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Document 62000CC0400

    Conclusões do advogado-geral Tizzano apresentadas em 17 de Janeiro de 2002.
    Club-Tour, Viagens e Turismo SA contra Alberto Carlos Lobo Gonçalves Garrido, e Club Med Viagens Ldª.
    Pedido de decisão prejudicial: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Portugal.
    Directiva 90/314/CEE - Viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados ('com tudo incluído) - Conceitos de viagem organizada ('com tudo incluído) e de 'combinação prévia.
    Processo C-400/00.

    Colectânea de Jurisprudência 2002 I-04051

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2002:31

    62000C0400

    Conclusões do advogado-geral Tizzano apresentadas em 17 de Janeiro de 2002. - Club-Tour, Viagens e Turismo SA contra Alberto Carlos Lobo Gonçalves Garrido, e Club Med Viagens Ldª. - Pedido de decisão prejudicial: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Portugal. - Directiva 90/314/CEE - Viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados ('com tudo incluído) - Conceitos de viagem organizada ('com tudo incluído) e de 'combinação prévia. - Processo C-400/00.

    Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-04051


    Conclusões do Advogado-Geral


    1 Por despacho de 31 de Outubro de 2000, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça no dia 20 de Novembro do mesmo ano, o 8._ Juízo Cível do Tribunal da Comarca do Porto (Portugal) submeteu a este Tribunal, em aplicação do artigo 234._ CE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação da Directiva 90/314/CEE (1), no âmbito de um litígio que opõe uma agência de viagens a um cliente que, na sequência de graves contrariedades sofridas durante um período de férias num empreendimento turístico, se recusou a pagar à agência o serviço prestado. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em especial, se o conceito de viagem organizada («com tudo incluído»), que delimita o âmbito de aplicação da directiva, inclui igualmente as viagens «por medida» («à la carte»), isto é, as viagens organizadas a pedido e por iniciativa do consumidor ou de um grupo restrito de consumidores em conformidade com as suas exigências específicas.

    I - Enquadramento jurídico

    A - Directiva 90/314/CEE

    2 O objectivo da directiva é aproximar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas às viagens organizadas, às férias organizadas e aos circuitos organizados, vendidos ou propostos para venda no território da Comunidade (artigo 1._).

    3 O artigo 2._ da directiva dispõe que:

    «Para os efeitos da presente directiva, entende-se por:

    1) Viagem organizada: a combinação prévia de pelo menos dois dos elementos seguintes, quando seja vendida ou proposta para venda a um preço com tudo incluído e quando essa prestação exceda vinte e quatro horas ou inclua uma dormida:

    a) Transporte;

    b) Alojamento;

    c) Outros serviços turísticos não subsidiários do transporte ou do alojamento que representem uma parte significativa da viagem organizada.

    A facturação separada de diversos elementos de uma mesma viagem organizada não subtrai o operador ou a agência às obrigações decorrentes da presente directiva.

    2) Operador: a pessoa que organiza viagens organizadas de forma não ocasional e as vende ou propõe para venda, directamente ou por intermédio de uma agência.

    3) Agência: a entidade que vende ou propõe para venda a viagem organizada elaborada pelo operador.

    4) Consumidor: a pessoa que adquire ou se compromete a adquirir a viagem organizada (`o contratante principal') ou qualquer pessoa em nome da qual o contratante principal se compromete a adquirir a viagem organizada (`os outros beneficiários') ou qualquer pessoa a quem o contratante principal ou um dos outros beneficiários cede a viagem organizada (`o cessionário').

    5) Contrato: o acordo que liga o consumidor ao operador e/ou à agência.»

    4 O artigo 3._ da directiva dispõe:

    «1. Qualquer descrição de uma viagem organizada comunicada pelo operador ou pela agência ao consumidor, bem como o respectivo preço e as restantes condições do contrato não devem conter elementos enganadores.

    2. Caso seja colocada à disposição do consumidor uma brochura, esta deve indicar de forma legível, clara e precisa o preço e as informações apropriadas relativas aos seguintes elementos:

    a) Destino, meios, características e categorias de transporte utilizados;

    b) Tipo de alojamento, sua situação, sua categoria ou nível de conforto e suas características principais, bem como a sua homologação e classificação turística ao abrigo da regulamentação do Estado-Membro de acolhimento em questão;

    c) Refeições fornecidas;

    d) Itinerário;

    e) Informações de ordem geral referentes às condições aplicáveis aos cidadãos do Estado ou dos Estados-Membros em questão em matéria de passaportes e vistos e formalidades sanitárias necessárias para a viagem e a estadia;

    f) Montante ou percentagem do preço a pagar a título de adiantamento e calendário para o pagamento do saldo;

    g) Número mínimo de pessoas necessárias para a viagem organizada se realizar e, nesse caso, data-limite de informação do consumidor em caso de anulação.

