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Document 62004CC0432

    Conclusões do advogado-geral Geelhoed apresentadas em 23 de Fevereiro de 2006.
    Comissão das Comunidades Europeias contra Édith Cresson.
    Artigo 213.º, n.º 2, CE - Artigo 126, n.º 2, EA- Violação das obrigações decorrentes do cargo de membro da Comissão - Perda do direito a pensão.
    Processo C-432/04.

    Colectânea de Jurisprudência 2006 I-06387

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2006:140

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    L. A. GEELHOED

    apresentadas em 23 de Fevereiro de 2006 1(1)

    Processo C‑432/04

    Comissão das Comunidades Europeias

    contra

    Édith Cresson

    «Acção nos termos dos artigos 213.°, n.° 2, terceiro parágrafo, CE e 126.°, n.° 2, terceiro parágrafo, EA – Perda de direitos a pensão de um antigo membro da Comissão – Violação das obrigações decorrentes do cargo de membro da Comissão»





    I –    Introdução

    1.     Na presente acção, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao recrutar e beneficiar duas pessoas das suas relações enquanto duraram as suas funções de membro da Comissão, Édith Cresson constituiu‑se culpada de favorecimento, pelo menos por negligência grosseira. A Comissão sustenta que E. Cresson actuou, deste modo, em violação das suas obrigações decorrentes do artigo 213.°, n.° 2, CE e do artigo 126.°, n.° 2, EA (2). Consequentemente, pede ao Tribunal de Justiça que aplique uma sanção financeira adequada, como previsto no último parágrafo dessas disposições do Tratado.

    2.     Este caso é o primeiro do género em que o Tribunal de Justiça será chamado a proferir uma decisão. Um processo anterior, instaurado pelo Conselho contra o antigo comissário Bangemann a respeito de um cargo que tencionava aceitar depois da cessação das suas funções, foi objecto de desistência (3). Consequentemente, o presente processo dá ao Tribunal de Justiça uma oportunidade única de clarificar que obrigações incumbem aos membros da Comissão na acepção do artigo 213.° CE. Na verdade, a decisão do Tribunal será relevante para estabelecer padrões de conduta para todos os titulares de altos cargos nas instituições da União Europeia.

    II – Quadro jurídico

    3.     O artigo 213.°, n.° 2, CE dispõe:

    «Os membros da Comissão exercerão as suas funções com total independência, no interesse geral da Comunidade.

    No cumprimento dos seus deveres, não solicitarão nem aceitarão instruções de nenhum Governo ou qualquer outra entidade. Os membros da Comissão abster‑se‑ão de praticar qualquer acto incompatível com a natureza das suas funções. Os Estados‑Membros comprometem‑se a respeitar este princípio e a não procurar influenciar os membros da Comissão no exercício das suas funções.

    Enquanto durarem as suas funções, os membros da Comissão não podem exercer qualquer outra actividade profissional, remunerada ou não. Além disso, assumirão, no momento da posse, o compromisso solene de respeitar, durante o exercício das suas funções e após a cessação destas, os deveres decorrentes do cargo, nomeadamente os de honestidade e discrição, relativamente à aceitação, após aquela cessação, de determinadas funções ou benefícios. Se estes deveres não forem respeitados, pode o Tribunal de Justiça, a pedido do Conselho ou da Comissão, conforme o caso, ordenar a demissão compulsiva do membro em causa, nos termos do artigo 216.°, ou a perda do seu direito a pensão ou de quaisquer outros benefícios que a substituam.»

    4.     O artigo 216.° CE dispõe:

    «Qualquer membro da Comissão que deixe de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou tenha cometido falta grave pode ser demitido pelo Tribunal de Justiça, a pedido do Conselho ou da Comissão.»

    III – Factos apresentados pela Comissão

    5.     Édith Cresson foi membro da Comissão Europeia de 24 de Janeiro de 1995 até 8 de Setembro de 1999. A Comissão demitiu‑se colectivamente em 16 de Março de 1999, mas manteve‑se em funções até 8 de Setembro de 1999. O seu pelouro na Comissão incluía os domínios da Ciência, Investigação e Desenvolvimento, Centro Comum de Investigação (CCI), Recursos Humanos, Educação, Formação e Juventude. Os serviços da Comissão responsáveis por esses domínios à data eram as Direcções‑Gerais (DG) XII, XIII.D e XXII e o CCI.

    6.     A alegação da Comissão de que E. Cresson praticou actos de favorecimento no exercício das suas funções baseia‑se em casos relativos a duas pessoas das suas relações, René Berthelot e Timm Riedinger.

    A –    Caso Berthelot

    7.     Pouco depois de tomar posse, E. Cresson manifestou a intenção de contratar R. Berthelot como conselheiro pessoal. R. Berthelot, que era um dentista experiente, residia então perto de Châtellerault, cidade francesa de que E. Cresson era Presidente da Câmara. Tendo em conta que R. Berthelot tinha 66 anos e que o gabinete de E. Cresson já tinha sido constituído, esta foi informada pelo seu chefe de gabinete de que não via possibilidades de ele ser contratado pela Comissão. No entanto, alguns meses depois do pedido de E. Cresson, foi proposto a R. Berthelot um contrato como cientista convidado na DG XII a partir de 1 de Setembro de 1995 por um período inicial de 6 meses. Apesar de o lugar de cientista convidado exigir que a pessoa em causa trabalhe num dos centros ou serviços da Comissão relacionados com a investigação, o certo é que R. Berthelot trabalhou exclusivamente como conselheiro pessoal de E. Cresson. O período inicial de seis meses acabou por ser prorrogado até ao final de Fevereiro de 1997.

    8.     No final de Abril de 1996, em aplicação da regra da não cumulação aplicável aos cientistas convidados, a remuneração de R. Berthelot foi reduzida de modo a levar em conta uma pensão que recebia em França. Pouco depois de essa medida ter sido tomada, a pedido pessoal de E. Cresson, foram elaboradas 13 autorizações de deslocações em serviço a Châtellerault em nome de R. Berthelot e enviadas para os serviços administrativos da Comissão. Essas deslocações referiam‑se a missões que alegadamente ocorreram entre 23 de Maio e 21 de Junho de 1996. Consequentemente, o montante de 6 930 EUR foi transferido para R. Berthelot. A partir de 1 de Setembro de 1996, R. Berthelot foi reclassificado num grau superior para cientistas convidados, que resultou num aumento salarial significativo no montante de 1 000 EUR. Este aumento compensou amplamente a diminuição de remuneração devida à aplicação da medida de não cumulação.

    9.     No termo deste contrato com a DG XII, foi proposto a R. Berthelot um novo contrato como cientista convidado, desta vez no CCI, pelo período de um ano. Este contrato prolongou a sua permanência na Comissão por dois anos e meio, apesar de os cientistas convidados apenas serem contratados por um período máximo de 24 meses.

    10.   Em 2 de Outubro de 1997, o serviço de controlo financeiro da Comissão pediu o relatório de actividades que R. Berthelot devia ter apresentado no final do seu primeiro contrato. Os relatórios que foram enviados a esse departamento eram extremamente sucintos. De facto, consistiam em alguns memorandos elaborados por diferentes autores, que foram compilados pelo gabinete de E. Cresson.

    11.   Em 11 de Dezembro de 1997, R. Berthelot, por razões de saúde, requereu a cessação do seu contrato a partir de 31 de Dezembro de 1997. Esse pedido foi deferido. Em consequência, E. Cresson pediu ao seu chefe de gabinete que encontrasse uma solução para prorrogar a relação contratual com R. Berthelot a partir de 1 de Janeiro de 1998. Esta solução consistiu no seu recrutamento como consultor especial. No entanto, R. Berthelot recusou aceitar esse lugar.

    12.   R. Berthelot faleceu em 2 de Março de 2000.

    B –    Caso Riedinger

    13.   Em 1995, foram propostos a T. Riedinger, advogado especializado em direito comercial, três contratos pelos serviços da Comissão sob a responsabilidade de E. Cresson. Pelo menos dois deles foram propostos a seu pedido expresso.

    14.   Esses contratos eram relativos aos três assuntos seguintes: 1) análise da viabilidade da criação de uma rede entre centros de investigação na Europa central e na Comunidade Europeia, 2) acompanhamento de E. Cresson numa visita oficial à África do Sul de 13 a 16 de Maio de 1995 e elaboração de um relatório e 3) estudo de viabilidade da criação de um Instituto Europeu de Direito Comparado.

    15.   Apesar de as autorizações orçamentais necessárias estarem registadas para esses três contratos, nenhum deles foi executado, nem foi feito nenhum pagamento a T. Riedinger relacionado com eles.

    IV – Procedimento

    A –    Inquéritos preliminares

    16.   Antes de a Comissão intentar a presente acção no Tribunal de Justiça nos termos do artigo 213.° CE, os casos relativos a R. Berthelot e T. Riedinger foram objecto de diversos inquéritos por várias entidades. A acção da Comissão é baseada nos resultados desses inquéritos.

    17.   O primeiro foi conduzido pelo Comité de Peritos Independentes, criado sob os auspícios do Parlamento Europeu. A sua missão consistia em elaborar um primeiro relatório que «poderia tentar estabelecer até que ponto a Comissão, enquanto órgão colegial, ou os Comissários a título individual são concretamente responsáveis pelos recentes exemplos de fraude, má gestão ou nepotismo, suscitados nos debates do Parlamento ou através de afirmações produzidas durante os mesmos debates». No seu relatório de 15 de Março de 1999 (4), o Comité concluiu, a respeito do caso Berthelot, que «estamos perante um caso inequívoco de favoritismo. Trata‑se da contratação de uma pessoa cujo perfil não correspondia aos diferentes lugares para os quais foi, apesar de tudo, contratada. As prestações fornecidas são manifestamente insuficientes em quantidade, qualidade e pertinência. A Comunidade não obteve contrapartidas para o dinheiro gasto» (5).

    18.   Na sequência do relatório do Comité de Peritos Independentes, a Comissão, que tomou posse em 9 de Setembro de 1999, decidiu promover um processo de reformas destinado a prevenir as práticas que foram censuradas pelo Comité e a aperfeiçoar os seus procedimentos administrativos e financeiros internos. Neste contexto, o OLAF (Organismo Europeu de Luta Antifraude) conduziu a sua própria investigação, que resultou num relatório de 23 de Novembro de 1999. Em consequência, foram instaurados processos disciplinares a alguns agentes e funcionários da Comissão.

