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Document 62002CC0345

Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 11 de Março de 2004.
Pearle BV, Hans Prijs Optiek Franchise BV e Rinck Opticiëns BV contra Hoofdbedrijfschap Ambachten.
Pedido de decisão prejudicial: Hoge Raad der Nederlanden - Países Baixos.
Auxílios de Estado - Conceito de auxílio - Campanha publicitária colectiva a favor de um sector económico - Financiamento realizado através de contribuição especial a cargo das empresas desse sector - Intervenção de um organismo de direito público.
Processo C-345/02.

Colectânea de Jurisprudência 2004 I-07139

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:145

Conclusions

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER
apresentadas em 11 de Março de 2004(1)



Processo C-345/02



Pearle BV e o.




[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Auxílios de Estado – Conceito de auxílio – Campanhas publicitárias colectivas a favor de um sector económico – Financiamento através de uma contribuição especial das empresas do sector – Financiamento decidido por um organismo de direito público»






Introdução

1.        A questão prejudicial submetida pelo Hoge Raad (Tribunal Supremo) dos Países Baixos coloca problemas que dizem respeito a muitos dos elementos que configuram o regime comunitário dos auxílios de Estado, entre os quais o conceito de auxílio, a relação entre a vantagem concedida e os meios para a financiar, o alcance do dever de notificação, o papel desempenhado pela regra de minimis e as consequências, na ordem interna, da falta de notificação.

2.        O paradoxo é que, à primeira vista, não se trata de um dos pressupostos que o legislador deve ter tido em mente quando dotou a Comunidade de um instrumento para se proteger do intervencionismo desproporcionado de um Estado, susceptível de falsear a concorrência intracomunitária: o processo principal tem como objecto obter a declaração da invalidade das medidas que permitiram realizar uma campanha publicitária colectiva de promoção dos serviços das empresas de produtos ópticos, organizada por uma associação profissional, e o reembolso das contribuições pagas pelos empresários membros dessa associação para o seu financiamento.

As recorrentes no processo principal não são empresas concorrentes prejudicadas pelo regime de auxílios, mas as suas beneficiárias teóricas. Utilizam os procedimentos que garantem o efeito útil do direito comunitário para impugnar judicialmente uma medida que consideram desfavorável aos seus interesses económicos.

Direito aplicável

Legislação comunitária

3.        O artigo 92.°, n.° 1, do Tratado CE (actual artigo 87.°, n.° 1, CE) dispõe:

«Salvo disposição em contrário do presente Tratado, são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.»

4.        O artigo 93.° do Tratado CE (actual artigo 88.° CE) precisa que:

«1.     A Comissão procederá, em cooperação com os Estados‑Membros, ao exame permanente dos regimes de auxílios existentes nesses Estados. A Comissão proporá também aos Estados‑Membros as medidas adequadas, que sejam exigidas pelo desenvolvimento progressivo ou pelo funcionamento do mercado comum.

2.       Se a Comissão, depois de ter notificado os interessados para apresentarem as suas observações, verificar que um auxílio concedido por um Estado ou proveniente de recursos estatais não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 92.°, ou que esse auxílio está a ser aplicado de forma abusiva, decidirá que o Estado em causa deve suprimir ou modificar esse auxílio no prazo que ela fixar [...].

3.       Para que possa apresentar as suas observações, deve a Comissão ser informada atempadamente dos projectos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios. Se a Comissão considerar que determinado projecto de auxílio não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 92.º, deve sem demora dar início ao procedimento previsto no número anterior. O Estado‑Membro em causa não pode pôr em execução as medidas projectadas antes de tal procedimento haver sido objecto de uma decisão final.»

5.        De acordo com o primeiro parágrafo da Comunicação da Comissão, de 6 de Março de 1996, relativa aos auxílios de minimis  (2) ,

«[...] Se é um facto que qualquer intervenção financeira do Estado a favor de uma empresa falseia ou ameaça falsear, em maior ou menor grau, a concorrência entre essa empresa e os seus concorrentes que não beneficiaram de tal auxílio, nem todos os auxílios têm contudo um impacto sensível no comércio e na concorrência entre Estados‑Membros. É o que acontece em especial com os auxílios de montante muito reduzido [...]»

6.        Nos termos do segundo parágrafo da comunicação, o n.º 1 do artigo 92.° do Tratado CE pode ser considerado inaplicável aos auxílios de um montante máximo de 100 000 ecus (actualmente, 100 000 euros), concedidos por um período de três anos, com início no momento da concessão do primeiro auxílio de minimis. Este limiar abrange todas as categorias de auxílios, independentemente das suas formas e objectivos, com excepção dos auxílios à exportação, que não podem beneficiar desta medida.

O direito neerlandês

7.        A Wet op de bedrijfsorganisatie (lei neerlandesa sobre a organização da vida económica, a seguir «WBO»), de 27 de Janeiro de 1950, regula as competências, a composição, os métodos de trabalho, os aspectos financeiros e o regime de fiscalização das organizações profissionais às quais é atribuída uma responsabilidade própria no ordenamento e no desenvolvimento do seu sector de actividade.

8.        Nos termos do artigo 71.° da WBO, cabe às referidas organizações profissionais, como organismos públicos, zelar não só pelo interesse comum das empresas membros mas também pelo interesse geral.

9.        Por força do artigo 73.° da WBO, os corpos dirigentes das organizações profissionais são compostos, paritariamente, por delegados de organizações representativas dos empresários e dos trabalhadores.

10.      O legislador conferiu às organizações profissionais os poderes necessários ao exercício das suas competências. Assim, segundo o artigo 93.° da WBO, os corpos dirigentes de uma organização profissional podem adoptar os regulamentos que considerarem necessários para o exercício das suas competências, tanto no interesse das empresas do sector económico correspondente como no que se refere às condições de trabalho dos assalariados. Esses regulamentos são aprovados pelo Sociaal‑Economische Raad (Conselho Económico e Social), desde que não restrinjam a concorrência (n.° 5 do artigo 93.° da WBO).

11.      O artigo 126.° da WBO permite às organizações adoptar, para fazer face às suas despesas, regulamentos que imponham contribuições aos seus membros. As contribuições gerais financiam o funcionamento normal da organização, ao passo que as «contribuições obrigatórias especiais» visam objectivos específicos. Segundo o artigo 127.°, estas contribuições podem ser cobradas coercivamente.

