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Document 62002CJ0233

    Acórdão do Tribunal (tribunal pleno) de 23 de Março de 2004.
    República Francesa contra Comissão das Comunidades Europeias.
    Orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América - Inexistência de carácter vinculativo.
    Processo C-233/02.

    Colectânea de Jurisprudência 2004 I-02759

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:173

    Arrêt de la Cour

    Processo C-233/02


    República Francesa
    contra
    Comissão das Comunidades Europeias


    «Orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América – Inexistência de carácter vinculativo»

    Conclusões do advogado-geral S. Alber apresentadas em 25 de Setembro de 2003
        
    Acórdão do Tribunal de Justiça (Tribunal Pleno) de 23 de Março de 2004
        

    Sumário do acórdão

    1.
    Actos das instituições – Orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América – Instituição competente para a adopção desse acto – Tomada em consideração da repartição das competências e do equilíbrio institucional estabelecidos pelo Tratado no domínio da política comercial comum – Ausência de efeitos vinculativos das orientações – Irrelevância

    (Artigos 133.° CE e 300.° CE)

    2.
    Acordos internacionais – Determinação do carácter vinculativo – Critério decisivo – Intenção das partes – Orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América – Ausência de efeitos vinculativos – Violação do exercício do poder de iniciativa legislativa pela Comissão – Exclusão

    (Artigo 300.º CE)

    1.
    O facto de um acto como as orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América ser desprovido de efeitos vinculativos não é suficiente para conferir competência à Comissão para adoptar tal acto. Com efeito, a determinação das condições em que pode ocorrer a adopção dum acto desse tipo exige que se tenham devidamente em conta a repartição de competências e o equilíbrio institucional estabelecidos pelo Tratado no domínio da política comercial comum, já que se trata em concreto de um acto que visa reduzir os riscos de tensões ligadas à existência de obstáculos técnicos ao comércio de mercadorias.

    (cf. n.° 40)

    2.
    Para determinar se um acto como as orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América reveste ou não carácter vinculativo, a intenção das partes constitui, em princípio, o critério decisivo. No caso vertente, esta intenção encontra‑se claramente expressa no próprio texto das orientações, já que estas precisam efectivamente no seu n.° 7 que o referido documento tem por objectivo estabelecer as orientações que as autoridades reguladoras do Governo federal dos Estados Unidos e os serviços da Comissão «têm a intenção de aplicar numa base voluntária». Resulta desta precisão que, ao negociar estas orientações, as partes não tiveram de modo algum a intenção de contrair compromissos que juridicamente as vinculassem. Consequentemente, estas orientações não constituem um acordo com efeitos vinculativos e, por conseguinte, não são visadas pelo artigo 300.° CE.
    Dado serem desprovidas de efeitos vinculativos, as referidas orientações não puderam criar obrigações que a Comissão tenha de respeitar quando exerce a função de iniciativa legislativa no quadro do processo legislativo comunitário. Do mesmo modo, o simples facto de um acto como as orientações em causa abrir caminho à possibilidade de iniciar consultas prévias e de recolher informações julgadas necessárias antes de submeter as propostas adequadas não pode ter como efeito prejudicar o exercício do poder de iniciativa pela Comissão.

    (cf. n.os 42, 43, 45, 50, 51)




    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno )
    23 de Março de 2004(1)

    «Orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência acordadas com os Estados Unidos da América – Inexistência de carácter vinculativo»

    No processo C-233/02,

    República Francesa, representada por R. Abraham, G. de Bergues e P. Boussaroque, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

    recorrente,

    contra

    Comissão das Comunidades Europeias, representada por P. J. Kuijper e A. van Solinge, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

    recorrida,

    apoiada porReino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por J. Collins, na qualidade de agente, assistido por M. Hoskins, barrister, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

    interveniente,

    que tem por objecto um pedido de anulação da decisão pela qual a Comissão celebrou com os Estados Unidos da América um acordo sobre orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência,



    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno ),,



    composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans (relator), C. Gulman e J. N. Cunha Rodrigues, presidentes de secção, A. La Pergola, J.-P. Puissochet, R. Schintgen, F. Macken, N. Colneric e S. von Bahr, juízes,

    advogado-geral: S. Alber,
    secretário: R. Grass,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de Setembro de 2003,

    profere o presente



    Acórdão



    1
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 21 de Junho de 2002, a República Francesa pediu, nos termos do artigo 230.° CE, a anulação da decisão pela qual a Comissão das Comunidades Europeias celebrou com os Estados Unidos da América um acordo intitulado «orientações em matéria de cooperação regulamentar e de transparência» (a seguir «decisão impugnada» e «orientações», respectivamente).