    As informações contidas na brochura vinculam o operador ou a agência, com excepção dos casos em que:

    - a alteração dessas informações tenha sido inequivocamente comunicada ao consumidor previamente à celebração do contrato; esse facto deve ser expressamente referido na brochura,

    - surjam posteriormente alterações na sequência de um acordo entre as partes no contrato.»

    5 Nos termos do artigo 4._ da directiva:

    «1. a) Antes da celebração do contrato, o operador e/ou a agência prestarão ao consumidor, geral por escrito ou sob qualquer outra forma adequada, informações de ordem geral referentes às condições aplicáveis aos cidadãos do Estado-Membro ou dos Estados-Membros em questão, em matéria de passaportes e vistos, nomeadamente quanto aos prazos necessários para a respectiva obtenção, bem como informações relativas às formalidades sanitárias necessárias para a viagem e a estadia;

    b) Antes do início da viagem, o operador e/ou a agência devem prestar ao consumidor, em tempo útil, por escrito ou sob qualquer outra forma adequada, as seguintes informações:

    i) Os horários e os locais de escalas e correspondências, bem como a indicação do lugar atribuído ao viajante, por exemplo o camarote ou o beliche, se se tratar de um barco, ou o compartimento de couchettes ou a carruagem-cama, se se tratar de um comboio;

    ii) O nome, endereço e número de telefone da representação local do operador e/ou da agência ou, não existindo uma tal representação local, o nome, endereço e número de telefone das entidades locais que possam assistir o consumidor em caso de dificuldades.

    Quando essas representações e esses organismos não existirem, o consumidor deve em todos os casos dispor de um número telefónico de urgência ou de qualquer outra informação que lhe permita estabelecer contacto com o operador e/ou a agência;

    iii) No caso de viagens e estadias de menores no estrangeiro, informações que permitam estabelecer um contacto directo com esses menores ou com o responsável local pela sua estadia;

    iv) Informação sobre a subscrição facultativa de um contrato de seguro que cubra as despesas de anulação por parte do consumidor ou de um contrato de assistência que cubra as despesas de repatriamento em caso de acidente ou de doença.

    2. Os Estados-Membros velarão por que sejam respeitados no contrato os seguintes princípios:

    a) Consoante o tipo de viagem organizada em questão, o contrato incluirá pelo menos as cláusulas constantes do anexo;

    b) Todas as cláusulas do contrato devem ser consignadas por escrito ou sob qualquer outra forma que seja compreensível e acessível para o consumidor e devem ser-lhe comunicadas antes da conclusão do contrato; o consumidor receberá uma cópia do mesmo;

    c) O disposto na alínea b) não deve impedir a celebração tardia ou `à última hora' de reservas ou de contratos.

    3. Caso se veja impedido de participar na viagem organizada, o consumidor pode ceder a sua reserva a uma pessoa que preencha todas as condições requeridas para a viagem organizada, após ter comunicado o facto ao operador ou à agência num prazo razoável antes da data de partida. A pessoa que cede a sua viagem organizada e o cessionário são solidariamente responsáveis, perante o operador ou a agência que sejam partes no contrato, pelo pagamento do saldo do preço, bem como pelos eventuais custos adicionais ocasionados pela referida cessão.

    4. a) Os preços estabelecidos pelo contrato não são susceptíveis de revisão, excepto se o contrato previr expressamente a possibilidade de revisão, tanto no sentido da alta como no da baixa, e determinar as regras precisas de cálculo, unicamente para ter em conta variações:

    - do custo dos transportes, incluindo o custo do combustível,

    - dos direitos, impostos ou taxas cobráveis sobre determinados serviços, tais como taxas de aterragem, de desembarque ou de embarque nos portos e aeroportos,

    - das taxas de câmbio aplicadas à viagem organizada em questão;

    b) Nos 20 dias que precedem a data de partida prevista, o preço fixado no contrato não pode ser aumentado.

    [...]»