12.      A Wet houdende administratieve rechtsprak bedrifsorganisatie (lei neerlandesa relativa ao contencioso administrativo das organizações profissionais), de 16 de Setembro de 1954, na sua versão alterada, estabelece o regime dos recursos de contencioso administrativo em matéria das organizações profissionais.

O processo principal

13.      A Pearle BV, a Hans Prijs Optiek franchise BV e a Rinck Opticiens BV (a seguir «Pearle e o.» ou «Pearle») são sociedades estabelecidas nos Países Baixos, que exploram empresas de produtos ópticos. Nessa qualidade, por força da WBO  (3) , estão inscritas na Hoofdbedrijfschap Ambachten (associação do artesanato, a seguir «HBA»), que é uma organização profissional de direito público.

14.      A pedido de uma associação privada de empresas de produtos ópticos, a Nederlandse Unie van Opticiens (a seguir «NUVO»), a que a Pearle e o. pertenciam, a HBA impôs aos seus membros, pela primeira vez, desde 1988, uma «contribuição obrigatória especial»  (4) destinada a financiar uma campanha publicitária colectiva a favor das empresas do sector. A referida contribuição destinava‑se também a financiar a criação da Commissie Optiekbedrijf (Comissão das Empresas de Produtos Ópticos), comissão consultiva dependente da direcção da HBA.

15.      A quantia exigida à Pearle e o. elevava‑se a 850 florins neerlandeses por cada centro. Os regulamentos que instituíram a contribuição controvertida, renovados anualmente até 1998, nunca foram impugnados pelas empresas membros.

16.      No entanto, a Pearle e o. entenderam que as campanhas publicitárias colectivas organizadas pela HBA beneficiavam sobretudo aos seus concorrentes, tendo elas de suportar, através do seu próprio orçamento para publicidade, um encargo desnecessário.

17.      Em 29 de Março de 1995, propuseram no Tribunal Civil da Haia uma acção contra a HBA, tendo como objecto a anulação dos regulamentos que instituíram as contribuições em causa e o consequente reembolso das quantias pagas.

18.      Segundo as demandantes no processo principal, os serviços prestados pelas campanhas publicitárias constituíam auxílios de Estado, na acepção do n.° 1 do artigo 92.° do Tratado CE, pelo que os regulamentos que impuseram o seu financiamento deviam ter sido comunicados à Comissão por força do n.° 3 do artigo 93.° Na falta dessa comunicação, as medidas de auxílio careciam de base jurídica.

19.      O tribunal de primeira instância negou provimento aos argumentos das demandantes. Esta decisão foi confirmada em instância de recurso, pelo que aquelas recorreram para o Hoge Raad der Nederlanden.

As questões prejudiciais submetidas

20.      Nestas circunstâncias, em 27 de Setembro de 2002, o Hoge Raad decidiu suspender a instância e solicitar ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre as seguintes questões:

«1)
Deve um regime que impõe contribuições destinadas a financiar campanhas publicitárias colectivas ser considerado (parte de) um auxílio, na acepção do artigo 92.°, n.° 1, CE, ser comunicada à Comissão, nos termos do artigo 93.°, n.° 3, CE, a intenção de o aplicar? Isto aplica‑se apenas aos benefícios que consistam na organização e na oferta de campanhas publicitárias colectivas ou também às modalidades do respectivo financiamento, como um regulamento que prevê uma contribuição e/ou as decisões de fixação de uma contribuição baseadas nesse regulamento? É relevante o facto de as campanhas publicitárias colectivas serem oferecidas (a empresas) no mesmo sector profissional a que pertencem os sujeitos passivos da referida contribuição? Em caso de resposta afirmativa, que relevância tem? Tem alguma importância saber se as despesas em que incorre o organismo público são integralmente cobertas pelas contribuições especiais a cargo das empresas que beneficiam dos serviços, por forma a que o benefício não tenha um custo real para o Estado? É importante que a utilidade das campanhas publicitárias colectivas se reparta de forma mais ou menos equitativa nesse sector profissional e que cada um dos estabelecimentos que integram esse ramo de actividade acabe por retirar sensivelmente a mesma utilidade ou proveito dessas campanhas?

2)
O dever de comunicação previsto no artigo 93.°, n.° 3, é aplicável a todo e qualquer auxílio ou apenas a um auxílio que corresponda à descrição do artigo 92.°, n.° 1? Podem os Estados‑Membros, a fim de evitar o seu dever de comunicação, apreciar livremente se um auxílio corresponde à descrição do artigo 92.°, n.° 1? Em caso de resposta afirmativa, até onde vai essa sua liberdade de apreciação? Em que medida é que essa liberdade de apreciação pode pôr em causa o dever de comunicação previsto no artigo 93.°, n.° 3? Ou será que o dever de comunicação só não se aplica caso não subsista qualquer dúvida razoável de que não se trata de um auxílio?

3)
Se o órgão jurisdicional nacional concluir que existe um auxílio na acepção do artigo 92.°, n.° 1, deve ter em conta a regra ‘de minimis’, tal como formulado pela Comissão na comunicação publicada no JO 1992, C 213 (e posteriormente no JO 1996, C 68), ao apreciar se a medida deve ser qualificada de auxílio sujeito ao dever de comunicação à Comissão nos termos do artigo 93.°, n.° 3? Em caso de resposta afirmativa, deve a regra ‘de minimis’ aplicar‑se igualmente com efeitos retroactivos aos auxílios anteriores à publicação dessa regra, e de que forma deve a regra ‘de minimis’ aplicar‑se a auxílios como as campanhas publicitárias colectivas anuais que beneficiam todo um sector?

4)
Atendendo ao disposto no acórdão de 11 de Julho de 1996, SFEI/La Poste (C‑39/94, Colect., p. I‑3547), a propósito do efeito útil do artigo 93.°, n.° 3, deve concluir‑se que o órgão jurisdicional nacional deve anular quer os regulamentos quer as decisões relativas a contribuições adoptadas com base nesses regulamentos e condenar o organismo público no reembolso das contribuições, ainda que a isso se oponha o princípio da irrecorribilidade das decisões que fixam as contribuições, desenvolvido na jurisprudência neerlandesa? É relevante que o reembolso das contribuições não suprima de facto o benefício que o sector profissional e cada uma das empresas do sector retiraram das campanhas publicitárias colectivas? Permite o direito comunitário que as contribuições especiais não sejam total ou parcialmente reembolsadas caso o órgão jurisdicional nacional entenda que o sector profissional ou cada uma das empresas retiraram uma vantagem injustificada desse reembolso, pelo facto de o benefício conseguido na sequência das campanhas publicitárias não poder ser restituído in natura?

