais (acórdão de 5 de Março de 2002, Reisch e o., C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, Colect., p. I‑2157, n.° 29).

23     Os movimentos de capitais compreendem as operações pelas quais os não residentes efectuam investimentos imobiliários no território de um Estado‑Membro, como resulta da nomenclatura dos movimentos de capitais que consta do anexo I da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.° do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO L 178, p. 5), conservando essa nomenclatura o valor indicativo que já previa para definir o conceito de movimentos de capitais (v. acórdãos de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C‑222/97, Colect., p. I‑1661, n.° 21; de 11 de Janeiro de 2001, Stefan, C‑464/98, Colect., p. I‑173, n.° 5; Reisch e o., já referido, n.° 30; e de 14 de Setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C‑386/04, ainda não publicado na Colectânea, n.° 22).

24     Deve então examinar‑se se uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, constitui uma restrição aos movimentos de capitais. A este respeito, resulta da jurisprudência constante que as medidas proibidas pelo artigo 56.°, n.° 1, CE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, compreendem as que são de molde a dissuadir os não residentes de fazerem investimentos num Estado‑Membro ou a dissuadir os residentes do referido Estado‑Membro de os fazerem noutros Estados (v., neste sentido, acórdão de 23 de Fevereiro de 2006, Van Hilten‑van der Heijden, C‑513/03, Colect., p. I‑1957, n.° 44).

25     Ora, embora a legislação dinamarquesa relativa à agricultura não estabeleça uma discriminação entre os cidadãos dinamarqueses e os cidadãos dos outros Estados‑Membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, não é menos verdade que o requisito de residência que estabelece e que só pode ser retirado com a autorização do ministro responsável pela agricultura restringe a liberdade dos movimentos de capitais.

26     Tal medida pode, todavia, ser admitida na condição de prosseguir um objectivo de interesse geral, de ser aplicada de maneira não discriminatória e de respeitar o princípio da proporcionalidade, isto é, de ser adequada para garantir a realização do objectivo prosseguido e de não ir além do que é necessário para que ele seja atingido (acórdãos de 1 de Junho de 1999, Konle, C‑302/97, Colect., p. I‑3099, n.° 40; Reisch e o., já referido, n.° 33; e de 23 de Setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg, C‑452/01, Colect., p. I‑9743, n.° 34).

27     Quanto à condição atinente à satisfação de um objectivo de interesse geral, o Governo dinamarquês sustenta que a regulamentação nacional visa, em primeiro lugar, preservar a exploração directa dos terrenos agrícolas, que constitui uma das formas de exploração tradicional na Dinamarca para que as propriedades agrícolas sejam predominantemente habitadas e exploradas pelos proprietários, em segundo lugar, manter uma população permanente no meio rural para efeitos de ordenamento do território e, em terceiro lugar, favorecer a utilização razoável dos terrenos disponíveis lutando contra a pressão fundiária.

28     Tais objectivos apresentam em si mesmos um carácter de interesse geral e são susceptíveis de justificar restrições à liberdade dos movimentos de capitais (v., neste sentido, acórdãos já referidos Konle, n.° 40; Reisch e o., n.° 34; e Ospelt e Schlössle Weissenberg, n.os 38 e 39). Por outro lado, como sustentam o Governo dinamarquês e a Comissão das Comunidades Europeias, estes objectivos correspondem aos da política agrícola comum, que visa, de harmonia com o disposto no artigo 33.°, n.° 1, alínea b), CE, «assegurar [...] um nível de vida equitativo à população agrícola» e cuja realização deve ter em conta, segundo o n.° 2, alínea a), desse artigo, «a natureza particular da actividade agrícola decorrente da estrutura social da agricultura e das disparidades estruturais e naturais entre as diversas regiões agrícolas» (v., neste sentido, acórdão Ospelt e Schlössle Weissenberg, já referido, n.° 40).

29     Relativamente à condição de proporcionalidade, há que verificar se a obrigação de o adquirente estabelecer a sua residência permanente na propriedade agrícola adquirida constitui, como sustentam os Governos dinamarquês e norueguês, uma medida adequada e necessária à realização dos objectivos mencionados no n.° 27 do presente acórdão.

30     No que respeita ao carácter adequado da medida nacional em causa no processo principal, deve observar‑se que ela comporta apenas uma obrigação de residência e não é acompanhada, em relação ao adquirente de uma propriedade agrícola inferior a 30 ha, de uma obrigação de explorar pessoalmente o bem. Tal medida, portanto, em si mesma, não é susceptível de garantir a realização do objectivo alegado que visa preservar a forma tradicional de exploração directa pelo respectivo proprietário.