    6 Com base no anexo da directiva, entre os «[e]lementos a incluir no contrato caso se apliquem à viagem organizada em causa» figuram «[t]odas as exigências específicas que o consumidor tenha comunicado ao operador ou à agência no momento da reserva e que tenham sido aceites por ambas as partes;» [alínea j)].

    B - Regulamentação nacional

    7 Entre os diplomas através dos quais a directiva foi transposta para a ordem jurídica portuguesa figura o Decreto-Lei n._ 209/97, de 13 de Agosto de 1997, que regula o acesso e o exercício da actividade das agências de viagens e turismo (2). O artigo 17._ deste decreto-lei prevê que o conceito de viagens turísticas engloba não só as viagens organizadas («com tudo incluído»), tal como definidas no artigo 2._, ponto 1, da directiva (v. artigo 17._, n._ 2, do decreto-lei), mas também as viagens «por medida», isto é, as viagens turísticas «preparadas a pedido do cliente para satisfação das solicitações por este definidas» (artigo 17._, n._ 3) (3).

    II - Matéria de facto e questões prejudiciais

    8 Alberto Carlos Lobo Gonçalves Garrido comprou à sociedade Club-Tour, Viagens e Turismo, SA (a seguir «Club-Tour»), agência de viagens que se dedica à organização e venda de viagens turísticas, uma viagem englobando os bilhetes de avião e o alojamento durante duas semanas, com pensão completa, num empreendimento turístico grego denominado «Club Med de Gregolimano», pelo preço de 1 692 928 PTE, correspondendo a quantia de 1 155 860 PTE ao alojamento no referido empreendimento.

    9 No que diz respeito ao alojamento de A. C. Garrido, a Club-Tour contactou a agência de viagens Club Med Viagens, L.da (a seguir «Club Med»), à qual adquiriu o alojamento do interessado no Club Med de Gregolimano. Foi a Club Med que procedeu às necessárias reservas no empreendimento turístico de Gregolimano (alojamento, refeições, transfers) e também à elaboração do programa desses serviços, o qual publicou e publicitou, tendo fixado o preço global com tudo incluído.

    10 À chegada ao empreendimento turístico escolhido, a família Garrido teve a desagradável surpresa de o encontrar infestado de milhares de vespas que os impossibilitaram, durante todo o período em que aí permaneceram, de gozar plenamente as suas férias. Por outro lado, o pedido imediato de A. C. Garrido no sentido de serem transferidos para outro empreendimento não pôde ser satisfeito pela Club-Tour, dado que a Club Med, com a qual aquela contactara para esse fim, declarou não poder dispor tempestivamente de uma alternativa válida.

    11 Pelas razões referidas, quando regressou a Portugal, A. C. Garrido recusou-se a pagar o preço acordado com a Club-Tour. Esta intentou então uma acção no 8._ Juízo Cível do Tribunal da Comarca do Porto, a fim de obter a condenação de A. C. Garrido no pagamento da importância devida. Em apoio da sua pretensão, aquela agência contestou, em especial, a aplicabilidade da directiva ao caso vertente, com fundamento no facto de, em sua opinião, o serviço prestado em tal caso não poder ser qualificado como uma «combinação prévia» na acepção do artigo 2._, n._ 1, da directiva.

    12 Considerando que, como resulta do seu preâmbulo, a directiva tem por objectivo proteger o consumidor de serviços turísticos, responsabilizando os operadores e as agências de viagens pelos danos causados pela incorrecta execução do contrato, e considerando que a legislação nacional deve ser interpretada e aplicada em conformidade com a directiva, o 8._ Juízo Cível do Tribunal da Comarca do Porto submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1) As viagens organizadas pela agência, a pedido e por iniciativa do consumidor ou de um grupo restrito de consumidores em conformidade com as suas solicitações, que incluam transporte e alojamento em empreendimento turístico, por um preço com tudo incluído, excedendo vinte e quatro horas ou inclua uma dormida, são abrangidas pelo âmbito de aplicação da noção prevista no artigo 2._, n._ 1, da directiva comunitária sobre `viagens organizadas'?

    2) A expressão `combinação prévia' constante dessa norma poderá ser interpretada referindo-se ao momento em que o contrato é celebrado entre a agência e o cliente?»

