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Document 62004CJ0221

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 18 de Maio de 2006.
Comissão das Comunidades Europeias contra Reino de Espanha.
Incumprimento de Estado - Directiva 92/43/CEE - Preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens - Protecção das espécies - Caça com laço com travão em coutos de caça privados - Castela e Leão.
Processo C-221/04.

Colectânea de Jurisprudência 2006 I-04515

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2006:329

Processo C‑221/04

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Reino de Espanha

«Incumprimento de Estado – Directiva 92/43/CEE – Preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens – Protecção das espécies – Caça com laço com travão em coutos de caça privados – Castilla y León»

Conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas em 15 de Dezembro de 2005 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 18 de Maio de 2006 

Sumário do acórdão

1.     Acção por incumprimento – Exame do mérito pelo Tribunal – Situação a tomar em consideração – Situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado

(Artigo 226.°, segundo parágrafo, CE)

2.     Acção por incumprimento – Objecto do litígio – Determinação durante o processo pré‑contencioso

(Artigo 226.° CE)

3.     Acção por incumprimento – Prova do incumprimento – Ónus da Comissão

(Artigo 226.° CE; Directiva 92/43 do Conselho)

4.     Ambiente – Preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens – Directiva 92/43

(Directiva 92/43 do Conselho, artigo 12.°, n.° 1)

1.     Nos termos do artigo 226.°, segundo parágrafo, CE a Comissão só pode recorrer ao Tribunal de Justiça, intentando uma acção por incumprimento, se o Estado‑Membro em causa não proceder em conformidade com o parecer fundamentado no prazo que lhe fixou a Comissão para esse fim.

Por outro lado, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro, tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado.

(cf. n.os 22‑23)

2.     No âmbito de uma acção por incumprimento, a fase pré‑contenciosa tem por objectivo dar ao Estado‑Membro em causa a possibilidade de, por um lado, dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário e, por outro, apresentar utilmente os seus fundamentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão.

Assim, na sua acção por incumprimento, a Comissão tem o direito de restringir o objecto do litígio. Com efeito, embora a notificação para cumprir tenha por fim circunscrever o objecto do litígio e que a Comissão, no parecer fundamentado, deve identificar com precisão as acusações que já tinha invocado de forma mais global na notificação para cumprir, isto não a impede, porém, quando do procedimento contencioso, de restringir o objecto do litígio nem de o ampliar a medidas posteriores que coincidam, no essencial, com as medidas impugnadas na notificação para cumprir.

(cf. n.os 33, 36‑37)

3.     No quadro de uma acção por incumprimento proposta nos termos do artigo 226.° CE, incumbe à Comissão demonstrar a existência do incumprimento alegado, sem se poder basear em presunções.

Assim, incumbe à Comissão, no quadro de um incumprimento relativo à Directiva 92/43, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, fazer prova da existência da espécie animal protegida na zona em causa e não apenas elementos que demonstrem, quando muito, a probabilidade dessa existência.

(cf. n.os 59, 63)

4.     Um Estado‑Membro viola as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 12.°, n.° 1, alíneas b) e d), da Directiva 92/43, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, quando não toma todas as medidas concretas necessárias para evitar, por um lado, a perturbação intencional da espécie animal em causa durante o período de reprodução e, por outro, a deterioração ou a destruição das suas áreas de reprodução.

O requisito relativo ao carácter intencional previsto no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 92/43 está preenchido quando é demonstrado que o autor do acto quis a captura ou o abate de um espécimen de uma espécie animal protegida ou, pelo menos, que aceitou a possibilidade dessa captura ou desse abate.

Assim, um Estado‑Membro não deixa de cumprir as referidas obrigações se autoriza a caça de uma espécie diferente das protegidas pela directiva.

