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Document 62004CC0127

    Conclusões do advogado-geral Geelhoed apresentadas em 2 de Junho de 2005.
    Declan O'Byrne contra Sanofi Pasteur MSD Ltd e Sanofi Pasteur SA.
    Pedido de decisão prejudicial: High Court of Justice (England & Wales), Queen's Bench Division - Reino Unido.
    Directiva 85/374/CEE - Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos - Conceito de "colocação em circulação' do produto - Fornecimento do produtor a uma filial detida a 100%.
    Processo C-127/04.

    Colectânea de Jurisprudência 2006 I-01313

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2005:349

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    L. A. GEELHOED

    apresentadas em 2 de Junho de 2005 1(1)

    Processo C‑127/04

    Master Declan O’Byrne

    contra

    Sanofi Pasteur SA, anteriormente Aventis Pasteur SA

    contra

    Sanofi Pasteur MSD Ltd, anteriormente Aventis Pasteur MSD Ltd

    (pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court of Justice, Queen’s Bench Division)

    «Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos – Data em que o produto é colocado em circulação»





    I –    Introdução

    1.     O presente pedido de decisão prejudicial, apresentado pela High Court of Justice, Queen’s Bench Division (Reino Unido), diz respeito à interpretação do artigo 11.° da Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (2) (a seguir «directiva»).

    2.     Concretamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber quando é que se pode considerar que um produto foi colocado em circulação. É a partir desse momento que começa a contar o prazo de dez anos previsto no artigo 11.° da directiva, pelo que é dele que depende saber se uma acção contra o produtor foi ou não intentada em tempo. Acresce que a primeira transmissão do produto alegadamente defeituoso foi efectuada entre duas sociedades do mesmo grupo. Uma transmissão dentro do mesmo grupo tem por efeito colocar um produto em circulação?

    3.     Além disso, parece que uma primeira acção foi intentada dentro do prazo de dez anos, mas contra a pessoa errada, concretamente um fornecedor (demandado na primeira acção), no pressuposto erróneo de que se tratava do produtor. Pelo que, aparentemente, uma nova acção contra o verdadeiro produtor (demandado na segunda acção) foi intentada imediatamente antes ou imediatamente depois de expirar o prazo. A questão seguinte é, portanto, a de saber se é permitido, em tais situações, considerar que a primeira acção judicial intentada contra o demandado equivale a uma acção judicial contra o produtor (o demandado na segunda acção, que se pretendia demandar na primeira) ou, partindo do pressuposto de que a segunda acção contra o produtor foi intentada fora de prazo, se o órgão jurisdicional nacional pode substituir o primeiro demandado pelo segundo.

    II – Quadro jurídico

    4.     O artigo 1.° da directiva dispõe que «[o] produtor é responsável pelo dano causado por um defeito do seu produto».

    5.     O artigo 7.° da directiva dispõe:

    «O produtor não é responsável nos termos da presente directiva se provar:

    a) Que não colocou o produto em circulação;

    […]»

    6.     O artigo 11.° da directiva dispõe:

    «Os Estados‑Membros estabelecerão na sua legislação que os direitos concedidos ao lesado nos termos da presente directiva se extinguem no termo de um período de dez anos a contar da data em que o produtor colocou em circulação o produto que causou o dano, excepto se a vítima tiver intentado uma acção judicial contra o produtor durante este período.»

    7.     No processo Veedfald (3), o Tribunal de Justiça decidiu que o artigo 7.°, alínea a), da directiva deve ser interpretado no sentido de que um produto defeituoso é colocado em circulação quando utilizado por ocasião de uma prestação de serviços concreta, de natureza médica, que consiste em preparar um órgão humano para a sua transplantação, sendo o prejuízo a este causado consecutivo a essa preparação.