5)
Se um auxílio não for comunicado nos termos do artigo 93.°, n.° 3, pode um organismo público, para fugir a esse dever de comunicação, invocar o anteriormente referido princípio da irrecorribilidade da decisão que fixa a contribuição, caso o destinatário da decisão não soubesse, no momento em que a decisão foi adoptada e durante todo o período em que a mesma era susceptível de impugnação administrativa, que o auxílio de que a contribuição fazia parte não fora comunicado? Podem os cidadãos partir do princípio de que as autoridades cumpriram o seu dever de comunicação previsto no artigo 93.°, n.° 3?»

Tramitação no Tribunal de Justiça

21.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 30 de Setembro de 2002.

22.      Intervieram na fase escrita, além das partes no processo principal, o Governo neerlandês e a Comissão das Comunidades Europeias.

23.      Em 29 de Janeiro de 2004, realizou‑se uma audiência em que participaram os representantes do Governo dos Países Baixos e da Comissão.

Análise jurídica

24.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional nacional e o Tribunal de Justiça têm de se debruçar sobre questões que dizem respeito a elementos essenciais do regime comunitário dos auxílios de Estado. Dada a complexidade das apreciações que há que realizar, parece preferível – como fez a Comissão – começar pelas duas últimas questões, que giram em torno da tese do carácter inatacável dos actos da Administração não impugnados dentro do prazo, pois, se o órgão jurisdicional nacional considerasse que as recorrentes no processo principal poderiam ter exercido as vias de recurso disponíveis na ordem jurídica interna para proteger eficazmente os seus direitos, em condições equivalentes às das pretensões que assentam nesse ordenamento, não haveria que resolver os restantes problemas suscitados.

Quanto à quarta e quinta questões prejudiciais: as consequências da falta de notificação

25.      Com estas duas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende conhecer os efeitos do incumprimento do dever de notificação de um auxílio com as características do referido nos autos. O Hoge Raad interessa‑se, em especial, pela incidência que a regra nacional sobre a validade formal dos actos não recorridos dentro do prazo poderá ter sobre a possibilidade de se anular os regulamentos controvertidos ou de se exigir o reembolso das contribuições pagas ao abrigo dos mesmos.

26.      Contudo, a título preliminar, pergunta se esse incumprimento acarreta a nulidade não só do acto que concede o auxílio mas também daquele que regula o seu financiamento. A este respeito, remete para o acórdão de 11 de Julho de 1996, SFEI e o.  (5) .

27.      Saliento que, nesse acórdão  (6) , se adverte que, em circunstâncias excepcionais, mesmo a não obrigação de restituir o auxílio pode ser inadequada. Por conseguinte, as consequências que o órgão jurisdicional nacional deve retirar do facto de um projecto de auxílio não ter sido notificado não são automáticas, dependendo da necessidade de se preservar o efeito útil do direito comunitário.

28.      Ora, o objectivo primordial do controlo atribuído à Comissão sobre os projectos de auxílio é proteger a livre concorrência no interior da Comunidade. A proibição enunciada no último período do n.° 3 do artigo 93.° visa prosseguir este mesmo objectivo, associando a instituição comunitária à apreciação de situações económicas complexas.

29.      Como o Tribunal de Justiça indicou, com maior precisão, o último período do n.° 3 do artigo 93.° do Tratado CE constitui a salvaguarda do mecanismo de controlo instituído por esta disposição, essencial para garantir o correcto funcionamento do mercado comum  (7) .

30.      Daí que as medidas que se podem adoptar, de acordo com as ordens jurídicas internas, face ao desrespeito da referida proibição por um determinado regime de auxílios, passam por se repor o status quo ante à intervenção estatal ilícita. Impõe‑se, pois, a exigência da restituição das vantagens recebidas e, se for caso disso, que o referido regime seja declarado nulo, a fim de eliminar do ordenamento jurídico a actuação ilegal. No entanto, as medidas tomadas para preservar o efeito útil do n.° 3, último período, do artigo 93.° não devem acentuar a desvantagem dos concorrentes, no comércio intracomunitário, em relação aos beneficiários do auxílio. Contudo, esse seria o resultado se se permitisse o reembolso das contribuições sem simultaneamente se reclamar a restituição do auxílio recebido, pois, nesse caso, aumentar‑se‑ia o benefício obtido com a supressão dos encargos financeiros, falseando ainda mais a concorrência, em sentido oposto ao pretendido no Tratado.

31.      Por conseguinte, em circunstâncias como as dos autos, o órgão jurisdicional nacional só não deve acolher o pedido de reembolso das contribuições para o financiamento de uma campanha publicitária se o não puder acompanhar com a restituição simultânea do benefício obtido, pois, de outro modo, frustrar‑se‑ia o objectivo último da legislação europeia.

32.      Apesar dos argumentos apresentados pela Comissão no Tribunal de Justiça, penso que a jurisprudência não é contrária à posição que defendo.

33.     É certo que, segundo o acórdão de 21 de Novembro de 1991, Fédération nationale du commerce extérieur des produits alimentaires e Syndicat national des négociants et transformateurs de saumon (a seguir «FNCE»)  (8) , a validade dos actos de execução de medidas de auxílio é afectada pela inobservância, pelas autoridades nacionais, do n.° 3, último período, do artigo 93.° do Tratado CE. Os órgãos jurisdicionais nacionais devem, pois, garantir aos particulares que todas as consequências serão daí retiradas, em conformidade com o direito nacional, quer no que diz respeito à validade desses actos quer à restituição dos apoios financeiros concedidos, pelo que as medidas que tomem serão sempre necessárias para anular os efeitos do incumprimento de uma proibição que tem por objectivo último assegurar uma concorrência não falseada por intervenções estatais.