    III - Argumentos das partes e análise jurídica

    A - Quanto à primeira questão prejudicial

    13 Através da primeira questão prejudicial, o juiz a quo pergunta, em substância, se o conceito de viagem organizada («com tudo incluído»), definido no artigo 2._, n._ 1, da directiva, inclui igualmente as viagens organizadas «por medida» («à la carte»), isto é, os serviços turísticos que se caracterizam por serem organizados a pedido e por iniciativa do consumidor ou de um grupo restrito de consumidores, em conformidade com as suas exigências específicas, não sendo, portanto, concebidos previa e unilateralmente pelas agências de viagens.

    14 Devo sublinhar, em primeiro lugar, que todas as partes que apresentaram observações no presente processo, designadamente os Governos português, austríaco, belga, espanhol e francês, bem como a Comissão, concluíram unanimemente propondo que se respondesse afirmativamente à questão em análise, com base nos argumentos que passo a expor e com os quais, desde já o afirmo, estou inteiramente de acordo.

    15 Em primeiro lugar, foi observado que tal resposta resulta do próprio teor da disposição em causa, que contém uma noção ampla de viagem organizada («com tudo incluído»), noção da qual nada autoriza que se conclua pela exclusão das viagens «por medida» ou por uma diferença de tratamento de tais viagens relativamente à disciplina geral. De facto, para efeitos do artigo 2._, n._ 1, da directiva, para que uma prestação possa ser qualificada como «com tudo incluído», basta, por um lado, que a combinação dos serviços turísticos vendida por uma agência de viagens por um preço com tudo incluído englobe dois dos três tipos de prestações que, na acepção da mesma disposição, caracterizam a referida prestação [transporte, alojamento e outros serviços turísticos não subsidiários do transporte ou do alojamento que representem uma parte significativa da viagem organizada («com tudo incluído»)] e, por outro lado, que essa prestação exceda vinte e quatro horas ou inclua uma dormida. Em contrapartida, a directiva não exige que a prestação resulte de uma proposta da agência ao cliente, nem que corresponda, à parte os aspectos indicados, a um esquema rígido da própria prestação; eventuais adaptações de tal esquema a pedido do consumidor não se afiguram, portanto, por si sós, idóneas para alterar as características indicadas e que qualificam a noção em análise.

    16 Como confirmação do que acabou de se afirmar, diversos governos e a Comissão recordaram acertadamente que, no acórdão Rechberger (4), o Tribunal de Justiça confirmou que, «nos termos do n._ 1 do artigo 2._ da directiva, basta, para que exista viagem organizada, a combinação prévia de, pelo menos, dois dos três elementos nele referidos, quando seja vendida ou proposta para venda a um preço com tudo incluído» (n._ 29), e que o facto de a contrapartida paga pelo comprador corresponder apenas a um dos elementos da prestação não afasta a aplicação da directiva. Além disso, o Tribunal de Justiça acrescentou que «limitar o âmbito de aplicação da directiva às viagens organizadas oferecidas a um número potencialmente ilimitado de consumidores não encontra qualquer fundamento no texto da directiva, sendo contrário ao respectivo objectivo. Com efeito, basta, para que a directiva se aplique, por um lado, que as viagens sejam vendidas ou propostas para venda no território da Comunidade a um preço com tudo incluído e, por outro, que esse preço tudo incluído abranja pelo menos dois dos elementos referidos no n._ 1 do artigo 2._ da directiva» (n._ 31).

    17 No mesmo sentido, como sublinharam vários governos, cabe mencionar igualmente o acórdão AFS (5), no qual o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre uma viagem em relação à qual se discutia a aplicação do artigo 2._, n._ 1, da directiva, dado que o alojamento previsto era de longa duração e fornecida a título gratuito (tratava-se, na verdade, de uma viagem realizada no âmbito de um programa de intercâmbio de estudantes). Nessa ocasião, depois de mais uma vez recordar que o conceito de viagem organizada («com tudo incluído») não implicava que estivessem presentes todos os elementos indicados no referido artigo 2._, n._ 1, da directiva, o Tribunal de Justiça indicou, por um lado, que o facto de o serviço ser prestado a título oneroso «não constitui um elemento indispensável» de tal conceito (n._ 26) e, por outro lado, que, mesmo que «o alojamento compreendido numa viagem organizada seja habitualmente de uma duração relativamente curta», tal duração «não pode ser considerada um elemento determinante», dado que a directiva, sendo aplicável a «todas as viagens que excedam 24 horas», «[não prevê] qualquer duração `limite'» (n._ 27).