    8.     O Reino Unido transpôs a directiva através da parte I do Consumer Protection Act 1987, que entrou em vigor em 1 de Março de 1988. A Section 4 deste Act tem a seguinte redacção:

    «(1)      Em qualquer acção de responsabilidade civil intentada ao abrigo da presente parte […] relativa a produtos defeituosos, o demandado poderá eximir‑se à responsabilidade se demonstrar

    […]

    (b)      que o demandado nunca forneceu o produto a terceiro; ou

    […]

    (d)      que o defeito não existia no momento relevante;

    […]»

    9.     Acresce que o Consumer Protection Act 1987 aditou ao Limitation Act 1980 a Section 11A, Subsection 3, que prevê:

    «As acções a que se aplica a presente Section não podem ser intentadas depois de decorrido o prazo de dez anos a contar do momento relevante […]; a presente Subsection tem por efeito extinguir o direito de acção findo o referido período de dez anos, e extingui‑lo‑á quer esse direito de acção tenha ou não expirado e quer o prazo previsto nas disposições seguintes deste Act tenha ou não começado a decorrer.»

    III – Factos, tramitação processual e questões preliminares

    10.   Em 3 de Novembro de 1992, o jovem Declan O’Byrne, demandante no processo principal, foi vacinado com uma dose da vacina anti‑haemophilus no consultório médico MacDonald Road Medical Centre.

    11.   Na sequência desta vacinação, o demandante sofreu graves lesões cerebrais. Alega que as suas lesões foram causadas pela vacina, que era defeituosa.

    12.   O produtor da vacina foi a Pasteur Mérieux Sérums et Vaccins SA, uma sociedade francesa, que posteriormente alterou a sua denominação para Aventis Pasteur SA (a seguir «APSA»).

    13.   A Mérieux UK Limited, uma sociedade inglesa, era uma filial da APSA de que esta era única proprietária e actuou como distribuidora, no Reino Unido, de produtos fabricados pela APSA. A Mérieux UK Limited alterou posteriormente a sua denominação para Aventis Pasteur MSD (a seguir «APMSD»).

    14.   Em 18 de Setembro de 1992, a APSA enviou à APMSD uma remessa de unidades da vacina, na qual se encontrava a que foi administrada ao lesado, remessa recebida em 22 de Setembro de 1992. A APSA enviou a factura à APMSD, que foi devidamente liquidada.

    15.   Em data desconhecida, por volta de 7 de Outubro de 1992, parte da remessa parece ter sido vendida pela APMSD ao Department of Health of the United Kingdom e distribuída directamente pela APMSD a um hospital designado pelo Department of Health. Por sua vez, o hospital forneceu‑a ao consultório médico em causa, onde o demandante foi vacinado em 3 de Novembro de 1992.

    16.   Em 2 de Novembro de 2000, o demandante intentou uma acção de indemnização contra a APMSD, alegando que esta última era a produtora da vacina.

    17.   Em 7 de Outubro de 2002, foi intentada uma segunda acção contra a APSA. Os advogados do demandante declararam perante o órgão jurisdicional de reenvio que só durante o Verão de 2002 se aperceberam, pela primeira vez, que o produto tinha sido fabricado pela APSA, e não pela APMSD.

    18.   Nesse processo, a APSA respondeu que uma vez que colocou o produto no mercado através da remessa à sua filial em 18 de Setembro de 1992, recebida em 22 de Setembro de 1992, a acção intentada em 7 de Outubro de 2002 iniciou‑se após o decurso do prazo de dez anos a contar da data em que o produto foi colocado em circulação, previsto pela Section 11A(3) do Limitation Act, que procedeu à transposição do artigo 11.° da directiva para o direito nacional. Consequentemente, a acção está prescrita.

    19.   O demandante invoca, porém, que o produto só foi colocado em circulação quando foi distribuído pela APMSD ao hospital designado pelo Department of Health, e que isto só ocorreu depois de 7 de Outubro de 1992, menos de dez anos antes de ter sido intentada a segunda acção. Consequentemente, a acção não está prescrita.

    20.   Em 10 de Março de 2003, o demandante requereu ao órgão jurisdicional nacional, no âmbito da primeira acção, intentada em 2000, que, para todos os efeitos legais, a APSA substituísse a APMSD.