    19.   Em 20 de Fevereiro de 2001, a Comissão decidiu dar início ao procedimento destinado a recuperar os montantes indevidamente pagos a R. Berthelot. Esse procedimento corre contra os seus herdeiros.

    20.   Mais investigações foram efectuadas pela DG ADMIN e, posteriormente, na sequência da sua criação em 19 de Fevereiro de 2002, pelo ODIC (Organismo Disciplinar e de Inquérito da Comissão), a respeito do caso Riedinger. Também conduziu mais dois inquéritos sobre o caso Berthelot, um a respeito do papel da DG XII e o outro a respeito do envolvimento do CCI. Durante esses inquéritos, tiveram lugar várias audições. E. Cresson foi convidada pelos serviços competentes e pelo comissário responsável pelas reformas internas, N. Kinnock, a prestar declarações. E. Cresson, no entanto, preferiu responder por escrito. Um relatório respeitante a T. Riedinger foi concluído em 8 de Agosto de 2001. Em 22 de Fevereiro de 2002, foi apresentado um relatório do ODIC exclusivamente respeitante ao caso Berthelot.

    B –    Procedimento na Comissão relativo a E. Cresson

    21.   Em 21 de Janeiro de 2003, o colégio dos comissários decidiu dirigir uma comunicação de acusações (communication des griefs) a E. Cresson no contexto de um possível processo com base no artigo 213.°, n.° 2, CE. Nessa comunicação, a Comissão referia que, nos casos de R. Berthelot e T. Riedinger, E. Cresson tinha actuado em violação das obrigações decorrentes do cargo de membro da Comissão. Considerou que o seu comportamento, em ambos os casos, não tinha sido determinado pelo interesse geral, mas essencialmente guiado pelo desejo de favorecer duas pessoas das suas relações. Em todo o caso, não actuou com a devida precaução, verificando se os procedimentos internos tinham sido respeitados nos dois casos. A Comissão acusou‑a, por conseguinte, da violação das obrigações decorrentes do seu cargo, dolosamente ou, pelo menos, em consequência de negligência grosseira.

    22.   De modo a respeitar os direitos de defesa, a Comissão decidiu igualmente conceder a E. Cresson o acesso aos autos e convidá‑la a responder à comunicação de acusações da Comissão. Seguiu‑se uma abundante troca de correspondência entre o mandatário de E. Cresson e a Comissão acerca do âmbito do procedimento e da questão de saber se lhe devia ser concedido o acesso a determinados documentos.

    23.   E. Cresson respondeu à comunicação de acusações em 30 de Setembro de 2003. Em primeiro lugar, contesta que o artigo 213.°, n.° 2, CE seja a base legal adequada para a comunicação de acusações. Também alega que essa disposição viola direitos fundamentais de defesa. Refere, além disso, que os factos de que é acusada não são abrangidos por esse artigo. De qualquer modo, as acusações da Comissão não foram fundamentadas. Critica a imprecisão dos conceitos de favorecimento e de negligência grosseira tais como definidos na comunicação de acusações. Por último, pede um montante de 50 000 EUR de indemnização pelos danos patrimoniais e morais que sofreu devido ao processo disciplinar de que foi alvo.

    24.   Tendo em conta as suas observações escritas, a Comissão decidiu reiterar a sua proposta no sentido de que E. Cresson fosse ouvida directa e pessoalmente pelo colégio dos comissários. A audição ocorreu em 30 de Junho de 2004.

    25.   Na sua reunião de 19 de Julho de 2004, a Comissão decidiu intentar uma acção no Tribunal de Justiça.

    C –    Processo penal na Bélgica

    26.   Paralelamente aos inquéritos e ao procedimento conduzidos na Comissão, o caso Berthelot foi objecto de uma investigação criminal pelas autoridades belgas. Esse processo teve início na sequência de uma queixa apresentada por um membro do Parlamento Europeu contra determinadas pessoas alegadamente envolvidas em diversos delitos no interior da Comissão, incluindo E. Cresson. A Comissão interveio no processo na qualidade de parte civil.

    27.   O juiz de instrução (juge d’instruction) considerou que E. Cresson poderia ser responsabilizada criminalmente relativamente aos seguintes factos:

    –       o recrutamento de R. Berthelot como cientista convidado, em violação das regras internas da Comissão, tendo em conta que poderia ser qualificado como falsificação e como prevaricação (faux, usage de faux et prise d’intérêt);

    –       relatórios finais de R. Berthelot – falsificação e fraude;

    –       autorizações (décomptes de mission) para as missões de R. Berthelot – falsificação e fraude.

    28.   Na fase seguinte desse processo, o Procureur du Roi (Ministério Público) decidiu, todavia, arquivar o primeiro facto com o fundamento de que o recrutamento não tinha sido feito em violação das regras comunitárias. O segundo facto foi arquivado por não se dirigir contra E. Cresson. Quanto ao terceiro, foi inicialmente mantido, mas também acabou por ser arquivado.

    29.   Por despacho de 30 de Junho de 2004, a chambre du conseil do tribunal de première instance de Bruxelles decidiu que não havia fundamento para prosseguir o processo penal contra os arguidos (non‑lieu). Em particular, no que respeita a E. Cresson, o tribunal referiu que não lhe foi feita qualquer acusação de estar ao corrente dos factos em causa.

    D –    Processo no Tribunal de Justiça

    30.   A petição inicial da Comissão foi registada em 7 de Outubro de 2004.

    31.   A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    –       declarar que E. Cresson violou as obrigações que lhe incumbiam por força do artigo 213.° CE;

    –       declarar a perda, total ou parcial, dos direitos a pensão e/ou de quaisquer outros benefícios ligados a estes direitos ou que os substituam, devidos a E. Cresson, deixando a Comissão ao prudente arbítrio do Tribunal a determinação do alcance e da duração da perda desses direitos;

    –                condenar E. Cresson nas despesas.

    32.   E. Cresson conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    –       a título principal, julgar a acção intentada pela Comissão inadmissível;

    –       a título subsidiário, julgar a acção ilegal e improcedente;

    –       ordenar à Comissão que apresente as actas dos debates que levaram esta instituição a adoptar, em 19 de Julho de 2004, a decisão de intentar uma acção no Tribunal de Justiça, bem como outros documentos enumerados nos requerimentos da demandada de 26 de Abril e 5 de Outubro de 2004, respectivamente;

    –       condenar a Comissão na totalidade das despesas.

    33.   Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2005, foi admitida a intervenção da República Francesa na fase oral em apoio de E. Cresson, nos termos do artigo 93.°, n.° 7, do Regulamento de Processo.

    34.   Por despacho do Tribunal de Justiça de 9 de Setembro de 2005, foi indeferido o pedido de E. Cresson no sentido de ser ordenado à Comissão que facultasse o acesso a determinados documentos relativos à decisão da Comissão de instaurar uma acção contra si nos termos do artigo 213.°, n.° 2, CE.

    35.   A Comissão e E. Cresson, bem como a República Francesa, apresentaram alegações na audiência de 9 de Novembro de 2005.

    V –    Pedidos das partes

    A –    Comissão

    1.      Artigo 213.° CE

    36.   A Comissão esclarece que uma acção baseada no artigo 213.°, n.° 2, CE contra um (antigo) membro da Comissão pressupõe que esse membro tenha actuado em violação das obrigações decorrentes desse cargo, na acepção dessa disposição do Tratado. A Comissão considera que é a si que compete determinar a substância e o alcance dessas obrigações, sob a fiscalização judicial do Tribunal de Justiça. Em sua opinião, há violação dessas obrigações quando um comissário não age em prol do interesse geral ou quando é motivado por interesses pessoais, privados ou financeiros.

    37.   À luz desta interpretação, o favorecimento é contrário tanto ao interesse geral como à honestidade e discrição inerentes ao cargo de comissário. A Comissão define o favorecimento como um acto ou uma atitude contrários tanto ao interesse geral como à integridade do serviço público, que consiste em conceder uma vantagem a uma pessoa (frequentemente através do recrutamento) que não tem mérito nem competência, ou cujos méritos são manifestamente insuficientes para o lugar a ocupar, ou em conceder uma vantagem sem levar em conta o lugar em questão, mas que é concedida porque a pessoa em causa é um amigo pessoal ou qualquer outra pessoa que se pretende recompensar.

    38.   A Comissão salienta que, em certos casos, os membros da Comissão gozam de uma ampla margem de discricionariedade, especialmente quanto à composição dos seus gabinetes. Além disso, devem sujeitar‑se às regras comunitárias aplicáveis em matéria de recrutamento e têm o dever de verificar com especial cuidado que as decisões a este respeito são tomadas no interesse geral e de acordo com essas regras. Este dever estende‑se a todas as fases administrativas que se seguem ao recrutamento, respeitantes, por exemplo, à prorrogação de um contrato ou às promoções.

    2.      Resposta à reacção de E. Cresson à comunicação de acusações

    39.   Na presente acção, a Comissão responde à reacção de E. Cresson à comunicação de acusações.

    40.   E. Cresson alega que a acção da Comissão não pode basear‑se no artigo 213.° CE e que o processo previsto nessa disposição não é aplicável às acusações que lhe são feitas. Essa disposição também não concede uma tutela jurisdicional efectiva. A Comissão, pelo contrário, mantém que o artigo 213.° CE constitui a base legal adequada da sua acção. Este processo é comparável com os processos previstos nas legislações nacionais a respeito do abuso de cargo público. Nestes últimos, é garantido o acesso directo à mais alta instância da circunscrição territorial competente, precisamente com a finalidade de conceder garantias acrescidas. O comportamento e os actos dos membros da Comissão estão sujeitos a disposições específicas. As regras disciplinares aplicáveis aos funcionários comunitários não lhes são aplicáveis. A Comissão não considera que o artigo 213.° CE descure o direito a uma tutela jurisdicional efectiva. O artigo 213.°, n.° 2, CE é relativo a todas as obrigações que impendem sobre os comissários e não apenas aos exemplos enumerados nessa disposição.

    41.   Perante a alegação de E. Cresson segundo a qual os relatórios do ODIC não podem constituir a base da comunicação de acusações por falta de competência, a Comissão observa que os inquéritos administrativos se tinham iniciado antes da criação desse serviço. A comunicação de acusações baseou‑se tanto nesses inquéritos como nos relatórios do ODIC e do OLAF. De qualquer modo, foi a Comissão, e não o ODIC, que dirigiu a comunicação de acusações a E. Cresson.

