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Document 62003CC0173

Conclusões do advogado-geral Léger apresentadas em 11 de Outubro de 2005.
Traghetti del Mediterraneo SpA contra Repubblica italiana.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Genova - Itália.
Responsabilidade extracontratual dos Estados-Membros - Danos causados aos particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância - Limitação, pelo legislador nacional, da responsabilidade do Estado aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz - Exclusão da responsabilidade ligada à interpretação de normas jurídicas e à apreciação dos elementos de facto e de prova efectuadas no quadro do exercício da actividade jurisdicional.
Processo C-173/03.

Colectânea de Jurisprudência 2006 I-05177

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2005:602

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PHILIPPE LÉGER

apresentadas em 11 de Outubro de 2005 1(1)

Processo C‑173/03

Traghetti del Mediterraneo SpA

contra

República Italiana

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Genova (Itália)]

«Responsabilidade dos Estados‑Membros pelos danos causados aos particulares em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal – Condições de fundo – Regime legal nacional que exclui a responsabilidade do Estado quando a violação em causa resulte da interpretação de normas jurídicas ou da apreciação de factos e de provas, limitando a referida responsabilidade aos casos de dolo ou culpa grave»





1.     O direito comunitário opõe‑se a que a responsabilidade de um Estado‑Membro por danos causados a particulares em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal seja excluída, por um lado, quando a violação em causa estiver relacionada com a interpretação de normas jurídicas ou com a apreciação de factos e de provas e, por outro, – fora destes casos – seja limitada aos casos de dolo ou de culpa grave?

2.     É esta, em substância, a questão colocada pelo Tribunal de Génova (Itália) no quadro de um litígio entre uma empresa de transporte marítimo (actualmente em liquidação) ao Estado italiano relativamente à concessão, por este, de subsídios directos a uma empresa concorrente.

3.     Com esta questão, o Tribunal de Justiça é convidado a precisar o alcance do princípio da responsabilidade de um Estado‑Membro pelos danos causados aos particulares em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal, formulado pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 30 de Setembro de 2003, Köbler (2).

I –    Quadro jurídico

A –    Regulamentação comunitária

4.     A regulamentação comunitária pertinente à data dos factos que estão na origem do litígio no processo principal é a que regula, no Tratado CE, os auxílios de Estado e o abuso de posição dominante.

5.     No que diz respeito aos auxílios de Estado, estes são objecto de uma proibição de princípio. Com efeito, o artigo 92.°, n.° 1, do Tratado CE (actual artigo 87.°, n.° 1, CE) estabelece que «[s]alvo disposição em contrário do presente Tratado, são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções».

6.     O Tratado prevê várias derrogações a esta proibição de princípio. Apenas algumas delas têm interesse no quadro do processo principal.

7.     É o caso, em primeiro lugar, da prevista no artigo 92.°, n.° 3, alíneas a) e c), do Tratado a favor de auxílios com finalidade regional (3). Estes são susceptíveis de ser considerados compatíveis com o mercado comum.

8.     O artigo 77.° do Tratado CE (actual artigo 73.° CE) prevê outro tipo de derrogação, específica do sector dos transportes, relativa aos auxílios que correspondem à necessidade de coordenação dos transportes ou ao reembolso dos encargos inerentes às obrigações de serviço público. Esses auxílios são compatíveis com o Tratado.

9.     Uma derrogação suplementar figura no artigo 90.°, n.° 2, do Tratado CE (actual artigo 86.°, n.° 2, CE) a favor das empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral. Com efeito, estas empresas «ficam submetidas ao disposto no presente Tratado, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada». Esta derrogação apenas se aplica se «o desenvolvimento das trocas comerciais não [for] afectado de maneira que contrarie os interesses da Comunidade».

10.   A Comissão das Comunidades Europeias é, em princípio, exclusivamente competente para se pronunciar sobre a compatibilidade dos auxílios, com exclusão dos tribunais nacionais (4). Para este efeito, o controlo efectuado pela Comissão obedece a regras diferentes, consoante os auxílios em causa sejam novos ou já existentes. Enquanto os auxílios já existentes estão submetidos a um controlo permanente, posterior à sua concessão, para verificar se continuam a ser compatíveis com o mercado comum, os novos auxílios, pelo contrário, são objecto de controlo prévio à sua concessão, quando se encontram ainda em fase de projecto.

11.   Para permitir à Comissão exercer esse controlo prévio, o artigo 93.°, n.° 3, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 3, CE) impõe aos Estados‑Membros a obrigação de notificar à Comissão os seus projectos de novos auxílios. Além desta obrigação de notificação, os Estados‑Membros são obrigados, nos termos do mesmo artigo, a não executar os seus projectos de novos auxílios enquanto a Comissão não proferir a sua decisão final relativa à compatibilidade. Estas duas obrigações são cumulativas. Assim, um novo auxílio deve ser considerado ilegal quando tiver sido concedido sem ter sido notificado à Comissão ou, tendo‑o sido, tenha sido concedido antes de a Comissão se ter pronunciado, no prazo fixado, sobre a sua compatibilidade.(5)

12.   Estas disposições do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado gozam de efeito directo, de forma que criam, na esfera jurídica dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a proteger (6).

13.   No que se refere ao abuso de posição dominante, existe uma proibição geral e sistemática. Com efeito, o artigo 86.°, primeiro parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 82.°, primeiro parágrafo, CE), estabelece que «é incompatível com o mercado comum e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste». Estas disposições gozam igualmente de efeito directo (7).

14.   As normas do Tratado em matéria de auxílios de Estado e de abuso de posição dominante são aplicáveis ao sector dos transportes, incluindo o dos transportes marítimos (8).

B –    Legislação nacional

15.   Em Itália a responsabilidade do Estado pela actividade jurisdicional é regulada pela Lei n.° 117 sobre indemnização dos danos causados no exercício das funções judiciárias e responsabilidade civil dos magistrados (Lei n.° 117 [sul] risarcimento dei danni cagionati nell’esercizio delle funzioni giudiziarie e responsabilità civile dei magistrati) (9), de 13 de Abril de 1998.

16.   A lei nacional controvertida foi adoptada pelo legislador na sequência de um referendo, realizado em Novembro de 1987, na sequência do qual foram revogadas as disposições legislativas que anteriormente regulavam a matéria (10).

17.   O artigo 2.°, n.° 1, da lei nacional controvertida estabelece o princípio segundo o qual «qualquer pessoa que tenha sofrido um prejuízo injustificado por efeito de um comportamento, de um acto ou de uma medida judicial tomada por um magistrado (11) que tenha agido com dolo ou culpa grave no exercício das suas funções, ou devido a denegação de justiça, pode agir contra o Estado para obter a reparação dos danos patrimoniais que sofreu bem como dos danos não patrimoniais que derivam da privação da liberdade pessoal».

18.   Por derrogação a este princípio, o segundo número do mesmo artigo, prevê que «no exercício das funções judiciais, a interpretação das normas e a apreciação dos factos e das provas não podem dar origem a responsabilidade». Esta exclusão da responsabilidade do Estado foi, ao que parece, inspirada pela preocupação de preservar a independência dos juízes, que constitui um princípio de valor constitucional (12).

19.   O conceito de «culpa grave», na acepção do artigo 2.°, n.° 1, da lei controvertida, abrange diversas hipóteses, que são enumeradas no n.° 3 do mesmo artigo. Assim, «constituem culpa grave:

a)      Uma grave violação de lei resultante de negligência indesculpável;

b)      A afirmação, determinada por negligência indesculpável, de um facto cuja existência é incontestavelmente desmentida pelos autos;

c)      A negação, determinada por negligência indesculpável, de um facto cuja existência está incontestavelmente demonstrada nos autos;

d)      A prolação de uma decisão relativa à liberdade das pessoas fora dos casos autorizados por lei ou sem fundamentação».