    Questões prejudiciais

    21.   A High Court of Justice, Queen’s Bench Division, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)      Numa interpretação correcta do artigo 11.° da directiva [...], se um produto tiver sido fornecido, mediante contrato de compra e venda, por um fabricante francês a uma filial inglesa que lhe pertence integralmente e esta por sua vez o fornecer a outra entidade, considera‑se que o mesmo foi colocado em circulação:

    a)      no momento em que sai da sociedade francesa; ou

    b)      no momento em que chega à sociedade inglesa; ou

    c)      no momento em que sai da sociedade inglesa; ou

    d)      no momento em que chega à entidade que recebe o produto da sociedade inglesa?

    2)      Se for proposta uma acção na qual se reivindicam os direitos conferidos ao demandante pela directiva [...], em relação a um produto alegadamente defeituoso, contra uma sociedade (A), no pressuposto erróneo de que A é o seu produtor, quando na realidade o produtor não foi A mas sim a sociedade (B), é lícito aos Estados‑Membros conferirem aos seus tribunais, através das suas disposições nacionais, o poder discricionário de considerarem que a referida acção equivale a uma ‘acção judicial [intentada] contra o produtor’, na acepção do artigo 11.° da directiva [...]?

    3)      O artigo 11.° da directiva [...], correctamente interpretado, permite a um Estado‑Membro conferir a um tribunal o poder discricionário de permitir que B substitua A na posição de demandado numa acção como a referida na segunda questão, supra (a seguir ‘acção relevante’), no caso de:

    a)      ter expirado o prazo de dez anos a que se refere o artigo 11.°;

    b)      a acção relevante ter sido proposta contra A antes do termo do prazo de dez anos; e

    c)      não ter sido proposta uma acção contra B, relativamente ao produto que causou os danos alegados pelo demandante, antes do termo do prazo de dez anos?»

    IV – Apreciação

    22.   Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber o que deve entender‑se pela expressão «coloc[ação] em circulação» usada no artigo 11.° da directiva. Identifica quatro datas possíveis, sendo as duas primeiras relativas a transacções dentro do mesmo grupo de sociedades e as duas últimas relativas a transacções ulteriores na cadeia de distribuição.

    23.   A responsabilidade do produtor prescreve dez anos a contar da data em que o produto foi colocado em circulação. Logo, a noção de «colocação em circulação» é importante para determinar precisamente quando é que termina a responsabilidade objectiva do produtor. Esta noção não se encontra apenas no artigo 11.° mas também nos artigos 6.°, 7.° e 17.° (4).

    24.   Apesar da importância desta expressão, a directiva não a define. Aquando dos trabalhos preparatórios, decidiu‑se que era desnecessário definir a expressão «colocação em circulação», uma vez que, como pode ler‑se na exposição de motivos da Comissão, «se considerou evidente, de acordo com o significado normal das palavras». De acordo com essa exposição de motivos, um produto foi colocado em circulação, regra geral, quando foi lançado na cadeia de distribuição (5). Outra possível razão para não definir esta expressão é a Convenção Europeia sobre a Responsabilidade Civil dos Produtos em Caso de Lesões Corporais ou de Morte, de 27 de Janeiro de 1977 (a seguir «Convenção de 1977») (6). Os sistemas da Convenção de 1977 e da directiva são sensivelmente iguais. De acordo com o artigo 2.°, alínea d), da Convenção, um produto é colocado em circulação quando o produtor o entrega a outra pessoa.

    25.   Este processo demonstra que a noção de «colocação em circulação» implica, ao contrário do que consta da exposição de motivos da Comissão, a definição do momento em que o período de dez anos se inicia. O Tribunal de Justiça ainda não foi chamado a definir a expressão «colocação em circulação». Esta foi abordada no processo Veedfald (7), mas no contexto do artigo 7.°, alínea a), da directiva, mas sendo a factualidade do processo muito específica, o Tribunal não teve que dar uma noção geral da expressão.

