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Document 62002CJ0429

    Acórdão do Tribunal (Grande Secção) de 13 de Julho de 2004.
    Bacardi France SAS, anteriormente Bacardi-Martini SAS contra Télévision française 1 SA (TF1), Groupe Jean-Claude Darmon SA e Girosport SARL.
    Pedido de decisão prejudicial: Cour de cassation - França.
    Artigo 59.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.º CE) - Directiva 89/552/CEE - Televisão sem fronteiras - Radiodifusão televisiva - Publicidade - Medida nacional que proíbe a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de determinadas manifestações desportivas - Lei "Evin'.
    Processo C-429/02.

    Colectânea de Jurisprudência 2004 I-06613

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:432

    Arrêt de la Cour

    Processo C‑429/02

    Bacardi France SAS

    contra

    Télévision française 1 SA (TF1) e o.

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (França)]

    «Artigo 59.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.º CE) – Directiva 89/552/CEE – Televisão sem fronteiras – Radiodifusão televisiva – Publicidade – Medida nacional que proíbe a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante do aparecimento no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de determinadas manifestações desportivas – Lei ‘Evin’»

    Sumário do acórdão

    1.        Livre prestação de serviços – Actividades de radiodifusão televisiva – Directiva 89/552 – Âmbito de aplicação – Conceito de publicidade televisiva – Regime de publicidade televisiva indirecta resultante do aparecimento no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas que se realizam no território de outros Estados‑Membros – Exclusão

    [Directiva 89/552, artigos 1.°, alínea b), 2.°, n.° 2, 10.° e 11.°]

    2.        Livre prestação de serviços – Restrições – Proibição da publicidade a bebidas alcoólicas quando da difusão televisiva de manifestações desportivas – Justificação por razões de protecção da saúde pública

    [Tratado CE, artigos 56.°, n.° 1, e 59.° (que passaram, após alteração, a artigos 46.°, n.° 1, CE e 49.° CE)]

    1.        O artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva, que prevê a obrigação, por parte dos Estados‑Membros, de assegurar a liberdade de recepção e não colocar entraves à retransmissão, no seu território, de programas de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados‑Membros por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela referida directiva, não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    Essa publicidade televisiva indirecta não pode, com efeito, ser qualificada como «publicidade televisiva» na acepção dos artigos 1.°, alínea b), 10.° e 11.° dessa directiva, na medida em que não constitui uma mensagem televisiva individualizável destinada a promover bens ou serviços.

    (cf. n.os 27, 29, disp. 1)

    2.        O artigo 59.° do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante do aparecimento no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    É certo que esse regime de publicidade televisiva constitui uma restrição à livre prestação de serviços na acepção do artigo 59.° do Tratado. Implica, com efeito, por um lado, uma restrição à livre prestação de serviços de publicidade na medida em que os proprietários de painéis televisivos devem recusar, preventivamente, toda e qualquer publicidade a bebidas alcoólicas sempre que a manifestação desportiva seja susceptível de ser retransmitida no Estado‑Membro em questão. Por outro lado, esse regime impede a prestação de serviços de difusão de programas televisivos, devendo os difusores desse Estado recusar qualquer retransmissão de acontecimentos desportivos no decurso da qual sejam visíveis painéis publicitários que contenham publicidade a bebidas alcoólicas comercializadas no referido Estado e não podendo os organizadores de acontecimentos desportivos que têm lugar no estrangeiro vender os direitos de retransmissão a esses difusores, visto que a difusão de programas televisivos consagrados a tais acontecimentos é susceptível de comportar publicidade televisiva indirecta às referidas bebidas alcoólicas.

    Esse regime de publicidade televisiva prossegue, no entanto, um objectivo integrado na protecção da saúde pública na acepção do artigo 56.°, n.° 1, do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 46.°, n.° 1, CE), uma vez que as medidas que limitam as possibilidades de publicidade a bebidas alcoólicas e procuram, assim, combater o alcoolismo respondem a preocupações de saúde pública.