20.   Quanto ao conceito de «denegação de justiça», igualmente constante do artigo 2.°, n.° 1, da lei nacional controvertida, o artigo 3.°, n.° 1, define‑o como «a recusa, a omissão ou o atraso do magistrado no cumprimento dos actos da sua competência, quando, decorrido o prazo legal para a prática do acto, a parte tenha requerido a prática do mesmo e, sem motivo justificado, não tenha sido tomada qualquer medida no prazo de trinta dias subsequentes à apresentação do requerimento na secretaria judicial […]».

21.   Foi intentada contra o Presidente do Conselho de Ministros italiano uma acção por responsabilidade decorrente da actividade jurisdicional do Estado (13). O pedido de indemnização formulado no quadro de uma acção desse tipo dá origem a uma análise preliminar pelo tribunal competente, que se pronuncia sobre a sua admissibilidade. Segundo o artigo 5.°, n.° 3, da lei nacional controvertida, o pedido é julgado inadmissível quando não preencher as condições e critérios estabelecidos nos seus artigos 2.°, 3.° e 4.° ou for manifestamente improcedente. A decisão de inadmissibilidade é passível de recurso de substituição ou de cassação (14).

II – Os factos e a tramitação do processo principal

22.   Em 1981, a empresa de transporte marítimo Traghetti del Mediterraneo (a seguir «TDM»), então em situação de concordata preventiva, intentou uma acção contra uma empresa sua concorrente, a Tirrenia di Navigazione (a seguir «Tirrenia»), no Tribunale di Napoli, a fim de obter uma indemnização do prejuízo que esta lhe terá causado, de 1976 a 1980, em virtude da política de preços baixos (abaixo do preço de custo) que terá praticado no mercado de cabotagem marítima entre a Itália continental e as ilhas da Sardenha e da Sicília, graças à obtenção de subsídios públicos.

23.   Como fundamento do pedido, a TDM alegou que o comportamento em apreço constituía um acto de concorrência desleal, na acepção do artigo 2598, n.° 3, do Código Civil italiano, e um abuso de posição dominante proibido pelo artigo 86.°, n.° 1, do Tratado. A autora invocou igualmente a violação dos artigos 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.° CE), 90.° e 92.° do Tratado.

24.   Este pedido de indemnização foi julgado improcedente por decisão do Tribunale di Napoli de 22 de Abril de 1993. Esta decisão, da qual a autora interpôs recurso, foi confirmada pela Corte d’appello di Napoli, por acórdão de 7 de Janeiro de 1997, pelo facto de, nomeadamente, os subsídios em causa corresponderem a um objectivo de desenvolvimento regional e, de qualquer forma, não afectarem o exercício da actividade de ligações marítimas diferentes e concorrentes com as exercidas pela ré, de forma que a concessão de tais subsídios não violava o Tratado CE.

25.   Ao julgar o recurso, este tribunal de segunda instância, contrariamente ao requerido pela TDM, não considerou útil colocar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação das normas do Tratado em matéria de auxílios de Estado para saber se elas se opunham à concessão dos subsídios em litígio.

26.   Tendo em seguida a TDM entrado em liquidação, o administrador da falência (a seguir igualmente designado por «TDM») interpôs um recurso de cassação desse acórdão. Nesse recurso, a autora requereu mais uma vez que fosse apresentado um pedido de decisão prejudicial.

27.   Por acórdão de 8 de Outubro de 1999, a Corte suprema di cassazione negou provimento ao recurso sem ter feito o reenvio prejudicial. Embora o Tribunal de Justiça não tenha sido convidado a analisar o conteúdo desta decisão para esclarecer o tribunal de reenvio relativamente à procedência da acção de responsabilidade em apreço, o que é competência exclusiva deste, não nos parece inútil expor o conteúdo da decisão em causa, na medida em que esta está no centro da lide principal.

28.   Quanto à alegada violação das regras do Tratado CE em matéria de auxílios de Estado, a Corte suprema di cassazione considerou que os artigos 90.° e 92.° deste Tratado, em casos como o do litígio em apreço, permitem escapar à proibição de princípio dos auxílios de Estado, a fim de favorecer o desenvolvimento económico de regiões desfavorecidas ou de responder à procura de bens e de serviços que o funcionamento da livre concorrência não está em condições de satisfazer plenamente.

29.   Neste sentido, a Corte suprema di cassazione sublinhou que, durante o período em que esses auxílios foram concedidos, os transportes em massa entre a Itália continental e as suas principais ilhas, devido aos custos que representavam, só podiam ser assegurados por via marítima, de forma que foi necessário confiar essa actividade a um concessionário público com preços administrativamente fixados. Segundo a Corte suprema di cassazione, a distorção da concorrência daí decorrente não coloca em causa a compatibilidade dos auxílios em causa com o Tratado, na medida em que a TDM não conseguiu demonstrar que a Tirrenia tirou partido dos referidos auxílios para obter lucros de outras actividades diferentes daquelas para as quais eles lhe foram concedidos.

30.   Quanto ao fundamento relativo à alegada violação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, a Corte suprema di cassazione considerou‑o improcedente, porque a actividade de cabotagem marítima ainda não tinha sido liberalizada à época dos factos e porque o carácter restrito e o contexto geográfico limitado desta actividade não permitiam identificar claramente o mercado relevante, na acepção do artigo 86.° do Tratado.

31.   Quanto ao requerimento da TDM relativo à apresentação de um pedido de decisão prejudicial, esse supremo tribunal considerou também não ser necessário proceder a esse reenvio, na medida em que a solução encontrada pela Corte d’appello di Napoli, no acórdão impugnado, correspondia à jurisprudência do Tribunal de Justiça, mais concretamente, ao acórdão de 22 de Maio de 1985, Parlamento/Conselho (15), em matéria de transportes.

32.   Na sequência da prolação deste acórdão da Corte suprema di cassazione, a TDM intentou no Tribunale di Genova uma acção de responsabilidade contra a República Italiana (dirigida contra o Presidente do Conselho de Ministros italiano), com vista a obter a reparação do prejuízo que alegadamente lhe foi causado pelo referido acórdão.

33.   Como fundamento do seu pedido, a TDM alega que o acórdão em causa se baseia numa interpretação incorrecta das normas do Tratado em matéria de concorrência e de auxílios de Estado, e ainda na ideia errada de que existe uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça nesta matéria. Daqui decorre que, com este acórdão, a Corte suprema di cassazione incorreu, simultaneamente, numa violação do direito comunitário material e num incumprimento da sua obrigação de proceder ao reenvio prejudicial que impende sobre os supremos tribunais nos termos do artigo 177.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE).

34.   Quanto a este ponto, a TDM sustenta que, se tivesse havido um reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça teria provavelmente dado uma interpretação das regras pertinentes do Tratado que teria conduzido a Corte suprema di cassazione a decidir num sentido favorável às suas pretensões. Alega como prova que, no final de um processo de fiscalização dos auxílios concedidos à Tirrenia posteriormente ao período em causa (e que foi desencadeado pela Comissão no decurso do processo que deu origem ao acórdão aqui em causa), a Comissão proferiu uma decisão que pôs em evidência a dimensão comunitária da cabotagem marítima, assim como as dificuldades em apreciar a compatibilidade dos referidos auxílios com as regras do Tratado em matéria de auxílios de Estado(16). Segundo a TDM, os critérios de apreciação seguidos pela Comissão nessa decisão, e que devem ser tidos em conta para analisar a compatibilidade dos auxílios em causa, são de molde a desmentir a análise efectuada pela Corte suprema di cassazione no acórdão em causa.

35.   O Presidente do Conselho de Ministros italiano contesta o pedido de indemnização apresentado pela TDM, alegando, designadamente, que o artigo 2.°, n.° 2, da lei controvertida se opõe à responsabilidade do Estado no caso em apreço, na medida em que a actividade jurisdicional em causa está relacionada com a interpretação de normas jurídicas.

36.   Em resposta a este argumento, a TDM alega que a referida lei torna excessivamente difícil, se não praticamente impossível, aos particulares obterem uma indemnização por danos causados pelo Estado em virtude da actividade jurisdicional, situação que é contrária aos princípios formulados pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (17), e de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur et Factortame (18).