34.      No acórdão Ferring  (9) , o Governo francês questionou a relevância do reenvio prejudicial efectuado, alegando que o órgão jurisdicional nacional podia, quando muito, ordenar a recuperação de um auxílio não notificado, mas nunca o reembolso da contribuição financiadora; o advogado‑geral A. Tizzano argumentou que, acima de tudo, a ilegalidade do auxílio teria também como consequência a ilegalidade dos actos nacionais de execução, como a cobrança da contribuição financiadora. Por outro lado, o reembolso das somas pagas a título da contribuição controvertida poderia representar uma forma eficaz de restabelecer o status quo ante, eliminando assim as distorções de concorrência alegadamente decorrentes da imposição assimétrica dessa contribuição  (10) .

35.      No acórdão, nada se disse a esse respeito. Em todo o caso, para compreender a posição do advogado‑geral, é de assinalar que, ao invés do que sucede nos presentes autos, a Ferring estava obrigada a pagar uma contribuição destinada a financiar um auxílio de que beneficiavam as empresas concorrentes nas trocas intracomunitárias  (11) . O reembolso da contribuição contribuía para restabelecer a livre concorrência.

36.      O acórdão Van Calster  (12) insere‑se num contexto factual muito específico. O Governo belga tinha procedido à reforma de um regime financiado por imposições sobre os produtos nacionais e importados, que a Comissão havia declarado incompatível com o mercado comum, restabelecendo as imposições cobradas sobre os produtos nacionais com efeito retroactivo à data de entrada em vigor do primeiro regime, declarado ilícito.

37.      O Tribunal de Justiça teve sobretudo em consideração a questionável técnica legislativa utilizada e que, a ser aceite, autorizaria os Estados‑Membros a executarem imediatamente um projecto de auxílio não notificado e a evitarem as consequências da sua falta de notificação, através da revogação do auxílio e da sua reintrodução simultânea com efeitos retroactivos  (13) .

38.      O acórdão recordou que, em geral, as consequências do desrespeito da obrigação de notificação de um projecto de auxílio se aplicam igualmente ao seu modo de financiamento  (14) .

Esclareceu ainda que o artigo 92.° do Tratado não permite à Comissão isolar o auxílio propriamente dito desse seu outro aspecto 15  –Ibidem, n.° 46., pois, ainda que, em si mesmo, seja compatível com o Tratado, pode prever modalidades de financiamento que agravem o seu efeito perturbador e tornem o conjunto incompatível com um mercado único e com o interesse comum 16  –Ibidem, n.° 47..

39.      O exame de um auxílio não pode, assim, ser separado do do seu modo de financiamento  (17) , ainda que, em princípio, o Estado‑Membro só esteja obrigado a restituir os impostos cobrados em violação do direito comunitário  (18) .

40.      Esta doutrina parece sugerir que esta obrigação não existe se do seu cumprimento resultarem consequências mais nefastas para a livre concorrência do que as provocadas pelo próprio sistema de auxílios não notificado.

41.      Por último, no acórdão de 20 de Novembro de 2003, GEMO  (19) , discutia‑se a qualificação como auxílio de Estado de um regime que, mediante o prévio pagamento de uma taxa, garantia aos criadores de gado e aos matadouros franceses tanto a recolha como a eliminação gratuitas dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros.

42.      A GEMO, demandante no processo principal, era uma empresa do ramo do comércio de carnes, obrigada a pagar a taxa e beneficiária do auxílio. Nos órgãos jurisdicionais nacionais, alegou que o regime era inválido por não ter sido notificado, reclamando a restituição das quantias pagas a título da taxa.

O Tribunal de Justiça analisou os diferentes elementos do regime, declarando que se tratava de um auxílio na acepção do artigo 92.°, n.° 1, do Tratado.

43.      Este precedente jurisprudencial não é, no entanto, esclarecedor para os presentes autos, porque:

em primeiro lugar, as quantias cobradas eram administradas directamente pelo Estado, que delegava em empresas privadas a prestação do serviço, não tendo o próprio Governo francês negado o seu carácter de «recursos do Estado»;

em segundo lugar, a medida prosseguia um objectivo de interesse geral, designadamente, a protecção da saúde pública e do meio ambiente, face ao risco do depósito incontrolável de cadáveres e de restos de animais, não cabendo qualquer dúvida de que a Administração actuava enquanto Estado;

finalmente, em terceiro lugar, o acórdão só se pronunciou sobre a qualificação do regime. Nada disse sobre se o reembolso da taxa constituía a via adequada para salvaguardar o efeito útil do dever de notificação ex artigo 93.°, n.° 3.

44.      Face a todas estas considerações, deve entender‑se que o simples reembolso das imposições destinadas ao financiamento do auxílio, sem recuperar o lucro obtido pelos seus beneficiários, não favorece o objectivo comunitário de salvaguarda de uma concorrência leal.

45.      Apesar de tudo, não seria necessário abordar esta questão se se aceitasse que, em todo o caso, as recorrentes não souberam exercer os seus direitos no momento e pelas vias oportunas.

46.      O despacho de reenvio explica que a figura jurídica da validade formal dos actos não recorridos foi elaborada pela jurisprudência. Implica que, ao apreciar uma acção de repetição do indevido, como a presente, em que se exige a repetição da quantia paga com o fundamento de que a decisão subjacente a esse pagamento é ilegal, o tribunal civil deve – salvo casos excepcionais – partir do princípio de que uma decisão é formal e substancialmente legal sempre que, tendo sido possível impugná‑la em processo administrativo, o interessado tenha deixado expirar o prazo sem o fazer.

47.      Em si mesma, a proibição do n.° 1 do artigo 92.° não tem consequências automáticas  (20) . Nessas circunstâncias, a missão primordial dos órgãos jurisdicionais, de molde a salvaguardar o efeito útil da legislação comunitária sobre os auxílios de Estado, consiste em garantir que um auxílio não será executado sem a sua prévia notificação à Comissão.

48.      Como o Tribunal de Justiça já decidiu no acórdão de 16 de Dezembro de 1976, Rewe  (21) , em aplicação do princípio da cooperação enunciado no artigo 5.° do Tratado CE e na falta de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a garantir a protecção dos direitos que decorrem, para os cidadãos, do efeito directo do direito comunitário, modalidades que, obviamente, não podem ser menos favoráveis do que as modalidades relativas a acções análogas de natureza interna, nem serem organizadas de modo a tornar impossível, na prática, o exercício desses direitos  (22) .

49.      Os órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados‑Membros devem garantir, a quem invoque essa inobservância, que dela retirarão todas as consequências, em conformidade com o direito nacional, quer no que diz respeito à validade dos actos de execução das medidas de auxílio quer à restituição dos apoios financeiros concedidos em violação dessa obrigação de notificação prevista no n.° 3 do artigo 93.° do Tratado CE  (23) .