31     Na verdade, no que respeita ao segundo objectivo atribuído à lei relativa à agricultura, deve ser observado que a obrigação de residência é susceptível de contribuir, por definição, para a manutenção da população no meio rural e pode também ser cumprida pelos exploradores agrícolas que, em conformidade com um dos objectivos gerais da lei relativa à agricultura que visa favorecer o modo de exploração directa, exploram eles próprios o seu meio de produção.

32     Todavia, deve observar‑se que, tendo em conta os fenómenos concomitantes de diminuição do número de explorações agrícolas e de agrupamento destas, como decorre das observações escritas apresentadas perante o Tribunal de Justiça e que não foram contestados durante a audiência, o objectivo que consiste em assegurar a manutenção da população no meio rural não pode ser atingido quando a operação de aquisição for precisamente levada a cabo por um explorador agrícola que já resida noutra exploração. Nessa situação, a obrigação de residência não garante que o referido objectivo seja atingido, e não resulta, por isso, que a referida obrigação seja, na realidade, capaz de satisfazer em si mesma tal objectivo.

33     Quanto ao terceiro objectivo que a lei relativa à agricultura procura atingir, há que reconhecer que com a obrigação de residência se pretende reduzir o número de potenciais adquirentes de propriedades agrícolas e que, por consequência, é susceptível de diminuir a pressão fundiária sobre estas. Pode, então, admitir‑se que uma regulamentação nacional que comporta essa obrigação, destinada a evitar a aquisição de terrenos agrícolas por razões puramente especulativas, e que tem assim como finalidade facilitar a apropriação desses terrenos prioritariamente por pessoas que desejem cultivá‑los satisfaz um objectivo de interesse geral num Estado‑Membro cujos terrenos agrícolas constituem, o que não é contestado, um recurso natural limitado.

34     Importa, então, verificar se a obrigação de residência constitui uma medida que não vai além do que é necessário para atingir tal objectivo.

35     Nessa apreciação, há que ter em conta a circunstância de a referida obrigação restringir não só a liberdade dos movimentos de capitais mas também o direito de o adquirente escolher livremente a sua residência, direito que lhe é garantido pelo artigo 2.°, n.° 1, do Protocolo n.° 4 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

36     Segundo o artigo 6.°, n.° 2, UE, «[a] União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a [CEDH], e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário» (acórdão de 27 de Junho de 2006, Parlamento/Conselho, C‑540/03, ainda não publicado na Colectânea, n.° 36).

37     Assim, a obrigação de residência viola um direito fundamental garantido pela CEDH, pelo que se afigura particularmente restritiva. Coloca‑se, por consequência, a questão de saber se podiam ser adoptadas outras medidas menos restritivas do que essa obrigação.

38     A este respeito, o Governo dinamarquês sustenta que a obrigação em causa não pode ser substituída por medidas menos restritivas com a mesma eficácia para impedir que os preços dos terrenos agrícolas destinados à produção sejam afectados por uma procura motivada exclusivamente pelo desejo de fazer investimentos em detrimento dos agricultores profissionais.

39     Embora este Governo alegue que a única solução que resta para manter os preços ao nível desejado seja a regulamentação destes pelo Estado, não precisa, todavia, em que termos é que tal medida seria mais restritiva do que a obrigação de residência adoptada. Também não justificou em que termos é que uma outra medida, evocada nos autos, de estímulos à locação das residências adquiridas numa propriedade agrícola seria mais restritiva do que essa obrigação. Nas observações do referido Governo, também não foram contempladas nem avaliadas outras medidas susceptíveis, eventualmente, de ser menos atentatórias da livre circulação de capitais, como disposições de tributação mais elevada das operações de revenda de terrenos efectuadas pouco tempo depois das aquisições ou ainda a exigência de uma duração mínima significativa para os contratos de locação de terrenos agrícolas.

40     Assim, nada do que precede permite ao Tribunal de Justiça reconhecer que a obrigação de residência é necessária para atingir o objectivo que se pretente alcançar.