(cf. n.os 70‑72)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

18 de Maio de 2006 (*)

«Incumprimento de Estado – Directiva 92/43/CEE – Preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens – Protecção das espécies – Caça com laço com travão em coutos de caça privados – Castilla y León»

No processo C‑221/04,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 27 de Maio de 2004,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por G. Valero Jordana e M. van Beek, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Reino de Espanha, representado por F. Díez Moreno, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandado

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, J. Makarczyk, R. Schintgen, P. Kūris (relator) e G. Arestis, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 1 de Dezembro de 2005,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 15 de Dezembro de 2005,

profere o presente

Acórdão

1       Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, pelo facto de as autoridades de Castilla y León permitirem a colocação de laços com travão em diversos coutos privados de caça, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições do artigo 12.°, n.° 1, e do anexo VI da Directiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens (JO L 206, p. 7, a seguir «directiva»).

 Quadro jurídico

2       A directiva tem por objectivo, nos termos do seu artigo 2.°, n.° 1, «contribuir para assegurar a biodiversidade através da conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens no território europeu dos Estados‑Membros em que o Tratado é aplicável».

3       O artigo 12.°, n.° 1, da directiva dispõe:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para instituir um sistema de protecção rigorosa das espécies animais constantes do anexo IV a) dentro da sua área de repartição natural proibindo:

a)      Todas as formas de captura ou abate intencionais de espécimes dessas espécies capturados no meio natural;

[…]»

4       O anexo IV da directiva, intitulado «Espécies animais e vegetais de interesse comunitário que exigem uma protecção rigorosa», inclui, na alínea a), intitulada «Animais», a Lutra lutra (a seguir «lontra»).

5       O anexo VI da directiva, intitulado «Métodos e meios de captura e abate e meios de transporte proibidos», menciona, na alínea a), intitulada «Meios não selectivos», no que diz respeito aos mamíferos, as «[a]rmadilhas não selectivas nos seus princípios ou condições de utilização».

6       O artigo 15.° da directiva dispõe:

«No que se refere à captura ou abate das espécies da fauna selvagem enumeradas no anexo V, alínea a), e nos casos em que sejam aplicadas derrogações nos termos do artigo 16.° para a recolha, captura ou abate das espécies enumeradas no anexo IV, alínea a), os Estados‑Membros proibirão todos os meios não selectivos susceptíveis de provocar localmente a extinção ou de perturbar gravemente a tranquilidade das populações dessas espécies e, em especial:

a)      A utilização de meios de captura ou de abate não selectivos enumerados no anexo VI, alínea a);

[…]»

7       O artigo 16.° da directiva prevê:

«1.      Desde que não exista outra solução satisfatória e que a derrogação não prejudique a manutenção das populações da espécie em causa na sua área de repartição natural, num estado de conservação favorável, os Estados‑Membros poderão derrogar o disposto nos artigos 12.°, 13.° e 14.° e nas alíneas a) e b) do artigo 15.°:

[…]

b)      Para evitar prejuízos sérios, nomeadamente às culturas, à criação de gado, às florestas, às zonas de pesca e às águas e a outras formas de propriedade;

[…]»

 Factos e fase pré‑contenciosa

8       Na sequência de uma queixa registada em 2000, a Comissão enviou ao Reino de Espanha, em 19 de Abril de 2001, uma notificação para cumprir em que sustentava que esse Estado‑Membro, ao autorizar a colocação de laços com travão em diversos coutos privados de caça onde existem determinadas espécies de animais mencionadas nos anexos II e IV da directiva, não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 12.° e do anexo VI dessa directiva. As autoridades espanholas responderam por carta fundamentada de 29 de Junho de 2001.

9       Tendo recebido, no ano de 2001, duas novas queixas relativas a autorizações de colocação de laços com travão, a Comissão dirigiu, em 21 de Dezembro de 2001, uma notificação para cumprir complementar às autoridades espanholas, que responderam por carta de 25 de Fevereiro de 2002.