    26.   No processo Veedfald, a recorrida alegou que nunca colocou o produto em circulação. Era a produtora de um líquido de perfusão defeituoso destinado a lavar rins antes da transplantação. O líquido era produzido pelo hospital A e usado pelo hospital B, ambos propriedade da recorrida. O argumento usado pela recorrida era que o produto foi usado no âmbito de uma prestação de serviços (não coberta pela directiva), e não no decurso de qualquer modalidade de venda. Segundo a recorrida, no caso, o produto nunca saíra da esfera de controlo da farmácia que fabricou o líquido e do hospital em que foi usado, pelo que nunca foi colocado em circulação, na acepção do artigo 7.°, alínea a), da directiva.

    27.   O Tribunal de Justiça não aceitou este argumento. Declarou que «tais circunstâncias não são determinantes quando, como no processo principal, a utilização do produto se caracteriza pelo facto de a pessoa a que se destina dever ela própria integrar‑se nessa esfera de controlo» (n.° 17) e respondeu à questão colocada que «o artigo 7.°, alínea a), […] deve ser interpretado no sentido de que um produto defeituoso é colocado em circulação quando utilizado por ocasião de uma prestação de serviços concreta, de natureza médica, que consiste em preparar um órgão humano para a sua transplantação, sendo o prejuízo a este causado consecutivo a essa preparação».

    28.   No presente processo, a questão não é a de saber se o produto foi colocado em circulação mas sim quando foi colocado em circulação. Esta questão, a questão de saber que «acto» conta, é relevante para determinar o início, e consequentemente o termo, do período de dez anos durante o qual existe responsabilidade.

    29.   Antes de responder a esta questão, recordo que a directiva procura criar um equilíbrio entre os interesses dos consumidores e dos produtores. Este equilíbrio deve ser levado em conta na interpretação da expressão «colocação em circulação». Por um lado, a directiva visa proteger o consumidor, prevendo a responsabilidade não culposa do produtor quando forem causados danos pela qualidade defeituosa dos seus produtos. Por outro lado, a responsabilidade do produtor é limitada no tempo e extingue‑se no termo de um período de dez anos a contar da data em que o produto foi colocado em circulação. Assim, o artigo 11.° visa proteger o interesse dos produtores. A limitação no tempo da responsabilidade justifica‑se sobretudo pelo facto de a responsabilidade objectiva ser mais onerosa para os produtores do que os tradicionais sistemas de responsabilidade contratual e extracontratual. No sentido de não desencorajar a inovação tecnológica e de permitir a cobertura por um seguro, considerou‑se necessário limitar a regra da responsabilidade objectiva no tempo.

    30.   Em segundo lugar, como já referi, a expressão «colocação em circulação» aparece diversas vezes na directiva. É claro que deve ter sempre o mesmo significado.

    31.   Quando é que um produto é colocado em circulação?

    32.   Foram expostos vários pontos de vista sobre esta questão. O demandante, o Governo italiano e a Comissão consideram que o momento em que o produto é colocado em circulação é aquele em que o produtor deixa de ter controlo sobre esse mesmo produto ou em que este é transmitido a uma pessoa sobre a qual o produtor não tem controlo. O que conta é a entrada na cadeia de distribuição pela entrega a uma terceira parte (neste caso o hospital ao qual a APMSD forneceu a vacina).

    33.   A APSA e a APMSD têm uma opinião diferente. Sustentam que o momento decisivo é aquele em que o produto sai das instalações do fabricante, e que a identidade do comprador, que é uma filial, é irrelevante.

    34.   É evidente que a determinação do momento em que se inicia a responsabilidade objectiva tem que ser tão clara e objectiva quanto possível. Não pode ser demasiado cedo (o processo de fabrico pode não estar completo), nem demasiado tarde (o produto pode estar algures na cadeia de distribuição).