    Quadro jurídico e factual

    Tratado

    2
    Na parte III, título IX, do Tratado CE, intitulado «A política comercial comum», o artigo 133.°, n.os 1 a 4, CE dispõe:

    1.       A política comercial comum assenta em princípios uniformes, designadamente no que diz respeito às modificações pautais, à celebração de acordos pautais e comerciais, à uniformização das medidas de liberalização, à política de exportação, bem como às medidas de protecção do comércio, tais como as medidas a tomar em caso de dumping e de subvenções.

    2.       Tendo em vista a execução desta política comercial comum, a Comissão submeterá propostas ao Conselho.

    3.       Quando devam ser negociados acordos com um ou mais Estados ou organizações internacionais, a Comissão apresentará, para o efeito, recomendações ao Conselho, que a autorizará a encetar as negociações necessárias.

    A Comissão, no âmbito das directivas que o Conselho lhe pode dirigir, conduzirá estas negociações, consultando para o efeito um Comité especial designado pelo Conselho para a assistir nessas funções.

    São aplicáveis as disposições pertinentes do artigo 300.°

    4.       No exercício da competência que lhe é atribuída no presente artigo, o Conselho delibera por maioria qualificada.»

    3
    Nos termos do artigo 300.°, n.os 1 a 3, CE:

    «1.     Nos casos em que as disposições do presente Tratado prevêem a celebração de acordos entre a Comunidade e um ou mais Estados ou organizações internacionais, a Comissão apresenta recomendações ao Conselho, que a autoriza a dar início às negociações necessárias. Essas negociações são conduzidas pela Comissão em consulta com comités especiais designados pelo Conselho para assistirem nessa tarefa e no âmbito das directrizes que o Conselho lhe pode endereçar.

    No exercício das competências que lhe são atribuídas no presente número, o Conselho delibera por maioria qualificada, excepto nos casos em que o primeiro parágrafo do n.° 2 dispõe que o Conselho delibera por unanimidade.

    2.       Sem prejuízo das competências reconhecidas à Comissão nesta matéria, a assinatura, que poderá ser acompanhada de uma decisão de aplicação provisória antes da entrada em vigor, bem como a celebração dos acordos, são decididas pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão. O Conselho delibera por unanimidade sempre que o acordo seja relativo a um domínio no qual seja exigida a unanimidade para a adopção de normas internas, bem como no caso dos acordos a que se refere o artigo 310.°

    [...]

    3.       O Conselho celebra os acordos após consulta do Parlamento Europeu, excepto nos casos previstos no n.° 3 do artigo 133.°, inclusivamente quando o acordo seja relativo a um domínio para o qual se exija o procedimento previsto no artigo 251.° ou no artigo 252.° para a adopção de normas internas. [...]»

    Declaração relativa à Parceria Económica Transatlântica entre a União Europeia e os Estados Unidos da América

    4
    Na cimeira de Londres de 18 de Maio de 1998, a União Europeia e os Estados Unidos da América (a seguir «parceiros») adoptaram uma declaração sobre a Parceria Económica Transatlântica.

    5
    No n.° 10 desta declaração, os parceiros afirmam, no essencial, que vão concentrar os seus esforços na eliminação dos obstáculos que têm uma influência significativa sobre o comércio e o investimento transatlânticos, em especial dos obstáculos de natureza regulamentar que limitam as oportunidades de acesso aos mercados de produtos ou de serviços.

    6
    No n.° 17 da referida declaração, os parceiros afirmam a sua intenção de:

    logo que possível, elaborarem um plano que identifique os domínios de acção em comum, quer bilateral quer multilateral, incluindo um calendário para alcançar resultados concretos;

    dar todos os passos necessários para tornar possível a rápida concretização deste plano, incluindo as autorizações necessárias para a abertura de negociações.