10     Entendendo que a situação de incumprimento da directiva se mantinha, a Comissão enviou ao Reino de Espanha, em 3 de Abril de 2003, um parecer fundamentado relativo à concessão, pelas autoridades espanholas, de autorizações de colocação, em diversos coutos de caça, de laços com travão, que não constituem um método de caça selectivo. Convidou esse Estado‑Membro a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao referido parecer no prazo de dois meses a contar da respectiva recepção.

11     Na sua resposta de 15 de Julho de 2003, o Governo espanhol afirmou que a Comissão tinha infringido o disposto no artigo 226.° CE, ao mencionar, no parecer fundamentado, uma autorização de 13 de Dezembro de 2002, que não tinha sido referida na primeira notificação para cumprir nem na notificação complementar. Além disso, o referido governo contestou novamente as acusações feitas pela Comissão.

12     Considerando que subsistia a situação de incumprimento, por parte do Reino de Espanha, de determinadas obrigações decorrentes da directiva, a Comissão intentou a presente acção.

13     A acção tem por objecto três autorizações de utilização de laços com travão para a caça à raposa, concedidas pelas autoridades de Castilla y León em 10 de Janeiro de 2000, 24 de Maio de 2001 e 13 de Dezembro de 2002 (a seguir «autorizações controvertidas»). As autorizações controvertidas são relativas a dois coutos de caça (a seguir «coutos de caça em causa»), concretamente, o couto AV‑10.198, situado no território do município de Mediana de Voltoya, na província de Ávila, objecto da autorização de 24 de Maio de 2001, e o couto SA‑10.328, situado no território do município de Aldeanueva de la Sierra, na província de Salamanca, objecto das autorizações de 10 de Janeiro de 2000 e de 13 de Dezembro de 2002.

 Quanto à admissibilidade da acção

14     O Governo espanhol suscitou dois fundamentos de inadmissibilidade. O primeiro é relativo à alteração do objecto da acção e, a título subsidiário, da sua falta de precisão, e o segundo, à fundamentação insuficiente da acção.

 Quanto à questão prévia de inadmissibilidade relativa à alteração do objecto da acção

15     O Governo espanhol sustenta, a título principal, que a Comissão alterou o objecto da acção depois de a ter intentado, ao alegar uma transposição incorrecta da directiva, quando, nas precedentes trocas de correspondência, apenas tinha censurado ao Reino de Espanha uma violação da directiva por ter concedido as autorizações controvertidas.

16     Segundo a Comissão, trata‑se de uma afirmação incorrecta, uma vez que a acção por incumprimento tem por único objectivo contestar as referidas autorizações.

17     Resulta dos elementos dos autos que os debates sobre a transposição incorrecta da directiva tiveram origem na posição adoptada pelo Governo espanhol na contestação, que consistiu em justificar as autorizações controvertidas através das derrogações previstas na directiva.

18     Não se pode deixar de referir que a presente acção não tem por objecto uma eventual transposição incorrecta dessa directiva para o direito espanhol, mas sim a sua alegada violação devido à concessão das autorizações controvertidas. Por conseguinte, não há que acolher este fundamento de inadmissibilidade tal como foi arguido a título principal.

19     A título subsidiário, o Governo espanhol sustenta que a Comissão não especificou suficientemente o objecto da acção. A este respeito, o referido governo invoca cinco argumentos.

20     Através do seu primeiro argumento, o Governo espanhol opõe‑se a que o objecto da acção se estenda às autorizações de 24 de Maio de 2001 e de 13 de Dezembro de 2002. Com efeito, por um lado, a autorização de 24 de Maio de 2001 foi anulada pelas autoridades competentes em 29 de Maio de 2001 e, consequentemente, não produz efeitos nem tem valor jurídico algum. Por outro lado, a autorização de 13 de Dezembro de 2002 foi mencionada pela primeira vez no parecer fundamentado, de modo que o referido governo não teve a possibilidade de formular observações.

