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Document 61999CJ0354

Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 18 de Outubro de 2001.
Comissão das Comunidades Europeias contra Irlanda.
Incumprimento - Directiva 86/609/CEE - Transposição incompleta.
Processo C-354/99.

Colectânea de Jurisprudência 2001 I-07657

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2001:550

61999J0354

Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 18 de Outubro de 2001. - Comissão das Comunidades Europeias contra Irlanda. - Incumprimento - Directiva 86/609/CEE - Transposição incompleta. - Processo C-354/99.

Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-07657


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Actos das instituições - Directivas - Execução pelos Estados-Membros - Directiva que visa criar direitos para os particulares - Exigências de clareza e de segurança jurídica - Transposição sem intervenção legislativa - Inadmissibilidade - Execução mediante práticas administrativas - Insuficiência

[Tratado CE, artigo 189.° (actual artigo 249.° CE)]

2. Acção por incumprimento - Exame da procedência pelo Tribunal de Justiça - Inexistência de consequências negativas do incumprimento alegado - Falta de relevância

[Tratado CE, artigo 169.° (actual artigo 226.° CE)]

3. Acção por incumprimento - Exame da procedência pelo Tribunal de Justiça - Situação a tomar em consideração - Situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado

[Tratado CE, artigo 169.° (actual artigo 226.° CE)]

4. Estados-Membros - Obrigações - Obrigação de punir as violações do direito comunitário - Alcance

[Tratado CE, artigo 5.° (actual artigo 10.° CE)]

Sumário


1. Cada Estado-Membro deve executar as directivas de maneira a responder plenamente às exigências de clareza e de precisão das situações jurídicas impostas pelo legislador comunitário no interesse das pessoas abrangidas que estão estabelecidas nos Estados-Membros. Com este fim, as disposições de uma directiva devem ser aplicadas com uma obrigatoriedade incontestável, com a especificidade, a precisão e a clareza necessárias.

Por conseguinte, não pode considerar-se que simples práticas administrativas, por natureza livremente modificáveis pela Administração e desprovidas de publicidade adequada, constituam uma execução válida da obrigação de transposição que incumbe aos Estados-Membros destinatários das directivas.

( cf. n.os 27-28 )

2. Sendo o não respeito de uma obrigação imposta por uma regra do direito comunitário constitutivo, em si mesmo, de um incumprimento, não é pertinente a consideração de que esse não respeito não tem consequências negativas.

( cf. n.° 34 )

3. No âmbito de uma acção ex artigo 169.° do Tratado (actual artigo 226.° CE), a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado-Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, não sendo as alterações posteriormente ocorridas tomadas em consideração pelo Tribunal.

( cf. n.° 45 )

4. Quando uma regulamentação comunitária não contenha qualquer disposição específica que preveja uma sanção para a sua violação, ou remeta, nesse ponto, para as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, o artigo 5.° do Tratado (actual artigo 10.° CE) impõe aos Estados-Membros que tomem todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito comunitário. Para esse efeito, ao mesmo tempo que conservam a possibilidade de escolha das sanções, os Estados-Membros devem, nomeadamente, velar por que as violações do direito comunitário sejam punidas em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes e que, de qualquer forma, confiram à sanção um carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo.

( cf. n.° 46 )

Partes


No processo C-354/99,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por R. Wainwright, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Irlanda, representada inicialmente por M. A. Buckley, seguidamente por L. A. Farrell, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

que tem por objecto obter a declaração de que, ao não tomar todas as medidas necessárias para garantir a correcta transposição dos artigos 2.° , alínea d), 11.° e 12.° da Directiva 86/609/CEE do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins científicos (JO L 358, p. 1), e ao não instituir um regime de sanções adequado ao não cumprimento das exigências da Directiva 86/609, a Irlanda não deu cumprimento a esta directiva, em especial ao seu artigo 25.° , nem às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE, nomeadamente do seu artigo 5.° (actual artigo 10.° CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, S. von Bahr, D. A. O. Edward, A. La Pergola (relator) e C. W. A. Timmermans, juízes,