    35.   Seria contrário à letra da directiva que o prazo de dez anos se iniciasse no momento em que o retalhista coloca o produto à venda, uma vez que o artigo 11.° da directiva se refere claramente ao produtor.

    36.   Seria demasiado cedo se um produto fosse considerado colocado em circulação por qualquer puro acto de entrega do produtor a uma entidade receptora. Estas situações também abrangeriam fornecimentos a entidades de controlo de qualidade. Isto seria contrário às exposições de motivos da Convenção de 1977 e da directiva, que indicam claramente que tais instituições não devem ser incluídas no conceito de colocação de um produto em circulação: o controlo de qualidade do produto não está completo, e este não está preparado para ser colocado à disposição dos potenciais clientes e, consequentemente, potenciais lesados.

    37.   Normalmente, o lançamento de um produto na cadeia de distribuição coincide com a sua colocação em circulação. Todavia, não será sempre este o caso, como resulta do processo Veedfald. Nesse caso, não havia qualquer cadeia de distribuição, mas, no entanto, a dado momento o produto era colocado em circulação. A abordagem mais adequada é a adopção de uma definição ligada à perda de controlo. De acordo com esta abordagem, o produtor renuncia voluntariamente ao controlo sobre o produto transmitindo‑o, numa transacção comercial, a uma entidade distinta.

    38.   Até aqui todas as partes intervenientes estão de acordo; as opiniões começam a divergir no que diz respeito às transacções dentro dos grupos de sociedades.

    39.   O demandante, a Comissão e o Governo italiano são de opinião que enquanto um produto se encontra dentro do grupo, o controlo sobre o produto continua a ser do produtor.

    40.   As demandadas no processo principal, no entanto, são de opinião de que não tem qualquer importância o produto ser entregue a uma filial em propriedade exclusiva, a uma sociedade relacionada com o produtor por qualquer outra forma ou a um terceiro independente. Do seu ponto de vista, a única questão que se coloca é saber se a entidade produtora renunciou voluntariamente ao controlo sobre o produto. Alegam que, no caso em apreço, o processo de fabrico estava completo e o produto saiu da esfera de controlo da APSA quando passou desta para a APMSD. Depois do produto ter sido vendido e enviado para a APMSD, a APSA deixou de poder alterá‑lo ou modificá‑lo, a não ser que o retomasse. Assim, na sua opinião, não há que aplicar critérios específicos às transacções dentro dos grupos.

    41.   Acrescentam que o controlo sobre um produto não deve ser confundido com o controlo sobre uma sociedade. São conceitos diferentes. O primeiro refere‑se à posse, em sentido jurídico, o último a direitos de voto. Realçaram que, embora uma filial e uma sociedade‑mãe sejam parte do mesmo grupo, têm personalidade jurídica distinta e diferentes direitos e obrigações.

    42.   Recordo, como já foi referido, que o artigo 11.° da directiva visa sobretudo defender os interesses dos produtores. No entanto, os consumidores têm também um interesse, que consiste no facto de o produtor não poder manipular a duração do prazo de responsabilidade através da sua organização interna. Assim, não concordo com o argumento segundo o qual uma transacção dentro de um grupo deve ser tratada da mesma forma que uma transacção com terceiros.

    43.   Em primeiro lugar, é líquido que o ponto de referência deve ser o controlo ou a renúncia ao controlo sobre o produto.

    44.   Em segundo lugar, é importante não perder de vista a realidade económica. Com efeito, as sociedades podem organizar as suas actividades de produção, venda e marketing de muitas maneiras, sobretudo no caso de a organização da sociedade se estender pelo território de vários Estados‑Membros. Nestas circunstâncias, ainda é maior o grau de diversidade.

    45.   As mesmas actividades, ou actividades semelhantes, podem ser organizadas de maneira diferente, de acordo, por exemplo, com as consequências legais, nomeadamente fiscais, dos diferentes tipos de organização. Enquanto algumas sociedades distribuem os seus produtos através de sucursais, outras fazem‑no através de filiais e, por vezes, o produtor entrega directamente os produtos a terceiros. Também são usados sistemas híbridos.