21     A Comissão responde, em primeiro lugar, que o Governo espanhol não provou que a autorização de 24 de Maio de 2001 foi anulada. Segundo afirma, essa autorização demonstra uma insistência na prática administrativa de conceder autorizações de caça por meio de laços com travão em zonas de caça onde há lontras e deve, a esse título, ser levada em conta, apesar de apenas ter sido concedida por um período muito breve. No que diz respeito à autorização de 13 de Dezembro de 2002, foi requerida e concedida enquanto prorrogação da autorização de 10 de Janeiro de 2000.

22     Há que recordar que resulta dos próprios termos do artigo 226.°, segundo parágrafo, CE que a Comissão só pode recorrer ao Tribunal de Justiça, intentando uma acção por incumprimento, se o Estado‑Membro em causa não proceder em conformidade com o parecer fundamentado no prazo que lhe fixou a Comissão para esse fim (v., nomeadamente, acórdãos de 31 de Março de 1992, Comissão/Itália, C‑362/90, Colect., p. I‑2353, n.° 9, e de 27 de Outubro de 2005, Comissão/Itália, C‑525/03, Colect., p. I‑9405, n.° 13).

23     Por outro lado, é jurisprudência assente que a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro, tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado (v., nomeadamente, acórdãos de 31 de Março de 1992, Comissão/Itália, já referido, n.° 10; de 4 de Julho de 2002, Comissão/Grécia, C‑173/01, Colect., p. I‑6129, n.° 7; de 10 de Abril de 2003, Comissão/França, C‑114/02, Colect., p. I‑3783, n.° 9; e de 27 de Outubro de 2005, Comissão/Itália, já referido, n.° 14).

24     No caso em apreço, verifica‑se que a autorização de 24 de Maio de 2001 foi concedida por tempo limitado, caducando em 15 de Junho de 2001, ou seja, muito antes do envio do parecer fundamentado.

25     Ora, não foi demonstrado que a referida autorização tenha continuado a produzir efeitos jurídicos depois do termo do prazo fixado no parecer fundamentado.

26     Consequentemente, a acção é inadmissível na parte em que tem por objecto a autorização emitida em 24 de Maio de 2001.

27     Quanto à autorização de 13 de Dezembro de 2002, há que observar que foi concedida enquanto prorrogação da de 10 de Janeiro de 2000.

28     A este respeito, há que recordar que, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, o objecto do litígio pode abarcar factos ocorridos posteriormente ao parecer fundamentado na medida em que se traduzam em factos da mesma natureza que os visados por esse parecer e sejam constitutivos de um comportamento idêntico (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Março de 1983, Comissão/França, 42/82, Recueil, p. 1013, n.° 20, e de 4 de Fevereiro de 1988, Comissão/Itália, 113/86, Colect., p. 607, n.° 11).

29     No caso em apreço, há que observar que a autorização de 13 de Dezembro de 2002 tem a mesma natureza que a autorização de 10 de Janeiro de 2000, em relação à qual especifica as condições relativas à utilização e à colocação dos laços com travão, sem modificar o respectivo sentido e alcance, e que a emissão dessas duas autorizações é constitutiva de um mesmo comportamento. Consequentemente, a circunstância de a referida autorização de 13 de Dezembro de 2002 ter sido referida a título de exemplo pela Comissão no parecer fundamentado e de ser novamente referida na presente acção não privou o Reino de Espanha dos direitos conferidos pelo artigo 226.° CE. Assim, a referida autorização está regularmente integrada no objecto do processo.

30     Através do seu segundo argumento, o Governo espanhol alega que a Comissão não especificou as obrigações que o Reino de Espanha não cumpriu.