III – A questão prejudicial

37.   Tendo em conta as teses avançadas pelas partes e as suas próprias dúvidas quanto à eventual extensão do princípio da responsabilidade do Estado à actividade jurisdicional em caso de violação do direito comunitário, o Tribunale di Genova decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1)      É um Estado[‑Membro] responsável, a título de responsabilidade extracontratual, para com um particular, pelos erros dos juízes nacionais na aplicação do direito comunitário ou na não aplicação do mesmo e, em especial, pelo não cumprimento, por parte de um tribunal de última instância, da obrigação de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça que é imposta pelo artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE?

2.      Se se entender que um Estado‑Membro responde pelos erros dos juízes nacionais na aplicação do direito comunitário e, em especial, pela omissão de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça por parte de um juiz de última instância que é imposto pelo artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, uma regulamentação nacional relativa à responsabilidade do Estado por erro dos juízes que:

–      exclui a responsabilidade relativamente à interpretação das normas jurídicas e à valoração dos factos e das provas prosseguidas no âmbito da actividade judicial, e

–      limita a responsabilidade do Estado unicamente aos casos de dolo e culpa grave do juiz,

opõe‑se à declaração dessa responsabilidade e é, portanto, incompatível com os princípios do direito comunitário?»

38.   Na sequência da prolação do acórdão Köbler, já referido, (ocorrida já posteriormente à decisão de reenvio), que o Tribunal de Justiça enviou ao Tribunale di Genova, este decidiu, depois de ouvir as partes no processo principal, retirar a primeira questão prejudicial, uma vez que o referido acórdão lhe respondeu pela afirmativa, e manter a segunda, de forma que só resta uma questão prejudicial, que visa saber se «um regime legal nacional em matéria de responsabilidade do Estado por erros dos tribunais obsta à efectivação dessa responsabilidade – e é por isso mesmo incompatível com os princípios do direito comunitário – quando exclui a responsabilidade relacionada com a interpretação das normas jurídicas e a apreciação dos factos e das provas efectuada no quadro da actividade jurisdicional e quando limita a responsabilidade do Estado aos casos de dolo e de culpa grave do juiz».

IV – Sentido e alcance da questão prejudicial

39.   Tal como se encontra formulada, a questão prejudicial em apreço reveste‑se de um amplo alcance, pois tende a abranger o conjunto da actividade jurisdicional, ou seja, quer a actividade dos supremos tribunais quer a dos tribunais de instância. Ora, tem de constatar‑se que na acção de responsabilidade do Estado que constitui o litígio do processo principal apenas está em jogo a decisão de um supremo tribunal, insusceptível de recurso, e não as decisões dos tribunais de instância que se pronunciaram anteriormente no mesmo sentido no mesmo processo (19). Deve portanto proceder‑se a uma reformulação da questão prejudicial neste sentido, a fim de limitar o alcance da resposta do Tribunal de Justiça ao que é estritamente necessário para a decisão da causa pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

40.   Além disso, para precisar ainda mais o alcance da questão prejudicial, importa dar algumas indicações sobre o sentido da lei nacional controvertida cuja alegada incompatibilidade com o direito comunitário está na origem do reenvio prejudicial.

41.   Segundo o Tribunale di Genova, se se aplicar a referida lei ao presente caso, o pedido formulado pela TDM deverá, manifestamente, ser considerado inadmissível (como sustenta o réu), uma vez que este pedido se baseia num alegado erro de interpretação de normas jurídicas por parte de um tribunal, precisando‑se que tanto a omissão de reenvio prejudicial como a aplicação das normas comunitárias à situação em litígio são o resultado de uma actividade interpretativa (20).

42.   Esta asserção baseia‑se no postulado de que, por força da lei nacional controvertida, a actividade interpretativa do juiz, «quer com ela se concorde quer não, é de considerar lícita per se», de forma que está excluída a possibilidade de ela poder gerar a responsabilidade do Estado (21).

43.   Na audiência, o Governo italiano sustentou uma interpretação da lei nacional controvertida que se afigura sensivelmente diferente da que é sustentada pelo tribunal de reenvio. Segundo esse Governo, a exclusão da responsabilidade do Estado prevista no artigo 2.°, n.° 2, da referida lei, no que respeita à interpretação de normas jurídicas, não tem vocação de aplicação à hipótese de a actividade interpretativa conduzir a uma violação grave da lei resultante de negligência indesculpável, no sentido das disposições do n.° 3, alínea a), do mesmo artigo. Com efeito, estas últimas disposições introduzem uma derrogação à regra de exclusão da responsabilidade estabelecida no artigo 2.°, n.° 2, que por sua vez constitui uma derrogação ao princípio da responsabilidade consagrado no n.° 1 do mesmo artigo.

44.   É verdade que, à primeira vista, nos podemos interrogar como é que os casos de violação da lei previstos no artigo 2.°, n.° 3, alínea a), da lei nacional controvertida podem não dizer respeito à actividade de interpretação de normas jurídicas prevista no n.° 2 do mesmo artigo, de forma que o referido n.° 3 pudesse não estabelecer uma derrogação à regra do n.° 2. Só assim a referida lei nacional procederia, simultaneamente, à exclusão da responsabilidade do Estado em certos domínios da actividade jurisdicional (previstos no n.° 2) e a uma limitação dessa responsabilidade nos outros domínios da actividade do juiz (previstos no n.° 3). Com efeito, na hipótese de os domínios de actividade abrangidos por cada um destes números não serem distintos, mas coincidirem totalmente, a legislação nacional em causa só pode ser compreendida em termos de limitação da responsabilidade do Estado e não igualmente em termos de exclusão dessa responsabilidade.

45.   Posto isto, resulta de jurisprudência constante que, no quadro da repartição das competências entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais que se aplica ao processo de reenvio a título prejudicial, a interpretação do direito nacional compete exclusivamente aos tribunais nacionais e não ao Tribunal de Justiça (22).

46.   De acordo com a interpretação do artigo 2.°, n.° 2, da lei nacional controvertida seguida pelo tribunal de reenvio, parto, portanto, do princípio de que a responsabilidade do Estado decorrente da actividade jurisdicional fica excluída quando o comportamento censurado a um tribunal disser respeito a uma operação de interpretação de normas jurídicas, mesmo quando essa operação tiver conduzido a uma infracção grave da lei resultante de negligência indesculpável. Por outras palavras, parto do princípio de que o artigo 2.°, n.° 3, alínea a), da lei nacional controvertida tem uma vocação de aplicação a outras hipóteses de violação da lei diferentes das referidas no n.° 2 do mesmo artigo.

47.   Por consequência, considero que, com a sua questão prejudicial, o tribunal de reenvio pretende saber, em substância, se o direito comunitário se opõe a que a responsabilidade de um Estado‑Membro por danos causados aos particulares em caso de violação do direito comunitário cometida por um supremo tribunal, seja, por um lado, excluída, na hipótese de a violação em causa dizer respeito à interpretação de normas jurídicas ou à apreciação de factos e de provas, e, por outro, limitada – fora dessa hipótese – aos casos de dolo ou culpa grave.

V –    Análise

48.   Para responder a esta questão, analisarei a compatibilidade com o direito comunitário dos casos de exclusão, e, em seguida, de limitação da responsabilidade do Estado por acto de um supremo tribunal, sucessivamente referidos pelo tribunal de reenvio, na formulação da sua questão.

A –    Quanto à exclusão da responsabilidade do Estado quando a violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal está relacionada com a interpretação de normas jurídicas

49.   Recordo que, no acórdão Köbler, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio segundo o qual os Estados‑Membros são obrigados a reparar os danos que causem aos particulares em virtude de violações do direito comunitário que lhes sejam imputáveis é igualmente aplicável quando a violação em causa decorrer de uma decisão de um supremo tribunal. E isto em virtude das exigências inerentes à protecção dos direitos dos particulares que invocam o direito comunitário (23).