    7
    Numa nota de rodapé da declaração, afirma‑se que esta não constitui um mandato da União Europeia para negociações.

    Plano de acção relativo à Parceria Económica Transatlântica.

    8
    Os parceiros adoptaram o plano de acção relativo à Parceria Económica Transatlântica, que foi aprovado pelo Conselho da União Europeia em 9 de Novembro de 1998 (a seguir «plano de acção»). Neste contexto, o Conselho autorizou a Comissão a iniciar negociações para a celebração de acordos bilaterais com os Estados Unidos da América, nomeadamente no domínio dos obstáculos técnicos ao comércio (comunicado de imprensa n.° 12560/98 do Conselho, de 9 de Novembro de 1998).

    9
    Da terceira parte do plano de acção, consagrada à acção bilateral, faz parte o ponto 3.1, dedicado aos obstáculos técnicos ao comércio de mercadorias. Com o título «cooperação regulamentar», o ponto 3.1.1 do referido plano prevê que os parceiros tomarão diversas medidas, entre as quais, nomeadamente:

    a identificação e aplicação de princípios/orientações gerais, definidos em comum, para assegurar uma cooperação efectiva no domínio da regulamentação;

    o exame conjunto de questões escolhidas de comum acordo, nomeadamente o acesso aos procedimentos regulamentares de cada uma das partes no que se refere à transparência e à participação do público ─ incluindo a oportunidade para todas as partes interessadas de poderem dar um contributo positivo a esses procedimentos e de os seus pontos de vista serem devidamente considerados;

    com base neste exame, o recenseamento dos meios de melhorar o acesso recíproco aos procedimentos regulamentares de cada parceiro e a definição em comum de princípios/orientações gerais sobre esses procedimentos, no respeito da independência das autoridades reguladoras de cada um dos parceiros.

    As orientações

    A negociação das orientações

    10
    As discussões sobre as orientações começaram em Julho de 1999 entre os serviços competentes da Comissão e os seus homólogos dos serviços do representante americano para o comércio e do Departamento do Comércio.

    11
    No decurso das discussões, os serviços da Comissão insistiram em que as orientações não criarão qualquer direito ou obrigação no plano internacional entre a Comunidade Europeia e os Estados Unidos da América.

    12
    As orientações foram concluídas em Fevereiro de 2002 por comunicação entre os negociadores dos serviços da Comissão e os seus homólogos americanos. Não foi aposta qualquer assinatura no documento.

    13
    Este texto foi objecto duma nota à Comissão, que tomou conhecimento dela na sua reunião de 9 de Abril de 2002. Não foi publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias.

    A nota de 9 de Abril de 2002 dos serviços da Comissão relativa às orientações

    14
    Em 9 de Abril de 2002, os serviços da Comissão dirigiram uma nota ao comité instituído nos termos do artigo 133.°, n.° 3, CE, que incluía em anexo o texto das orientações na sua versão final de 13 de Fevereiro de 2002.

    15
    Nesta nota, os serviços da Comissão informam, em especial:

    «O plano de acção decidido no quadro da Parceria Económica Transatlântica (TEP) inclui um compromisso bilateral de elaborar orientações para a cooperação regulamentar e a transparência com a administração americana. Negociámos estas orientações desde finais de 1999. No passado, demos informações ao comité em várias ocasiões, as mais recentes em Janeiro de 2001, sobre o avanço desta negociação. Tenho hoje o prazer de anunciar ao comité que chegámos a acordo a nível de peritos com o representante dos Estados Unidos quanto ao texto anexo sobre o comércio.»

    16
    O texto da referida nota sublinhava também, por um lado, que as orientações, como elas próprias indicam, devem ser aplicadas pelos parceiros numa base voluntária, em conformidade com as regras e políticas prosseguidas por cada um deles, e, por outro, que as mesmas não constituem qualquer acordo de direito internacional, sendo antes um resultado a que chegaram os serviços competentes de cada parceiro, a transmitir à próxima cimeira União Europeia – Estados Unidos da América.

    Texto das orientações

    17
    O texto das orientações divide‑se em seis partes: introdução (I), objectivos (II), campo de aplicação (III), medidas no domínio da cooperação em matéria regulamentar (IV), medidas no domínio da transparência (V) e questões processuais das orientações (VI).