    18 Em apoio da interpretação que se propõe, alguns governos e a Comissão evocam, além disso, os trabalhos preparatórios da directiva e as alterações que, ao longo desses trabalhos, foram introduzidas no artigo 2._, n._ 1, a fim de tornar o conceito de serviço ou de viagem organizada por um preço global com com tudo incluído mais amplo relativamente à proposta originária da Comissão, de 23 de Março de 1988 (6). Enquanto, nesta última, o conceito de viagem organizada incluía apenas a «[prévia] combinação de pelo menos dois dos seguintes elementos», agora, como se viu, por viagens organizadas entende-se «a combinação prévia de pelo menos dois dos elementos seguintes, quando seja vendida ou proposta para venda a um preço com tudo incluído» (7). Isto confirma, em substância, que o legislador comunitário optou intencionalmente por passar de uma noção de viagem organizada, concebida e proposta à venda sem qualquer intervenção do consumidor, para uma noção que não permite excluir o serviço «por medida», ou seja, o que é «vendido» satisfazendo as exigências específicas de um dado consumidor. Mas não é tudo. Na proposta inicial da Comissão, «operador» era «a pessoa que, no exercício da sua actividade profissional, organiza a viagem, férias ou circuitos e os oferece por meio de prospectos ou outras formas de publicidade», dando com isto claramente a entender que o serviço («com tudo incluído») correspondia a modelos preestabelecidos, descritos e propostos ao público em brochuras. No texto final, ao invés, na sequência das preocupações expressas pelo Parlamento Europeu e pelo Comité Económico e Social, que consideravam aquela definição demasiado restritiva do âmbito de aplicação da directiva, a disposição define o «operador» como «a pessoa que organiza viagens organizadas de forma não ocasional e as vende ou propõe para venda, directamente ou por intermédio de uma agência» (8).

    19 Num relatório de 1999 sobre a implementação da directiva (9), várias vezes evocado pelas partes, a Comissão tinha, entre outros, chamado a atenção precisamente para as modificações de que a directiva foi objecto no decurso dos trabalhos preparatórios, para deduzir que, embora o teor do artigo 2._, n._ 1, da directiva não fosse explícito nesse sentido, seria difícil defender que esta disposição não inclui igualmente as viagens organizadas («com tudo incluído») por medida, dado que as exigências de protecção do consumidor são as mesmas tanto para este tipo de viagens como para as concebidas previamente pelo operador.

    20 Também neste sentido, observa ainda a Comissão, milita uma leitura sistemática da directiva. Com efeito, nos termos do artigo 4._, n._ 2, alínea a), «[c]onsoante o tipo de viagem organizada em questão, o contrato incluirá pelo menos as cláusulas constantes do anexo» da directiva. Neste último, na alínea j), indica-se que entre os «[e]lementos a incluir no contrato caso se apliquem à viagem organizada em causa» figuram «[t]odas as exigências específicas que o consumidor tenha comunicado ao operador ou à agência no momento da reserva e que tenham sido aceites por ambas as partes» (10). Isto significa que, antes da celebração do contrato, o consumidor pode manifestar à agência de viagens ou ao operador pretensões concretas ou exigências específicas e que, por esse facto, não é obrigado a aceitar unicamente as condições que lhe sejam propostas por aqueles. De resto, acrescenta o Governo austríaco, já são actualmente numerosos os operadores de viagens que organizam módulos de serviços turísticos que podem por vezes ser combinados em função das exigências da clientela, do mesmo modo que se verifica também a situação de viagens organizadas («com tudo incluído») que, no momento em que se efectuam as reservas por conta de determinado cliente, podem sofrer modificações sempre em razão das necessidades específicas expressas por este último.

    21 Para lá destas considerações, por si só decisivas, em minha opinião, as partes sublinharam unanimemente que, no caso de o teor da disposição e os trabalhos preparatórios deixarem subsistir quaisquer dúvidas, estas são definitivamente dissipadas se se tiver em conta que a interpretação da directiva em causa se deve inspirar num critério não restritivo, a fim de assegurar ao consumidor a maior protecção possível. As passagens citadas dos acórdãos AFS e Rechberger parecem-me apontar claramente neste sentido, mas permita-se-me que recorde, a este propósito, que me pronunciei recentemente, nas conclusões que apresentei no processo Leitner (11), no sentido de que este critério de interpretação deve ser aplicado não só à análise sistemática do teor e das finalidades da directiva mas também à circunstância de esta ter sido adoptada ao abrigo do artigo 100._-A (que passou, após alteração, a artigo 95._ CE), cujo n._ 3 exige que as medidas de harmonização em matéria de defesa dos consumidores se baseiem num nível de protecção elevado (12). Ora, uma interpretação do artigo 2._, n._ 1, da directiva que apontasse numa direcção oposta à aqui sugerida conduziria, de facto, a uma redução da protecção do consumidor em todo o sector das viagens «à la carte».