50.   Esta conclusão não é posta em causa por argumentos baseados, nomeadamente, no princípio da independência dos juízes ou do caso julgado, que o Tribunal de Justiça expressamente afastou (24). Com efeito, embora a especificidade da função judicial e as exigências legítimas de segurança jurídica tenham sido tidas em conta pelo Tribunal de Justiça e o tenham levado a limitar a responsabilidade do Estado ao «caso excepcional de o juiz [ou seja, um supremo tribunal] ter [inobservado] de modo manifesto o direito aplicável» (25), nem por isso deixou de considerar que nem o princípio da independência dos juízes, nem do caso julgado podem justificar a exclusão genérica da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a esse órgão jurisdicional.

51.   Em minha opinião, esses princípios, mesmo quando revestidos de valor constitucional, também não podem igualmente excluir a responsabilidade do Estado na hipótese específica de a violação do direito comunitário por parte de um supremo tribunal resultar da interpretação de normas jurídicas (26).

52.   Admitir o contrário seria esvaziar de conteúdo ou privar de efeito útil o princípio da responsabilidade do Estado por acto dos supremos tribunais, estabelecido pelo Tribunal de Justiça no já referido acórdão Köbler.

53.   Com efeito, a interpretação das normas jurídicas ocupa um lugar essencial na actividade jurisdicional. E ainda mais nos supremos tribunais, uma vez que o seu papel tradicional é o da uniformização da interpretação da lei ao nível nacional.

54.   Aliás, é precisamente por causa desta função essencial dos supremos tribunais, cujas decisões não são susceptíveis de recurso de direito interno, que eles são obrigados, nos termos do artigo 234.° CE, a colocar ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais de interpretação do direito comunitário, a fim de evitar que se estabeleçam neste domínio divergências de jurisprudência no interior da Comunidade (27).

55.   No exercício das suas tradicionais funções de uniformização da interpretação das normas jurídicas, é possível que estes tribunais cometam uma infracção ao direito comunitário aplicável de modo a desencadear a responsabilidade do Estado, com a condição de que essa infracção seja manifesta (28). Uma infracção decorrente da actividade interpretativa de normas jurídicas pode verificar‑se em várias situações, de que darei alguns exemplos, que podem surgir isoladamente ou em conjunto.

56.   Em primeiro lugar, a infracção em causa poderá resultar de uma interpretação do direito nacional não conforme com o direito comunitário aplicável, contrariamente à obrigação de interpretação conforme que, segundo jurisprudência constante, impende sobre todos os órgãos jurisdicionais nacionais e cuja importância foi recentemente recordada no acórdão de 5 de Outubro de 2004, Pfeiffer e o. (29), no quadro de um litígio entre particulares a respeito da aplicação das disposições do direito interno que foram adoptadas para transposição de uma directiva que confere direitos aos particulares.

57.   A situação analisada pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 9 de Dezembro de 2003, Comissão/Itália (30) (proferido pouco depois do acórdão Köbler, já referido), pode ser aproximada desta hipótese de infracção do direito comunitário (que pressupõe, evidentemente, que a legislação nacional em causa seja susceptível de interpretação conforme).

58.   Recordo que nesse processo a Comissão censurava a República Italiana por esta ter mantido em vigor um regime legal que, tal como interpretado pelos tribunais italianos, incluindo a Corte suprema di cassazione, e tal como aplicado pela administração pública, tornava na prática o reembolso de impostos cobrados em violação do direito comunitário impossível ou excessivamente difícil, devido às exigências de prova impostas aos particulares para o obterem.

59.   Este regime legal nacional não era, por si mesmo, incompatível com o direito comunitário, porquanto, como salientou o Tribunal de Justiça, era neutro tanto no que se referia ao ónus da prova da repercussão dos referidos impostos para outras pessoas, como no que se referia ao tipo de provas admissíveis para esse fim (31). Todavia, o referido regime nacional era objecto de interpretações divergentes por parte dos tribunais, umas conduzindo a uma aplicação compatível com o direito comunitário, outras conduzindo a uma aplicação com ele incompatível. Sendo esta última orientação da jurisprudência significativa e não isolada, o Tribunal de Justiça tomou‑a em consideração para determinar o alcance do regime nacional em causa. A este respeito, prestou uma atenção especial aos acórdãos da Corte suprema di cassazione (32), que interpretava o regime nacional de uma forma incompatível com o direito comunitário e manifestamente contra a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria (33).

60.   Tendo em conta estas divergências jurisprudenciais e a prática seguida pela administração pública na matéria, que demonstravam que o regime legal em causa não era suficientemente claro para garantir uma aplicação compatível com o direito comunitário, de forma que o legislador nacional devia ter introduzido as modificações ou clarificações necessárias (34), o Tribunal de Justiça julgou procedente a acção de incumprimento.

61.   Embora a infracção ao direito comunitário em causa fosse imputável ao conjunto das autoridades nacionais (judiciais, administrativas e legislativas), e não apenas à Corte suprema di cassazione, e tenha sido analisada no âmbito específico de uma acção de incumprimento, esse processo não deixa de constituir um exemplo interessante de uma infracção ao direito comunitário por um supremo tribunal, apta a desencadear a responsabilidade do Estado em virtude de uma interpretação não conforme (do direito nacional relativamente às exigências do direito comunitário) que foi seguida manifestamente contra a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria (35).

62.   Na continuação deste exemplo, pode igualmente configurar‑se a hipótese em que um supremo tribunal aplica um regime nacional que considera conforme com a ordem jurídica comunitária, quando o devia ter afastado por força do princípio da primado do direito comunitário sobre o direito nacional, devido à sua irredutível incompatibilidade com o direito comunitário (o que excluía qualquer possibilidade de interpretação conforme). A infracção ao direito comunitário daí decorrente pode estar relacionada com um exercício de interpretação do direito nacional e/ou do direito comunitário que consista, por exemplo, numa interpretação do direito nacional para tornar a sua aplicação compatível com o direito comunitário, sendo este último sem dúvida mal interpretado, dado que precisamente, nesta hipótese, seria impossível conciliá‑los.

63.   A esta hipótese, como à precedente, pode equiparar‑se a situação em que a infracção ao direito comunitário é resultante de uma interpretação errada de uma norma do direito comunitário aplicável, seja uma norma de fundo ou uma norma processual.

64.   Excluir a responsabilidade do Estado em caso de violação de normas jurídicas, pela simples razão de a violação em causa estar relacionada com a interpretação de normas jurídicas, traduz‑se em excluir a responsabilidade do Estado nestas três hipóteses de violação do direito comunitário. É evidente que a exclusão da responsabilidade do Estado, assim definida, quando a violação do direito comunitário é imputável a um supremo tribunal, põe seriamente em causa o princípio formulado pelo Tribunal de Justiça no já referido acórdão Köbler.

65.   A estas três hipóteses de violação do direito comunitário deve equiparar‑se a situação em que um supremo tribunal não cumpre o dever de proceder ao reenvio prejudicial para interpretação do direito comunitário a que está obrigado por força do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE.

66.   Com efeito, o incumprimento desta obrigação pode levar o tribunal em causa a cometer um erro enquadrável em qualquer destas hipóteses, seja um erro de interpretação do direito comunitário aplicável ou quanto às consequências que dele devem retirar‑se para a interpretação conforme do direito interno ou para a apreciação da sua compatibilidade com o direito comunitário.

67.   Esta incidência do incumprimento do dever de reenvio prejudicial na prática de uma violação do direito comunitário foi tida em conta pelo Tribunal de Justiça na definição dos critérios segundo os quais se deve avaliar se um supremo tribunal violou de forma manifesta as normas jurídicas aplicáveis, a fim de determinar se está preenchida a primeira condição para a responsabilidade do Estado, a existência de uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário.

68.   Com efeito, no n.° 55 do acórdão Köbler, já referido, o Tribunal esclarece que se devem ter em conta, designadamente, «o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial [prevista] no artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE».