41     Mesmo admitindo que a referida obrigação seja reconhecida como uma medida necessária para atingir o objectivo prosseguido, por produzir, por si mesma, efeitos positivos no mercado fundiário (dadas as contingências que provoca qualquer mudança de residência, com a consequência de desencorajar as operações de especulação fundiária), deve ser observado que, ao fazer acompanhar essa obrigação de uma condição que consiste no facto de a residência ser mantida durante pelo menos oito anos, tal condição adicional vai, evidentemente, além do que poderá considerar‑se necessário, nomeadamente porque implica uma suspensão duradoura do exercício da liberdade fundamental de escolher residência.

42     Na verdade, como alega o Governo dinamarquês, o § 8 da lei relativa à agricultura permite ao ministro da Alimentação, da Agricultura e das Pescas autorizar a aquisição de uma propriedade agrícola com uma isenção de duração indeterminada da obrigação de residência. Todavia, segundo a circular n.° 26, o exercício dessa competência é estritamente limitado a «circunstâncias muito particulares» e requer uma «aplicação restritiva».

43     Além disso, ao fornecer apenas um exemplo dessas circunstâncias, a referida circular não indica aos potenciais adquirentes as situações específicas e objectivas em que uma derrogação da obrigação de residência será concedida ou recusada. Tal indeterminação não permite aos particulares conhecer a extensão dos seus direitos e das suas obrigações decorrentes do artigo 56.° CE, de forma que tal regime deve ser considerado contrário ao princípio da segurança jurídica (v., neste sentido, acórdãos de 4 de Junho de 2002, Comissão/França, C‑483/99, Colect., p. I‑4781, n.° 50, e de 13 de Maio de 2003, Comissão/Espanha, C‑463/00, Colect., p. I‑4581, n.os 74 e 75). De qualquer maneira, não parece que este sistema tenha tomado em consideração a situação dos cidadãos da União que não residem na Dinamarca para evitar uma aplicação discriminatória.

44     Nestas condições, a obrigação de residência, a fortiori na medida em que no caso em apreço é acompanhada de uma condição de duração de oito anos, à qual a legislação nacional em causa no processo principal submete a aquisição das propriedades agrícolas de menos de 30 ha, não é uma medida proporcionada ao objectivo prosseguido e constitui, por isso, uma restrição à liberdade de movimentos de capitais incompatível com o artigo 56.° CE.

45     Deve ainda considerar‑se que o Governo dinamarquês alega que a obrigação de residência em causa no processo principal deve também beneficiar da derrogação prevista no Protocolo n.° 16 anexo ao Tratado e segundo o qual, «[n]ão obstante as disposições do presente Tratado, a Dinamarca fica autorizada a manter a legislação em vigor em matéria de aquisição de bens imóveis que sejam utilizados como residências secundárias».

46     A este propósito, deve reconhecer‑se, todavia, que a obrigação de estabelecer residência na propriedade agrícola adquirida se aplica independentemente do facto de a residência em causa ser principal ou secundária. O Protocolo n.° 16 não pode, por isso, ser utilmente invocado para justificar essa obrigação.

47     Tendo em conta tudo o que precede, não é necessário examinar as questões de interpretação relativas ao artigo 43.° CE.

48     Há, portanto, que responder à primeira questão que o artigo 56.° CE opõe‑se a que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal submeta a aquisição de uma propriedade agrícola à condição de o adquirente estabelecer a sua residência permanente nessa propriedade.

 Quanto à segunda questão

49     Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a interpretação do artigo 56.° CE que a primeira questão coloca será diferente no caso de que a propriedade agrícola adquirida não constituir uma exploração agrícola viável e quando a casa de habitação esteja situada numa zona urbana.

50     Resulta da resposta dada à primeira questão que o artigo 56.° CE se opõe à obrigação de residência em causa, independentemente de circunstâncias particulares relativas às características próprias da propriedade agrícola em causa. Tais circunstâncias, como as que são evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua segunda questão, são, por isso, irrelevantes para a interpretação do referido artigo.

51     Por consequência, há que responder à segunda questão que esta interpretação do artigo 56.° CE não pode ser diferente no caso de a propriedade agrícola adquirida não constituir uma exploração agrícola viável e quando a casa de habitação esteja situada numa zona urbana.

 Quanto às despesas

52     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 56.° CE opõe‑se a que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal submeta a aquisição de uma propriedade agrícola à condição de o adquirente estabelecer a sua residência permanente nessa propriedade.

2)      A interpretação do artigo 56.° CE não pode ser diferente no caso de a propriedade agrícola adquirida não constituir uma exploração agrícola viável e quando a casa de habitação esteja situada numa zona urbana.

Assinaturas


* Língua do processo: dinamarquês.

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