    42.   A Comissão nega que os direitos de defesa de E. Cresson tenham, como alega, sido violados. Quanto ao seu direito a que o processo seja iniciado num prazo razoável, observa que não se encontra previsto nenhum prazo no artigo 213.° CE, nem E. Cresson demonstrou que o tempo decorrido tenha afectado de qualquer modo o seu direito de se defender. Foi pedido à Comissão que actuasse com a devida precaução ao aplicar o artigo 213.° CE pela primeira vez. Não pode afirmar‑se, além disso, que o processo previsto no artigo 213.° CE não seja equitativo, uma vez que implica que as regras do Estatuto do Tribunal de Justiça e do Regulamento de Processo sejam respeitadas. A decisão de intentar uma acção no Tribunal de Justiça não foi precedida de uma decisão que tenha afectado os seus interesses de modo desfavorável. O processo não afectou o direito de E. Cresson ser informada das razões subjacentes à comunicação de acusações. Decorre, claramente, da sua resposta à comunicação de acusações que estava plenamente ciente das acusações da Comissão e que teve todas as oportunidades de responder. Quanto à alegada parcialidade da Comissão, esta observa que não é ela própria mas o Tribunal de Justiça que decide se deve ou não ser aplicada uma sanção. Por último, no que diz respeito à violação do seu direito de consultar os documentos, a Comissão observa que sempre lhe foi facultado o acesso ao seu processo.

    43.   Quanto aos efeitos da decisão proferida no âmbito da investigação criminal belga, a Comissão observa que o princípio «le pénal tient le disciplinaire en l’état» referido pelo Tribunal de Primeira Instância no processo François/Comissão (6) significa que o processo disciplinar deve ser suspenso enquanto o processo penal não chegar ao seu termo. De qualquer modo, o princípio deve aplicar‑se não à Comissão mas ao Tribunal de Justiça, que é a entidade disciplinar neste contexto. A Comissão aceita que a entidade disciplinar está vinculada pelos factos apurados pelo tribunal criminal. No entanto, essa circunstância de nada vale a E. Cresson, uma vez que a decisão proferida no âmbito do processo penal não se refere aos factos que estão em causa no presente processo, isto é, o favorecimento que demonstrou ao recrutar R. Berthelot e ao renovar o seu contrato e na actuação em benefício de T. Riedinger. A decisão de arquivar o processo‑crime contra E. Cresson não constitui, consequentemente, um obstáculo legal ao presente processo disciplinar.

    44.   A Comissão contesta o argumento de E. Cresson relativo à aplicabilidade de uma regra de minimis quanto aos montantes envolvidos. Mesmo que possa ser considerado válido, esse argumento tem a ver com o mérito e não com a admissibilidade do pedido da Comissão.

    45.   E. Cresson alega que foram cometidas uma série de irregularidades processuais no âmbito dos inquéritos levados a cabo na Comissão. Assim, refere uma violação da decisão que instituiu o ODIC, o facto de o ODIC ter invadido a esfera de competências do OLAF, de os relatórios do ODIC estarem incompletos, de os processos disciplinares se terem sobreposto e de a questão relativa a T. Riedinger lhe ter sido apresentada no contexto do caso Berthelot. A Comissão responde que não foi referido de que modo essas alegadas irregularidades afectaram os direitos de defesa. Acresce que, quanto às suas observações relativamente ao inquérito conduzido pelo OLAF, a Comissão refere que esse serviço tem um mandato geral para investigar suspeitas de fraudes e que não era necessário emitir mandatos específicos para cada fase do procedimento. A Comissão também não estava obrigada a informar E. Cresson dos seus contactos com o OLAF. Nem as actas de certas reuniões tinham de ser assinadas. Por último, a Comissão não vê que relevância pode ter a alegada ilegalidade do relatório do Comité de Peritos Independentes, uma vez que a sua acção se funda na sua própria investigação dos factos.

    46.   Quanto ao pedido de indemnização de E. Cresson, a Comissão não vê de que modo a propositura de uma acção nos termos do artigo 213.° CE pode constituir uma actuação ilícita, a não ser que a decisão em causa estivesse viciada de abuso de poder ou fosse deliberadamente destinada a prejudicá‑la, por exemplo, pela apresentação de um processo vazio de conteúdo.

    3.      Casos Berthelot e Riedinger

    47.   Os factos essenciais em que a Comissão se baseia já foram expostos resumidamente no título III das presentes conclusões. Em vez de os repetir, basta observar que a Comissão alega que, considerados conjuntamente, os dois casos fornecem provas da intervenção pessoal de E. Cresson em benefício de duas pessoas das suas relações. Embora, do ponto de vista formal, tenha sido o serviço envolvido ou o seu gabinete a actuar, há que concluir que as decisões relevantes podem ser atribuídas a E. Cresson. A Comissão é de opinião que o comportamento de E. Cresson constitui uma violação grave, dolosamente ou, pelo menos, por negligência grosseira, das suas obrigações decorrentes do artigo 213.°, n.° 2, CE.

    4.      Sanção

    48.   A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que aplique uma sanção, mas deixa ao seu critério a determinação da sua extensão. Esta pode consistir na perda, parcial ou total, dos direitos a pensão ou de quaisquer outros benefícios. A Comissão é de opinião que deve ser levado em conta o princípio da proporcionalidade na sanção a aplicar. A este respeito, observa que os factores enunciados no artigo 10.° do anexo IX do Estatuto dos Funcionários podem ser relevantes. No presente processo, a Comissão considera que a falta cometida foi grave na medida em que respeitou a uma regra deontológica cuja violação pôs em causa a confiança em E. Cresson, apesar de já não ser membro da Comissão, e na medida em que estava plenamente consciente de que os seus actos constituíam actos de favorecimento e em que há indícios credíveis de que pelo menos alguns dos actos de E. Cresson foram praticados dolosamente.

    B –    E. Cresson

    1.      Observações gerais

    49.   Em primeiro lugar, E. Cresson queixa‑se da verdadeira «máquina de guerra» que foi montada contra ela, tendo tido de comparecer perante a Comissão do Controlo Orçamental do Parlamento Europeu (COCOBU) e tendo sido sujeita a sucessivos inquéritos pelo OLAF, pelo ODIC e pela DG ADMIN. Estas medidas são completamente desproporcionadas em relação aos factos de que é acusada. Isto explica‑se, indubitavelmente, pelo clima que envolveu todo o processo conducente à demissão colectiva da Comissão Santer. Seguidamente, afirma que o caso foi despoletado por um artigo de jornal publicado por um jornalista belga, que foi condenado na Bélgica e em França por vários crimes. Posteriormente, um antigo funcionário da Comissão, Van Buitenen, na tentativa de divulgar alegados casos de fraude contra os interesses da Comunidade, enviou o processo às autoridades judiciais belgas, ao Comité de Peritos Independentes, ao OLAF e à imprensa. Em Junho de 1999, um juiz de instrução criminal belga encarregou‑se do processo e obteve o levantamento da imunidade de E. Cresson.

    50.   Quanto ao processo penal na Bélgica, E. Cresson nota que só foi ouvida uma vez pelo juiz de instrução criminal num período de cinco anos. Observa que a Comissão enviou a sua comunicação de acusações na altura em que tomou conhecimento pela imprensa de que era acusada. Isto demonstra a estreita ligação entre o processo disciplinar e o processo penal. E. Cresson salienta que, afinal, nenhuma das acusações foi mantida e que o processo acabou por uma decisão de arquivamento (non‑lieu). Além disso, a Comissão não recorreu dessa decisão.

    51.   Quanto ao procedimento perante a Comissão, só três anos depois da demissão da Comissão Santer é que E. Cresson foi informada de que a Comissão considerava que ela era culpada de favorecimento e que isso constituía uma grave violação das suas obrigações como comissária. O procedimento também foi alvo de crítica por parte do mandatário de E. Cresson a respeito dos prazos de resposta, da independência da Comissão, do respeito pelos direitos fundamentais e da inexistência de um ordenamento processual claramente definido para tratar da questão. E. Cresson também observa que o Secretário‑Geral da Comissão suscitou, num determinado momento, a questão da coordenação entre o processo criminal e o processo disciplinar. E. Cresson considera que, dado o modo como o procedimento foi conduzido e, em particular, o facto de não terem sido feitas perguntas a E. Cresson durante a audição perante o colégio dos comissários, a Comissão tencionava, aparentemente, remeter o processo para o Tribunal de Justiça.

    2.      Fundamentos jurídicos

    a)      Inadmissibilidade

    52.   E. Cresson alega que, tendo em conta o objectivo do artigo 213.° CE de possibilitar a aplicação de pesadas sanções aos membros da Comissão, este deve ser objecto de interpretação estrita. Recorda que o artigo 213.°, n.° 2, primeiro e segundo parágrafos, CE impõe aos membros da Comissão que «exer[çam] as suas funções com total independência, no interesse geral da Comunidade». Se o não fizerem, são aplicáveis as disposições do artigo 216.° CE. Em contrapartida, o artigo 213.°, n.° 2, terceiro parágrafo, CE é aplicável quando um comissário não fizer prova de honestidade e discrição, aceitando exercer outras actividades durante o exercício das suas funções ou após a cessação do seu mandato. Nesse caso, a sanção é a demissão compulsiva, nos termos do artigo 216.° CE, ou a perda do direito a pensão ou de outros benefícios. Uma vez que E. Cresson não é acusada de violar os seus deveres por exercer outras actividades, as disposições do artigo 213.°, n.° 2, terceiro parágrafo, CE não lhe são aplicáveis. Além do artigo 213.°, n.° 2, CE, não existe qualquer outra obrigação legalmente prevista que possa ser invocada contra E. Cresson. O código de conduta dos comissários só foi adoptado depois de terem ocorrido os factos em causa e, além disso, este não impõe nenhuma obrigação relevante em relação aos factos de que E. Cresson é acusada. Mais uma vez, E. Cresson refere a inexistência de normas processuais escritas que garantam os direitos de defesa neste contexto, o que torna a acção da Comissão ilegal. O artigo 213.°, n.° 2, CE não pode, consequentemente, servir de base legal para a decisão da Comissão, de 19 de Julho de 2004, de recorrer ao Tribunal de Justiça.

