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Document 61990CJ0300

    Acórdão do Tribunal de 28 de Janeiro de 1992.
    Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Bélgica.
    Artigos 48.º e 59.º do Tratado CEE - Regulamento (CEE) n.º 1612/68 do Conselho - Dedução de cotizações de seguro - Legislação nacional não conforme.
    Processo C-300/90.

    Colectânea de Jurisprudência 1992 I-00305

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1992:37

    RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

    apresentado no processo C-300/90 ( *1 )

    I — Matéria de facto

    1. Enquadramento jurídico a nível nacional

    A possibilidade de dedução, aos rendimentos tributáveis, das cotizações de seguro complementar de velhice ou por morte prematura regia-se pelo artigo 54.o, ponto 2, alíneas a) e b), do code des impôts sur les revenus. A partir do exercício de 1990, essa disposição foi revogada pelo artigo 35.o, n.o 1, ponto 6, da lei de 7 de Dezembro de 1988{Moniteur belge de 16.12.1988). Essa matèria é attualmente regulada pelos artigos 12.o, n.o 2, ponto 1, e 13.o, n.o 1, ponto 1, da já referida lei de 7 de Dezembro de 1988, que se refere, respectivamente, aos seguros de vida em grupo e aos seguros de vida individuais.

    Num e noutro caso, as disposições em causa prevêem que, para poderem ser deduzidas aos rendimentos tributáveis do contribuinte, as cotizações devem ser «pagas a título definitivo, na Bélgica». Resulta daí que as cotizações do seguro complementar pagas a instituições estabelecidas num outro Estado-membro não podem ser deduzidas.

    2. Antecedentes do litígio

    Vários cidadãos comunitários queixaram-se deste tratamento fiscal à Comissão que, por carta de 3 de Julho de 1987, interveio a esse propósito junto das autoridades belgas. Esta carta ficou sem resposta.

    Por notificação de incumprimento de 3 de Maio de 1988, a Comissão convidou o Governo belga, em aplicação do disposto no artigo 169.o do Tratado CEE, a comunicar-lhe as suas observações em relação à incompatibilidade desse regime fiscal com o direito comunitário.

    Por carta de 5 de Julho de 1988, o Governo belga alegou que as disposições objecto de censura não são contrárias nem ao princípio da livre circulação de trabalhadores nem ao da livre prestação de serviços.

    Em 11 de Outubro de 1988, a Comissão emitiu o parecer fundamentado previsto no primeiro parágrafo do artigo 169.o do Tratado CEE. Aí especificou que o Governo belga não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CEE e do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, e convidou-o a dar cumprimento ao parecer num prazo de dois meses.

    Não tendo sido endereçada qualquer resposta à Comissão pelas autoridades belgas, aquela decidiu propor a presente acção.

    II — Fase escrita do processo e pedidos das partes

    A acção da Comissão deu entrada na Secretaria do Tribunal em 1 de Outubro de 1990.

    A fase escrita do processo seguiu uma tramitação regular. O Tribunal de Justiça, com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

    A Comissão, demandante, conclui pedindo ao Tribunal que se digne:

    a)

    declarar que o Reino da Bélgica, ao sujeitar a possibilidade de dedução, aos rendimentos tributáveis, das cotizações de seguro complementar de velhice ou por morte prematura à condição de essas cotizações serem pagas a empresas estabelecidas na Bélgica ou a um estabelecimento belga das empresas de seguros estrangeiras, faltou às obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 48.o e 59.o do Tratado CEE e do n.o 2 do artigo 7o do Regulamento n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968;

    b)

    condenar o Reino da Bélgica nas despesas do processo.

    O Reino da Bélgica, demandado, conclui pedindo ao Tribunal que se digne:

    a)

    declarar que, no estado actual do direito comunitário, os artigos 12.o e 13.o da lei de 7 de Dezembro de 1988 não restringem nem a livre circulação de trabalhadores nem a livre prestação de serviços das sociedades de seguros de vida;

    b)

    condenar a Comissão das Comunidades Europeias nas despesas do processo.