    Além disso, esse regime é adequado para garantir a concretização desse objectivo e não ultrapassa o que é necessário para o alcançar. Esse regime limita, com efeito, as situações nas quais os painéis publicitários para bebidas alcoólicas podem ser vistos na televisão e é, por isso, susceptível de restringir a difusão dessas mensagens, reduzindo, assim, as ocasiões nas quais os telespectadores poderiam ser incitados a consumir bebidas alcoólicas.

    (cf. n.os 35, 37‑38, 41, disp. 2)




    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
    13 de Julho de 2004(1)

    «Artigo 59.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.º CE) – Directiva 89/552/CEE – Televisão sem fronteiras – Radiodifusão televisiva – Publicidade – Medida nacional que proíbe a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante do aparecimento no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de determinadas manifestações desportivas – Lei ‘Evin’»

    No processo C-429/02,

    que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.º CE, pela Cour de cassation (França), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

    Bacardi France SAS, anteriormente Bacardi-Martini SAS,

    e

    Télévision française 1 SA (TF1), Groupe Jean-Claude Darmon SA,Girosport SARL,

    uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva (JO L 298, p. 23), e do artigo 59.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.º CE),

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),,



    composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann (relator), A. Rosas, C. Gulmann, J.-P. Puissochet e J. N. Cunha Rodrigues, presidentes de secção, R. Schingen, S. von Bahr e R. Silva de Lapuerta, juízes,

    advogado-geral: A. Tizzano,
    secretário: M. Múgica Arzamendi, administradora principal,

    vistas as observações escritas apresentadas:

    em representação da Bacardi France SAS, por C. Niedzielski e J.-M. Cot, avocats,

    em representação da Télévision française 1 SA (TF1), por L. Bousquet e O. Sprung, avocats,

    em representação do Governo francês, por G. de Bergues e R. Loosli-Surrans, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo do Reino Unido, por K. Manji, na qualidade de agente, assistido por K. Beal, barrister,

    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. van Lier, na qualidade de agente,

    ouvidas as alegações da Bacardi France SAS, representada por J.-M. Cot, do Governo francês, representado por G. de Bergues e R. Loosli-Surrans, do Governo do Reino Unido, representado por K. Manji, e da Comissão, representada por H. van Lier e W. Wils, na qualidade de agente, na audiência de 25 de Novembro de 2003,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 11 de Março de 2004,

    profere o presente



    Acórdão



    1
    Por acórdão de 19 de Novembro de 2002, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de Novembro do mesmo ano, a Cour de cassation submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, duas questões prejudiciais sobre a interpretação da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva (JO L 298, p. 23), e do artigo 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE).

    2
    Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe a Bacardi France SAS, anteriormente Bacardi‑Martini SAS (a seguir «Bacardi»), à Télévision française 1 SA (a seguir «TF1»), ao Groupe Jean‑Claude Darmon SA (a seguir «Darmon») e à Girosport SARL (a seguir «Girosport»), relativo a um pedido de intimação destas três últimas sociedades a deixar de exercer pressão sobre clubes estrangeiros no sentido de que estes recusem a publicidade a bebidas alcoólicas produzidas pela Bacardi em painéis publicitários colocados nos locais de acontecimentos desportivos binacionais a decorrer no território de outros Estados‑Membros.


    Quadro jurídico

    Regulamentação comunitária

    3
    A Directiva 89/552 tem por objectivo a abolição das restrições à livre prestação de serviços de emissão de programas de televisão. Para esse efeito, a directiva consagra o princípio da liberdade de recepção e difusão de emissões transfronteiriças e coordena as leis aplicáveis a estas nos Estados‑Membros em matérias como a publicidade televisiva. Segundo o sistema instituído por esta directiva, incumbe ao Estado‑Membro de origem regulamentar e controlar as emissões transfronteiriças no respeito das regras mínimas por ela previstas. Em contrapartida, as matérias coordenadas pela referida directiva já não são, em princípio, da competência dos Estados‑Membros.

    Definições

    4
    O artigo 1.°, alínea b), da Directiva 89/552 define o conceito de «publicidade televisiva» como «qualquer forma de mensagem televisiva a troco de remuneração ou de outra forma de pagamento similar por uma empresa pública ou privada no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou de profissão liberal, com o objectivo de promover o fornecimento, a troco de pagamento, de bens ou serviços, incluindo bens imóveis, direitos e obrigações».