    18
    A parte I das orientações recorda o contexto em que as mesmas foram adoptadas, em especial a Parceria Económica Transatlântica e o seu plano de acção.

    19
    A parte II das referidas orientações indica que os seus objectivos são a melhoria da cooperação entre as autoridades de cada um dos parceiros competentes para a regulamentação e a promoção da transparência na elaboração das regulamentações em relação ao público, a fim de minimizar e solucionar as tensões comerciais entre os parceiros e facilitar o comércio das mercadorias. Para este efeito, a cooperação prossegue nomeadamente, nos termos do n.° 4, alínea a) das orientações, os objectivos de melhorar a planificação e o desenvolvimento das propostas de regulamentação, a qualidade e o nível das regulamentações, de reduzir ou mesmo eliminar as divergências entre regulamentações através dum diálogo mais sistemático entre as autoridades reguladoras e, nos termos da alínea b) da mesma disposição, assegurar, pela troca de informações, uma melhor previsibilidade do desenvolvimento das regulamentações. No que respeita à transparência, os objectivos são antes de mais, segundo a alínea d) da mesma disposição, promover a participação do público no procedimento de regulamentação, permitindo‑lhe o acesso aos documentos preparatórios, estudos e dados relevantes e reconhecendo a todas as partes interessadas, nacionais ou estrangeiros, a possibilidade de fornecerem em tempo útil comentários sobre os projectos de regulamentação; em seguida, na alínea f) da mesma disposição, menciona‑se o objectivo de fornecer explicações e informações ao público relativas às diferentes considerações que tenham conduzido à adopção das regulamentações e, finalmente, na alínea g) da mesma disposição, o objectivo de melhorar a percepção pelo público dos fins prosseguidos e dos efeitos dos projectos de regulamentação e a aceitação pelo mesmo das regulamentações adoptadas.

    20
    A parte III das orientações prevê que o seu campo de aplicação abrange a elaboração das regulamentações técnicas referidas no Acordo sobre Obstáculos Técnicos ao Comércio da Organização Mundial do Comércio. Precisa‑se que a actividade regulamentar visada por este documento é a da preparação de regulamentações técnicas destinadas a ser apresentadas como propostas legislativas. O n.° 7 das orientações indica que as autoridades reguladoras visadas por este documento são, por um lado, as do Governo federal americano e, por outro, os serviços da Comissão, e que as referidas autoridades têm a intenção de aplicar as orientações «numa base voluntária tão amplamente quanto possível».

    21
    Na parte IV das orientações, relativa às medidas no domínio da cooperação em matéria de regulamentação, constam, nos n.os 10 e 12, disposições relativas à troca de informações e à consulta recíproca, nomeadamente no que respeita às regulamentações projectadas ou cuja elaboração está em curso. As orientações contêm, no n.° 11, disposições relativas à recolha e análise de dados respeitantes a problemas susceptíveis de justificar a intervenção regulamentar e à determinação das prioridades no tratamento dos mesmos; no n.° 13, disposições relativas à coordenação dos programas de investigação e de desenvolvimento pertinentes para efeitos de regulamentação; no n.° 14, disposições relativas à comparação e aproximação dos métodos e abordagens da regulamentação; no n.° 15, disposições relativas à análise das possibilidades de reduzir as divergências inúteis entre as regulamentações técnicas, seja pela procura de soluções harmonizadas ou compatíveis seja pelo reconhecimento mútuo, consoante os casos, e, no n.° 16, disposições relativas à análise e aplicação das regulamentações.

    22
    Quanto às medidas relativas à transparência, a parte V das orientações prevê normas detalhadas para a informação e a consulta prévia do público pelas autoridades competentes durante o processo de planificação e de elaboração das regulamentações técnicas. Precisa‑se nomeadamente que as autoridades reguladoras devem disponibilizar informações sobre as actividades em curso e futuras respeitantes à elaboração das regulamentações, que devem consultar o público, dar‑lhe a possibilidade de se pronunciar sobre os respectivos projectos em tempo útil, fornecer‑lhe a propósito as informações e explicações pertinentes, tomar em conta os seus comentários e dar explicações quanto ao modo como os referidos comentários foram tratados.