    46.   Em terceiro lugar, quanto maior for a diversidade organizacional, maior será a necessidade de um critério preciso para determinar o momento em que o produto é colocado em circulação. Esse momento coincide com a renúncia ao controlo, o momento em que o produto é transmitido pela primeira vez a uma pessoa ou sociedade fora do grupo, a um terceiro independente. Se assim não fosse, o início do prazo seria diferente dependendo de o produtor recorrer a uma filial ou a uma sucursal para a distribuição, quando a questão do controlo é igual em ambos os casos. Para efeitos de aplicação da directiva, é irrelevante a forma jurídica de organização que o produtor adoptar.

    47.   Assim, desde que um produto não tenha sido transmitido para um terceiro não sujeito ao controlo do grupo, pode presumir‑se que permanece sob o controlo do grupo a que pertence o verdadeiro produtor.

    48.   Com efeito, como a Comissão indicou, fixar a data da primeira transmissão dentro de um grupo de sociedades como início do prazo pode ser prematuro, uma vez que é muito provável, na maioria dos casos, que as possibilidades de um produto chegar a pessoas estranhas ao grupo sejam pequenas até que este saia da esfera de controlo de um membro de um grupo. Considerar que a primeira transmissão dentro de um grupo coloca o produto em circulação poderia facilmente reduzir o período de responsabilidade objectiva. É o caso, por exemplo, de um produto que é mantido numa filial ou numa fábrica pertencente ao produtor sem ser usado durante alguns anos, sendo posteriormente vendido ou alugado a uma pessoa fora do grupo.

    49.   Enquanto o produto permanecer dentro do grupo, o produtor ainda pode garantir que não chegará às mãos de um grupo de potenciais lesados. Isto significa que o seu período de responsabilidade objectiva não se iniciou ainda. Pode ser responsável por força de outros sistemas, mas não da directiva.

    50.   Além disso, as pessoas estranhas ao grupo podem não saber o momento em que o produto foi transmitido do produtor para uma filial. Pode tornar‑se bastante complicado, existindo múltiplas transacções internas do grupo, determinar onde e quando ocorreu a primeira entrega. Tanto o lesado como outras partes interessadas (qualquer fornecedor na acepção do artigo 3.°, n.° 3, da directiva) necessitam de um ponto de referência preciso para determinar o momento em que o produto é colocado em circulação. As relações internas do grupo são frequentemente demasiado opacas para terem qualquer utilidade a este respeito.

    51.   Por analogia, gostaria de notar que o argumento segundo o qual uma filial é juridicamente distinta da sociedade‑mãe (e que, assim sendo, a transmissão de uma entidade jurídica para outra dentro do mesmo grupo de sociedades corresponde a colocar o produto em circulação) não me convence. A utilização de pessoas jurídicas distintas é prática comum por uma série de razões. Acresce que, como é o caso, por exemplo, no campo do direito da concorrência, pessoas juridicamente distintas podem ser tratadas como uma unidade para os efeitos do artigo 81.° CE (8). Isto devido aos estreitos laços económicos que as unem. O que significa que os acordos entre elas têm que ser vistos como uma distribuição interna de funções e papéis dentro dessa unidade económica. Por esta razão, os acordos entre os membros dos grupos não se incluem no referido artigo. Do mesmo modo, não pode aceitar‑se que um produto foi colocado em circulação quando foi transmitido para uma das unidades de distribuição da sociedade‑mãe, seja ela uma sucursal ou uma filial. O facto de essa unidade de distribuição receber uma factura não é decisivo, uma vez que a cobrança de transmissões internas é prática comum nas relações internas das sociedades.

    52.   Assim, o período de responsabilidade objectiva deve começar no momento em que o produtor renuncia voluntariamente ao controlo sobre o produto transmitindo‑o, por razões comerciais, a alguém não relacionado com o grupo a que pertence.