69.   O não cumprimento do dever de reenvio prejudicial constitui, assim, um dos critérios a tomar em consideração para determinar a existência de uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário imputável a um supremo tribunal, que acresce aos já formulados pelo Tribunal de Justiça no acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido, e na jurisprudência que se lhe seguiu, sobre responsabilidade do Estado por acto legislativo ou administrativo (36).

70.   Embora o Tribunal de Justiça tenha evitado estabelecer uma hierarquia entre estes diferentes critérios, cuja pertinência, nalguns casos, me parece discutível (37), considero que o relativo ao dever de reenvio prejudicial se reveste de uma especial importância.

71.   Com efeito, para se determinar se o erro de direito em causa é ou não desculpável (sendo este elemento, na minha opinião, o critério central em torno do qual se ordenam os outros critérios) (38), tem de se dar uma atenção especial à atitude adoptada pelo supremo tribunal relativamente ao dever de reenvio que sobre ele impende.

72.   Assim, quando a norma jurídica infringida for pouco clara ou pouco precisa, o erro de direito em causa nem por isso é desculpável, pois, precisamente neste caso, o supremo tribunal deveria ter colocado uma questão prejudicial, uma vez que não podia considerar que a solução a dar à questão de direito em causa não deixava margem para qualquer dúvida razoável, no sentido do acórdão Cilfit, já referido (39), e, a fortiori, na hipótese de não existir jurisprudência do Tribunal de Justiça susceptível de esclarecer essa questão (40).

73.   Inversamente, quando a norma jurídica é clara e precisa, o erro de direito é tanto menos desculpável quanto, se por acaso o supremo tribunal tinha posto a hipótese de dela se afastar, por exemplo, no caso de, em sua opinião, essa norma ser afastada por outras normas cuja interpretação ou aplicação, conjugada com a norma violada, não fosse fácil, o supremo tribunal devia igualmente colocar uma questão prejudicial, uma vez que, de acordo com a sua própria apreciação, não podia considerar que a solução que pretendia dar à questão de direito em apreço não estava isenta de qualquer dúvida séria, sobretudo na hipótese de o referido supremo tribunal se ter querido afastar da jurisprudência do Tribunal de Justiça nessa matéria (41).

74.   Na minha opinião, estes exemplos demonstram como o não cumprimento do dever de reenvio prejudicial por um supremo tribunal é susceptível de pesar na delicada avaliação do carácter desculpável do erro de direito em causa com a qual se pretende determinar se a infracção em apreço é suficientemente caracterizada para ser apta a gerar responsabilidade do Estado.

75.   Em minha opinião, o papel que o Tribunal de Justiça atribuiu, no n.° 55 do acórdão Köbler, já referido, ao incumprimento do dever de reenvio prejudicial, cuja importância para a apreciação do carácter desculpável do erro de direito em causa acabo de salientar, obsta à exclusão da responsabilidade do Estado quando a violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal se conjugar com o incumprimento do dever de reenvio prejudicial.

76.   Ora, parece ser esse o sentido de um regime legal nacional como o que está em causa no processo principal. Com efeito, o incumprimento do dever de reenvio prejudicial tem diversos pontos de contacto com a actividade de interpretação de normas jurídicas. Esse incumprimento, como já referi, não só pode conduzir a uma violação do direito comunitário relacionado com a interpretação dessas normas, mas pode, além disso, resultar ele próprio de uma interpretação errada do direito comunitário ou de uma incorrecta interpretação da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria. Daí decorre que, nos termos desse regime legal nacional, uma violação do direito comunitário cometida por um supremo tribunal, concomitante com o incumprimento do dever de reenvio que sobre ele impende, não poderá dar origem à responsabilidade do Estado.

77.   Se nos ativermos apenas ao n.° 55 do acórdão Köbler, já referido, que visa esclarecer o alcance do princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal, temos de concluir que este princípio obsta a que a responsabilidade do Estado seja excluída por um regime legal nacional (como o que, aparentemente, está em causa no processo principal), quando a infracção em causa se conjuga com um incumprimento do dever de reenvio prejudicial.

78.   Em minha opinião, o mesmo se aplicaria no caso especial (sem dúvida raro (42)) de a violação do direito comunitário imputada a um supremo tribunal por um particular cujas pretensões não tivessem obtido ganho de causa consistir apenas no incumprimento do dever de reenvio.

79.   Com efeito, como já referi no n.° 144 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler, já referido, não se pode excluir a priori que o Estado incorra em responsabilidade pelo simples incumprimento manifesto do dever de reenvio prejudicial, mesmo que, como igualmente sublinhei (nos n.os 149 a 150 das referidas conclusões), a efectivação da responsabilidade do Estado neste caso possa deparar com sérias dificuldades de prova do nexo de causalidade directo entre o incumprimento do dever de reenvio prejudicial e o prejuízo alegado.

80.   Em minha opinião, o conjunto destes argumentos demonstra até que ponto o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal, formulado no acórdão Köbler, já referido, ficaria prejudicado na hipótese de essa responsabilidade ser excluída (por efeito de um regime legal nacional) quando a infracção em causa estivesse relacionada com a interpretação de normas jurídicas.

81.   Daqui concluo que o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal obsta a que essa responsabilidade seja excluída por efeito de um regime legal nacional pelo simples facto de essa violação estar relacionada com a interpretação de normas jurídicas.

B –    Quanto à exclusão da responsabilidade do Estado quando a violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal está relacionada com a apreciação de factos e de provas

82.   À primeira vista, podemos interrogar‑nos se a exclusão da responsabilidade do Estado, quando a actividade jurisdicional em causa estiver relacionada com a apreciação de factos e de provas, tem alguma incidência sobre o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal.

83.   Com efeito, é comummente aceite que os supremos tribunais, contrariamente aos tribunais de instância, só julgam de direito e não apreciam a matéria de facto, não tendo, por isso, vocação para apreciarem nem a materialidade dos factos alegados, nem a pertinência, o sentido ou o alcance dos elementos de prova apresentados para os dar como provados, cabendo essa apreciação, por natureza, aos tribunais de instância. Daqui decorre que, em princípio, só os erros de direito, e não os erros de facto, relevam da fiscalização exercida pelos supremos tribunais sobre as decisões das instâncias (43).

84.   Apesar disso, a apreciação dos factos e das provas operada pelas instâncias não está inteiramente excluída da fiscalização dos supremos tribunais, na medida em que, designadamente, estes fiscalizam o respeito pelas regras de prova (relativas à admissibilidade dos meios de prova ou ao ónus da prova) e têm de verificar a correcção da qualificação jurídica dos factos, i. e., se os factos do processo, tais como constantes da sentença recorrida, foram correctamente qualificados na categoria jurídica em que o juiz a quo os subsumiu, e de que resulta a sua sujeição a um regime jurídico determinado (44). Qualquer destas operações se inscreve no quadro da fiscalização dos erros de direito, quer se trate da regularidade do apuramento da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, quer estejam em causa as consequências legais que o mesmo retirou dessa matéria de facto (dedução que pode resultar de uma interpretação errada do conceito correspondente à categoria jurídica em causa).

85.   O direito comunitário não é alheio a essa fiscalização.

86.   Em primeiro lugar, embora os meios processuais destinados a garantir, no plano do direito interno, a salvaguarda dos direitos dos cidadãos baseados no direito comunitário permaneçam em larga medida regidos pelo princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, sem prejuízo do respeito pelos princípios da equivalência e de efectividade, existem contudo algumas normas do direito comunitário em matéria de prova. É o caso, por exemplo, das regras previstas em várias directivas no que se refere ao ónus da prova em matéria de discriminação (45). Cabe aos supremos tribunais garantir que as instâncias respeitem essas regras.

87.   Além disso e principalmente, muitos conceitos do direito comunitário prestam‑se a uma fiscalização da qualificação jurídica dos factos. É assim especialmente em sede de auxílios de Estado.