50.      São os órgãos jurisdicionais nacionais que têm de conceder a protecção prevista no direito comunitário, nos termos das modalidades processuais estabelecidas na ordem jurídica dos respectivos países e no respeito dos princípios ditos da «equivalência» e da «eficácia».

51.      Das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça parece deduzir‑se que o direito neerlandês previa a possibilidade de se impugnarem os regulamentos que instituíam o regime de auxílio controvertido, num prazo de trinta dias, segundo a Comissão, ou de um mês, segundo o Governo neerlandês, pelo que as recorrentes poderiam ter invocado a falta de notificação prévia do projecto em oportuno processo ordinário. Por conseguinte, o respeito do princípio da equivalência não oferece dúvidas.

52.      Por outro lado, como assinala a Comissão, o prazo de recurso não é demasiado curto, sobretudo se se tiver em conta que a Pearle e o. estavam presumivelmente ao corrente da elaboração dos regulamentos, por serem, à data, membros da associação que os elaborou  (24) . De qualquer modo, como a Comissão também observou nas suas alegações escritas, a força jurídica dos actos não impugnados dentro do prazo não é absoluta; o órgão jurisdicional nacional dispõe de poderes para apreciar circunstâncias excepcionais que aconselhem a afastá‑la em determinado caso concreto.

53.      Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional nacional averiguar se as vias de recurso de que em devido tempo dispunham a Pearle e o. para impugnar a validade dos regulamentos relativos ao alegado auxílio de Estado permitiam, nas suas modalidades concretas, salvaguardar o efeito útil da norma comunitária.

Quanto à primeira questão prejudicial: o conceito de auxílio de Estado

54.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende essencialmente saber se um regime como o descrito no processo principal, ao abrigo do qual um organismo de direito público organiza uma campanha publicitária sectorial, com fundos cobrados aos seus associados através de uma contribuição, deve ser considerado um auxílio de Estado para os efeitos do n.° 1 do artigo 92.°

55.      A minha primeira intuição é que, ao instituir a proibição constante do n.° 1 do artigo 92.°, o legislador comunitário não tinha em mente as iniciativas de uma organização profissional, financiadas pelas contribuições dos seus membros.

56.      Seja como for, há que repensar o conceito jurídico de «auxílio de Estado».

57.      O n.° 1 do artigo 92.° declara incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.

58.      Muito se tem discutido sobre o significado da distinção entre os auxílios concedidos «pelos Estados» e os «provenientes de recursos estatais». Uma simples interpretação literal poderia fazer pensar que a primeira expressão proíbe qualquer tipo de medida, imputável ao Estado, cujo resultado se traduza num benefício para determinado sector económico.

59.      Nas conclusões que apresentou em 26 de Outubro de 2000 no processo que deu origem ao acórdão PreussenElektra  (25) , o advogado‑geral F. G. Jacobs demonstrou que, segundo o direito vigente  (26) , a referida distinção do n.° 1 do artigo 92.° não significa que todas as vantagens concedidas por um Estado constituam auxílios, independentemente de serem financiados por recursos estatais ou privados. A distinção destina‑se a incluir no conceito de auxílio não só os auxílios concedidos directamente pelo Estado mas também os concedidos por intermédio de um organismo público ou privado, designado ou instituído pelo Estado  (27) .

60.      Por conseguinte, só as vantagens concedidas directa ou indirectamente através de recursos estatais são consideradas auxílios para os efeitos do n.° 1 do artigo 92.°.

61.      Nestes termos, há que averiguar se se pode entender que a campanha publicitária em causa foi financiada através de fundos públicos.

62.      Para a Comissão, foi isso que aconteceu. Como expôs nas suas observações, o importante é apurar agora se o Estado angariou fundos, seja de que modo for, e depois os colocou à disposição de determinadas empresas. No n.° 58 do acórdão PreussenElektra, já referido, o Tribunal de Justiça alargou o conceito de auxílio a todas as vantagens atribuídas por organismos públicos ou privados, designados ou instituídos pelo Estado.

Além disso, a Comissão remete para o acórdão de 11 de Novembro de 1987, França/Comissão 28  –259/85, Colect., p. 4393, n.° 23., no qual foi declarado que o mero financiamento de um regime de subvenções por meio de uma imposição parafiscal cobrada sobre qualquer fornecimento de produtos nacionais desse sector não basta para retirar a esse regime a sua natureza de auxílio concedido pelo Estado. O acórdão Steinike & Weinlig 29  –78/76, Colect., p. 203, n.° 22., de 22 de Março de 1977, vai no mesmo sentido.

Para reforçar a sua dedução, a Comissão remete, por último, para o acórdão de 16 de Maio de 2000, França/Ladbroke Racing e Comissão 30  –C‑83/98 P, Colect., p. I‑3271, n.° 50., para explicar que o conceito de auxílio abrange todos os meios financeiros que o sector público pode utilizar para apoiar empresas, não sendo relevante que esses meios pertençam ou não de modo permanente ao património do referido sector.

63.      Em sintonia com o exposto pela Comissão, a Pearle acrescenta que, segundo o acórdão de 13 de Dezembro de 1983, Apple and Pear Development Council  (31) , um organismo criado pelo governo de um Estado‑Membro e financiado por uma contribuição imposta aos produtores não pode, nos termos do direito comunitário e no que se refere aos instrumentos de publicidade utilizados, dispor da mesma liberdade que os próprios produtores ou as associações voluntárias de produtores.

64.      Pela minha parte, entendo que nenhum dos precedentes jurisprudenciais aqui invocados justifica uma resposta afirmativa à questão de saber se os fundos com que foi financiada a campanha publicitária em causa tinham carácter estatal.

Os acórdãos França/Comissão e Steinike & Weinlig, já referidos, sugerem antes que o facto de as vantagens não serem provenientes de recursos estatais, mas sim de contribuições impostas às próprias empresas, não basta para lhes retirar a qualificação de auxílio público, o que, por outro lado, não significa que constituam necessariamente auxílios desta natureza.

65.      No acórdão PreussenElektra, o Tribunal de Justiça quis recordar que nem todas as vantagens concedidas pelo Estado, independentemente do seu modo de financiamento, são auxílios na acepção do n.° 1 do artigo 92.° Desta comprovação parece deduzir‑se que se aceita a existência de auxílios com recurso a fundos não estatais.