    Segunda e terceira questões

    53.   Na segunda questão colocada, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 11.° da directiva permite ao tribunal ao qual foi submetido o litígio considerar que a acção intentada contra a sociedade A equivale a uma «acção judicial [intentada] contra o produtor», quando a acção foi intentada contra A no pressuposto erróneo de que A era o produtor, e o verdadeiro produtor era outra sociedade, a sociedade (B). A terceira questão está relacionada com o problema da substituição. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se é possível substituir B (o produtor) por A (o actual demandado) quando a acção judicial contra B foi intentada decorrido o período de dez anos previsto no artigo 11.° da directiva.

    54.   Em relação a estas questões, vou tomar a APMSD como a sociedade A e a APSA como a sociedade B. Vou igualmente ignorar o facto de existirem algumas falhas de informação na decisão de reenvio. Não é claro, por exemplo, porque é que o demandante demorou tanto tempo (Novembro de 2000 a Outubro de 2002) a intentar uma acção contra a APSA. Também não é claro o modo como a APMSD reagiu quando foi demandada e se e quando esta sociedade informou o demandante sobre a identidade do verdadeiro produtor. É uma questão de facto que o órgão jurisdicional de reenvio deverá resolver.

    55.   A título preliminar, recordo que o artigo 11.° da directiva se refere ao produtor. O artigo 3.° da directiva define quem pode ser considerado produtor: o fabricante e qualquer pessoa que se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo.

    56.   Depois, o lesado também pode processar qualquer fornecedor do produto quando não puder ser identificado o produtor e o fornecedor não indicar ao lesado, num prazo razoável, a identidade do produtor ou daquele que lhe forneceu o produto. Neste caso, nos termos do artigo 3.°, n.° 3, da directiva, o fornecedor será considerado produtor.

    57.   O artigo 11.° da directiva, como já referi, pretende estabelecer de modo preciso uma data após a qual a responsabilidade objectiva do produtor se extinguirá, excepto se tiver sido intentada uma acção judicial contra ele antes dessa data.

    58.   É evidente que se um lesado intentou uma acção por engano contra uma pessoa que não é o produtor na acepção do artigo 3.°, o período de dez anos não é interrompido. O erro pode ter a consequência de entretanto ter decorrido o prazo de dez anos, uma vez que a directiva não permite que os órgãos jurisdicionais ou as disposições legais nacionais deixem de ter o prazo em conta se a acção tiver sido intentada antes do seu termo, mas contra sociedade diferente do produtor, pois isso prejudicaria o equilíbrio entre os interesses dos produtores e dos consumidores estabelecido pela directiva.

    59.   Assim sendo, analisarei as segunda e terceira questões à luz da situação de facto no processo principal.

    60.   É um facto que o produtor e o fornecedor, no presente processo, pertencem ao mesmo grupo de sociedades. Como sabemos em virtude da resposta à primeira questão, a APMSD não é um fornecedor terceiro independente nem o verdadeiro produtor. É, no entanto, a entidade jurídica que pela primeira vez colocou o produto em circulação, ao transmiti‑lo a uma pessoa fora do grupo. Para efeitos do artigo 3.°, n.° 3, da directiva, a APMSD podia ser processada como fornecedor.

    61.   Em tais circunstâncias, caracterizadas pelo facto de o produto alegadamente defeituoso ter sido colocado em circulação por uma sociedade que pertence ao mesmo grupo que a sociedade que o produziu, existe uma grande probabilidade de a parte interessada que sofreu danos ficar confusa relativamente à identidade correcta do produtor.

    62.   Se o fornecedor for erradamente processado como se fosse o produtor, deve informar imediatamente quem o processou da sua identidade, sobretudo quando esse fornecedor for uma filial do produtor, como no caso em apreço. Se o não fizer, por analogia com o artigo 3.°, n.° 3, da directiva, pode/deve ser tratado como produtor.