    23
    Finalmente, a parte VI das orientações, consagrada aos aspectos de procedimento, prevê formas de acompanhamento no que respeita à aplicação e desenvolvimento das orientações. Em especial, o n.° 18 destas indica que a referida aplicação e o progresso realizado relativamente a projectos de regulamentação identificados serão objecto de análise continuada pelo grupo de trabalho sobre os obstáculos técnicos, constituído no âmbito da Parceria Económica Transatlântica. Segundo o n.° 19 das mesmas orientações, as duas partes trabalharão concertadamente para identificar os domínios de cooperação em que podem realizar‑se progressos técnicos e novos domínios de cooperação entre autoridades reguladoras. O n.° 20 das orientações prevê que ambas as partes prosseguirão os esforços para identificar os meios de melhorar a transparência nos respectivos processos de regulamentação, examinarão as formas de melhorar o acesso do público aos seus procedimentos de regulamentação e continuarão a consultar o público. Segundo o n.° 21 das mesmas orientações, os órgãos responsáveis pelos controlos de conformidade e os que têm por missão o desenvolvimento da normalização serão encorajados a seguir as orientações relativas à transparência quando interpretam uma regulamentação técnica. O n.° 22 das mesmas orientações precisa que as duas partes farão esforços para identificar propostas de regulamentação específicas para a aplicação inicial destas orientações.


    Quanto à admissibilidade do recurso

    24
    A Comissão suscita duas questões prévias de inadmissibilidade. Por um lado, sustenta que, como instituição e colectivo, nunca deu o seu consentimento para ficar vinculada pelas orientações, que, aliás, apenas constituem um concerto administrativo acordado ao nível dos serviços. Não existe, por conseguinte, qualquer acto da Comissão susceptível de ser objecto de recurso de anulação.

    25
    Por outro lado, mesmo supondo que se possa considerar que as orientações vinculam a Comissão, esta alega que as referidas orientações não constituem um acto impugnável por não poderem ser qualificadas como acto que implica ou produz efeitos jurídicos.

    26
    A este propósito, o Tribunal de Justiça entende que, nas circunstâncias do caso concreto, não há que decidir quanto às questões prévias de inadmissibilidade suscitadas pela Comissão, uma vez que, de qualquer modo, o pedido da República Francesa deve ser julgado improcedente na apreciação do mérito.


    Quanto ao mérito

    27
    O Governo francês invoca dois fundamentos em apoio do recurso, o primeiro assente na incompetência da Comissão para adoptar o acto impugnado e o segundo na violação do monopólio da iniciativa legislativa que o Tratado CE confere à Comissão.

    Quanto ao primeiro fundamento

    Argumentos das partes

    28
    No seu primeiro fundamento, o Governo francês sustenta que a Comissão não tinha competência para adoptar o acto impugnado, na medida em que as orientações constituem um acordo internacional com efeitos vinculativos cuja celebração compete ao Conselho, como resulta da repartição de competências estabelecida pelo artigo 300.° CE (acórdão de 9 de Agosto de 1994, França/Comissão, C‑327/91, Colect. p. I‑3641).

    29
    Segundo este governo, a despeito de certas precauções de linguagem expressas nas orientações, estas são de natureza completa e operacional, apresentando com grande precisão os objectivos prosseguidos, o âmbito de acção e as medidas a tomar para atingir os objectivos fixados. Daí resulta que constituem um instrumento jurídico suficientemente elaborado para traduzir um compromisso assumido por sujeitos de direito internacional e que tem carácter vinculativo para estes últimos. Com efeito, o Tribunal de Justiça já decidiu, a este respeito, que tem essa natureza um acordo que contém uma «norma», ou seja, uma regra de conduta que respeita a um domínio determinado fixado por meio de fórmulas precisas, que vincula os participantes (Parecer 1/75, de 11 de Novembro de 1975, Colect., p. 457, p. 459).

    30
    No feixe de indícios que conduzem ou não à qualificação de acordo internacional, são as considerações relativas ao conteúdo do acordo que devem prevalecer, embora não seja determinante para essa qualificação, por exemplo, o facto de a Comissão ter constantemente indicado aos seus parceiros que as orientações não constituíam um acordo internacional, ou ainda o facto de estes últimos estarem eles próprios convencidos de que assim é.