    III — Fundamentos e argumentos das partes

    1. Quanto à violação do artigo 48. do Tratado

    A Comissão observa que as disposições em litígio são contrárias ao disposto no n.o 1 do artigo 48.o do Tratado. Como o Tribunal de Justiça admitiu nos acórdãos de 8 de Maio de 1990, Biehl, n.os 11, 12 e 13 (C-175/88, Colect., p. I-1779), e de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu, n.o 11 (152/73, Colect., p. 153), as regras da igualdade de tratamento entre os trabalhadores dos Estados-membros, nomeadamente no que respeita à renumeração, proíbe não-somente as discriminações ostensivas baseadas na nacionalidade, mas ainda todas as formas disssimuladas de discriminação que, por aplicação de outros critérios de distinção, levem, de facto, ao mesmo resultado. Se bem que a recusa da possibilidade de dedução das cotizações se aplique independentemente da nacionalidade do contribuinte, o critério em que se baseia (exigência de que as cotizações sejam pagas na Bélgica), pode actuar em detrimento dos contribuintes nacionais de outros Estados-membros. Assim, um trabalhador será dissuadido de exercer uma actividade profissional na Bélgica, desde o momento em que descubra que a possibilidade de dedução fiscal, de que beneficia por hipótese no Estado em que exerce a sua actividade, a título de cotizações pagas para o seguro de pensão complementar e que pretenda continuar a pagar junto do mesmo segurador, lhe será recusada na Bélgica.

    A Comissão observa, além disso, que as disposições em litígio constituem, de qualquer forma, um entrave à livre circulação de trabalhadores proibido pelo Tratado (acórdão de 7 de Julho de 1988, Stanton, n.o 13, 143/87, Colect., p. 3877).

    A Comissão entende que o argumento do Governo belga segundo o qual a impossibilidade de dedução fiscal das cotizações é compensada pela não tributação dos rendimentos dos capitais constituídos por meio de cotizações não pode ser acolhido. Embora essa vantagem fiscal aplicada às pensões possa regular de maneira equitativa a situação dos trabalhadores fronteiriços, não tem interesse para as pessoas que deixam a Bélgica, após aí terem exercido uma actividade profissional durante um certo período, o que é principalmente o caso dos nacionais de outros Estados-membros. O Tribunal de Justiça excluiu, aliás, no seu acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, n.o 21 (270/83, Colect., p. 273), que qualquer diferença de tratamento se possa justificar por eventuais vantagens.

    A Comissão considera como sendo desprovido de fundamento o argumento do Governo belga segundo o qual, na falta de harmonização fiscal através da adopção da proposta da directiva da Comissão, apresentada ao Conselho em 21 de Dezembro de 1979 e respeitante à harmonização das disposições relativas à tributação de rendimentos em relação com a livre circulação de trabalhadores na Comunidade (JO 1980, C 21, p. 6), as disposições em litígio não podem ser contestadas à luz do Tratado. Com efeito, resulta da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao artigo 95.o do Tratado que, na falta de harmonização decretada em aplicação dos artigos 99.o ou 100.o, a execução das disposições do Tratado a eles relativas e, especialmente, do artigo 99.o, não pode ser transformado em condição prévia da aplicação do artigo 95.o, que impõe aos Estados-membros, com efeito imediato, a obrigação de aplicarem de forma não discriminatória as suas leis fiscais, mesmo antes de qualquer harmonização (acórdão de 27 de Fevereiro de 1980, Comissão/Irlande, n.o 12, 55/79, Recueil, p. 481).

    A Comissão sustenta também que o argumento do Governo belga sobre a impossibilidade de controlar os atestados correspondentes a pagamentos efectuados no estrangeiro não tem fundamento e que a impossibilidade de dedução constitui um meio desproporcionado para impedir eventuais fraudes. Tal como resulta do acórdão, já referido, de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, n.o 25, o risco de evasão fiscal não pode ser invocado para derrogar as normas do Tratado.