    Normas substantivas

    5
    O artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552 prevê que:

    «Os Estados‑Membros assegurarão a liberdade de recepção e não colocarão entraves à retransmissão nos seus territórios de programas de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados‑Membros por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela presente directiva.»

    6
    O artigo 10.°, n.° 1, da referida directiva precisa que:

    «A publicidade televisiva deve ser facilmente identificável como tal e nitidamente separada do resto do programa por meios ópticos e/ou acústicos.»

    7
    O artigo 11.°, n.° 1, primeiro período, da mesma directiva dispõe que «[a] publicidade televisiva deve ser inserida entre os programas».

    8
    Nos termos do artigo 11.°, n.° 2, da Directiva 89/552:

    «Nos programas compostos por partes autónomas ou nas emissões desportivas e em manifestações ou espectáculos de estrutura semelhante que compreendam intervalos, a publicidade só pode ser inserida entre as partes autónomas ou nos intervalos.»

    Regulamentação nacional

    Normas substantivas

    9
    A Lei n.° 91‑32, de 10 de Janeiro de 1991, relativa ao combate ao tabagismo e ao alcoolismo, dita «lei ‘Evin’» (JORF de 12 Janeiro de 1991, p. 615, a seguir «lei Evin»), alterou, designadamente, os artigos L. 17 a L. 21 do code des débits de boissons (código da revenda de bebidas), que limitam a publicidade a determinadas bebidas alcoólicas, a saber, as que contêm um teor de álcool superior a 1,2°.

    10
    Segundo as referidas disposições, é proibida a publicidade televisiva directa ou indirecta a bebidas alcoólicas, proibição reiterada, de resto, no artigo 8.° do Decreto n.° 92‑280, de 27 de Março de 1992, aprovado em execução do artigo 27.° da lei de 30 de Setembro de 1986 sobre a liberdade de comunicação e que fixa os princípios gerais relativos ao regime aplicável à publicidade e ao patrocínio (JORF de 28 de Março de 1992, p. 4313).

    11
    Em contrapartida, a legislação francesa autoriza outras formas de publicidade. Assim, é permitido, por exemplo, fazer publicidade a bebidas alcoólicas na imprensa escrita, na rádio (excepto a determinadas horas) ou sob a forma de cartazes e anúncios, incluindo em painéis publicitários colocados em instalações desportivas, etc.

    12
    Uma infracção à lei Evin é qualificada como «contra‑ordenação» pelo direito penal francês.

    Normas processuais

    13
    Segundo o artigo 42.°, primeiro parágrafo, da Lei n.° 86‑1067, de 30 de Setembro de 1986, relativa à liberdade de comunicação, dita «lei ‘Léotard’» (JORF de 1 de Outubro de 1986, p. 11755), compete ao Conseil supérieur de l’audiovisuel (a seguir «CSA») fiscalizar a aplicação da lei Evin. Neste contexto, o CSA pode intimar os operadores de serviços de televisão a respeitar as suas obrigações e, caso estes não cumpram as exigências que lhes forem feitas, aplicar‑lhes coimas. Por outro lado, o CSA pode submeter ao procureur de la République qualquer infracção cometida por esses operadores.

    Medidas de aplicação

    14
    Em 1995, as autoridades francesas, a saber, o CSA e o Ministério da Juventude e Desportos, e as cadeias de televisão francesas elaboraram um código de boa conduta, publicado no Bulletin officiel du ministère de la Jeunesse et des Sports, que interpreta as normas da lei Evin no que respeita à sua aplicação às transmissões de acontecimentos desportivos que tenham lugar no estrangeiro (ou seja, transmissões directas ou retransmissões), no decurso das quais é visível publicidade a bebidas alcoólicas, por exemplo, em painéis publicitários ou nas camisolas dos atletas e que são, por conseguinte, susceptíveis de fazer publicidade televisiva indirecta a bebidas alcoólicas na acepção da referida lei.