66.      Em definitivo, os acórdãos referidos sugerem que o elemento decisivo para se delimitar o conceito de auxílio é a qualificação dos fundos. Aliás, nos próprios termos a que alude a recorrente no processo principal, o acórdão Apple and Pear Development Council, que tinha por objecto a livre circulação de mercadorias, não aponta para solução diversa.

67.      A fim de sistematizar os requisitos necessários para que certos fundos possam ser considerados «estatais», convém referir, em primeiro lugar, a necessidade de estarem vinculados ao Estado, a um organismo dependente da sua estrutura ou que exerça alguma das suas típicas prerrogativas.

Em segundo lugar, é necessário que esses fundos sejam atribuíveis ao Estado ou ao organismo público em causa, de modo a que sobre eles se exerça um poder de disposição suficiente.

68.      Com base nos dados dos autos, não é possível considerar, sem mais, que a HBA é um órgão estatal. É certo que possui um estatuto de direito público, mas não é menos certo que é dirigida exclusivamente por representantes dos seus membros; também não se alegou que o Estado tenha a menor possibilidade de intervir nos seus assuntos, para além da faculdade de vetar as decisões que julgue contrárias ao interesse geral.

Mais propriamente, deve ser concebida como uma associação interprofissional que promove a organização e o desenvolvimento das actividades dos seus membros, à qual o legislador neerlandês, em nome da eficácia, permitiu que disfrutasse de alguns dos privilégios tradicionalmente associados ao exercício do poder público, como a obrigatoriedade da inscrição e o carácter vinculativo das decisões dos seus corpos directivos.

69.      Em todo o caso, sem me pronunciar no plano geral, penso que, quando muito, a HBA tem um carácter híbrido e que, ao financiar e ao levar a cabo uma campanha publicitária colectiva, não age qua Estado, mas como promotora dos interesses dos seus membros.

70.      O Tribunal de Justiça adoptou um critério funcional semelhante para apreciar se uma organização profissional tinha carácter público para efeitos da aplicação do artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.° CE), pois o acórdão de 19 de Fevereiro de 2002, Wouters e o.  (32) , face às alegações de que a referida organização era um organismo de direito público a que o Estado conferira competências regulamentares a fim de cumprir uma missão de interesse geral, assinalou que essa organização profissional não tinha exercido qualquer função social nem competências típicas dos poderes públicos, tendo actuado apenas como um órgão regulador  (33) .

71.      Estou consciente do diferente contexto jurídico em que esta jurisprudência se insere; não obstante, considero‑a susceptível de ilustrar a possibilidade de preferir, em vez de um critério categórico de natureza orgânica, outro mais circunstanciado e mais próximo da realidade e que consiste em apreciar, em cada caso, a qualidade em que actua a entidade em questão.

72.      Como dispõe o artigo 71.° da WBO  (34) , a HBA, enquanto organismo público, deve tomar em consideração não só o proveito comum das empresas seus membros mas ainda o interesse geral. Mas esta obrigação, de resto bastante genérica e imprecisa, não altera a qualificação que merece, em concreto, a iniciativa de empreender e financiar uma campanha publicitária sectorial, pois essa actividade destina‑se essencialmente a promover os interesses económicos dos seus membros.

73.      Nestes termos, há que concluir que a HBA não actuou como emanação do Estado, pelo que os recursos que utilizou também não podiam ter carácter público.

74.      Independentemente da opinião que se tenha quanto à natureza orgânica da HBA ou quanto à qualificação da campanha de divulgação comercial controvertida, também não parece que tenha sido exercido um poder de disposição suficiente sobre os fundos com que esta última foi financiada de forma a atribuí‑los.

75.      Segundo decorre do despacho de reenvio, esses fundos foram obtidos por meio de uma contribuição obrigatória afecta exclusivamente à organização da campanha publicitária empreendida. Nestas circunstâncias, estou de acordo com o que o Governo neerlandês alegou nas suas observações escritas, quando avançou que a questão crucial consiste em saber se o regime instituído para financiar a publicidade vai além de um simples mecanismo de repartição dos encargos financeiros entre as diferentes empresas beneficiárias da campanha.

76.      Ora, o regulamento que fixa as contribuições necessárias para cobrir as despesas previstas foi adoptado pela HBA, sob proposta de uma organização profissional de empresas de produtos ópticos (a NUVO), de natureza privada. A esta organização se deve igualmente a proposta relativa ao montante da contribuição a cobrar. Por conseguinte, a HBA foi apenas o instrumento que serviu para receber e afectar os recursos cobrados para a realização de um objectivo previamente fixado por actores do sector profissional em questão.

77.      No entanto, é importante salientar que o despacho de reenvio não fornece todos os elementos necessários para se formar um juízo exacto relativamente à qualificação da medida controvertida no processo principal. Esse juízo compete ao órgão jurisdicional nacional, seguindo as orientações interpretativas do Tribunal de Justiça.

78.      Em vista do exposto, há que concluir que, para apreciar se um determinado regime constitui um auxílio de Estado, é necessário que o órgão jurisdicional nacional se assegure de que a organização profissional corporativa à qual compete a sua concessão actuou no âmbito das respectivas missões de direito público. Para esse efeito, também há que comprovar se a referida organização teve um poder de disposição suficiente sobre os fundos com os quais a medida foi financiada.

Quanto à segunda questão prejudicial: o alcance do dever de notificação

79.      Com a sua segunda questão, o Hoge Raad pretende saber se o dever de notificar os auxílios de Estado, previsto no n.° 3 do artigo 93.° do Tratado, é aplicável a qualquer regime de auxílios ou apenas aos que incorrem na proibição do n.° 1 do artigo 92.°

80.      Resulta do n.° 3 do artigo 93.° do Tratado que a Comissão deve ser informada dos projectos relativos à instituição ou à alteração de «quaisquer auxílios». Se considerar que não são compatíveis com o mercado comum nos termos do n.° 1 do artigo 92.°, deve sem demora dar início ao procedimento previsto a esse respeito, não podendo o Estado‑Membro em causa pôr em execução as medidas projectadas antes de tal procedimento haver sido objecto de uma decisão final.