advogado-geral: L. A. Geelhoed,

secretário: R. Grass,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 5 de Abril de 2001,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de Setembro de 1999, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, ao abrigo do artigo 226.° CE, uma acção que tem por objecto obter a declaração de que, ao não tomar todas as medidas necessárias para garantir a correcta transposição dos artigos 2.° , alínea d), 11.° e 12.° da Directiva 86/609/CEE do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins científicos (JO L 358, p. 1, a seguir «directiva»), e ao não instituir um regime de sanções adequado ao não cumprimento das exigências da Directiva 86/609, a Irlanda não deu cumprimento a esta directiva, em especial ao seu artigo 25.° , nem às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE, nomeadamente do seu artigo 5.° (actual artigo 10.° CE).

A legislação comunitária

2 A directiva visa estabelecer normas mínimas aplicáveis à utilização de animais para fins experimentais e outros fins científicos, com o objectivo de desenvolver, de produzir ou de controlar medicamentos, alimentos e outras substâncias ou produtos, bem como de proteger o ambiente. As espécies ameaçadas apenas podem ser utilizadas em investigações orientadas para a preservação da espécie em questão ou para fins essencialmente biomédicos, quando se provar que a espécie em questão é a única indicada para tais fins.

3 A directiva estabelece exigências gerais e específicas no que respeita nomeadamente ao alojamento de animais, sua liberdade de movimentos, vigilância, prevenção da dor ou da aflição, eliminação de eventuais dissabores ou sofrimentos. A directiva impõe ainda a obrigação de abater por métodos humanos os animais utilizados em experiências. As experiências só podem ser realizadas por pessoas competentes e autorizadas devendo ser concebidas e realizadas de maneira a minimizar o sofrimento. As experiências susceptíveis de causar dores violentas devem ser antecipadamente notificadas às autoridades nacionais competentes ou ser autorizadas. O pessoal de laboratório deve receber uma formação adequada. O anexo II da directiva contém as linhas directrizes para o alojamento e os cuidados a prestar aos animais.

4 Os estabelecimentos de criação, os estabelecimentos fornecedores e os estabelecimentos de utilização devem ser aprovados ou registados e manter um registo dos animais utilizados. Os cães, os gatos, e os primatas não humanos devem receber uma marca de identificação. Certos animais enumerados no anexo I, em especial os ratos, as ratazanas, os cães e os gatos, devem ser, salvo autorização prévia, animais de criação especial. Para evitar duplicações inúteis das experiências realizadas, os Estados-Membros devem, na medida do possível, reconhecer a validade dos dados resultantes das experiências realizadas noutros Estado-Membros.

5 O artigo 2.° , alínea d), da directiva tem a seguinte redacção:

«Para efeitos da presente directiva, entende-se por:

[...]

d) 'Experiência', a utilização de um animal para fins experimentais ou científicos que possam causar-lhe dor, sofrimento, aflição ou dano duradouro, incluindo qualquer acção que tenha em vista ou que possa resultar no nascimento de um animal em tais condições, à excepção dos métodos menos dolorosos de matar ou marcar um animal aceites pela prática moderna (métodos 'humanos'); a experiência começa no momento em que um animal é preparado pela primeira vez para ser utilizado e acaba quando já não há mais observações a fazer para tal experiência; a eliminação da dor, sofrimento, aflição ou dano duradouro graças à utilização eficaz de anestésicos, analgésicos ou outros métodos não exclui a utilização dos animais do âmbito desta definição. Excluem-se as práticas não experimentais, agrícolas ou de clínica veterinária.»