    15
    Este código de boa conduta, que não é juridicamente vinculativo, indica que, relativamente a acontecimentos binacionais que tenham lugar no estrangeiro, denominados «outros acontecimentos» pelo mesmo código, os operadores franceses e qualquer parte sujeita à lei francesa (a seguir, em conjunto, «operadores franceses»), que não controlam as condições de filmagem, devem utilizar todos os meios disponíveis para prevenir a aparição na televisão de marcas de bebidas alcoólicas. Assim, no momento da aquisição dos direitos de transmissão, o operador francês deve informar os seus parceiros estrangeiros das exigências da legislação francesa e das normas previstas no referido código. Da mesma forma, esse operador deve apurar junto do detentor dos direitos de retransmissão, de acordo com as suas possibilidades materiais e antes da difusão da manifestação desportiva, qual a publicidade que surgirá no lugar onde esta decorrerá. Por último, o referido operador deve utilizar os processos técnicos disponíveis de forma a evitar o destaque, na televisão, dos painéis publicitários a bebidas alcoólicas.

    16
    Em contrapartida, relativamente a acontecimentos multinacionais que têm lugar no estrangeiro, os operadores franceses não podem ser suspeitos de condescendência em relação a publicidade que surge no ecrã quando difundem imagens cujas condições de filmagem não controlam.

    17
    Na versão aplicável no processo principal, o código de boa conduta definia os acontecimentos internacionais como aqueles «cujas imagens são retransmitidas num número elevado de países e que se não pode considerar que essas imagens visem principalmente o público francês». Os acontecimentos binacionais, por seu lado, eram definidos como «outros acontecimentos, para além dos mencionados no caso anterior, que decorram no estrangeiro, quando a retransmissão vise especificamente o público francês.»

    18
    Além da elaboração do código de boa conduta, o CSA fez diligências junto dos operadores franceses com vista a conseguir que estes exijam a supressão de painéis publicitários relativos a bebidas alcoólicas ou renunciem inteiramente à retransmissão do evento em questão. Em pelo menos um caso, o referido organismo chegou a requerer ao procureur de la République que abrisse um inquérito contra um operador francês.


    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    19
    A Bacardi é uma sociedade francesa pertencente ao grupo internacional Bacardi‑Martini, que produz e comercializa por todo o mundo várias bebidas alcoólicas, entre as quais o rum Bacardi, o vermute Martini e o pastis Duval.

    20
    A Darmon e a Girosport são sociedades que negoceiam, por conta da TF1, os direitos de retransmissão televisiva de jogos de futebol.

    21
    Alegando que a Darmon e a Girosport exerceram pressão sobre clubes estrangeiros no sentido de que estes recusem o acesso das marcas da Bacardi aos painéis publicitários colocados em redor dos estádios, esta última requereu a intimação da Darmon, da Girosport e da TF1 a cessar o seu comportamento, devido à incompatibilidade desse comportamento com o artigo 59.° do Tratado.

    22
    Dado que tal pedido foi julgado improcedente tanto em primeira instância como em sede de recurso, a Bacardi recorreu para a Cour de cassation.

    23
    Tendo dúvidas quanto à compatibilidade com o direito comunitário do regime francês que proíbe a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas em França, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros (a seguir «regime de publicidade televisiva em causa no processo principal»), a Cour de cassation decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)
    A Directiva 89/552/CEE de 3 de Outubro de 1989 dita ‘Televisão sem fronteiras’, na versão anterior à Directiva 97/36/CE de 30 de Junho de 1997, opõe‑se a que uma regulamentação interna, como os artigos L. 17 a L. 21 do code des débits de boissons francês, e o artigo 8.° do Decreto n.° 92‑280, de 27 de Março de 1992, proíba, por razões ligadas à protecção da saúde pública, e sob cominação de sanções penais, a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas, quer sejam de origem nacional quer sejam originárias de outros Estados Membros da União e quer se trate de spots publicitários nos termos do artigo 10.° da directiva [publicidade directa] ou de publicidade indirecta resultante da aparição na televisão de painéis que promovam bebidas alcoólicas sem, contudo, constituir publicidade clandestina nos termos do artigo 1.°, alínea c), da directiva?