    53.   E. Cresson alega que, a partir do momento em que a Comissão interveio no processo penal na qualidade de parte civil, o princípio segundo o qual o processo disciplinar baseado nos mesmos factos deve aguardar pelo desfecho do processo penal – «le pénal tient le disciplinaire en l’état» – passou a ser aplicável. Uma vez que os factos são idênticos em ambos os processos, o processo disciplinar perde a sua razão de ser se as mesmas acusações forem refutadas no contexto do processo penal. E. Cresson observa que, apesar de o Procureur du Roi belga ter mantido, inicialmente, a acusação relativa às missões de R. Berthelot, concluiu posteriormente que não havia razão para responsabilizar E. Cresson. Uma vez que os factos que sustentam as acusações são idênticos em ambos os processos, independentemente da sua qualificação legal, a apresente acção não tem qualquer razão de ser e deve ser julgada inadmissível. A decisão proferida no processo penal esvaziou a acção da Comissão de conteúdo.

    54.   A única queixa que foi levada em conta pelo Procureur du Roi belga foi a relativa às falsas autorizações de deslocações em serviço envolvendo um montante de 6 930 EUR. Para além do facto de o Procureur du Roi ter decidido que esses actos não podiam ser imputados a E. Cresson, deve considerar‑se que se trata de um montante em dinheiro relativamente baixo, a que deve ser aplicado o princípio de minimis non curat praetor.

    55.   Por todas estas razões, a acção da Comissão deve ser julgada inadmissível.

    b)      Quanto ao mérito

    56.   Subsidiariamente, E. Cresson alega que as acusações que lhe são feitas não têm fundamento.

    57.   R. Berthelot foi recrutado segundo as regras aplicáveis a fim de exercer funções consultivas ao seu serviço. Como o estatuto de cientista convidado foi, de facto, considerado o mais adequado pela administração, E. Cresson nunca questionou o seu estatuto. As qualificações de R. Berthelot não eram inferiores às dos outros cientistas convidados. Trabalhava efectivamente e acompanhava E. Cresson nas suas missões. Foi ele próprio que rescindiu o seu contrato por razões de saúde. Só depois de se ter demitido é que se suscitou a questão do relatório final. Não tinha sido anteriormente feita nenhuma menção a essa questão. R. Berthelot compilou um relatório com base em memorandos. É difamatório insinuar que não foi ele próprio que o escreveu. Quanto às deslocações em serviço, E. Cresson remete para os factos apurados pelo Procureur du Roi belga.

    58.   O caso Riedinger, do ponto de vista de E. Cresson, não tem objecto. Qualquer dos três contratos que lhe foram propostos eram de interesse geral e T. Riedinger prestou a sua contribuição sem receber qualquer remuneração. Esta acusação relativa à falta de honestidade foi suscitada pela primeira vez na acção da Comissão e não tem qualquer fundamento. Dir‑se‑ia que E. Cresson está a ser acusada de falta de honestidade por sugerir a celebração de dois contratos que não resultaram num relatório nem num estudo e pelos quais T. Riedinger não foi pago.

    59.   Ainda a título subsidiário, E. Cresson faz referência a diversas e graves irregularidades processuais.

    60.   E. Cresson observa, em primeiro lugar, que o inquérito administrativo foi aberto, erradamente, pelo Director‑Geral do Pessoal e da Administração como autoridade investida do poder de nomeação, com base no relatório do ODIC, quando deveria ter sido iniciado pelo colégio dos comissários.

    61.   Seguidamente, neste contexto, E. Cresson alega que a Comissão violou direitos e princípios fundamentais no procedimento conducente à presente acção. Em primeiro lugar, iniciar o processo em 2003, sete anos depois de os factos terem ocorrido, é inaceitável, tendo em conta o facto de os relatórios em que a Comissão se baseia estarem disponíveis há muito e de o processo não se revestir de complexidade. Em segundo lugar, apesar de a Comissão alegar (erradamente) que não é a entidade com poder disciplinar, a verdade é que desempenha vários papéis em termos processuais que devem manter‑se separados. Em terceiro lugar, a Comissão cedeu a pressões, em particular do Parlamento Europeu, e não pode, consequentemente, ser considerada imparcial. Em quarto lugar, foram cometidas várias irregularidades processuais na condução do procedimento interno, relativas, designadamente, ao papel do ODIC, ao facto de os procedimentos relativos ao processo Berthelot se terem sobreposto e à imposição de prazos desproporcionados.

    62.   No entanto, o problema processual mais importante é que, contrariamente aos funcionários e outros agentes da Comunidade, E. Cresson não tem a faculdade de recorrer se o Tribunal de Justiça decidir em seu desfavor e aplicar‑lhe uma sanção. No âmbito dos processos disciplinares, os membros da Comissão têm menos garantias e protecção jurisdicional do que os funcionários da Comunidade. Considera que isso constitui uma violação dos seus direitos fundamentais. Os direitos de defesa dos ministros nos Estados‑Membros são objecto de maior protecção nesta matéria.

    63.   E. Cresson realça as diferenças significativas existentes entre o tratamento dispensado aos funcionários e aos membros da Comissão no contexto do processo disciplinar. Estes últimos têm menos garantias e não gozam de tutela jurisdicional efectiva. Considera que isto constitui uma violação dos seus direitos fundamentais.

    64.   E. Cresson reconhece que não pode fazer um pedido reconvencional de indemnização. No entanto, pretende realçar o prejuízo que sofreu devido à posição persecutória e excessiva adoptada pela Comissão. Pede ao Tribunal de Justiça que condene a Comissão no pagamento das despesas.

    C –    Posição da República Francesa

    65.   A República Francesa concorda com E. Cresson relativamente ao facto de o artigo 213.°, n.° 2, CE ser inadequado para fundamentar a acção que foi intentada contra ela, tanto do ponto de vista substancial como temporal. Observa que este processo se sobrepõe ao mecanismo de responsabilização política colectiva da Comissão, que já produziu os seus efeitos com a demissão da Comissão Santer. Ao demitir‑se colectivamente, a Comissão demonstrou que as irregularidades comprovadas nessa altura eram da responsabilidade colectiva da Comissão. Consequentemente, não foi tomada nenhuma medida contra os membros individualmente considerados.

    66.   A República Francesa partilha o ponto de vista de E. Cresson segundo o qual a decisão de pôr termo ao processo penal na Bélgica retira base de sustentação ao processo disciplinar e refere, neste contexto, o resultado das investigações do Procureur du Roi nesse processo. A posição da Comissão segundo a qual o processo belga não respeita ao favorecimento não é clara. Considera que as qualificações legais são diferentes ou que são os próprios factos que diferem? Em todo o caso, o tribunal belga concluiu claramente que os factos não estavam provados ou que não podiam ser imputados a E. Cresson. Considerou também que o recrutamento de R. Berthelot não era contrário às regras comunitárias. A alegação da Comissão de favorecimento contraria os factos apurados pelo tribunal belga.

    67.   Nestas circunstâncias, o Governo francês considera que a aplicação de uma sanção com fundamento no artigo 213.°, n.° 2, CE seria desproporcionada. Tal sanção pressupõe uma violação grave dos deveres decorrentes das funções exercidas. Observa que, relativamente aos funcionários comunitários, a sanção de perda dos direitos a pensão só foi aplicada uma vez num período de 50 anos, que a redução era de 35% e respeitava a um caso de corrupção (7). A aplicação de uma sanção também seria desproporcionada devido ao facto de já terem decorrido oito anos desde que os factos em causa ocorreram. Refere, neste contexto, a rapidez com que foram tomadas medidas contra o antigo comissário Bangemann. O caso de E. Cresson não deve ser visto isoladamente em relação às práticas da Comissão na altura. A Comissão não agiu contra E. Cresson quando esta ainda estava no exercício das suas funções. Seria desproporcionado aplicar‑lhe uma sanção por actuações pelas quais a Comissão como um todo foi censurada.

    VI – Observações gerais sobre o artigo 213.°, n.° 2, CE

    68.   Apesar de os argumentos no presente processo se centrarem, obviamente, nas alegações contra E. Cresson e no significado e função precisos do artigo 213.°, n.° 2, CE, o caso suscita questões de maior importância em termos constitucionais para a União Europeia e as suas instituições. Diz respeito às normas mínimas de conduta que pessoas que detêm posições de poder dentro das instituições comunitárias devem respeitar e ao modo como são tratadas quando assim não acontece. É essencial para o correcto funcionamento das instituições comunitárias que pessoas que ocupam altos cargos sejam vistas não só como pessoas competentes do ponto de vista profissional mas também como pessoas cujo comportamento é irrepreensível. As qualidades pessoais dessas pessoas reflectem‑se directamente na confiança que o público em geral deposita nas instituições comunitárias, na sua credibilidade e, consequentemente, na sua eficiência. Como o Comité de Peritos Independentes bem realçou no seu relatório de 15 de Março de 1999, apenas o respeito das normas mínimas de conduta adequada «permitirá aos [titulares] de altos cargos disporem da autoridade e da credibilidade necessárias ao exercício da liderança que deles se espera» (8).

    69.   Para avaliar a função do artigo 213.°, n.° 2, CE no ordenamento constitucional comunitário e também para enquadrar correctamente o presente processo, é importante referir que existem disposições paralelas a respeito das outras instituições e órgãos comunitários que devem actuar com total independência e completa imparcialidade no exercício das suas funções. Refiro‑me, nesta matéria, ao artigo 195.°, n.° 2, CE, relativamente ao Provedor de Justiça Europeu, ao artigo 247.°, n.° 7, CE, relativamente ao Tribunal de Contas, ao artigo 11.°, n.° 4, do Estatuto do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, relativamente à Comissão Executiva do Banco Central Europeu, e aos artigos 6.° e 47.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, relativamente ao Tribunal de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância, respectivamente.

    70.   O que a Comissão e esses órgãos e instituições têm em comum é o facto de, excepto, obviamente, o Provedor de Justiça Europeu, todos actuarem como órgãos colegiais e de os seus membros não poderem ser destituídos por razões relacionadas com o exercício das funções desses órgãos. Uma vez que os membros dessas instituições são titulares do mais alto cargo no respectivo domínio e não estão sujeitos a nenhuma espécie de subordinação hierárquica, devem ser previstas disposições específicas para assegurar que qualquer abuso de poder seja punido de modo adequado. É inerente a essa função que o poder sancionatório caiba à instituição de que a pessoa em causa é membro ou a outra instituição com estatuto equivalente no ordenamento constitucional (9).

    71.   Para garantir que os titulares de cargos públicos não estão, devido ao cargo que ocupam, imunes a reacções sancionatórias quando não cumpram as normas mínimas de conduta pessoal exigíveis, processos deste género são a garantia fundamental de que as instituições em causa actuam de acordo com a sua função constitucional. A própria existência dessas disposições também tem uma função preventiva nesta matéria.