81.      Se o termo «auxílio» fosse entendido na sua acepção comum, como a que se encontra em qualquer dicionário, todos os Estados‑Membros estariam obrigados a notificar à Comissão qualquer iniciativa que pressuponha uma «ajuda», um «amparo» ou, inclusivamente, uma «cooperação» para atingir determinado fim. É obvio que a vontade do legislador não foi a de enveredar por semelhantes vias.

82.      O «auxílio», na acepção do n.° 3 do artigo 93.°, tem um sentido técnico, que decorre do disposto no n.° 1 do artigo 92.° Refere‑se, portanto, exclusivamente às medidas que, financiadas com recursos estatais, fornecem uma vantagem a determinado sector. Compete a cada Estado‑Membro apreciar se um determinado projecto cumpre estes critérios.

83.     É o que logicamente se infere da jurisprudência do Tribunal de Justiça quando aceita que um órgão jurisdicional nacional se encontra perante a necessidade de interpretar e aplicar o conceito de auxílio, enunciado no referido artigo 92.°, para determinar se uma medida estatal, concedida sem ter sido respeitado o procedimento previsto no n.° 3 do artigo 93.°, tem de ser sujeita aos referidos trâmites  (35) .

84.      Este tipo de controlo judicial só tem sentido se o Estado tiver previamente satisfeito a obrigação de levar a cabo uma apreciação da mesma natureza, na hora de decidir da necessidade de notificação de um determinado projecto. Em caso de dúvida, pode – como os órgãos jurisdicionais – dirigir‑se à Comissão a fim de obter esclarecimentos.

85.      Por seu turno, a Comissão deve analisar se o projecto notificado é susceptível de falsear a concorrência. Esta ponderação da sua compatibilidade inclui a comprovação da respectiva incidência nas trocas intracomunitárias.

86.      Assim sendo, um Estado‑Membro só está obrigado a comunicar à Comissão os projectos de medidas que, segundo o n.° 1 do artigo 92.° do Tratado, interpretado à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, constituam auxílios de Estado.

Quanto à terceira questão prejudicial: o papel da regra de minimis

87.      Com a terceira questão prejudicial, pretende‑se saber se, ao apreciar a existência da obrigação de notificação de um projecto de auxílio, o órgão jurisdicional nacional pode ter em conta a regra de minimis, ainda que retroactivamente.

88.      Foi na Comunicação da Comissão, de 1992, relativa ao enquadramento comunitário dos auxílios estatais às pequenas e médias empresas  (36) , que a Comissão enunciou pela primeira vez a regra de minimis, nos termos da qual os auxílios de montante muito reduzido não se inserem no âmbito de aplicação do artigo 92.° do Tratado.

A ideia subjacente a esta exclusão é a de que, dado o seu montante muito reduzido 37  –Até 50 000 ecus por empresa, por tipo de despesas e por um período de três anos., estes auxílios não têm repercussões perceptíveis na concorrência nem nas trocas comerciais entre os Estados‑Membros.

No âmbito da sua ampla margem de apreciação 38  –V. acórdão de 26 de Setembro de 2002, Espanha/Comissão, dito «Renove» (C‑351/98, Colect., p. I‑8031, n.° 52)., a Comissão decidiu que estes auxílios são compatíveis com o mercado comum, deixando de estar sujeitos ao dever de notificação prévia à Comissão nos termos do n.° 3 do artigo 93.° do Tratado.

89.      Em 1996, a Comissão aumentou o montante máximo do auxílio que pode beneficiar dessa regra  (39) . Por último, com a adopção do Regulamento n.° 69/2001  (40) , a aplicação da regra de minimis passou a dispor de um enquadramento jurídico adequado. No entanto, estes diplomas não relevam, ratione temporis, para a resolução dos presentes autos, pois decorre do despacho de reenvio que o litígio abrange as contribuições pagas desde 1988 até à data da propositura da acção inicial, ou seja, 29 de Março de 1995  (41) .

90.      Tendo em conta que os critérios de definição de um auxílio de minimis são totalmente objectivos e vinculam a Comissão, é adequado que o órgão jurisdicional nacional os pondere quando aprecia se um determinado projecto de auxílio está sujeito ao dever de notificação.

91.      No entanto, não há qualquer fundamento jurídico para atribuir efeitos retroactivos à regra de minimis, pois não é possível presumir que uma norma que estabelece uma excepção a uma obrigação jurídica tenha esse efeito. Na falta de um regime de excepção, no período anterior à publicação da regra, a Comissão gozava da competência exclusiva, sob o controlo do Tribunal de Justiça, para decidir se um auxílio era compatível com o mercado comum  (42) .

De resto, as «Orientações de 1992» estipulam claramente que «no futuro […] deixarão de ser objecto de notificação [...] os pagamentos […] de auxílios até 50 000 ecus» 43  –N.° 3.2, segundo parágrafo..

92.      Por último, o Hoge Raad pergunta como é que deve ser aplicada a regra de minimis a auxílios como as campanhas publicitárias colectivas, que beneficiam a todo um sector.

93.      Como já anteriormente expliquei, parto do princípio de que uma campanha publicitária com as características da do processo principal não constitui um auxílio de Estado para efeitos do n.° 1 do artigo 92.°

94.      Quanto ao mais, para calcular concretamente o montante do auxílio, a fim de averiguar se é inferior ao limiar permitido, há que proceder a uma estimativa da vantagem relativa provavelmente obtida por cada empresário e deduzir‑lhe o montante das contribuições pagas. Bem sei que este cálculo é muito mais fácil de enunciar em abstracto do que de realizar na prática, mas é difícil conceber critérios jurídicos mais detalhados a esse respeito.

Conclusão

95.     À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões colocadas pelo Hoge Raad der Nederlanden:

«1)
Um órgão jurisdicional nacional só pode ordenar o mero reembolso das imposições afectadas ao financiamento de um auxílio de Estado, sem ordenar a restituição do lucro obtido pelos seus beneficiários, quando, ao fazê‑lo, não prejudique o objectivo comunitário de salvaguarda de uma concorrência não falseada.

2)
Compete também ao órgão jurisdicional nacional apurar se as vias de recurso para a impugnação da validade de um pretenso auxílio de Estado são equivalentes às que têm por base a ordem jurídica interna e se, nas suas modalidades concretas, permitem salvaguardar o efeito útil da norma comunitária.