6 O artigo 11.° da directiva prevê:

«Sem prejuízo das outras disposições da presente directiva, quando tal for necessário para os objectivos legítimos de uma experiência, a autoridade pode permitir que o animal em questão seja posto em liberdade, desde que esteja certa de que serão tomadas todas as medidas necessárias para salvaguardar o seu bem-estar e desde que o seu estado de saúde o permita e não constitua perigo para a saúde pública e para o ambiente.»

7 Nos termos do artigo 12.° , n.° 1, da directiva:

«Os Estados-Membros estabelecerão mecanismos pelos quais as experiências ou os dados relativos às pessoas que procedem a tais experiências sejam previamente notificadas à autoridade.»

8 De acordo com o artigo 25.° da directiva, os Estados-Membros deviam adoptar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para, o mais tardar em 24 de Novembro de 1989, darem cumprimento à directiva e informar imediatamente a Comissão das medidas tomadas. Deviam ainda comunicar-lhe as disposições legislativas adoptadas no sector abrangido pela directiva.

A legislação nacional

9 A legislação irlandesa relativa ao sector abrangido pela directiva é constituída pelo Cruelty to Animals Act 1876 (lei de 1876 sobre a crueldade para com os animais, a seguir «lei de 1876»). Segundo o Governo irlandês, a transposição da directiva para o direito nacional foi, inicialmente, realizada através de uma revisão dos procedimentos de autorização e registo previstos na lei de 1876 e, posteriormente, através da adopção das European Communities (Amendment of Cruelty to Animals Act 1876) Regulations 1994 [regulamentação das Comunidades Europeias de 1994 (alteração da lei de 1876), a seguir «lei de alteração»].

10 A lei de 1876, na versão resultante da lei de alteração (a seguir «lei alterada»), prevê, entre outros, os casos e as condições em que podem realizar-se experiências em animais. Assim, o seu artigo 2.° proíbe as experiências concebidas com o objectivo de causar dor a animais vivos, excepto nos casos previstos na lei.

11 O artigo 12.° -A, primeira frase, da lei alterada, que resulta da lei de alteração, tem a seguinte redacção: «Em especial, no que respeita às experiências previstas na presente lei, deverão ser respeitadas as disposições seguintes.»

12 O artigo 12.° -A, n.° 9, da lei alterada dispõe:

«Sem prejuízo das demais disposições da presente lei, quando tal for necessário para os objectivos legítimos de uma experiência, o animal em causa pode ser colocado em liberdade, desde que tenha sido feito todo o possível para salvaguardar o seu bem-estar, que o seu estado de saúde o permita e que não exista perigo para a saúde pública e para o ambiente.»

13 O artigo 12.° -A, n.° 10, ponto 1, da lei alterada prevê que «[o] Ministro [da Saúde] estabeleça os mecanismos pelos quais as experiências ou os dados relativos às pessoas que procedem a tais experiências sejam previamente notificados à autoridade». É ainda especificado que «quando estiver previsto submeter um animal a uma experiência que lhe provoque ou possa provocar dores violentas susceptíveis de se prolongarem, tal experiência deve ser especificamente declarada ao Ministro da Saúde e ser justificada ou por ele expressamente autorizada» e que «[o] Ministro tomará as medidas judiciais e administrativas adequadas se entender que a experiência não é suficientemente importante para as necessidades essenciais do homem ou do animal».

14 O artigo 2.° da lei alterada prevê que podem ser impostas sanções às pessoas que «realizem ou colaborem numa experiência destinada a causar sofrimento, infringindo assim a presente lei». A pena aplicável é, para a primeira infracção, a de multa até 50 IEP e, para a segunda, a de multa até 100 IEP ou a de prisão até três meses.

15 Além disso, nos termos do artigo 13.° da lei alterada, em caso de obstrução a determinadas investigações pode ser aplicada uma multa até 5 IEP.