    72.   Também deve ser salientado o facto de a aplicação dessas disposições constitucionais não prejudicar a aplicação de outros mecanismos correctivos da referida conduta dos titulares de cargos públicos. A aplicação de outros mecanismos tão‑pouco constitui um obstáculo à aplicação do processo constitucional. Refiro‑me, em particular, aos mecanismos de responsabilização política e criminal. Quanto aos primeiros, a Comissão é responsável perante o Parlamento Europeu nos termos dos artigos 197.° CE e 201.° CE apenas enquanto órgão colegial. O Parlamento não tem a faculdade de censurar a actuação de membros individuais da Comissão. Todavia, na sequência das alterações introduzidas pelo Tratado de Nice, o artigo 217.°, n.° 4, CE obriga os membros da Comissão a apresentarem a sua demissão se o presidente lho pedir, após aprovação pelo colégio dos comissários. Quanto aos segundos, se a conduta em questão constituir um ilícito criminal nos termos da lei nacional, o titular do cargo público em causa pode ser responsabilizado criminalmente num dos Estados‑Membros. Neste caso, a imunidade do membro da Comissão deve ser levantada, como previsto no artigo 20.°, em conjugação com o artigo 18.° do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias, de 8 de Abril de 1965. A determinação do mecanismo aplicável depende da natureza da infracção e do tipo de normas mínimas em causa. Todos estes mecanismos prosseguem objectivos diferentes e, consequentemente, não se excluem mutuamente.

    73.   No caso da Comissão, há uma relação funcional directa entre o padrão mínimo de conduta a adoptar pelos membros da Comissão e o seu papel no ordenamento institucional da Comunidade. A este respeito, é importante realçar que, para além de ser o órgão executivo da Comunidade, a Comissão desempenha um papel essencial de árbitro na conciliação dos interesses dos Estados‑Membros, do comércio, da indústria e dos cidadãos europeus no processo de definição das políticas comunitárias e de iniciativa legislativa comunitária. Em determinadas áreas, também desempenha um papel quase‑judicial, como no domínio da concorrência ou ao assegurar o cumprimento pelos Estados‑Membros das obrigações decorrentes da legislação comunitária nos termos dos artigos 226.° CE e 228.° CE. A Comissão só poderá ser bem sucedida no desempenho dessas funções se ela própria e os seus membros forem vistos como entidades que actuam com total imparcialidade e independência. Só assim poderá exercer a sua autoridade para conquistar a confiança indispensável por parte das outras instituições comunitárias, dos Estados‑Membros e do público em geral.

    74.   Assim, é inerente às funções e competências da Comissão que os comissários respeitem em todas as ocasiões os mais altos padrões de conduta a fim de garantir a sua independência, imparcialidade e honestidade. Isto é aplicável não só às suas actividades com impacto exterior mas também ao modo como actuam dentro da Comissão, ao dirigir os serviços pelos quais são responsáveis e nas relações com os outros serviços internos da Comissão. Os próprios hábitos internos de trabalho são um factor determinante na garantia da eficiência das actividades da Comissão.

    75.   Qualquer falha na observância desses padrões mínimos pelos membros da Comissão pode potencialmente causar danos significativos na imagem pública da instituição e enfraquecer a confiança nela depositada, o que resultará numa diminuição da sua eficiência. Os efeitos dos acontecimentos que levaram à demissão colectiva da Comissão Santer em 1999 demonstram que esta não é uma observação meramente hipotética.

    76.   As obrigações dos membros da Comissão são descritas de modo geral no artigo 213.°, n.° 2, CE. Decorre dessa disposição que devem exercer as suas funções com total independência, no interesse geral da Comunidade. Devem abster‑se de praticar qualquer acto incompatível com a natureza das suas funções. No momento da tomada de posse, os membros da Comissão assumem o compromisso solene de respeitar, durante o exercício das suas funções e após a cessação destas, «os deveres decorrentes do cargo, nomeadamente os de honestidade e discrição, relativamente à aceitação, após aquela cessação, de determinadas funções ou benefícios».

    77.   Aquilo a que as obrigações referidas no artigo 213.°, n.° 2, CE vinculam mais especificamente é uma questão de interpretação e é, efectivamente, a questão fulcral neste processo. À data em que ocorreram os factos de que E. Cresson é acusada, não existia nenhum código de conduta dos membros da Comissão que especificasse que normas mínimas deviam ser observadas. Entretanto, esse código foi adoptado e entrou em vigor (10). O código contém várias orientações a respeito de questões deontológicas relacionadas com a independência e a honestidade da função de comissário e com a lealdade, confiança e transparência no funcionamento interno da Comissão. Porém, não contém nenhuma orientação ou princípio relacionado com os factos objecto do presente processo. Seja como for, é inerente às funções de membro da Comissão e à eficiência do funcionamento dessa instituição que determinadas normas mínimas de ordem deontológica sejam observadas. A este respeito, pode referir‑se que, para os funcionários comunitários, estão previstas normas nos artigos 10.° a 12.°‑A do Estatuto dos Funcionários. Apesar de essas normas não se aplicarem aos membros da Comissão, pode aceitar‑se que esses padrões constituem um mínimo absoluto a ser observado.

    78.   Não é inteiramente possível, nem sequer útil, procurar estabelecer padrões de conduta adequada no serviço público de modo exaustivo. Haverá sempre uma situação em que não é possível identificar que norma foi violada, podendo, todavia, concluir‑se que a conduta é contrária ao interesse geral. De certo modo, trata‑se de uma situação semelhante ao modo como Kenneth Clark descreveu um dia o fenómeno da «civilização»: «O que é a civilização? Não sei. Não consigo defini‑la em termos abstractos – ainda. Mas julgo ser capaz de reconhecê‑la quando a vejo [...]» (11).

    79.   O Comité de Peritos Independentes referiu, a este respeito, «um núcleo comum de normas mínimas», que definiu como a actuação no interesse geral da Comunidade e em total independência. Isto implica que as decisões sejam tomadas unicamente de acordo com o interesse público, com base em critérios objectivos e sem influência de interesses particulares, próprios ou alheios. Também implica a adopção de um comportamento caracterizado pela honestidade e discrição, em consonância com os princípios da responsabilidade e abertura perante a opinião pública. Este último implica, nomeadamente, que sejam honesta e publicamente reconhecidos quaisquer conflitos de interesses pessoais (12).

    80.   Ao procurar definir normas mínimas a observar pelos titulares de cargos públicos e, consequentemente, especificar o «núcleo comum» referido pelo Comité de Peritos Independentes, é útil mencionar os denominados sete princípios da vida pública, enunciados pelo Comité Nolan de Normas Mínimas da Vida Pública no Reino Unido (Nolan Committee on Standards in Public Life in the United Kingdom). Esses princípios são: o altruísmo, a integridade, a objectividade, a responsabilidade, a transparência, a honestidade e a capacidade de liderança. O primeiro destes princípios, o altruísmo, é ainda definido nos seguintes termos: «[o]s titulares de cargos públicos devem actuar unicamente no interesse público. Não devem fazê‑lo com o objectivo de obter benefícios financeiros ou outros para si mesmos, seus familiares ou amigos».

    81.   Por último, deve observar‑se que a razão pela qual enfatizo a necessidade de que os comissários possam garantir a sua absoluta independência e imparcialidade após a cessação das suas funções, como condição de a Comissão poder desempenhar as funções que lhe são confiadas, não é resultado de conhecimentos recentes ou de uma alteração de valores. Ao referir‑se ao juramento que os membros da Comissão prestam na tomada de posse, previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, na reunião constituinte da Comissão que teve lugar em Val Duchesse em 16 de Janeiro de 1958, o Presidente Walter Hallstein descreveu a essência das obrigações dos membros da Comissão nos seguintes termos:

    «En prononçant solennellement ces paroles, en notre nom à tous ainsi que l’exigent les termes du Traité, nous reconnaissons l’essentiel des obligations qui nous sont désormais communes.

    Nous entendons par ‘l’essentiel’ que nos travaux servent l’Europe – l’Europe et non quelconques intérêts particuliers qu’ils soient d’ordre national, professionnel, économique ou personnel.

    C’est en cela que réside la difficulté de nôtre tâche, mais c’est aussi ce qui lui confère une insigne dignité.» (13)

    Não poderia haver testemunho mais claro da validade das observações precedentes.

    VII – Apreciação

    82.   A acção da Comissão suscita uma série de questões jurídicas que podem ser agrupadas nas seguintes quatro categorias: admissibilidade, questões processuais, mérito da acção e possibilidade de aplicação de uma sanção.

    A –    Admissibilidade

    83.   E. Cresson alega, em primeiro lugar, que a acção da Comissão é inadmissível, com fundamento no facto de o artigo 213.° CE não constituir a base jurídica adequada, de, na sequência da decisão da chambre du conseil do tribunal de première instance de Bruxelles de arquivar o processo penal, a presente acção ter ficado sem objecto e de, tendo em conta os montantes relativamente baixos em causa, dever aplicar‑se o princípio de minimis non curat praetor.

    84.   Enquanto tal, o artigo 213.°, n.° 2, CE não prevê nenhum requisito específico para a admissibilidade de uma acção intentada pela Comissão ou pelo Conselho ao abrigo dessa mesma disposição. Todavia, as questões processuais suscitadas por E. Cresson são relevantes e reclamam uma análise da função e do alcance dessa disposição e da sua relação com outros processos relativos às mesmas alegações.

    1.      Artigo 213.°, n.° 2, CE como base jurídica da presente acção

    85.   E. Cresson traça uma distinção entre as sanções previstas no último período do artigo 213.°, n.° 2, CE. Por um lado, alega que a sanção de demissão compulsiva é aplicável quando um comissário não cumprir a sua obrigação de exercer as suas funções no interesse geral enquanto durarem essas funções. Este é o caso previsto no artigo 216.° CE, a que se refere o artigo 213.°, n.° 2, CE. Por outro lado, a sanção de retirar a um comissário os seus direitos a pensão ou outros benefícios só pode ser aplicada depois de o comissário ter cessado as suas funções. Além disso, esta medida só pode ser tomada quando o comissário em causa não tiver feito prova da honestidade e da discrição suficientes relativamente à aceitação de determinadas funções ou benefícios após a cessação das suas funções. Invoca que, como as acusações que lhe são feitas não estão relacionadas com esta última infracção, a acção da Comissão não pode basear‑se no artigo 213.°, n.° 2, CE.