    63.   Como já referi, se a pessoa lesada desconhece a identidade do produtor, pode intentar uma acção contra o fornecedor, que para se desonerar tem que revelar a identidade do produtor. O mesmo vale para o caso de uma falsa convicção de que o fornecedor era o produtor. Com efeito, seguindo a lógica do artigo 3.°, n.° 3, da directiva, ao negar ser o produtor, o fornecedor passa a estar obrigado a informar o demandante, se o souber, o que parece, muito provavelmente, ser o caso no presente processo.

    64.   Seria inaceitável que a acção intentada pelo lesado fosse improcedente por haver decorrido o prazo limite, o que poderia acontecer se o fornecedor, erradamente processado como produtor, deixasse de fornecer a informação que detém sobre a identidade do produtor dentro de um prazo razoável.

    65.   Consequentemente, em minha opinião, não é contrário à directiva, em particular aos artigos 3.°, n.° 3, e 11.°, permitir que o tribunal ao qual foi submetido um litígio que opõe um lesado a um fornecedor considere essa acção como uma «acção judicial [intentada] contra o produtor», quando o fornecedor sabia quem era o produtor e podia ter informado o demandante num prazo razoável para que pudesse ser intentada uma acção contra ele dentro do prazo de dez anos previsto no artigo 11.°

    66.   Tendo em conta a resposta proposta para a segunda questão, fica prejudicada a resposta à terceira questão.

    V –    Conclusão

    67.   Assim, concluo que devem ser dadas as seguintes respostas às questões prejudiciais colocadas pela High Court of Justice, Queen’s Bench Division:

    «O artigo 11.° da Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, deve ser interpretado no sentido de que um produto é colocado em circulação a partir do momento em que é transmitido por uma pessoa singular ou colectiva sobre a qual o produtor exerce um controlo efectivo a uma pessoa singular ou colectiva sobre a qual o produtor não exerce esse controlo.

    Se for proposta uma acção na qual se reivindicam os direitos conferidos ao demandante pela Directiva 85/374/CEE em relação a um produto alegadamente defeituoso contra um fornecedor dentro do prazo de dez anos previsto no artigo 11.° da directiva, no pressuposto erróneo de que o fornecedor era o produtor, quando de facto o produtor era outra sociedade do mesmo grupo ao qual pertencem tanto o fornecedor como o produtor, as disposições da Directiva 85/374/CEE, em particular os artigos 3.°, n.° 3, e 11.°, permitem ao tribunal ao qual foi submetido o litígio considerarem que a referida acção equivale a uma acção judicial intentada contra o produtor na acepção do artigo 11.°, quando o fornecedor conhecia a identidade do produtor e estava em condições de prestar essa informação ao demandante num prazo razoável e, em todo o caso, antes de decorrido esse prazo de dez anos.»


    1 – Língua original: inglês.


    2 – JO L 210, p. 29; EE 13 F19 p. 8.


    3 – Acórdão de 10 de Maio de 2001 (C‑203/99, Colect., p. I‑3569).


    4 – A redacção do artigo 6.°, n.° 1, alínea c), é a seguinte: «Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, tais como o momento de entrada em circulação do produto.»


    O artigo 7.° dispõe que o produtor não é responsável nos termos da directiva se provar:


    a) que não colocou o produto em circulação;


    b) que, tendo em conta as circunstâncias, se pode considerar que o defeito que causou o dano não existia no momento em que o produto foi por ele colocado em circulação ou que este defeito surgiu posteriormente; [...]


    e) que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto pelo produtor não permitiu detectar a existência do defeito; [...]


    O artigo 17.° prevê que a directiva não se aplica aos produtos colocados em circulação antes da data em que as disposições referidas no artigo 19.° entrem em vigor.


    5 – V. Boletim CE [1976], II, suplemento, L11, n.° 15.


    6 – V. http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/091.htm.


    7 – Já referido na nota 3.


    8 – V., por exemplo, acórdão de 25 de Novembro de 1971, Béguelin Import (22/71, Colect., p. 355).

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