A fase pré-contenciosa

16 Após ter dado à Irlanda a oportunidade de apresentar as suas observações quanto à transposição da directiva para o seu direito nacional, a Comissão enviou a este Estado-Membro, respectivamente por cartas de 27 de Maio de 1993 e 17 de Dezembro de 1998, um parecer fundamentado e um parecer fundamentado complementar, em ambos os casos convidando-o a tomar as medidas necessárias para cumprir as obrigações resultantes da directiva no prazo de dois meses a contar da notificação do parecer.

17 Tendo as informações comunicadas à Comissão pelo Governo irlandês, em resposta ao parecer fundamentado complementar, revelado que a directiva ainda não havia sido transposta para o direito irlandês, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

A acção

18 Recordando as obrigações que incumbem aos Estados-Membros por força dos artigos 5.° , primeiro parágrafo, do Tratado, 189.° , terceiro parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 249.° , terceiro parágrafo, CE) e 25.° da directiva, a Comissão conclui que a Irlanda não as cumpriu ao não tomar as medidas necessárias para lhes dar cumprimento e/ou ao não lhas comunicar.

19 A Comissão apresentou, a propósito da transposição da directiva pela Irlanda, quatro acusações que convém analisar sucessivamente:

- ausência de definição da noção de «experiência» [transposição incorrecta do artigo 2.° , alínea d), da directiva],

- ausência de designação da autoridade nacional competente para autorizar a colocação em liberdade de um animal (transposição incorrecta do artigo 11.° , da directiva),

- ausência de mecanismos de notificação prévia à autoridade competente das experiências ou dos dados relativos às pessoas que as efectuam (transposição incorrecta do artigo 12.° , n.° 1, da directiva), e

- ausência de um sistema de sanções adequado aos casos de não respeito das exigências da directiva.

Quanto à ausência de definição da noção de «experiência»

20 A Comissão alega, pela sua primeira acusação, que a noção de «experiência», como definida no artigo 2.° , alínea d), da directiva, circunscreve o âmbito de aplicação desta, ao passo que as disposições irlandesas de transposição utilizam este termo sem lhe definir o teor. Com efeito, como resulta do artigo 12.° -A, primeira frase, da lei alterada, esta aplica-se unicamente às experiências com animais já abrangidas pela lei de 1876, a saber, as experiências que podem causar dor. O tipo de experiências abrangido restringe-se, portanto, expressamente às situações em que existe uma intenção subjectiva («concebidas») ligadas a um só resultado («a dor»).

21 Em compensação, a Comissão afirma que a directiva se aplica às experiências em que existe uma possibilidade objectiva («que possam causar-lhe») de causar dor, sofrimento, aflição ou danos duradouros, ou seja, um conjunto de resultados mais amplo que o visado pela lei alterada, na medida em que estas experiências são praticadas para um dos fins referidos no seu artigo 3.° Deste modo, pode conceber-se que um animal utilizado para fins experimentais sofra «danos duradouros», como uma diminuição da sua esperança de vida em resultado de modificações genéticas, sem porém sentir qualquer dor.

22 Além disso, segundo a Comissão, a ausência de uma definição clara de «experiência» na legislação nacional em causa acarreta insegurança jurídica, na medida em que se ignora até que ponto outros aspectos da definição da directiva, como a duração de uma acção ou os momentos inicial e final de uma experiência, foram acolhidos na ordem jurídica irlandesa.

23 A Comissão lembra que, nos termos da directiva, a noção de «experiência» abrange também «qualquer acção que tenha em vista o nascimento de um animal em tais condições», ou seja, qualquer acção que produza efeitos sobre animais ainda não nascidos. Por conseguinte, a directiva cobre, nomeadamente, as modificações genéticas ou as experiências de clonagem que implicam o nascimento de animais que, posteriormente, irão sofrer danos duradouros, como malformações físicas, deficiências mentais e o aparecimento de cancros ou outras doenças causadas por genes estranhos. Tal não é o caso da lei alterada, que apenas visa animais vivos.