31     Todavia, resulta manifestamente da petição da Comissão que esta censura ao Reino de Espanha o incumprimento das obrigações concretas decorrentes do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), e do anexo VI da directiva, ou seja, por um lado, a obrigação de instituir um sistema de protecção rigorosa das espécies animais constantes do anexo IV, alínea a), dessa directiva, entre as quais figura a lontra, proibindo todas as formas de captura ou abate intencionais e, por outro, a obrigação de proibir os meios de captura ou de abate não selectivos nos seus princípios ou condições de utilização. Por conseguinte, o Reino de Espanha tomou conhecimento das obrigações cujo incumprimento lhe é imputado.

32     Através dos seus terceiro e quarto argumentos, o Governo espanhol acusa a Comissão de ter restringido o objecto do incumprimento. Com efeito, durante a fase pré‑contenciosa, invocou, por um lado, além da protecção da lontra, a de cinco outras espécies animais e, por outro, uma série de meios de caça e não apenas a utilização do laço com travão.

33     Há que recordar, como correctamente observa a Comissão, que o Tribunal de Justiça já declarou que é possível restringir o objecto do litígio na fase do procedimento pré‑contencioso (v., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 16 de Setembro de 1997, Comissão/Itália, C‑279/94, Colect., p. I‑4743, n.os 24 e 25; de 25 de Abril de 2002, Comissão/França, C‑52/00, Colect., p. I‑3827, n.° 44; de 11 de Julho de 2002, Comissão/Espanha, C‑139/00, Colect., p. I‑6407, n.os 18 e 19; e de 14 de Julho de 2005, Comissão/Alemanha, C‑433/03, Colect., p. I‑6985, n.° 28). Por conseguinte, a Comissão pôde restringir, na petição inicial, o objecto das alegadas situações de incumprimento a uma das espécies mencionadas na fase pré‑contenciosa, bem como a um único meio de caça.

34     Através do seu quinto argumento, o Governo espanhol alega que a Comissão usou o procedimento pré‑contencioso como meio para determinar progressivamente o fundamento do incumprimento. Ora, esse modo de actuar envolve uma violação dos princípios da segurança jurídica e da observância dos direitos fundamentais de defesa.

35     A Comissão considera que, com este argumento, são invocadas, por um lado, a redução do objecto do processo e, por outro, a inexistência, na notificação para cumprir, de indícios suficientes para justificar a abertura de um procedimento por incumprimento.

36     A este respeito, tais elementos não são, no entanto, susceptíveis de pôr em causa a admissibilidade da acção. Com efeito, por um lado, a Comissão tinha o direito de restringir o objecto do processo na fase do procedimento pré‑contencioso, como foi recordado no n.° 33 do presente acórdão. Além disso, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a fase pré‑contenciosa tem por objectivo dar ao Estado‑Membro em causa a possibilidade de, por um lado, dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário e, por outro, apresentar utilmente os seus fundamentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão (acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Portugal, C‑117/02, Colect., p. I‑5517, n.° 53). Além disso, a notificação para cumprir não pode estar sujeita a exigências de precisão tão rigorosas quanto o parecer fundamentado, uma vez que apenas pode consistir num primeiro resumo sucinto das acusações (v., neste sentido, acórdão de 16 de Setembro de 1997, Comissão/Itália, já referido, n.° 15).

37     Como observou a advogada‑geral no n.° 24 das suas conclusões, embora a notificação para cumprir tenha por fim circunscrever o objecto do litígio, a Comissão, no parecer fundamentado, também deve identificar com precisão as acusações que já tinha invocado de forma mais global na notificação para cumprir. Porém, isto não a impede de restringir o objecto do litígio nem de o ampliar a medidas posteriores que coincidam, no essencial, com as medidas impugnadas na notificação para cumprir.

 Quando à questão prévia de inadmissibilidade relativa à fundamentação insuficiente da acção

38     A segunda questão prévia de inadmissibilidade invocada pelo Governo espanhol é relativa, por um lado, à violação do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e, por outro, à insuficiente fundamentação da petição inicial e à inexistência de provas das alegadas situações de incumprimento.