    22 As referidas observações dos intervenientes afiguram-se-me justificadas. Consequentemente, proponho que se dê resposta afirmativa à primeira questão prejudicial.

    B - Quanto à segunda questão prejudicial

    23 Através da segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a expressão «combinação prévia», constante do artigo 2._, n._ 1, da directiva, pode ser interpretada referindo-se ao momento em que o contrato é celebrado entre a agência e o cliente.

    24 Tendo em conta a solução sugerida para a primeira questão prejudicial, isto é, que o conceito de viagem organizada («com tudo incluído») inclui as viagens organizadas «por medida», todas as partes concordam em dar resposta afirmativa à questão submetida, com exclusão, esclarece o Governo espanhol, dos serviços contratados no local da prestação ou do destino turístico.

    25 Também sobre este ponto as observações das partes me parecem perfeitamente pertinentes. De facto, dado que entre os serviços turísticos que se enquadram no âmbito de aplicação da directiva se contam também os que são prestados em resultado de uma organização «concertada» entre a agência de viagens e o cliente e que tal «concertação» se pode prolongar até ao momento em que as partes concluem o acordo, portanto, até à estipulação do contrato, à expressão «combinação prévia» não se pode senão atribuir o significado indicado na questão. Por outro lado, um serviço turístico não deixa de ser uma viagem organizada na acepção da directiva pelo simples facto de o consumidor dar a conhecer ao operador as suas pretensões concretas «no momento da reserva» [v. anexo da directiva, alínea j)].

    26 O Governo francês e a Comissão recordaram, de resto, que, no citado relatório de 1999, esta última tinha sugerido a supressão do termo «prévia», considerado ambíguo e gerador de incertezas. De facto, se se considerar, como considero, que a directiva inclui igualmente as viagens organizadas por medida, isto é, aquelas cujos pormenores podem ser ultimados perto da data ou até no momento da estipulação do contrato de viagem, o referido termo afigura-se efectivamente supérfluo.

    27 Em conclusão, sou de opinião de que também à segunda questão prejudicial deve ser dada resposta afirmativa.

    IV - Conclusões

    28 À luz das considerações precedentes, proponho, assim, ao Tribunal de Justiça que declare que:

    «1) As viagens organizadas pela agência, a pedido e por iniciativa do consumidor ou de um grupo restrito de consumidores em conformidade com as suas exigências específicas, que incluam transporte e alojamento num empreendimento turístico, por um preço global com tudo incluído, excedendo vinte e quatro horas ou incluindo uma dormida, são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 2._, n._ 1, da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados.

    2) A expressão `combinação prévia', constante do artigo 2._, n._ 1, da Directiva 90/314, pode ser interpretada referindo-se ao momento em que o contrato é celebrado entre a agência e o cliente.»

    (1) - Directiva do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (JO L 158, p. 59, a seguir «directiva»).

    (2) - Diário da República, I série-A, n._ 186, de 13 de Agosto de 1997, p. 4219.

    (3) - Nota não pertinente para a versão portuguesa.

    (4) - Acórdão de 15 de Junho de 1999, Rechberger e o. (C-140/97, Colect., p. I-3499).

    (5) - Acórdão de 11 de Fevereiro de 1999, AFS Intercultural Programs Finland (C-237/97, Colect., p. I-825).

    (6) - COM(88) 41 final (JO 1988, C 96, p. 5).

    (7) - Sublinhado nosso.

    (8) - Artigo 2._, n._ 2, da directiva (sublinhado nosso).

    (9) - Relatório sobre a implementação da Directiva 90/314/CEE do Conselho relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados, na legislação nacional dos Estados-Membros da UE [SEC(1999) 1800 final]; v. secção 1.2.1.

    (10) - Sublinhado nosso.

    (11) - Conclusões de 20 de Setembro de 2001 no processo C-168/00 (acórdão ainda não proferido).

    (12) - N._ 26, no qual faço igualmente referência às conclusões, no mesmo sentido, do advogado-geral A. Saggio apresentadas no processo Rechberger e o. (n._ 17).

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