24 O Governo irlandês alega que a preocupação da Comissão relativamente à definição da noção de «experiência» é, em grande medida, de natureza semântica. Com efeito, visto qualquer experiência com animais ser de molde a infligir-lhes sofrimento ou mal estar, todas as experiências são, em princípio, abrangidas pela definição de «experiência» dada pela directiva.

25 A este respeito, o Governo irlandês alega que qualquer pessoa que pretenda fazer investigação com animais vivos deve possuir uma autorização do Ministro da Saúde e realizar os seus trabalhos em estabelecimentos certificados. Por outro lado, o ministro pode não só recusar uma autorização se considerar que a saúde e o bem-estar dos animais não são tidos em conta, como também retirar uma autorização, caso sejam desrespeitadas as condições da sua concessão, e recusar a emissão de nova autorização.

26 Admitindo a oportunidade de alterar a definição da noção de «experiência» que resulta da legislação actualmente em vigor, o Governo irlandês alega que, na prática, os critérios relativos à aflição e ao sofrimento duradouros causados aos animais são claramente abrangidos pela definição desta noção que resulta da lei alterada.

27 Importa, a este respeito, recordar que, segundo jurisprudência constante, cada Estado-Membro deve executar as directivas de maneira a responder plenamente às exigências de clareza e de precisão das situações jurídicas impostas pelo legislador comunitário no interesse das pessoas abrangidas que estão estabelecidas nos Estados-Membros. Com este fim, as disposições de uma directiva devem ser aplicadas com uma obrigatoriedade incontestável, com a especificidade, a precisão e a clareza necessárias (v. acórdão de 4 de Dezembro de 1997, Comissão/Itália, C-207/96, Colect., p. I-6869, n.° 26).

28 Por conseguinte, não pode considerar-se que simples práticas administrativas, por natureza livremente modificáveis pela Administração e desprovidas de publicidade adequada, constituam uma execução válida da obrigação de transposição que incumbe aos Estados-Membros destinatários das directivas (v., nomeadamente, acórdão de 6 de Maio de 1980, Comissão/Bélgica, 102/79, Recueil, p. 1473, n.° 11).

29 No presente caso, está assente que a definição de «experiência», tal como prevista no artigo 2.° , alínea d), da directiva, não foi transposta para o direito irlandês. Nestas condições, mesmo que se admita que, na prática, os critérios relativos à aflição e aos danos duradouros causados aos animais são claramente abrangidos pela definição da noção de «experiência» resultante da lei alterada, como sustenta o Governo irlandês, as pessoas em causa encontram-se, quanto à sua situação jurídica, num estado de incerteza.

30 Cumpre, assim, declarar que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 2.° , alínea d), da directiva.

Quanto à ausência de designação da autoridade nacional competente para autorizar a colocação em liberdade de um animal

31 Pela sua segunda acusação, a Comissão alega que, ao contrário do artigo 11.° da directiva, o artigo 12.° -A, n.° 9, da lei alterada, que é a disposição irlandesa pertinente, não sujeita a colocação em liberdade de um animal à autorização da autoridade competente, a qual tem por função verificar previamente se as condições aplicáveis estão reunidas.

32 O Governo irlandês sustenta que o destino reservado aos animais utilizados para fins experimentais deve ser precisado no pedido de autorização necessário para a realização de experiências. Por outro lado, a autorização especifica as condições em que se devem realizar as experiências. De entre estas condições, consta a exigência de o titular da autorização velar pela descrição, em cadernos específicos, da origem, da utilização e do destino final dos animais existentes no estabelecimento para fins científicos, devendo tais cadernos estar à disposição do Ministro da Saúde ou do seu delegado, para serem inspeccionados.

33 Relativamente a esta questão, cumpre observar que o artigo 11.° da directiva não foi transposto de forma completa, dado as disposições nacionais pertinentes não preverem qualquer forma de controlo, por uma autoridade competente, da colocação em liberdade de um animal.