    2)
    O artigo 49.° do Tratado CE e o princípio da livre circulação das emissões televisivas no interior da União devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que uma regulamentação nacional, como a dos artigos L. 17 a L. 21 do code des débits de boissons francês, e o artigo 8.° do Decreto n.° 92‑280, de 27 de Março de 1992, que proíbe, por razões ligadas à protecção da saúde pública, e sob cominação de sanções penais, a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas, quer sejam de origem nacional quer sejam originárias de outros Estados Membros da União e quer se trate de spots publicitários nos termos do artigo 10.° da directiva [publicidade directa] ou de publicidade indirecta resultante da aparição na televisão de painéis que promovam bebidas alcoólicas sem, contudo, constituir publicidade clandestina nos termos do artigo 1.°, alínea c), da directiva, tenha como efeito que os operadores encarregados da difusão e da distribuição dos programas televisivos:

    a)
    não procedam à difusão de programas televisivos, como a retransmissão de encontros desportivos, quer se realizem em França ou noutros países da União, quando neles exista publicidade proibida nos termos do code des débits de boissons francês?

    b)
    ou procedam à difusão na condição de não aparecer a publicidade proibida nos termos do code des débits de boissons francês, impedindo, assim, a celebração de contratos publicitários relativos a bebidas alcoólicas, quer sejam de origem nacional quer sejam originárias de outros Estados‑Membros da União?»


    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão: a obrigação de assegurar a liberdade de recepção e de retransmissão

    24
    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552 se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    Neste contexto, o referido órgão jurisdicional pretende saber se essa publicidade televisiva indirecta deve ser qualificada como «publicidade televisiva» na acepção dos artigos 1.°, alínea b), 10.° e 11.° dessa directiva.

    25
    Recorde‑se, a este respeito, que o artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552 prevê a obrigação, por parte dos Estados‑Membros, de assegurar a liberdade de recepção e não colocar entraves à retransmissão, no seu território, de programas de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados‑Membros por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela referida directiva. Através dos artigos 10.° a 12.°, esta harmoniza as regras relativas à publicidade televisiva.

    26
    Por força da definição dada no artigo 1.°, alínea b), da Directiva 89/552, a «publicidade televisiva» abrange «qualquer forma de mensagem televisiva a troco de remuneração ou de outra forma de pagamento similar por uma empresa pública ou privada no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou de profissão liberal, com o objectivo de promover o fornecimento, a troco de pagamento, de bens ou serviços, incluindo bens imóveis, direitos e obrigações». Nos termos do artigo 10.°, n.° 1, dessa directiva, «[a] publicidade televisiva deve ser facilmente identificável como tal e nitidamente separada do resto do programa por meios ópticos e/ou acústicos». O artigo 11.°, n.° 1, primeiro período, da referida directiva prevê que «[a] publicidade televisiva deve ser inserida entre os programas» e, no seu n.° 2, o referido artigo 11.° prevê que «[n]os programas compostos por partes autónomas ou nas emissões desportivas e em manifestações ou espectáculos de estrutura semelhante que compreendam intervalos, a publicidade só pode ser inserida entre as partes autónomas ou nos intervalos».

    27
    No processo principal, verifica‑se que, pelos motivos expostos pelo advogado‑geral nos n.os  48 a 52 das conclusões, a publicidade televisiva indirecta a bebidas alcoólicas resultante de painéis visíveis no ecrã durante a retransmissão de manifestações desportivas não constitui uma mensagem televisiva individualizável destinada a promover bens ou serviços. Por motivos óbvios, é impossível mostrar essa publicidade apenas durante os intervalos entre as diferentes partes da emissão televisiva em causa. Com efeito, as imagens de painéis publicitários que aparecem em segundo plano nas imagens transmitidas e, de forma irregular e imprevista, em função das exigências desta retransmissão, não têm carácter individualizável no âmbito desta retransmissão.

    28
    Portanto, tal publicidade televisiva indirecta não pode ser considerada «publicidade televisiva» na acepção da Directiva 89/522 que, por conseguinte, não se lhe aplica.