39     Quanto ao primeiro aspecto, há que observar que a petição inicial preenche os requisitos impostos pelo artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, no que diz respeito ao objecto do litígio e à exposição sumária dos fundamentos do pedido.

40     Quanto ao segundo aspecto, há que observar que, como refere a Comissão, esse fundamento se insere na apreciação do mérito da causa. Por conseguinte, esta questão prévia de inadmissibilidade não pode ser acolhida.

41     Tendo em conta as considerações precedentes, há que concluir que a acção é inadmissível na parte em que tem por fundamento a autorização de 24 de Maio de 2001 relativa ao couto de caça AV‑10.198, situado no território do município de Mediana de Voltoya, na província de Ávila, e admissível quanto ao demais.

 Quanto ao mérito

42     Assim, há que analisar se a autorização de 13 de Dezembro de 2002 (a seguir «autorização controvertida»), relativa ao couto de caça SA‑10.328, situado em Aldeanueva de la Sierra, na província de Salamanca (a seguir «couto de caça em causa»), foi concedida pelas autoridades espanholas em violação da directiva.

43     A Comissão invoca dois fundamentos na sua acção. Em primeiro lugar, a autorização para utilizar laços com travão no couto de caça em causa leva à captura ou ao abate intencional da lontra, em infracção ao artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva. Em segundo lugar, a Comissão alega que o Reino de Espanha também violou as disposições do anexo VI, alínea a), da directiva, uma vez que a referida autorização respeita a um meio de caça não selectivo nos seus princípios e condições de utilização.

 Quanto ao fundamento relativo à violação do anexo VI, alínea a), da directiva

44     Através do segundo fundamento, que há que analisar em primeiro lugar, a Comissão sustenta que a autorização para utilizar os laços com travão constitui uma violação do anexo VI, alínea a), da directiva, uma vez que se trata de um meio de caça não selectivo nos seus princípios e condições de utilização.

45     Resulta da directiva que os métodos e meios de captura e de abate enumerados no anexo VI, alínea a), só são proibidos nos casos previstos no artigo 15.° dessa directiva, que é o único artigo que faz referência ao referido anexo.

46     Resulta dessa disposição que é proibido utilizar os meios não selectivos, em particular os enumerados no anexo VI, alínea a), da directiva, para capturar ou abater as espécies de fauna selvagem indicadas no anexo V, alínea a), dessa directiva, e nos casos em que, nos termos do artigo 16.°, sejam aplicadas derrogações para a recolha, a captura ou o abate das espécies enumeradas no anexo IV, alínea a), da referida directiva.

47     Há que observar que a autorização controvertida foi concedida para a caça à raposa, espécie animal que não consta do anexo IV, alínea a), nem do anexo V, alínea a), da directiva. Por conseguinte, a proibição dos meios de caça não selectivos não é oponível, no caso em apreço, às autoridades espanholas. Assim, não há que acolher o fundamento relativo à violação do anexo VI, alínea a), da directiva.

 Quanto ao fundamento relativo à violação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva

48     Há que recordar que, nos termos do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva, os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para instituir um sistema de protecção rigorosa das espécies animais que constam do anexo IV, alínea a), dessa directiva, dentro da sua área de repartição natural. Esse sistema deve, nos termos dessa disposição, proibir todas as formas de captura ou de abate intencionais das espécies em causa.

49     Para apreciar a procedência do fundamento invocado pela Comissão importa, por um lado, verificar se há lontras no couto de caça em causa e, por outro, determinar as circunstâncias em que a captura ou o abate dessa espécie se reveste de carácter intencional.

 Quanto à existência de lontras no couto de caça em causa

–       Argumentos das partes

50     Em primeiro lugar, a Comissão alega que, na sua resposta ao parecer fundamentado, o Governo espanhol reconheceu que existem lontras no couto de caça em causa, uma vez que, nessa resposta, referiu que se podem encontrar lontras em quase todo o território de Castilla y León.