34 Por outro lado, no que se refere ao argumento do Governo irlandês de que a grande maioria dos animais utilizados para experiências na Irlanda são criados para esse efeito em estabelecimentos certificados e são mortos por eutanásia no final da experiência, importa observar que, sendo o não respeito de uma obrigação imposta por uma regra do direito comunitário constitutivo, em si mesmo, de um incumprimento, não é pertinente a consideração de que esse não respeito não tem consequências negativas (v. acórdão de 1 de Fevereiro de 2001, Comissão/França, C-333/99, Colect., p. I-1025, n.° 37).

35 Cumpre, assim, declarar que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 11.° da directiva.

Quanto à ausência de mecanismos de notificação prévia à autoridade competente das experiências ou dos dados relativos às pessoas que as efectuam

36 Pela sua terceira acusação, a Comissão alega que, ainda que o artigo 12.° -A, n.° 10, ponto 1, da lei alterada atribua ao Ministro da Saúde a função de estabelecer mecanismos pelos quais as experiências ou os dados relativos às pessoas que procedem a tais experiências sejam previamente notificadas à autoridade competente, ainda não recebeu qualquer informação relativa ao estabelecimento de tais mecanismos. Além disso, a lei alterada não designa a pessoa ou o organismo que constitui a autoridade competente à qual tais experiências e dados devem, nos termos do artigo 12.° , n.° 1, da directiva, ser previamente notificados.

37 O Governo irlandês alega que, nos termos das disposições nacionais pertinentes, o requerente deve, com antecedência, notificar o Ministro da Saúde dos detalhes das experiências que tenciona efectuar e dos processos que tenciona aplicar. Estas informações dizem respeito à natureza, local e objectivos das experiências e às qualificações do requerente, bem como ao lugar que ocupa no estabelecimento de investigação ou agência por conta do ou da qual realiza as experiências. Por outro lado, de acordo com a legislação irlandesa aplicável, o processo experimental pelo qual se pede uma autorização deve ser certificado como sendo essencial, devendo ainda provar-se que nenhum método científico substitutivo está razoável ou praticamente disponível.

38 Cumpre, a este respeito, constatar que o artigo 12.° , n.° 1, da directiva não foi transposto de forma completa dado que, não obstante as disposições do artigo 12.° -A, n.° 10, ponto 1, da lei alterada, o Ministro da Saúde não estabeleceu qualquer mecanismo que permita notificar previamente a uma autoridade competente nominativamente designada as experiências a realizar ou os dados relativos às pessoas que as irão efectuar.

39 Cumpre, assim, declarar que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 12.° , n.° 1, da directiva.

Quanto à ausência de um sistema de sanções adequado aos casos de não respeito das exigências da directiva

40 Pela sua quarta acusação, a Comissão alega, em primeiro lugar, que os artigos 2.° e 13.° da lei alterada, relativos às sanções aplicáveis aos casos de não respeito das exigências da directiva, não se referem às infracções relativas ao alojamento e aos cuidados prestados aos animais, bem como as relativas ao funcionamento dos estabelecimentos de criação, dos estabelecimentos fornecedores ou dos estabelecimentos de utilização, uma vez que a letra do artigo 2.° apenas se refere às pessoas que efectuam experiências ou que nelas colaboram e que o referido artigo 13.° apenas penaliza a obstrução às investigações.

41 A Comissão considera que a ausência de sanções aplicáveis às infracções relativas ao alojamento e aos cuidados prestados aos animais, bem como as relativas ao funcionamento dos estabelecimentos de criação, dos estabelecimentos fornecedores ou dos estabelecimentos de utilização põe em causa a eficácia do sistema global de protecção instituído pela lei alterada e viola o artigo 5.° do Tratado. Com efeito, mesmo nos casos em que uma directiva não prevê qualquer sanção ou multa específica para o não cumprimento das obrigações específicas por ela impostas, os Estados-Membros continuam a ter a obrigação geral de, nos termos do artigo 5.° do Tratado, tomar todas as medidas capazes de assegurar o cumprimento do direito comunitário.