    29
    Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552 não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    Tal publicidade televisiva indirecta não pode ser qualificada como «publicidade televisiva» na acepção dos artigos 1.°, alínea b), 10.° e 11.° dessa directiva.

    Quanto à segunda questão: o direito à livre prestação de serviços

    30
    Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    31
    O artigo 59.° do Tratado exige a supressão de qualquer restrição à livre prestação de serviços, mesmo que esta restrição se aplique indistintamente aos prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros, quando seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivas as actividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde presta legalmente serviços análogos (v., neste sentido, acórdãos de 25 de Julho de 1991, Säger, C‑76/90, Colect., p. I‑4221, n.° 12, e de 3 de Outubro de 2000, Corsten, C‑58/98, Colect., p. I‑7919, n.° 33). Por outro lado, a liberdade de prestação de serviços beneficia tanto o prestador como o beneficiário dos serviços (v., neste sentido, acórdão de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbone, 286/82 e 26/83, Recueil, p. 377, n.° 16).

    32
    Porém, na falta de medidas de harmonização comunitárias, a livre prestação de serviços pode ser limitada por regulamentações nacionais justificadas pelas razões mencionadas no artigo 56.°, n.° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 46.°, n.° 1, CE), conjugado com o artigo 66.° do Tratado CE (actual artigo 55.° CE), ou por razões imperativas de interesse geral (v., neste sentido, acórdão de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o., C‑243/01, ainda não publicado na Colectânea, n.° 60).

    33
    Neste contexto, compete aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a protecção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado. No entanto, só o podem fazer nos limites traçados pelo Tratado e, em especial, respeitando o princípio da proporcionalidade (v. acórdão de 25 de Julho de 1991, Aragonesa de Publicidad Exterior e Publivía, C‑1/90 e C‑176/90, Colect., p. I‑4151, n.° 16), que exige que as medidas adoptadas sejam adequadas para garantir a realização do objectivo prosseguido e não ultrapassem o necessário para atingir esse objectivo (v., nomeadamente, acórdãos Säger, já referido, n.° 15; de 23 de Novembro de 1999, Arblade e o., C‑369/96 e C‑376/96, Colect., p. I‑8453, n.° 35; Corsten, já referido, n.° 39, e de 22 de Janeiro de 2002, Canal Satélite Digital, C‑390/99, Colect., p. I‑607, n.° 33).

    34
    No processo principal, dado que não existem medidas de harmonização comunitárias na matéria, há que examinar sucessivamente três pontos, a saber, a existência de uma restrição na acepção do artigo 59.° do Tratado, a possibilidade de justificação, à luz do artigo 56.°, n.° 1, do Tratado, conjugado com o artigo 66.° do mesmo, de um regime de publicidade televisiva como o que está em causa no processo principal e o carácter proporcionado desse regime.

    35
    Em primeiro lugar, verifica‑se que um regime de publicidade televisiva como o que está em causa no processo principal constitui uma restrição à livre prestação de serviços na acepção do artigo 59.° do Tratado. Com efeito, tal regime implica, por um lado, uma restrição à livre prestação de serviços de publicidade na medida em que os proprietários de painéis televisivos devem recusar, preventivamente, toda e qualquer publicidade a bebidas alcoólicas sempre que a manifestação desportiva seja susceptível de ser retransmitida em França. Por outro lado, o mesmo regime impede a prestação de serviços de difusão de programas televisivos. Com efeito, os operadores franceses devem recusar toda e qualquer retransmissão de acontecimentos desportivos no decurso da qual sejam visíveis painéis publicitários que contenham publicidade a bebidas alcoólicas comercializadas em França. Além disso, os organizadores de acontecimentos desportivos que têm lugar fora de França não podem vender os direitos de retransmissão aos operadores franceses, visto que a difusão de programas televisivos consagrados a tais acontecimentos é susceptível de comportar publicidade televisiva indirecta às referidas bebidas alcoólicas.