    O Governo belga enende que os artigos 12.o e 13.o da lei de 7 de Dezembro de 1988 não contêm qualquer discriminação baseada na nacionalidade entre os trabalhadores dos Estados-membros e é portanto compatível com o artigo 48.o do Tratado. Com efeito, o pagamento das cotizações na Bélgica é exigido tanto a nacionais como a migrantes. Ademais, os trabalhadores belgas anteriormente expatriados que, quando regressam à Bélgica, optem por conservar o benefício dos contratos subscritos no estrangeiro por ocasião dessa expatriação, são afectados por essa limitação da mesma maneira que os trabalhadores originários da CEE, expatriados na Bélgica, que optem por conservar o benefício dos contratos subscritos anteriormente no seu país de origem.

    O Governo belga alega que, contrariamente ao que sustenta a Comissão, as disposições em litígio não constituem uma discriminação indirecta. Com efeito:

    a)

    os artigos 12.o e 13.o da lei de 7 de Dezembro de 1988 não dissuadirão evidentemente um nacional da Comunidade que, no seu Estado-membro de origem, não goze também da possibilidade de dedução fiscal em questão, de aceitar uma proposta de emprego na Bélgica;

    b)

    um nacional da Comunidade que, no seu Estado-membro de origem, goze da possibilidade de dedução fiscal das cotizações em causa, poderá continuar a deduzir essas cotizações aos seus rendimentos profissionais que continue a ter — por hipótese — no seu Estado-membro de origem, após ter aceite um emprego na Bélgica;

    c)

    um nacional da Comunidade que tenha concluído um contrato de seguro de vida com uma sociedade estabelecida fora da Bélgica, pode deduzir as cotizações aos seus rendimentos profissionais belgas se essas cotizações forem pagas, na Bélgica, a empresas belgas ou a estabelecimentos belgas de empresas estrangeiras;

    A lei não dispõe, portanto, que as cotizações devam ser pagas a uma empresa belga;

    d)

    um nacional da Comunidade não poderá deduzir as cotizações de seguro de vida se elas não forem pagas na Bélgica. Todavia, nesse caso, a impossibilidade de dedução das cotizações tem por resultado a não tributação de capitais ou rendimentos constituídos (artigo 32.o bis do code des impôts sur les revenus, segundo parágrafo). Isto assegura que a regulamentação em causa não tenha, nem directa, nem indirectamente, incidência financeira em geral mais desfavorável para os nacionais de outros Estados-membros que para os nacionais belgas.

    Segundo o Governo belga, o caso em apreço não apresenta semelhanças com o do acórdão de 8 de Maio de 1990, Biehl, já referido. Com efeito, nesse processo, era imposta uma obrigação de residência para que o interessado pudesse obter o reembolso do imposto cobrado em excesso, ao passo que no presente processo as disposições em litígio não impõem qualquer obrigação de residência para gozar do benefício da dedução fiscal.

    O Governo belga sustenta que o caso em apreço também não apresenta semelhanças com o do acórdão de 7 de Julho de 1988, Stanton, já referido. Com efeito, esse processo refere-se à situação de um nacional da Comunidade que deseja estender as suas actividades para fora do território de um único Estado-membro, ao passo que os artigos 12.o e 13.o da lei de 7 de Dezembro de 1988 não põem qualquer obstáculo à extensão à Bélgica de uma actividade profissional exercida noutro Estado-membro. Além disso, o processo em questão dizia respeito a contribuições obrigatórias para a segurança social, e o presente processo diz respeito à possibilidade de dedução fiscal de cotizações de seguro voluntário.

    O Governo belga observa que os entraves à livre circulação de pessoas decorrentes da diversidade das legislações dos Estados-membros em matéria fiscal devem ser suprimidos pela harmonização de tais legislações. Para esse efeito, a Comissão propôs uma directiva respeitante à harmonização das disposições respeitantes à tributação dos rendimentos em relação com a livre circulação de trabalhadores dentro da Comunidade, já referida, cujo artigo 9.o está redigido como se segue:

    «1.

    Quando um Estado-membro conceda uma redução do imposto sobre rendimentos, na acepção do artigo 2.o, quer pela via de dedução à matéria colectável, quer de outra forma, em virtude de pagamentos efectuados por uma pessoa singular a uma sociedade de seguros, a um banco, à um fundo de pensão, a uma sociedade de crédito à construção ou a qualquer outro beneficiário, o facto de esse beneficiário estar situado, estabelecido ou residir noutro Estado-membro não justifica, por si só, a recusa dessa redução.