51     Em segundo lugar, o facto de aí existirem lontras é corroborado pelas fichas de informação científica «Natura 2000» que o Reino de Espanha enviou à Comissão relativamente aos locais de Quilamas (Salamanca) e Encinares de los ríos Adaja y Voltoya (Ávila), sendo Quilamas adjacente ao couto de caça em causa.

52     Em terceiro lugar, essa zona é atravessada por cursos de água, que são indispensáveis ao habitat da lontra.

53     Por último, a monografia sobre a situação da lontra em Espanha também confirma a presença desta espécie no couto de caça em causa.

54     Tendo em conta todos estes elementos, a Comissão conclui que se o Governo espanhol considera que não existem lontras nessa zona, deve demonstrá‑lo, apresentando um estudo técnico realizado in loco.

55     O Governo espanhol sustenta que não há lontras no couto de caça em causa. Respondendo ao primeiro argumento invocado pela Comissão, observa que reconhecer a presença de uma determinada espécie animal num território não implica que essa espécie ocupe a totalidade dos habitats desse território.

56     O referido governo salienta igualmente que os cursos de água são indispensáveis ao habitat da lontra, não sendo o couto de caça em causa uma zona costeira nem uma zona limítrofe de um rio. Acrescenta que os cursos de água e os ribeiros que atravessam essa zona têm carácter sazonal, estando sujeitos aos períodos de seca estivais.

57     A monografia apresentada pela Comissão confirma, além disso, a inexistência de lontras no couto de caça em causa.

58     Por último, o Governo espanhol considera que a existência de lontras na referida zona é apenas uma probabilidade e que a Comissão não fez prova dessa existência, na medida em que não dispõe de indícios directos, como a captura de exemplares dessa espécie, nem indirectos, como a existência de sinais da sua presença.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

59     Há que recordar que, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, no quadro de uma acção por incumprimento proposta nos termos do artigo 226.° CE, incumbe à Comissão demonstrar a existência do incumprimento alegado, sem se poder basear em presunções (v., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 25 de Maio de 1982, Comissão/Países Baixos, 96/81, Recueil, p. 1791, n.° 6; de 29 de Abril de 2004, Comissão/Áustria, C‑194/01, Colect., p. I‑4579, n.° 34; e de 20 de Outubro de 2005, Comissão/Reino Unido, C‑6/04, Colect., p. I‑9017, n.° 75).

60     Relativamente às fichas de informação científica «Natura 2000», há que observar, como referiu a advogada‑geral no n.° 71 das suas conclusões, que as mesmas abrangem o sítio de Quilamas, que tem uma área superior a 10 000 hectares. É certo que o couto de caça em causa confina a noroeste com esse local. Todavia, é dado assente que os maiores cursos de água de Quilamas, designadamente o Arroyo de las Quilamas, correm para sudoeste e estão separados do couto de caça em causa por uma cordilheira com várias centenas de metros de altura. Por conseguinte, é pouco provável que lontras pertencentes às populações que vivem na rede hidrográfica de Quilamas se desloquem para o couto de caça em causa.

61     Por outro lado, como referiu o Governo espanhol, não tendo a Comissão contestado essa afirmação, quando os cursos de água são indispensáveis ao habitat da lontra, os que atravessam o couto de caça em causa ou que existem na sua proximidade têm carácter sazonal.

62     Por último, relativamente à monografia apresentada pela Comissão, há que observar que a mesma contém indicações contraditórias, de modo que dela não resulta certeza alguma quanto à existência de lontras no couto de caça em causa.

63     Resulta das considerações precedentes que a Comissão não fez prova suficiente da existência de lontras no couto de caça em causa, demonstrando as provas produzidas, quando muito, a probabilidade dessa existência.