    86.   A Comissão, em contrapartida, é de opinião que qualquer das sanções previstas no artigo 213.°, n.° 2, CE pode ser aplicada a um comissário em funções ou a um antigo comissário, quando for demonstrado que não respeitou as obrigações decorrentes do cargo de comissário. O favorecimento que decorre do recrutamento de pessoas para a Comissão pode ser considerado uma violação dessas obrigações.

    87.   Este litígio diz basicamente respeito a três aspectos relativos ao alcance do artigo 213.°, n.° 2, CE. Em primeiro lugar, a questão de saber se pode ser feita uma distinção quanto à aplicabilidade das sanções de demissão compulsiva e de perda de direitos a pensão consoante o comissário em causa ainda esteja ou não no exercício das suas funções. Em segundo lugar, a questão de saber se uma sanção de retirar a um membro da Comissão a sua pensão pode ser aplicada por infracções de quaisquer obrigações decorrentes do cargo de comissário ou apenas quando estiverem em causa actividades externas. Em terceiro lugar, a questão de saber que obrigações estão consagradas no artigo 213.°, n.° 2, CE.

    88.   Quanto à primeira destas três questões, basta ter em conta o teor inequívoco do artigo 213.°, n.° 2, CE, que, no último período, dispõe que qualquer das duas sanções pode ser aplicada em caso de violação das obrigações de comissário. O termo «obrigações» só pode coincidir com o mesmo termo usado no período anterior relativo ao compromisso solene dos comissários de respeitar, durante o exercício das suas funções e após a cessação destas, os deveres decorrentes do cargo. Por outras palavras, as obrigações em causa devem ser respeitadas em todas as ocasiões pelos comissários e não é feita nenhuma distinção consoante a acção seja intentada no Tribunal de Justiça durante o exercício das funções de comissário ou depois da cessação destas. Consequentemente, em teoria, é possível que o artigo 213.°, n.° 2, CE possa ser invocado contra um comissário que ainda esteja em funções para lhe retirar os direitos a pensão ou outros benefícios e não para o demitir compulsivamente.

    89.   Assim, a distinção feita por E. Cresson quanto à aplicação do artigo 213.° CE a comissários em funções e a antigos comissários não tem fundamento. No seu caso, é possível a aplicação da sanção financeira, tendo em conta que não foi demitida compulsivamente nos termos do artigo 216.° CE. Demitiu‑se voluntariamente juntamente com os restantes membros da Comissão Santer.

    90.   O segundo argumento, segundo o qual a segunda sanção prevista no artigo 213.°, n.° 2, CE só é aplicável quando o comissário em causa não tiver actuado com honestidade e discrição relativamente à aceitação de funções ou benefícios após a cessação das suas funções, resulta de uma leitura demasiado restritiva dessa disposição. Essa regra específica deve ser vista como uma entre as obrigações gerais que cumpre aos comissários respeitar, o que resulta da expressão «nomeadamente» que a precede. Devido à sua natureza fundamental, essa obrigação merecia ser expressamente mencionada na disposição.

    91.   O terceiro aspecto relativo ao alcance do artigo 213.°, n.° 2, CE já foi apreciado no contexto das minhas observações gerais introdutórias. Qualquer tipo de conduta susceptível de suscitar dúvidas sobre a independência e a imparcialidade de um membro da Comissão deve ser considerado uma violação das obrigações decorrentes dessa disposição que pode dar lugar à aplicação das sanções aí previstas. Contrariamente à alegação de E. Cresson segundo a qual o artigo 213.°, n.° 2, CE deve ser objecto de interpretação estrita tendo em conta as graves consequências que uma violação das obrigações pode ter, deve ser dada uma interpretação lata ao alcance dessa disposição, de modo a garantir a sua eficácia para desencorajar condutas que possam ter efeitos prejudiciais no funcionamento da Comissão como um todo.

    92.   Por conseguinte, o artigo 213.°, n.° 2, CE, pode ser invocado a respeito da violação de qualquer das obrigações de um comissário, independentemente de este ainda estar em funções ou de essas funções já terem cessado. O argumento em contrário de E. Cresson não deve ser acolhido.

    2.      Efeitos da decisão do tribunal criminal belga

    93.   E. Cresson sustenta, no essencial, que, uma vez que o processo penal que lhe foi instaurado na Bélgica foi arquivado porque o juiz de instrução chegou à conclusão de que os factos consubstanciadores de falsificação e fraude não lhe podiam ser imputados, e que a Comissão não recorreu dessa decisão, não há qualquer fundamento para uma acção ao abrigo do artigo 213.°, n.° 2, CE relativa aos mesmos factos. Em apoio desta alegação, invoca o princípio «le pénal tient le disciplinaire en l’état», de acordo com o qual a entidade disciplinar está vinculada pelos factos apurados por um tribunal criminal. A Comissão, por outro lado, contesta que os factos sejam os mesmos em ambos os casos. Enquanto o processo na Bélgica respeitava a possíveis crimes de falsificação e fraude, aqui é o favorecimento que está em causa. Alega igualmente que a decisão de arquivar o processo penal assentou em fundamentos de direito, e não de facto.

    94.   Em primeiro lugar, há que salientar a natureza específica do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, que, apesar de frequentemente designado de disciplinar por ambas as partes na presente acção, deve, de facto, ser distinguido desse processo disciplinar, tendo em conta o nível do cargo público em causa. Uma vez que há uma relação directa entre a conduta de um comissário e a imagem pública e o funcionamento da instituição em que detém um cargo, o processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE é constitucional por natureza. Isso é demonstrado pelo facto de as decisões a tomar no âmbito desse processo não serem tomadas dentro da própria instituição, mas por outra instituição, o poder judicial imparcial da Comunidade.

    95.   Neste contexto, o Tribunal de Justiça goza do monopólio do exercício do poder judicial, que não pode ser afectado por decisões tomadas por tribunais nacionais. Uma vez que o Tribunal de Justiça é a autoridade que deve, em última instância, aplicar uma sanção a pedido da Comissão ou do Conselho, também deve poder apreciar se a conduta de que o comissário é acusado constitui uma violação das suas obrigações na acepção do artigo 213.° CE. Apesar de o Tribunal de Justiça, para esse efeito, poder levar em conta os factos apurados por um órgão jurisdicional nacional, tem a sua própria responsabilidade nesta matéria, que não pode ser restringida de modo nenhum. Assim, o facto de um tribunal nacional ter decidido, num processo penal nacional contra um (antigo) membro da Comissão, que certos factos não foram provados ou que foram provados mas não são constitutivos de responsabilidade criminal, não pode restringir os poderes do Tribunal de Justiça de considerar assentes e qualificar os mesmos factos no contexto diferente e específico do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, que é uma questão de direito comunitário.

    96.   É por todas estas razões que não considero que o princípio conhecido como «le pénal tient le disciplinaire en l’état» seja aplicável ao Tribunal de Justiça no contexto do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE.

    97.   Mesmo que se considerasse esse princípio aplicável nas circunstâncias do caso vertente, partilho da opinião da Comissão segundo a qual os factos objecto de apreciação pelo juiz de instrução na Bélgica e os do presente processo não são exactamente os mesmos. O que estava em causa no processo anterior no que diz respeito a E. Cresson era, designadamente, se a elaboração das autorizações de deslocações em serviço de R. Berthelot e o relatório final deste no termo do seu primeiro contrato consubstanciavam crimes de falsificação e de fraude. O objecto do presente processo, em contrapartida, é a acusação relativa a uma actuação de favorecimento por parte de E. Cresson ao recrutar e beneficiar R. Berthelot e ao propor contratos a T. Riedinger. Trata‑se de uma questão completamente diferente. Os factos que estavam em causa no processo penal eram meras subespécies ou expressões do tratamento preferencial concedido àqueles dois indivíduos por iniciativa, alegadamente, de E. Cresson. Não devem ser confundidos com a própria actuação de favorecimento, que, de resto, é uma questão que está fora do âmbito da legislação penal.

    98.   Reafirmo que não há objecções a que um processo penal nacional e o processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE corram em simultâneo. Os dois processos têm objectivos diferentes nas ordens jurídicas nacional e comunitária, respectivamente. Enquanto a finalidade do primeiro é garantir o cumprimento de normas mínimas consideradas essenciais no ordenamento social a nível nacional, o segundo está concebido para garantir o correcto funcionamento das instituições comunitárias a fim de assegurar a prossecução dos objectivos dos Tratados. Mesmo que o processo penal nacional tivesse prosseguido e tivesse resultado na aplicação de uma pena, ainda haveria margem para a aplicação das sanções previstas no artigo 213.°, n.° 2, CE.

    99.   Consequentemente, deve ser rejeitado o argumento de E. Cresson segundo o qual a decisão da chambre du conseil do tribunal de première instance de Bruxelles de 30 de Junho de 2004, de arquivar o processo penal contra si instaurado, priva a acção da Comissão de objecto e que, por consequência, a presente acção deve ser julgada inadmissível.

    3.      De minimis non curat praetor

    100. E. Cresson alega que a acção da Comissão deve ser julgada inadmissível tendo em conta o reduzido montante em causa, relativo às deslocações em serviço de R. Berthelot. A Comissão contesta esse argumento e afirma que, ainda que fosse procedente, está relacionado com o mérito da acção, e não com a sua admissibilidade.

    101. O artigo 213.°, n.° 2, CE não impõe quaisquer requisitos quanto ao grau de gravidade de uma alegada violação das suas obrigações por um (antigo) membro da Comissão enquanto critério para a Comissão ou o Conselho intentarem uma acção no Tribunal de Justiça. A decisão de propor uma acção ao abrigo dessa disposição do Tratado é uma questão que apenas à instituição em causa cabe tomar discricionariamente. Qualquer decisão de intentar uma acção ao abrigo dessa disposição contra um (antigo) membro da Comissão é tomada colectivamente pelo colégio dos comissários. Pode presumir‑se que tal decisão não é tomada levianamente.

    102. Acresce que o facto de os prejuízos materiais causados aos interesses da Comunidade serem reduzidos não põe em causa a gravidade da violação das suas obrigações pelo comissário em causa. O que importa é determinar se a conduta em causa foi susceptível de prejudicar a autoridade e credibilidade da Comissão e a confiança que as outras instituições, os Estados‑Membros e o público em geral depositam na Comissão. É evidente que, no caso em apreço, a conduta de E. Cresson causou tal prejuízo.

    103. O facto de o montante com que R. Berthelot foi beneficiado ser relativamente diminuto não afecta, consequentemente, a admissibilidade da acção da Comissão. Como a Comissão correctamente observa, quando muito, trata‑se de uma questão que poderá ser levada em conta em sede de apreciação do mérito da causa.