88.   Com efeito, como já referi, sem prejuízo das modificações introduzidas pelo Regulamento (CE) n.° 994/98 do Conselho (46), a aplicação do sistema de controlo dos auxílios de Estado incumbe tanto à Comissão como aos tribunais nacionais, estando uma e outros investidos de missões distintas e complementares. Assim, enquanto a Comissão está encarregada de examinar a compatibilidade de um auxílio com o mercado comum, o juiz nacional deve garantir (até à decisão final da Comissão sobre a compatibilidade do auxílio com o mercado comum) os direitos que decorrem para os particulares do efeito directo das disposições do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado.

89.   Neste quadro, cabe ao juiz nacional proceder a diversas operações de qualificação jurídica dos factos. Em primeiro lugar, tem de examinar se a medida em causa constitui um auxílio de Estado, na acepção do artigo 92.°, n.° 1, do Tratado, ou seja, se confere uma vantagem, proveniente de recursos públicos, aos seus beneficiários (47). Em seguida, deve determinar se o referido auxílio de Estado se enquadra na categoria daqueles que são proibidos pelo artigo 92.°, n.° 1, do Tratado, ou seja, se, por um lado, o auxílio é susceptível de falsear a concorrência e, por outro, se é susceptível de afectar as trocas entre os Estados‑Membros. Quando o juiz nacional chega à conclusão de que a medida em causa está abrangida pela proibição de princípio estabelecida neste artigo, resta‑lhe determinar se ela está abrangida pelo processo de controlo previsto no artigo 93.°, n.° 3, do Tratado, o que o levará eventualmente a examinar se se trata de um novo auxílio (que está submetido ao processo de controlo) e não de um auxílio já existente (que não está submetido ao processo de controlo).

90.   Só no final desta série de operações de qualificação é que o juiz nacional pode pronunciar‑se sobre a legalidade da medida e retirar dela todas as consequências que se impõem em caso de violação do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado CE (48).

91.   Outras tantas operações de qualificação jurídica dos factos relevam, numa matéria como a que está em causa no litígio do processo principal, das funções de fiscalização dos supremos tribunais.

92.   Ora, pode suceder que, no quadro desta fiscalização do erro de direito, os supremos tribunais cometam eles próprios um eventual erro de direito susceptível de gerar a responsabilidade do Estado, na hipótese de, segundo os critérios formulados no acórdão Köbler, dele decorrer uma manifesta inobservância do direito comunitário aplicável.

93.   Daqui concluo que o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal obsta a que um regime legal nacional exclua genericamente responsabilidade pelo simples facto de a violação em causa estar relacionada com a apreciação de factos e de provas.

94.   Deve agora apreciar‑se a questão de saber se esse princípio obsta igualmente a que um regime legal nacional limite a responsabilidade do Estado (quando não for excluída), aos casos de dolo ou culpa grave.

C –    Quanto à limitação da responsabilidade do Estado resultante de uma violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal aos casos de dolo ou culpa grave

95.   Recordo que, no n.° 53 do acórdão Köbler, já referido, o Tribunal de Justiça limitou a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário decorrente de uma decisão de um supremo tribunal «ao caso excepcional de o juiz ter [inobservado] de modo manifesto o direito aplicável» (49).

96.   Esta fórmula distingue‑se daquela que o Tribunal de Justiça seguiu no acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido, quando um Estado‑Membro age num domínio em que dispõe de um amplo poder de apreciação. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que, nesta hipótese, só existe responsabilidade do Estado em caso de «violação manifesta e grave […] por um Estado‑Membro […] dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação» (50).

97.   Podemos interrogar‑nos sobre qual seja o sentido da alteração da formulação, na medida em que, no acórdão Köbler, já referido (n.os 55 e 56), o Tribunal de Justiça reproduziu integralmente a lista dos critérios que tinha formulado no acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido (n.os 56 et 57), para determinar se está preenchida essa condição referente à natureza da infracção em causa. Como já referi, o Tribunal de Justiça limitou‑se a acrescentar o critério relativo ao incumprimento do dever de reenvio.

98.   A falta de referência expressa ao carácter grave da infracção em causa terá uma ligação com o abandono, a partir do acórdão de 4 de Julho de 2000, Bergaderm et Goupil/Comissão (51), da condição de existência da responsabilidade do Estado relativa ao carácter superior da norma jurídica violada, formulada pelo Tribunal de Justiça há alguns anos a propósito da responsabilidade extracontratual da Comunidade? Embora esta condição relativa à responsabilidade da Comunidade não tenha sido estendida no acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido, ao regime da responsabilidade dos Estados‑Membros, ao passo que o Tribunal de Justiça, no mesmo acórdão, retomou o requisito relativo à gravidade da infracção em causa (que já tinha igualmente exigido no quadro da responsabilidade da Comunidade), podemos interrogar‑nos se o Tribunal de Justiça não foi guiado no acórdão Köbler, já referido, pela preocupação de evitar que esta condição relativa à gravidade da infracção fosse interpretada como uma exigência relativa à natureza da norma que tinha sido violada, na medida em que o carácter dito superior ou fundamental da norma pudesse contribuir para conferir carácter de gravidade à infracção. A questão fica em aberto.

99.   Assim, qualquer que seja a interpretação a dar a esta evolução terminológica no decurso da jurisprudência, repito, para apreciar se está preenchida a condição de existência da responsabilidade do Estado relativa à natureza da violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal, segundo o Tribunal de Justiça, deve tomar‑se em consideração «o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial [prevista] no artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE» (52). Recordo que segundo o Tribunal de Justiça, «[d]e qualquer modo, uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada quando a decisão em causa foi tomada violando manifestamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria» (53).

100. Embora os conceitos de dolo e de culpa grave sejam susceptíveis de assumir sentidos sensivelmente diferentes nos sistemas jurídicos dos diversos Estados‑Membros, pode‑se considerar, na sequência da jurisprudência Brasserie du pêcheur et Factortame (54), que alguns dos elementos que podem ser atribuídos a estes conceitos no quadro de um sistema jurídico nacional têm interesse, tendo em conta a série de critérios referidos nos n.os 55 e 56 do acórdão Köbler, já referido, para avaliar se um supremo tribunal inobservou de forma manifesta o direito aplicável.

101. Ora, muito embora a responsabilidade do Estado possa depender, no plano do direito nacional, de condições menos restritivas do que as que o Tribunal de Justiça formulou no acórdão Köbler, já referido (55), em contrapartida, a imposição de uma condição suplementar, portanto mais restritiva, traduzir‑se‑ia em pôr em causa o direito à reparação que tem o seu fundamento na ordem jurídica comunitária (56).

102. Como a Comissão, e sem abandonar as minhas reservas quanto à pertinência do critério relativo ao carácter deliberado da infracção em causa, que acabou por ser aceite pelo Tribunal de Justiça no acórdão Köbler, já referido (e que levo em conta) (57), infiro desta evolução da jurisprudência, no seu conjunto, que a responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal não pode ficar subordinada a uma condição baseada no conceito de dolo ou culpa grave que vá para além da exigência de uma manifesta inobservância do direito aplicável (na acepção dos n.os 55 e 56 do acórdão Köbler) (58).

103. Por consequência, deve responder‑se à questão prejudicial mantida pelo tribunal de reenvio, que embora o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal obste a que um regime legal nacional exclua genericamente essa responsabilidade pelo simples facto de a violação em causa estar relacionada com a apreciação de factos e de provas, em contrapartida, esse mesmo princípio não obsta a que essa responsabilidade esteja subordinada à existência de dolo ou culpa grave por parte do supremo tribunal, desde que esta condição não vá para além da exigência de uma manifesta inobservância do direito aplicável.

VI – Conclusão

104. Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma à questão prejudicial mantida pelo Tribunale di Genova (Itália):

«Embora o princípio da responsabilidade do Estado em caso de violação do direito comunitário imputável a um supremo tribunal obste a que um regime legal nacional exclua genericamente essa responsabilidade pelo simples facto de a violação em causa estar relacionada com a apreciação de factos e de provas, em contrapartida, esse mesmo princípio não obsta a que essa responsabilidade esteja subordinada à existência de dolo ou culpa grave por parte do supremo tribunal, desde que esta condição não vá para além da exigência de uma manifesta inobservância do direito aplicável.»