 Quanto ao carácter intencional da captura da lontra

–       Argumentos das partes

64     A Comissão alega que a captura da lontra não pode ser considerada acidental e que, assim sendo, o requisito relativo ao carácter intencional previsto no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva se encontra preenchido quando as autoridades espanholas, apesar de saberem da presença de lontras num território, autorizam, nesse território, a utilização, para a caça à raposa, de um método de captura não selectivo, susceptível de prejudicar a lontra.

65     Assim, ao conceder a autorização controvertida, o Reino de Espanha não cumpriu a obrigação, decorrente do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva, de impedir os efeitos negativos para a lontra e criou um risco de captura intencional de exemplares dessa espécie.

66     O Governo espanhol responde que a autorização controvertida foi concedida para a caça à raposa, e não à lontra. Reconhece a possibilidade da existência de efeitos indirectos para a lontra, desde que essa espécie animal exista no couto de caça em causa, o que, no entanto, não foi demonstrado.

67     Além disso, o referido governo considera que o laço com travão é um método de caça selectivo tanto nos seus princípios, uma vez que o travão permite evitar a morte do animal capturado, como no respeitante às condições de utilização impostas pela autorização controvertida, como a fiscalização diária dos laços, a exigência de libertar imediatamente qualquer animal não abrangido pela referida autorização ou as modalidades precisas de colocação desses laços.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

68     Resulta das disposições do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva que os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para instituir um sistema de protecção rigorosa das espécies animais referidas no anexo IV, alínea a), da directiva, dentro da sua área de repartição natural, proibindo todas as formas de captura ou abate intencionais.

69     No que diz respeito ao requisito relativo ao carácter intencional previsto nessa disposição, resulta da leitura das suas diversas versões linguísticas que o referido carácter intencional se refere tanto à captura como ao abate das espécies animais protegidas.

70     Por outro lado, há que recordar que o Tribunal de Justiça qualificou como perturbação intencional, na acepção do artigo 12.°, n.° 1, alínea b), da directiva, factos como a circulação de motociclos numa praia, não obstante os avisos relativos à existência de ninhos de tartarugas marinhas protegidas, e a existência de gaivotas (a pedal) e de pequenos barcos na zona marítima das praias em causa, e declarou que um Estado‑Membro viola as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 12.°, n.° 1, alíneas b) e d), da directiva quando não toma todas as medidas concretas necessárias para evitar, por um lado, a perturbação intencional da espécie animal em causa durante o período de reprodução e, por outro, a deterioração ou a destruição das suas áreas de reprodução (v. acórdão de 30 de Janeiro de 2002, Comissão/Grécia, C‑103/00, Colect., p. I‑1147, n.os 36 e 39, e as conclusões do advogado‑geral P. Léger nesse processo, n.° 57).

71     Para que o requisito relativo ao carácter intencional previsto no artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva esteja preenchido, deve demonstrar‑se que o autor do acto quis a captura ou o abate de um espécimen de uma espécie animal protegida ou, pelo menos, que aceitou a possibilidade dessa captura ou desse abate.

72     Ora, é facto assente que a autorização controvertida era relativa à caça à raposa. Por conseguinte, a autorização, em si mesma, não pretende permitir a captura da lontra.

73     Além disso, há que recordar que a existência de lontras no couto de caça em causa não foi formalmente provada, de modo que também não está demonstrado que, ao emitir a autorização controvertida para a caça às raposas, as autoridades espanholas sabiam que criavam o risco de pôr a lontra em perigo.

74     Consequentemente, há que considerar que os elementos exigidos para que o requisito relativo ao carácter intencional da captura ou do abate de um exemplar de uma espécie animal protegida esteja preenchido, tal como são definidos no n.° 71 do presente acórdão, não se verificam no caso vertente.

75     Por conseguinte, a acção da Comissão deve ser julgada improcedente.

 Quanto às despesas

76     Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Reino de Espanha pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide

1)      A acção é julgada improcedente.

2)      A Comissão das Comunidades Europeias é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.

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