42 Em segundo lugar, a Comissão afirma que as sanções previstas nos artigos 2.° e 13.° da lei alterada não são, perante a desvalorização monetária ocorrida após a instituição das multas em questão, nem eficazes, nem proporcionadas, nem dissuasoras. Por outro lado, a Irlanda não sanciona da mesma maneira a violação das regras previstas na directiva e a violação das disposições do direito nacional de natureza e importância semelhante. A Comissão salienta a este respeito, a título exemplificativo, que a multa aplicável a determinadas infracções nacionais análogas em matéria de crueldade para com os animais ascende a 1 000 IEP.

43 O Governo irlandês considera que as inúmeras condições impostas para a emissão de autorizações para a prática de experiências e o direito que o Ministro da Saúde tem de retirar as autorizações que tenham sido concedidas são factores dissuasores da violação das regras aplicáveis na matéria bem mais eficazes que a cominação de multas, as quais só podem ser aplicadas no termo de diligências bem sucedidas.

44 Este governo aceita, contudo, a argumentação da Comissão em relação à inadequação do montante actual das sanções pecuniárias aplicáveis. Indica, nos seus articulados, que tenciona aumentar este montante e que, para o efeito, está a ser elaborado um projecto de lei.

45 Em primeiro lugar, saliente-se que, segundo jurisprudência constante, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado-Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, não sendo as alterações posteriormente ocorridas tomadas em consideração pelo Tribunal (v., nomeadamente, acórdão de 21 de Junho de 2001, Comissão/Luxemburgo, C-119/00, Colect., p. I-0000, n.° 14).

46 A este respeito, deve-se lembrar que, quando uma regulamentação comunitária não contenha qualquer disposição específica que preveja uma sanção para a sua violação, ou remeta, nesse ponto, para as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, o artigo 5.° do Tratado impõe aos Estados-Membros que tomem todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito comunitário. Para esse efeito, ao mesmo tempo que conservam a possibilidade de escolha das sanções, os Estados-Membros devem, nomeadamente, velar por que as violações do direito comunitário sejam punidas em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes e que, de qualquer forma, confiram à sanção um carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo (v., nomeadamente, acórdãos de 21 de Setembro de 1989, Comissão/Grécia, 68/88, Colect., p. 2965, n.os 23 e 24, e de 7 de Dezembro de 2000, de Andrade, C-213/99, Colect., p. 11083, n.° 19).

47 Ora, há que afirmar que as sanções previstas na legislação irlandesa para o caso de não respeito das exigências da directiva não reúnem as condições previstas pela jurisprudência referida no número anterior.

48 Por outro lado, o argumento do Governo irlandês de que os controlos efectuados no contexto dos procedimentos de autorização permitem aplicar, se necessário, uma sanção suficiente, baseia-se na premissa errada de que todas as violações das exigências da directiva podem ser sancionadas no âmbito desses procedimentos. Tal como a Comissão correctamente salientou, o facto de se recusar conceder uma autorização ou de a retirar não pode, em nenhuma circunstância, ser considerado como sanção eficaz e dissuasora sempre que uma experiência abrangida pela directiva for efectuada com total desrespeito pelas disposições nacionais relativas às autorizações.

49 Nestas condições, deve também ser acolhida a quarta acusação da Comissão.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

50 Por força do artigo 69.° , n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da Irlanda e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

decide:

1) Ao não tomar todas as medidas necessárias para garantir a correcta transposição dos artigos 2.° , alínea d), 11.° e 12.° da Directiva 86/609/CEE do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins científicos, e ao não instituir um regime de sanções adequado ao não cumprimento das exigências da Directiva 86/609, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força desta directiva, em especial do seu artigo 25.° , e por força do Tratado CE, nomeadamente do seu artigo 5.° (actual artigo 10.° CE).

2) A Irlanda é condenada nas despesas.

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