1 – Língua original: francês.


2 – C‑224/01, Colect., p. I‑10239.


3 – Mais precisamente, são visados no artigo 92.°, n.° 3, alínea a), do Tratado «os auxílios destinados a promover o desenvolvimento económico de regiões em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista grave situação de desemprego» e, no artigo 92.°, n.° 3, alínea c), do mesmo Tratado, os «auxílios destinados a facilitar o desenvolvimento de certas actividades ou regiões económicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum».


4 – Não levamos aqui em conta a evolução dos papéis da Comissão e dos tribunais nacionais decorrente do Regulamento (CE) n.° 994/98 do Conselho, de 7 de Maio de 1998, relativo à aplicação dos artigos 92.° e 93.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia a determinadas categorias de auxílios estatais horizontais (JO L 142, p. 1), uma vez que este regulamento entrou em vigor posteriormente à data em que ocorreram os factos objecto do processo principal.


5 – Esta síntese das regras processuais do Tratado CE em matéria de auxílios de Estado não é colocada em questão pelo Regulamento (CE) n.° 659/1999 do Conselho, de 22 de Março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo 93.° do Tratado CE (JO L 83, p. 1), entrado em vigor posteriormente à data em que ocorreram os factos do processo principal e que apenas reproduz, em larga medida, a jurisprudência do Tribunal de Justiça já existente nesta matéria.


6 – V., designadamente, os acórdãos de 15 de Julho de 1964, Costa (6/64, Colect. 1962‑1964, p. 549); de 19 de Junho de 1973, Capolongo (77/72, Colect., p. 253, n.° 6); de 11 de Dezembro de 1973, Lorenz (120/73, Colect., p. 553, n.° 8); de 21 de Novembro de 1991, Fédération nationale du commerce extérieur des produits alimentaires e Syndicat national des négociants et transformateurs de saumon (C‑354/90, Colect., p. I‑5505, n.° 11, a seguir «acórdão Saumon»), e de 11 de Julho de 1996, SFEI e o. (C‑39/94, Colect., p. I‑3547, n.° 39).


7 – V., designadamente, acórdão de 11 de Abril de 1989, Ahmed Saeed Flugreisen e o. (66/86, Colect., p. 803, n.° 32).


8 – Relativamente à matéria de auxílios de Estado, v., nomeadamente, acórdão de 12 de Outubro de 1978, Comissão/Bélgica (156/77, Recueil, p. 1881, n.os 10 e 11, Colect., p. 643). Relativamente ao artigo 86.° CE, referente ao abuso de posição dominante, v., designadamente, acórdão de 30 de Abril de 1986, Asjes e o. (209/84 a 213/84, Colect., p. 1425, n.os 39, 42 e 45).


9 – GURI n.° 88, de 15 de Abril de 1988, p. 3, a seguir «lei nacional controvertida».


10 – As disposições em causa figuravam nos artigos 55.°, 56.° e 74.° do Código de Processo Civil. Delas decorria que a responsabilidade do Estado resultante da actividade jurisdicional só existia em caso de dolo, fraude ou concussão.


11 – Segundo o artigo 1.° da lei controvertida, ela aplica‑se «a todos os membros das magistraturas ordinária, administrativa, financeira, militar e especial, que exerçam uma função judiciária, independentemente da natureza das funções, bem como a outras pessoas que participem no exercício de funções judiciais».


12 – V. decisão da Corte costituzionale, de 19 de Junho de 1989, n.° 18, ponto 10 (Giustizia civile, 1989, I. p. 769).


13 – V. artigo 4.°, n.° 1, da lei controvertida.


14 – V. artigo 5.°, n.° 4, da lei controvertida.


15 – 13/83, Recueil, p. 1513.


16 – Trata‑se da Decisão 2001/851/CE da Comissão, de 21 de Junho de 2001, relativa aos auxílios estatais concedidos pela Itália à companhia de navegação Tirrenia di Navigazione (JO L 318, p. 9). Esclareço que, com esta decisão, a Comissão declarou compatível com o mercado comum os auxílios concedidos a esta empresa, de 1 de Janeiro de 1990 a 31 de Dezembro de 2000, a título de compensações de serviço público, e autorizou, desde que respeitadas determinadas condições, os auxílios concedidos de 1 de Janeiro de 2001 a 31 de Dezembro de 2004. Estes auxílios, qualificados como novos auxílios, foram considerados abrangidos pela derrogação prevista no artigo 86.°, n.° 2, CE, com exclusão dos previstos no artigo 87.°, n.os 2 e 3, CE.


17 – C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357.


18 – C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029.


19 – Aliás, como já salientei nas minhas conclusões no processo Köbler, já referido (n.° 38), embora seja certo que, não sendo possível recorrer de uma decisão proferida por um supremo tribunal, só uma acção de indemnização permite ‑ in ultima ratio ‑ garantir o restabelecimento do direito lesado e, finalmente, assegurar a protecção jurisdicional efectiva dos direitos conferidos aos particulares pela ordem jurídica comunitária a um nível adequado, o mesmo não se aplica no que diz respeito às decisões proferidas pelos tribunais de instância, uma vez que estas são susceptíveis de recurso interno.


20 – V. decisão de reenvio, pp. 5 e 7 da versão portuguesa.


21 – Ibidem, p. 5.


22 – V., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 1986, Sinatra (296/84, Colect., p. 1047, n.° 11), e de 26 de Setembro de 1996, Allain (C‑341/94, Colect., p. I‑4631, n.° 11).


23 – V. acórdão Köbler, já referido (n.° 36).


24 – Idem (n.os 37 a 43).


25 – Ibidem (n.° 53).


26 – A este respeito, recordo que, como já indiquei no n.° 18, a exclusão da responsabilidade do Estado prevista no artigo 2.°, n.° 2, da lei controvertida (que é aplicável a esta hipótese específica) foi, ao que parece, instituída para preservar a independência dos juízes, que é um princípio de valor constitucional.


27 – Este objectivo do dever de reenvio a título prejudicial foi precisado pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 6 de Outubro de 1982, Cilfit (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 7).


28 – Apreciaremos ulteriormente o sentido desta condição da responsabilidade do Estado estabelecida nos n.os 54 a 56 do acórdão Köbler, já referido.


29 – C‑397/01 a C‑403/01, Colect., p. I‑8835, n.os 110 a 115.


30 – C‑129/00, Colect., p. I‑14637.


31 – V. acórdão Comissão/Itália, já referido (n.° 31).


32 – Ibidem (n.os 34 e 35).


33 – V., designadamente, acórdão de 9 de Fevereiro de 1999, Dilexport (C‑343/96, Colect., p. I‑579, n.os 52 e 54), precisamente acerca do regime nacional em causa; bem como os acórdãos de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio (199/82, Recueil, p. 3595, n.° 14), e de 24 de Março de 1988, Comissão/Itália (104/86, Colect., p. 1799, n.os 7 e 11), sobre um regime nacional precedente, finalmente revogado, que estabelecia expressamente as mesmas exigências de prova requeridas por alguns tribunais e pela administração pública no quadro da interpretação e da aplicação do regime legal que lhe sucedeu.


34 – V., neste sentido, acórdão de 9 de Dezembro de 2003, Comissão/Itália, já referido, n.° 33).


35 – Saliento que a Corte suprema di cassazione, ao que parece, se afastou desta jurisprudência na sequência da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça no referido processo. V., neste sentido, o acórdão de 14 de Julho de 2004, n.° 13054, Soc. Sief e o./Ministero dell’Economia e delle Finanze e o. (Foro italiano 2004, I, p. 2700).


36 – Acerca destes desenvolvimentos da jurisprudência, v. n.os 131 a 137 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler, já referido.