    3.      Conclusão quanto à admissibilidade

    104. Tendo em conta as considerações precedentes, concluo que os fundamentos de inadmissibilidade da acção da Comissão invocados por E. Cresson não devem ser acolhidos.

    B –    Questões processuais

    105. E. Cresson levanta uma série de objecções ao modo como o processo foi conduzido na Comissão antes de a presente acção ser intentada e critica a falta de garantias processuais na aplicação do próprio artigo 213.°, n.° 2, CE. Apesar de as suas queixas, resumidas nos n.os 51 e 60 a 62 supra, terem sido apresentadas sob a forma de questões subsidiárias, é conveniente, do ponto de vista sistemático, proceder à sua análise antes de apreciar o mérito da causa.

    106. Como E. Cresson correctamente observa, não há um enquadramento processual claro para a preparação da decisão da Comissão de intentar uma acção no Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 213.°, n.° 2, CE, quando considera que um dos seus membros ou antigos membros violou as obrigações decorrentes da função de comissário. Tendo em conta as graves consequências pessoais que essa decisão pode ter, incumbe à Comissão agir com a devida cautela tanto no que diz respeito à averiguação dos factos como à sua valoração, à comunicação da sua posição à pessoa interessada e à sua audição sobre as acusações que lhe são feitas. Este dever de actuar com prudência e de tomar devidamente em consideração os direitos de defesa revela‑se com particular acuidade pelo facto de não existirem precedentes nem procedimentos preparatórios judicialmente sancionados. De um modo geral, a Comissão adoptou efectivamente uma posição prudente na preparação deste processo ao elaborar a comunicação de acusações, notificá‑la a E. Cresson e dar‑lhe a oportunidade de responder por escrito e oralmente. Considero importante sublinhar este aspecto de carácter geral antes de analisar separadamente os fundamentos invocados por E. Cresson.

    107. O primeiro fundamento invocado por E. Cresson, segundo o qual o inquérito administrativo devia ter sido desencadeado pelo colégio dos comissários uma vez que o director‑geral do pessoal não tinha competência para tanto, não pode ser acolhido. Para além de não existir qualquer regra escrita ou não escrita segundo a qual uma decisão de investigar alegadas actuações ilícitas de um comissário só pode ser tomada pelos seus pares, o director‑geral actua sob a responsabilidade directa de um membro da Comissão. Deve realçar‑se mais uma vez que o que é relevante é que, ao decidir desencadear o processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, a Comissão tenha assumido inteira responsabilidade pelos factos em que baseia as suas alegações.

    108. No que respeita à violação dos seus direitos fundamentais, E. Cresson alega, em primeiro lugar, que o lapso de tempo de sete anos que decorreu entre os factos de que é acusada e a abertura do processo contra si em 2003 é inaceitável. No que diz respeito a este fundamento, observe‑se que o artigo 213.°, n.° 2, CE não prevê um prazo para instaurar um processo contra um (antigo) comissário. No caso vertente, a decisão de desencadear o procedimento contra E. Cresson foi o culminar de um processo de investigação e de reformas internas no seio da Comissão de que E. Cresson devia ter estado ao corrente. Apesar de poder aceitar‑se que o decurso de um lapso de tempo de sete anos antes de instaurar um processo cujo objectivo é a aplicação de uma sanção económica é significativo, isso não afecta a competência da Comissão para recorrer ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 213.°, n.° 2, CE. Se o decurso do tempo fosse um fundamento de inadmissibilidade, como observa a Comissão, isso poderia impedir a própria Comissão ou o Conselho de intentar uma acção nos casos em que os factos fossem provados muito depois de terem ocorrido. No entanto, considero que o tempo decorrido entre a ocorrência dos factos essenciais do processo e a decisão de dar início ao processo nos termos do artigo 213.°, n.° 2, CE pode ser um factor a levar em conta no contexto da decisão de aplicação de uma possível sanção. Voltarei a este assunto mais adiante.

    109. O aspecto seguinte da alegada violação dos direitos fundamentais de defesa é o facto de ter sido negado a E. Cresson um processo equitativo, uma vez que, ao longo de todo o processo, a Comissão terá assumido o papel de juiz de instrução, ao intervir no processo penal na Bélgica e ao dar início a vários inquéritos administrativos, e posteriormente o papel de Ministério Público, ao intentar a acção no Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 213.°, n.° 2, CE. Além disso, o facto de ter sido recusado a E. Cresson o acesso às actas da reunião da Comissão em que foi tomada a decisão de intentar a presente acção terá constituído uma violação do princípio do contraditório. Quanto ao primeiro ponto, devo observar que, ao longo do processo, a Comissão exerceu correctamente os seus poderes nos termos do Tratado, tanto na condução dos inquéritos como na decisão de recorrer ao Tribunal de Justiça. É enganoso equiparar a sua actuação neste contexto a funções que lhe são alheias. Quanto ao segundo ponto, tendo em conta o facto de E. Cresson estar plenamente informada das acusações que lhe foram feitas e que constavam da comunicação de acusações, a recusa de lhe facultar a consulta das actas da reunião da Comissão de 19 de Julho de 2004 não constituiu uma violação do seu direito a um processo equitativo.

    110. Em seguida, no âmbito deste fundamento, E. Cresson alega que a Comissão não foi imparcial ao tomar a decisão de dar inicio ao processo nos termos do artigo 213.°, n.° 2, CE, uma vez que actuou sob pressão política do Parlamento Europeu. Mais uma vez, nesta sede, deve ser salientado que, apesar de a Comissão ter competência própria para decidir se intenta ou não uma acção no Tribunal de Justiça ao abrigo dessa disposição, em última instância é o Tribunal de Justiça que decide se estão reunidas as condições para a aplicação de uma sanção e qual a sanção mais adequada, tendo em conta as circunstâncias. A questão de saber se a Comissão actuou imparcialmente ao intentar a presente acção não é relevante. Por conseguinte, este fundamento também não deve ser acolhido.

    111. Por último, E. Cresson alega que foram cometidas diversas irregularidades processuais no âmbito dos inquéritos administrativos. É pertinente referir que os vários inquéritos administrativos que foram levados a cabo sobre alegados casos de favorecimento por parte de E. Cresson foram o resultado directo de acusações mais gerais de actuações ilícitas que ocorreram, na época, no seio da Comissão. Como tal, não foram encarados como actos preparatórios do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE contra E. Cresson. Só posteriormente, em 21 de Janeiro de 2003, quando a Comissão decidiu dirigir a comunicação de acusações a E. Cresson, adquiriram essa qualidade. A decisão de dar início ao procedimento do artigo 213.°, n.° 2, CE é da exclusiva responsabilidade da Comissão, actuando como órgão colegial, e ao tomar a decisão também assume plena responsabilidade pelos factos em que fundamenta a sua acção. Cabe, então, ao Tribunal de Justiça apreciar do mérito do presente processo com base na informação que tem sobre esses factos. Vistas nesta perspectiva, as diversas irregularidades formais – e, a meu ver, extremamente insignificantes – que alegadamente ocorreram na fase preparatória não poderiam, ainda que tivessem efectivamente ocorrido, afectar a veracidade ou a validade dos factos apresentados pela Comissão ao Tribunal de Justiça.

    112. A principal objecção de E. Cresson relativamente aos direitos de defesa é o facto de, no âmbito da presente acção, não ter o direito de recorrer da decisão do Tribunal de Justiça. Refere, por analogia, a situação dos funcionários comunitários e dos ministros do Governo belga, em que são duas as instâncias a apreciar os casos de abuso de poderes públicos. Apesar de o Tribunal de Justiça decidir efectivamente em primeira e última instância no âmbito do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, a questão está em saber se isso constitui uma violação dos direitos fundamentais de defesa. A este respeito, gostaria de referir mais uma vez a natureza específica do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, que não pode ser simplesmente equiparado a um processo disciplinar contra um funcionário da Comunidade. Pelo contrário, esse processo reveste‑se de natureza constitucional e é iniciado no interesse geral de restabelecer a confiança no funcionamento da Comissão. Como forma de catarse constitucional que são, é adequado que estes casos sejam decididos numa instância única pelo supremo tribunal da ordem jurídica comunitária e que não permaneçam pendentes por mais tempo do que o necessário para cumprir essa função. O processo no Tribunal de Justiça, de resto, concede garantias suficientes de protecção dos interesses do comissário em causa. Para além das garantias previstas no Estatuto do Tribunal de Justiça e no Regulamento de Processo, uma garantia acrescida é a de que estes processos são julgados pelo Tribunal Pleno (artigo 16.°, quarto parágrafo, do Estatuto). Tendo em conta a natureza e a função específicas do processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, não considero que a impossibilidade de recorrer da decisão do Tribunal de Justiça constitua uma violação dos direitos fundamentais da demandada.

    113. Consequentemente, as várias objecções levantadas por E. Cresson contra o procedimento conduzido pela Comissão antes da propositura da presente acção e contra o processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE, enquanto tais, devem ser julgadas improcedentes.

    C –    Quanto ao mérito

    114. A próxima questão a analisar é se os factos de que E. Cresson é acusada pela Comissão constituem uma violação das obrigações decorrentes do cargo de comissário na acepção do artigo 213.°, n.° 2, CE. E. Cresson não contesta, enquanto tais, os factos relativos a R. Berthelot e T. Riedinger. Alega essencialmente, no entanto, que, em ambos os casos, as regras comunitárias aplicáveis foram respeitadas.

    115. Como foi acima referido, no capítulo VI das presentes conclusões, o cargo de membro da Comissão exige dos seus titulares o mais alto grau de independência, imparcialidade e honestidade, tanto nas suas relações externas como na sua actuação dentro da Comissão.

    116. No caso em apreço, no que diz respeito ao processo Berthelot, é facto assente que E. Cresson manifestou a sua intenção de recrutar o seu amigo pessoal R. Berthelot como seu conselheiro pessoal. Também está assente que, apesar das advertências do seu chefe de gabinete de que não via possibilidade de R. Berthelot ser contratado pela Comissão, E. Cresson encarregou um dos serviços pelos quais era responsável, a DG XII, de encontrar a forma adequada de o contratar. Posteriormente, por proposta desse serviço, foi oferecido a R. Berthelot um contrato de um ano como cientista convidado. As suas funções, de acordo com o que consta dos autos, consistiam em «participar, em estreita colaboração com o gabinete de E. Cresson, na preparação do Quinto Programa‑Quadro e de programas científicos no domínio das ciências vivas [e] assegurar os contactos com algumas instâncias nacionais de investigação, em especial francesas». Tendo em conta tanto as suas credenciais científicas atípicas como o facto de o seu local de trabalho ser junto de E. Cresson, e não na DG XII, é evidente que se tratou de um expediente invulgar para permitir a contratação de R. Berthelot do modo previamente indicado por E. Cresson.