    31
    Segundo o Governo francês, as orientações implicam, assim, no mínimo, um compromisso de cooperação que impende sobre as partes, como comprovam o facto de, nos termos do n.° 18 das mesmas orientações, a sua aplicação e os progressos alcançados em certos projectos de regulamentação serem supervisionados de modo contínuo por um grupo de trabalho conjunto ou ainda a circunstância de as partes afirmarem no n.° 22 das mesmas orientações que farão esforços para identificar propostas de regulamentação específicas para aplicação inicial das orientações.

    32
    A Comissão considera, pelo contrário, que as orientações não constituem um acordo juridicamente vinculativo, como confirma a análise da intenção das partes, único critério decisivo em direito internacional para determinar a existência desse eventual efeito vinculativo.

    33
    No caso vertente, a intenção de não se obrigar juridicamente resulta antes de mais do texto das orientações. A este respeito, são determinantes o facto de o n.° 7 das orientações precisar que estas serão aplicadas numa base voluntária ou ainda a circunstância de os comportamentos que as partes entendem assim livremente adoptar serem descritos com recurso aos termos ingleses «should» e «will», em vez de «shall».

    34
    Esta intenção deduz‑se em seguida de certos elementos da estrutura das orientações, como a inexistência nelas de cláusulas finais relativas à assinatura, à entrada em vigor, às possibilidades de alterações, à rescisão ou ainda à solução dos diferendos.

    35
    A referida intenção resulta, por fim, da análise do contexto em que as orientações foram adoptadas, sustentando a Comissão a este propósito que nem a Parceria Económica Transatlântica nem o respectivo plano de acção constituem um quadro que permita a celebração de tratados ou a adopção de outros instrumentos juridicamente vinculativos, quando o percurso histórico das discussões confirma, por sua vez, que as duas partes não entendiam de forma alguma criar «direitos e obrigações». Foi nomeadamente por essa razão que as orientações nunca foram objecto de notificação ao Congresso dos Estados Unidos, que seria obrigatória se se tratasse de um acordo internacional vinculativo.

    36
    Segundo a Comissão, resulta, aliás, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que à Comissão apenas é negada a competência para celebrar acordos internacionais com efeitos vinculativos (acórdão França/Comissão, já referido).

    37
    A Comissão deduz daí que, na medida em que as orientações constituem um simples arranjo prático de cooperação desprovido de efeitos juridicamente vinculativos, tinha plena competência para negociar esse documento com as autoridades americanas.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    38
    Deve observar‑se a título liminar que, com o primeiro fundamento, o Governo francês se limitou a alegar que as orientações deviam ter sido acordadas pelo Conselho e não pela Comissão, por força do disposto no artigo 300.° CE, uma vez que, no seu entender, constituem um acordo com efeitos vinculativos.

    39
    Pelo contrário, o Governo francês não sustentou de forma nenhuma que um acto com as características das orientações se deve incluir na competência exclusiva do Conselho, mesmo que seja desprovido de efeitos vinculativos. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não tem de ampliar o objecto do recurso que lhe foi submetido.

    40
    Todavia, convém precisar que o presente acórdão não pode ser interpretado no sentido de que acolhe a tese defendida pela Comissão, segundo a qual o facto de um acto como as orientações ser desprovido de efeitos vinculativos é suficiente para lhe conferir competência para adoptar tal acto. Com efeito, a determinação das condições em que pode ocorrer a adopção dum acto desse tipo exige que se tenham devidamente em conta a repartição de competências e o equilíbrio institucional estabelecidos pelo Tratado no domínio da política comercial comum, já que se trata em concreto de um acto que visa reduzir os riscos de tensões ligadas à existência de obstáculos técnicos ao comércio de mercadorias.

    41
    Neste contexto, deve, aliás, observar‑se nomeadamente que tanto a Parceria Económica Transatlântica como o plano de acção foram objecto de aprovação pelo Conselho, ao passo que resulta da nota de 9 de Abril de 2002 dirigida pela Comissão ao comité instituído nos termos do artigo 133.°, n.° 3, CE que o referido comité foi sendo regularmente informado pelos serviços da Comissão da evolução das negociações relativas à elaboração das orientações.