37 – Em minha opinião, é esse o caso do critério relativo ao carácter deliberado ou não da infracção, bem como do relativo à atitude das instituições comunitárias (com excepção do domínio especial do direito da concorrência e dos auxílios de Estado, em que este critério pode ser pertinente). V., a este propósito, os n.os 154 a 156 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler, já referido.


38 – Neste sentido, n.° 139 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler, já referido.


39 – V. n.os 16 a 20 do acórdão.


40 – Em minha opinião, esta conclusão não é posta em causa pela apreciação constante do acórdão Köbler, já referido (n.os 120 a 124), a propósito da violação de algumas normas do direito comunitário que o Tribunal de Justiça considerou pouco claras ou pouco precisas. É certo que, segundo o Tribunal de Justiça, tendo em conta o espírito de cooperação judiciária que está na base do instituto do reenvio prejudicial, retirar uma questão prejudicial pode ser menos grave do que a omissão total de reenvio, de modo que o erro de direito em causa (que podia muito provavelmente ter sido evitado com a manutenção da questão) pode ser mais desculpável do que não tendo havido reenvio. Contudo, de um ponto de vista estritamente jurídico e de política jurisprudencial, podemos interrogar‑nos sobre a pertinência desta distinção quando, como era o caso nesse processo, o supremo tribunal em questão retirou a sua questão prejudicial devido a uma leitura errada de um acórdão que lhe foi dirigido pelo Tribunal de Justiça depois deste ter recebido a referida questão, quando uma simples leitura atenta deste acórdão (destituído de qualquer ambiguidade) teria permitido evitar esse erro de leitura (e sem dúvida o erro na dedução das consequências a retirar dele para a solução do litígio). Todavia, esta análise do Tribunal de Justiça, que tende a atenuar a importância do critério referente ao incumprimento do dever de reenvio, parece largamente inspirado por considerações específicas do caso concreto, de forma que é lícito pensar que não tem uma vocação de aplicação muito para além dessas circunstâncias.


41 – Como referi no n.° 141 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler, já referido, os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça, em especial no âmbito do processo de reenvio prejudicial, vinculam necessariamente os tribunais nacionais quanto à interpretação das disposições do direito comunitário, de forma que se eles pretenderem afastar‑se da jurisprudência do Tribunal de Justiça não têm outra alternativa que não seja colocar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, submetendo‑lhe novos elementos de reflexão susceptíveis de o conduzir a responder de modo diferente a uma questão já apreciada.


42 – Pode‑se imaginar o caso de um particular que preferisse intentar a sua acção de responsabilidade contra o Estado com base num incumprimento do dever de reenvio prejudicial do que com base numa pretensa violação de uma norma do direito comunitário cuja interpretação deveria ter levado ao referido reenvio, na hipótese em que fosse mais fácil demonstrar a existência de um manifesto incumprimento do dever de reenvio prejudicial do que de uma violação manifesta da norma jurídica de direito material em causa.


43 – V., a este respeito, designadamente, para o sistema jurídico francês, Boré, J., e Boré, L., La cassation en matière civile, Dalloz, 3.a ed., 2003, p. 223 e pp. 262 a 278; para um estudo de direito comparado dos sistemas francês e alemão, Ferrand, F., Cassation française et Révision allemande, PUF, 1993, pp. 42 e 161; para o sistema italiano, Di Federico, G., Manuale di ordinamento giudiziario, CEDAM, 2004, pp. 83 a 85. Para um sistema semelhante, v. Wathelet, M., e Van Raepenbusch, S., «Le contrôle sur pourvoi de la Cour de justice des Communautés européennes, dix ans après la création du Tribunal de première instance», Mélanges en l’honneur de M. Schockweiler, 1999, pp. 605 a 633.


44 – V., designadamente, para o sistema francês, Boré, J., e Boré, L., op. cit., pp. 274 et 275, bem como pp. 279 a 294; para os sistemas francês e alemão, Ferrand, F., op. cit., pp. 135 e 163; e para o sistema italiano, Ascarelli, T., «Le fait et le droit devant la Cour de cassation italienne», Le Fait et le droit, Études de logique juridique, Bruylant, Bruxelles, 1961, pp. 113 e segs., e ainda Mazzarella, F., Analisi del giudizio civile di cassazione, CEDAM, 3.a ed., 2003, p. 86.


45 – V. artigo 8.° da Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica (JO L 180, p. 22), o artigo 10.° da Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional (JO L 303, p. 16), que se inscreve no prolongamento da Directiva 97/80/CE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997, relativa ao ónus da prova nos casos de discriminação baseada no sexo ((JO 1998, L 14, p. 6).


46 – V. os n.os 10 a 12 das minhas conclusões, bem como as notas de pé de página respectivas.


47 – Esta operação de qualificação pode revelar‑se difícil para o juiz nacional, em especial quando se trate de auxílios de origem estatal concedidos para compensar obrigações de serviço público impostas a uma empresa, tendo em conta o alcance que o Tribunal de Justiça conferiu, no acórdão de 24 de Julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg (C‑280/00, Colect., p. I‑7747, n.os 83 a 94), ao critério da vantagem concedida ao beneficiário dessa medida. Recordo contudo que, no acórdão SFEI e o., já referido (n.° 50), o Tribunal de Justiça salientou que «[c]aso tenha dúvidas quanto à qualificação como auxílio de Estado das medidas em causa, o órgão jurisdicional nacional pode solicitar esclarecimentos à Comissão sobre este ponto», precisando que «[n]a sua comunicação de 23 de Novembro de 1995 sobre a cooperação entre os tribunais nacionais e a Comissão no domínio dos auxílios estatais […], a Comissão incentivou expressamente os órgãos jurisdicionais nacionais a contactarem‑na quando tiverem dificuldades na aplicação do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado e esclareceu a natureza das informações que pode fornecer». No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça acrescentou que «[a]lém disso, o órgão jurisdicional nacional pode ou deve, nos termos do artigo 177.°, segundo e terceiro parágrafos, do Tratado, submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação do artigo 92.° do Tratado» (n.° 51).


48 – Para um resumo destas consequências, v. o n.° 125 das minhas primeiras conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, já referido. A este respeito, saliento que a necessidade de o juiz nacional se pronunciar sobre a legalidade da medida em litígio não é posta em causa por uma decisão final da Comissão que a declare compatível com o mercado comum. Com efeito, segundo jurisprudência constante, essa decisão da Comissão não tem como efeito regularizar a posteriori a execução de auxílios não notificados em violação do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 3, CE). V., designadamente, acórdão Saumon, já referido (n.os 16 e 17), bem como acórdãos de 21 de Outubro de 2003, Van Calster e o. (C‑261/01 e C‑262/01, Colect., p. I‑12249, n.os 62 e 63), e de 21 de Julho de 2005, Xunta de Galicia (C‑71/04, Colect., p. I‑0000, n.° 31).


49 – Sublinhado nosso.


50 – N.° 55, sublinhado nosso.


51 – C‑352/98 P, Colect., p. I‑5291 (v. n.os 13 e 39 a 47).


52 – V. acórdão Köbler, já referido (n.° 55).


53 – Ibidem (n.° 56).


54 – V. n.° 78 do acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido, a respeito da possibilidade de subordinar a responsabilidade de um Estado‑Membro à existência de culpa. Não pode deixar de se aproximar o conceito de culpa do de dolo (no sentido de culpa intencional ou deliberada) ou culpa grave (no sentido de culpa não intencional).


55 – V. n.° 57 do acórdão Köbler, já referido, que se inscreve na linha do n.° 66 do acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido.


56 – Idem.


57 – V. as reservas que exprimi no n.° 156 das minhas conclusões no processo em que foi proferido o acórdão Köbler. Embora mantenha essas reservas, não vou ao ponto de propor uma viragem jurisprudencial sobre este ponto.


58 – Para um raciocínio semelhante, v. o n.° 79 do acórdão Brasserie du pêcheur et Factortame, já referido.

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