    117. Na verdade, também não se pôs em causa que R. Berthelot recebeu um reembolso de 6 930 EUR por deslocações em serviço a Châtellerault, nem que a duração total dos seus contratos se prolongou para além dos limites máximos permitidos, nem que E. Cresson procurou prolongar a relação contratual com R. Berthelot depois da sua demissão por motivos de saúde.

    118. Quanto ao caso Riedinger, também está assente que E. Cresson propôs a outro amigo pessoal, pelo menos, dois contratos para levar a cabo estudos relativamente a assuntos que não se afiguram inteiramente relevantes nas áreas políticas de actuação pelas quais E. Cresson era responsável. Apesar de esses contratos não terem sido executados, nem terem dado lugar a nenhuma despesa do orçamento comunitário, não pode presumir‑se que isso era previsível no momento da proposta.

    119. É importante, na apreciação destes diversos factos, não os olhar isoladamente do contexto geral em que ocorreram. E. Cresson realça, em sua defesa, que as regras comunitárias foram observadas, por exemplo, no que diz respeito ao recrutamento de R. Berthelot, e que outras ocorrências não podiam ser‑lhe imputadas, como por exemplo as deslocações em serviço de R. Berthelot a Châtellerault. O que é relevante, porém, é que estes vários elementos são sintomáticos de uma actuação basicamente indiciadora de que E. Cresson pretendeu, no âmbito das suas funções de membro da Comissão, usar essas funções para beneficiar amigos pessoais à custa do orçamento comunitário. Por outras palavras, é inconcebível que R. Berthelot tivesse sido contratado pela Comissão nos mesmos termos e que lhe tivesse sido dispensado o mesmo tratamento favorável se E. Cresson não detivesse o cargo de membro da Comissão.

    120. Com base nos factos apresentados ao Tribunal tanto pela Comissão como por E. Cresson, sou de opinião que E. Cresson foi correctamente acusada de favorecimento pela Comissão, como também já tinha sido considerado antes pelo Comité de Peritos Independentes no seu relatório de 15 de Março de 1999, e que não é necessário verificar se esse comportamento também constituiu negligência grosseira. Mesmo que a sua actuação apenas encontrasse expressão nos dois casos que constituem a base da presente acção, a mera vontade de actuar de semelhante modo no exercício de um alto cargo é suficiente para suscitar dúvidas sobre a honestidade e a imparcialidade de E. Cresson nas suas funções enquanto comissária em geral. A simples sugestão de parcialidade é suficiente para gerar essas dúvidas. Isto reflecte‑se, necessariamente, no seu papel no processo colegial de tomada de decisões da Comissão, uma vez que E. Cresson já não estava em condições de garantir que preenchia as condições necessárias para exercer essas funções. Por outro lado, a sua actuação era susceptível de colocar em risco a confiança que o público depositava na independência da Comissão. Da forma como os acontecimentos ocorreram, esse risco concretizou‑se efectivamente, causando graves danos à imagem pública da Comissão.

    121. Consequentemente, concluo que, ao actuar com um propósito de favorecimento, isto é, com intenção de usar o seu cargo de comissária para conceder benefícios a pessoas das suas relações, E. Cresson violou as obrigações decorrentes do cargo de membro da Comissão na acepção do artigo 213.°, n.° 2, CE.

    D –    Sanção

    122. A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que, caso decida contra E. Cresson, ordene a perda da totalidade ou de parte dos seus direitos a pensão e/ou de quaisquer outros benefícios ligados a esses direitos ou a perda de outros benefícios que os substituam, como previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE. Apesar de deixar ao prudente arbítrio do Tribunal a determinação do alcance e da duração dessa sanção, a Comissão refere que deve ser levado em conta o princípio da proporcionalidade na aplicação da sanção. Também sugere que os factores aplicáveis à determinação das sanções nos processos disciplinares contra funcionários comunitários, enunciados no artigo 10.° do anexo IX do Estatuto dos Funcionários, podem ter valor indicativo nesta sede.

    123. O principal factor para decidir da aplicação de uma sanção pecuniária, com base no artigo 213.°, n.° 2, CE, e do seu montante é a gravidade da violação das obrigações, tanto no que diz respeito à natureza da actuação ilícita como aos danos causados à Comissão enquanto instituição. Na minha apreciação sobre o mérito da causa, já observei que uma actuação de favorecimento por parte de um membro da Comissão tem consequências directas no modo como a actuação da pessoa em causa é vista no âmbito do processo de decisão colegial da Comissão. Também tem consequências para a imagem pública e a reputação da Comissão, que, no caso vertente, foi efectivamente prejudicada de forma grave. Pode ainda acrescentar‑se que é necessário o decurso de um lapso de tempo incomensurável para restabelecer o bom‑nome e a legitimidade que uma instituição como a Comissão tem vindo a construir ao longo dos anos. Os danos causados são, consequentemente, consideráveis e duradouros.

    124. À luz destas observações, nada obsta à conclusão de que a violação das obrigações de E. Cresson merece uma sanção pecuniária, como previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE. Mais especificamente, sou de opinião que essa violação é suficientemente grave para justificar a perda total dos direitos a pensão e dos benefícios ligados a esses direitos. Todavia, há alguns factores que justificam que essa perda seja apenas parcial.

    125. O primeiro desses factores é o facto de, como E. Cresson correctamente alega, ter decorrido um período de tempo considerável entre os primeiros inquéritos administrativos e a decisão de dar início ao processo previsto no artigo 213.°, n.° 2, CE contra ela. Só a partir desse momento E. Cresson podia seriamente encarar a perspectiva de vir, possivelmente, a perder total ou parcialmente os seus direitos a pensão. Além disso, pode ser levado em conta o facto de a reputação de E. Cresson já ter sido consideravelmente lesada devido à cobertura da comunicação social. Seguidamente, pode ser atribuída alguma importância ao facto de a actuação de E. Cresson ter, aparentemente, encontrado um certo apoio na cultura administrativa da Comissão naquela época (14). Por último, pode ser levado em consideração que este é o primeiro caso em que a aplicação do artigo 213.°, n.° 2, CE vai dar origem a uma decisão do Tribunal de Justiça.

    126. Tendo em conta que, por outro lado, é necessário dar uma resposta credível à violação das suas obrigações por parte de E. Cresson, concluo que uma redução de 50% dos seus direitos a pensão e dos benefícios ligados a esses direitos, a partir da data da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça no presente processo, é uma sanção adequada. Tendo em conta o facto de E. Cresson ter usufruído plenamente dos seus direitos a pensão desde a sua demissão em 1999, não vejo qualquer razão para limitar esta sanção no tempo.

    VIII – Quanto às despesas

    127. Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação de E. Cresson e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas. Nos termos do artigo 69.°, n.° 4, a República Francesa, que interveio em apoio de E. Cresson, deve suportar as suas próprias despesas.

    IX – Conclusão

    128. Tendo em conta as considerações precedentes, sugiro ao Tribunal de Justiça que:

    –       julgue admissível a acção intentada pela Comissão;

    –       declare que, ao actuar com um propósito de favorecimento, isto é, com intenção de usar o seu cargo de comissária para conceder benefícios a pessoas das suas relações, E. Cresson violou as obrigações decorrentes do cargo de membro da Comissão, na acepção do artigo 213.°, n.° 2, CE e do artigo 126.°, n.° 2, EA;

    –       ordene a perda de 50% dos direitos a pensão de E. Cresson e dos benefícios ligados a estes direitos a partir da data da prolação do acórdão no presente processo;

    –       condene E. Cresson nas despesas;

    –       condene a República Francesa no pagamento das suas próprias despesas.


    1 – Língua original: inglês.


    2 – Uma vez que as duas disposições são idênticas, apenas será feita referência, ao longo do resto do texto, ao artigo 213.°, n.° 2, CE.


    3 – Processo Concelho/Bangemann (C‑290/99), cancelado no registo do Tribunal de Justiça por despacho de 3 de Fevereiro de 2000 (JO C 122, p. 17).


    4 – Comité de Peritos Independentes, primeiro relatório sobre acusações relativas a fraude, má gestão e nepotismo na Comissão Europeia.


    5 – N.° 8.1.35 do relatório.


    6 – Acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 10 de Junho de 2004 (T‑307/01, Colect., p. II‑1669).


    7 – Acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 30 de Maio de 2002, Onidi/Comissão (T‑197/00, ColectFP, pp. I‑A‑69, II‑325).


    8 – N.° 1.5.4 do relatório.


    9 – Existem disposições constitucionais semelhantes nos Estados‑Membros para os titulares de altos cargos públicos, que são inamovíveis pelas decisões tomadas no exercício das suas funções, como é o caso, designadamente, do Presidente da República Federal da Alemanha (artigo 61.°, n.° 2, da Grundgesetz), da República Francesa (artigo 68.° da Constituição da República Francesa) e da República Italiana (artigo 90.° da Constituição da República Italiana). V., também, o processo de impeachment nos Estados Unidos da América previsto no artigo II, n.° 4, da Constituição dos Estados Unidos.


    10 – A versão mais recente consta do documento SEC(2004) 1487/2.


    11 – Como referido na primeira emissão do famoso documentário televisivo da BBC, «Civilisation», de 1968.


    12 – N.° 1.5.4 do relatório.


    13 –      «Ao pronunciarmos solenemente estas palavras, em nome de todos nós como o exigem os termos do Tratado, reconhecemos a essência das obrigações que nos são, de ora em diante, comuns. Por ‘essência’ entendemos que servimos a Europa – a Europa e não quaisquer interesses privados, sejam eles de ordem nacional, profissional, económica ou pessoal. É nisto que reside a dificuldade da nossa tarefa, mas também é isso que lhe confere uma dignidade insigne.» COM(58) PV 1 final, de 18 de Abril de 1958, também disponível em www.ena.lu.


    14 – Importa observar, a este respeito, que, apesar de o seu primeiro chefe de gabinete a ter efectivamente aconselhado a não recrutar R. Berthelot, outros serviços mostraram‑se mais cooperantes com a sua pretensão.

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