3)
Para apreciar se um regime conferido a uma organização profissional corporativa constitui um auxílio de Estado, é necessário que o órgão jurisdicional nacional se assegure de que a referida organização actuou no âmbito das suas missões de direito público. Deve também apreciar, para esse efeito, se teve poder de disposição suficiente sobre os fundos com os quais essa medida foi financiada.

4)
Os critérios de definição da regra de minimis devem ser tomados em consideração pelo órgão jurisdicional nacional no momento de apreciar se existia o dever de notificar um determinado projecto de auxílios, executado após a entrada em vigor da referida regra. Para calcular concretamente o montante do auxílio, a fim de apurar se é inferior ao limiar permitido, há que proceder a uma estimativa da vantagem relativa provavelmente obtida por cada empresário e deduzir‑lhe o montante das contribuições pagas.

5)
Um Estado‑Membro só deve comunicar à Comissão os projectos de medidas que, segundo o n.° 1 do artigo 92.° do Tratado CE (actual artigo 87.°, n.° 1, CE), interpretado à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, constituam auxílios de Estado.»


1
Língua original: espanhol.


2
JO C 68, p. 9 (a seguir «comunicação» ou «comunicação de minimis»).


3
V., supra, n.° 7.


4
V., supra, n.° 11.


5
39/94, Colect., p. I‑3547.


6
.Ibidem, n.° 71.


7
Acórdãos de 9 de Outubro de 1984, Heiniken Brouwerijen (91/83 e 127/83, Recueil, p. 3435, n.° 20), e de 14 de Fevereiro de 1990, França/Comissão, dito «Boussac» (C‑301/87, Colect., p. I‑307, n.° 17).


8
C‑354/90, Colect., p. I‑5505, n.° 12.


9
Acórdão de 22 de Novembro de 2001 (C‑53/00, Colect., p. I‑9067).


10
Com remissão para os acórdãos de 20 de Março de 1997, Alcan Deutschland (C‑24/95, Colect., p. I‑1591, n.° 23), e de 4 de Abril de 1995, Comissão/Itália (C‑348/93, Colect., p. I‑673, n.° 26).


11
Acórdão Ferring, n.° 21.


12
Acórdão de 21 de Outubro de 2003, Van Calster (C‑261/01, Colect., p. I‑0000).


13
.Ibidem, n.° 60.


14
.Ibidem, n.° 44.


15
.Ibidem, n.° 46.


16
.Ibidem, n.° 47.


17
.Ibidem, n.° 49. Com remissão para o acórdão de 25 de Junho de 1970, França/Comissão (47/69, Colect. 1969‑1970, p. 391, n.° 8).


18
.Ibidem, n.° 53.


19
C‑126/01, Colect., p. I‑0000.


20
V., a este respeito, acórdão de 19 de Junho de 1973, Capolongo (77/72, Colect., p. 253, n.° 6).


21
33/76, Colect., p. 813, n.° 5.


22
Neste mesmo sentido, v. acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Comet (45/76, Recueil, p. 2043, Colect., p. 835, n.os 12 a 16); de 27 de Fevereiro de 1980, Just (68/79, Recueil, p. 501, n.° 25); de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio (199/82, Recueil, p. 3595, n.° 14); de 25 de Fevereiro de 1988, Bianco e Girard (331/85, 376/85 e 378/85, Colect., p. 1099, n.° 12); de 24 de Março de 1988, Comissão/Itália (104/86, Colect., p. 1799, n.° 7); de 14 de Julho de 1988, Jeunehomme e o. (123/87 e 330/87, Colect., p. 4517, n.° 17); de 9 de Junho de 1992, Comissão/Espanha (C‑96/91, Colect., p. I‑3789, n.° 12); de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357, n.os 42 e 43); e de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck e o. (C‑312/93, Colect., p. I‑4599, n.° 12).


23
V. acórdão FNCE, já referido, n.° 12.


24
V., supra, n.° 14.


25
C‑379/98, Colect. 2001, pp. I‑2099, I‑2103, n.os 114 a 133.


26
Que retoma a linha jurisprudencial iniciada com o acórdão de 24 de Janeiro de 1978, Van Tiggele (82/77, Colect., p. 15, n.os 24 e 25).


27
V. acórdãos de 17 de Março de 1993, Sloman Neptun (C‑72/91 e C‑73/91, Colect., p. I‑887, n.° 19); de 30 de Novembro de 1993, Kirsammer‑Hack (C‑189/91, Colect., p. I‑6185, n.° 16); de 7 de Maio de 1998, Viscido e o. (C‑52/97 a C‑54/97, Colect., p. I‑2629, n.° 13); de 1 de Dezembro de 1998, Ecotrade (C‑200/97, Colect., p. I‑7907, n.° 35); e de 17 de Junho de 1999, Piaggio (C‑295/97, Colect., p. I‑3735, p. 35).


28
259/85, Colect., p. 4393, n.° 23.


29
78/76, Colect., p. 203, n.° 22.


30
C‑83/98 P, Colect., p. I‑3271, n.° 50.


31
222/82, Recueil, p. 4083, n.° 17.


32
Acórdão C‑309/99, Colect., p. I‑1577.


33
.Ibidem, n.° 58. O Tribunal de Justiça teve em consideração o facto de se tratar de uma organização dirigida por representantes cooptados entre os seus membros, sem qualquer intervenção das autoridades (n.° 61).


34
V., supra, n.° 8.


35
Acórdãos Steinike & Weinlig, já referido, n.° 14; Kirsammer‑Hack, já referido, n.° 14; e SFEI e o., já referido, n.° 49.


36
JO C 213, p. 2 (a seguir «Orientações de 1992»), em especial n.° 3.2.


37
Até 50 000 ecus por empresa, por tipo de despesas e por um período de três anos.


38
V. acórdão de 26 de Setembro de 2002, Espanha/Comissão, dito «Renove» (C‑351/98, Colect., p. I‑8031, n.° 52).


39
Que passou para 100 000 ecus (JO 1996, C 68, p. 8).


40
Regulamento (CE) n.° 69/2001 da Comissão, de 12 de Janeiro de 2001, relativo à aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado CE aos auxílios de minimis (JO L 10, p. 30).


41
V., supra, n.° 17.


42
Acórdão FNCE, já referido na nota 8, n.° 14, e acórdão Steinike & Weinlig, já referido na nota 29, n.° 9.


43
N.° 3.2, segundo parágrafo.

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