    36
    Neste contexto, como resulta dos n.os  28 e 29 do acórdão de hoje, Comissão/França (C‑262/02, ainda não publicado na Colectânea), a argumentação do Governo francês relativa, por um lado, às possibilidades técnicas que permitem manipular as imagens para ocultar, de forma selectiva, os painéis que exibem publicidade a bebidas alcoólicas e, por outro, à aplicação não discriminatória do referido regime de publicidade televisiva a todas as bebidas alcoólicas, quer tenham sido produzidas em França ou no estrangeiro, não pode ser acolhida. Com efeito, embora seja verdade que existem essas possibilidades técnicas, a utilização dessas técnicas implicaria, contudo, custos suplementares elevados a cargo dos operadores franceses. Por outro lado, no âmbito da livre prestação de serviços, só a origem do serviço em questão pode ser relevante para o caso em apreço.

    37
    Em segundo lugar, verifica‑se que um regime de publicidade televisiva como o que está em causa no processo principal prossegue um objectivo integrado na protecção da saúde pública na acepção do artigo 56.°, n.° 1, do Tratado, como salientou o advogado‑geral no n.° 69 das suas conclusões. Com efeito, as medidas que limitam as possibilidades de publicidade a bebidas alcoólicas e procuram, assim, combater o alcoolismo respondem a preocupações de saúde pública (acórdãos de 10 de Julho de 1980, Comissão/França, 152/78, Recueil, p. 2299, n.° 17; Aragonesa de Publicidade Exterior e Publivía, já referido, n.° 15, e de 8 de Março de 2001, Gourmet International Products, C‑405/98, Colect., p. I‑1795, n.° 27).

    38
    Em terceiro lugar, importa igualmente declarar que um regime de publicidade televisiva como o que está em causa no processo principal é adequado para garantir a concretização do objectivo de protecção da saúde pública por ele prosseguido. Por outro lado, não ultrapassa o que é necessário para atingir esse objectivo. Esse regime limita, com efeito, as situações nas quais os painéis publicitários para bebidas alcoólicas podem ser vistos na televisão e é, por isso, susceptível de restringir a difusão dessas mensagens, reduzindo, assim, as ocasiões nas quais os telespectadores poderiam ser incitados a consumir bebidas alcoólicas.

    39
    Neste aspecto, como resulta dos n.os  33 a 39 do acórdão de hoje, Comissão/França, já referido, os argumentos desenvolvidos pela Comissão e pelo Governo do Reino Unido para demonstrar o carácter desproporcionado do referido regime são improcedentes.

    40
    No que respeita ao único argumento avançado pela Bacardi que não foi examinado no acórdão de hoje, Comissão/França, já referido, ou seja, o argumento de que o regime de publicidade televisiva em causa no processo principal é incoerente, na medida em que não está em causa a publicidade a bebidas alcoólicas visível em segundo plano nos cenários dos filmes, basta responder que essa opção se inclui na livre apreciação dos Estados‑Membros, aos quais compete decidir do nível a que pretendem assegurar a protecção da saúde pública, e o modo como esse nível deve ser alcançado (v. acórdão Aragonesa de Publicidad Exterior e Publivía, já referido, n.° 16).

    41
    Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 59.° do Tratado não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.


    Quanto às despesas

    42
    As despesas efectuadas pelos Governos francês e do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    pronunciando‑se sobre as questões submetidas pela Cour de cassation, por acórdão de 19 de Novembro de 2002, declara:

    1)
    O artigo 2.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva, não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    Tal publicidade televisiva indirecta não pode ser qualificada como «publicidade televisiva» na acepção dos artigos 1.°, alínea b), 10.° e 11.° dessa directiva.

    2)
    O artigo 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) não se opõe a que um Estado‑Membro proíba a publicidade televisiva a bebidas alcoólicas comercializadas nesse Estado, quando esteja em causa a publicidade televisiva indirecta resultante da aparição no ecrã de painéis visíveis durante a retransmissão de manifestações desportivas binacionais que têm lugar no território de outros Estados‑Membros.

    Skouris

    Jann

    Rosas

    Gulmann

    Puissochet

    Cunha Rodrigues

    Schintgen

    von Bahr

    Silva de Lapuerta

    Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 13 de Julho de 2004.

    O secretário

    O presidente

    R. Grass

    V. Skouris


    1
    Língua do processo: francês.

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