    42
    Com ressalva das precisões que precedem, deve afirmar‑se que, como a Comissão sustentou com razão, a intenção das partes constitui, em princípio, o critério decisivo para determinar se as orientações revestem ou não carácter vinculativo.

    43
    No caso vertente, esta intenção encontra‑se claramente expressa, como observou o advogado‑geral nos n.os 56 e 57 das suas conclusões, no próprio texto das orientações, já que estas precisam efectivamente no seu n.° 7 que o referido documento tem por objectivo estabelecer as orientações que as autoridades reguladoras do Governo federal dos Estados Unidos e os serviços da Comissão «têm a intenção de aplicar numa base voluntária». Nestas condições, e sem ser sequer necessário questionar o particular significado que eventualmente poderia ter o uso dos termos «should» ou «will» em vez do termo «shall» num acordo internacional celebrado pela Comunidade, basta reconhecer que resulta da precisão acima referida que, ao negociar as orientações, as partes não tiveram de modo algum a intenção de contrair compromissos que juridicamente as vinculassem.

    44
    Tal como sublinhou a Comissão, sem ser contestada pelo Governo francês sobre esta questão, a evolução das negociações confirma, além disso, que a intenção das partes de não assumir compromissos vinculativos foi previamente reiterada expressamente em numerosas ocasiões durante a fase das negociações das orientações.

    45
    Resulta do exposto que as orientações não constituem um acordo com efeitos vinculativos e, por conseguinte, não são visadas pelo artigo 300.° CE.

    46
    Conclui‑se das considerações anteriores que o primeiro fundamento não é procedente.

    Quanto ao segundo fundamento

    47
    Com o segundo fundamento, o Governo francês sustenta que as orientações são contrárias ao Tratado na medida em que restringem o livre exercício da competência exclusiva para apresentação de propostas de que goza a Comissão no âmbito do processo legislativo comunitário e ofendem deste modo todo o processo legislativo.

    48
    Por um lado, defende que as orientações devem obrigatoriamente ser tidas em conta pela Comissão na fase do processo legislativo que releva da sua competência e, por isso, disciplinam a função de apresentar propostas atribuídas à Comissão.

    49
    Por outro lado, afirma que esta disciplina do poder de apresentar propostas da Comissão tem consequências sobre todo o processo normativo comunitário, visto que a natureza das propostas formuladas pela Comissão condiciona a margem de manobra do Conselho, que só pode nomeadamente afastar‑se das referidas propostas por unanimidade.

    50
    A este respeito, deve recordar‑se, em primeiro lugar, que já se concluiu na apreciação do primeiro fundamento que as orientações são desprovidas de efeitos vinculativos. Daí resulta nomeadamente que, contrariamente ao que sustenta o Governo francês, as orientações não puderam criar obrigações que a Comissão tenha de respeitar quando exerce a função de iniciativa legislativa.

    51
    Em segundo lugar, como alegaram com razão a Comissão e o Governo do Reino Unido, o poder de iniciativa em matéria legislativa inclui possibilidades de iniciar consultas prévias e de recolher informações julgadas necessárias antes de submeter as propostas apropriadas. Por isso, não pode sustentar‑se nomeadamente que o simples facto de um acto como as orientações abrir caminho para essas possibilidades tem como efeito prejudicar o exercício do poder de iniciativa pela Comissão.

    52
    Resulta do exposto que o segundo fundamento não é procedente.

    53
    Não sendo, assim, procedente nenhum dos fundamentos do recurso, deve o mesmo ser julgado improcedente.


    Quanto às despesas

    54
    Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a Comissão requerido a condenação da República Francesa e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno)

    decide:

    1) O recurso é julgado improcedente.

    2) A República Francesa é condenada nas despesas.

    Skouris

    Jann

    Timmermans

    Gulmann

    Cunha Rodrigues

    La Pergola

    Puissochet

    Schintgen

    Macken

    Colneric

    von Bahr

    Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de Março de 2004.

    O secretário

    O presidente

    R. Grass

    V. Skouris


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    Língua do processo: francês.

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