    2.

    O primeiro Estado-membro pode subordinar a aplicação do n.o 1 à condição de o beneficiário ser submetido a um controlo fiscal e de cumprir certas obrigações fiscais similares ao controlo e às obrigações aplicáveis aos beneficiários correspondentes residentes no seu território.»

    Na opinião do Governo belga, esta proposta demonstra que, mesmo após uma harmonização fiscal no que respeita à dedução de cotizações de seguros, um certo entrave à livre circulação de pessoas pode justificar-se por razões de controlo fiscal.

    O Governo belga observa que existem outros entraves à livre circulação de pessoas, nomeadamente os que podem resultar de disparidades das legislações nacionais em matéria de segurança social. O Tribunal admitiu no seu acórdão de 15 de Janeiro de 1986, Pinna, (41/84, Colect., p. 1), que tais entraves eram compatíveis com o Tratado. O que, ao contrário, não é admissível, é que uma regulamentação comunitária adite outras disparidades às já resultantes da falta de harmonização das legislações nacionais.

    Segundo o Governo belga, estes entraves em matéria de segurança social que resultam dessa falta de harmonização não são contrários ao artigo 48.o do Tratado. Eis por que o artigo 51.o prevê uma coordenação das legislações dos Estados-membros no domínio da segurança social com vista a garantir a livre circulação de pessoas.

    O Governo belga observa, enfim, que o acórdão do Tribunal de Justiça que a Comissão invocou contra o argumento segundo o qual a medida em litígio é justificada pela compensação referida, não é pertinente no caso vertente. No acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, já referido, a regulamentação criticada estabelecia um tratamento fiscal que discriminava directamente as sucursais e agências de sociedades de seguros cuja sede estava situada num outro Estado-membro. O Governo belga entende que as vantagens de que podem beneficiar as sociedades estrangeiras não justificam a violação do princípio da não discriminação.

    2. Quanto à violação do artigo 59. do Tratado

    A Comissão sustenta que a medida em litígio constitui violação do princípio da livre prestação de serviços, dado que pode dissuadir não-somente os nacionais de outros Esta-dos-membros, mas também os nacionais do Estado em causa de subscrever um seguro complementar com um segurador estabelecido noutro Estado-membro. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um entrave pode nomeadamente resultar de medidas fiscais nacionais que afectem o exercício, pelo operador económico, dessa liberdade.

    A Comissão alega que o argumento do Governo belga que atribui apenas um alcance muito modesto à Directiva 90/619/CEE do Conselho, de 8 de Novembro de 1990, relativa ao seguro directo de vida, que fixa as disposições destinadas a facilitar o exercício efectivo da livre prestação de serviços e que altera a Directiva 79/267/CEE (JO L 330, p. 50), está desprovido de pertinência. Com efeito, como o seu título indica, as directivas adoptadas pelo Conselho com base no artigo 57.o do Tratado destinadas «a facilitar o exercício efectivo» da livre prestação de serviços, não têm por objecto «liberalizar» uma actividade, o que resulta já da aplicação directa do artigo 59.o a partir do termo do período de transição.

    Segundo a Comissão, a razão de interesse geral, que o Governo belga invoca, para justificar as medidas em litígio, não pode ser aceite. No caso vertente, a impossibilidade de dedução fiscal não é destinada a proteger o tomador do seguro ou o segurado, mas é motivada por razões exclusivamente fiscais.

    O Governo belga sustenta que os artigos 12.o e 13.o da lei de 7 de Dezembro de 1988 não restringem a livre prestação de serviços, dado que no estado actual do direito comunitário tal liberdade não foi conseguida no domínio dos seguros de vida. Com efeito, a Directiva 90/619, que entrará em vigor em 1993, efectua apenas uma muito modesta liberalização dos serviços de seguro de vida. Assim, os seguros de vida não beneficiarão da livre prestação de serviços senão em duas hipóteses: no caso de o tomador tomar a iniciativa de solicitar o compromisso à empresa e no domínio dos seguros em grupo. Por esta razão, os Esta-dos-membros continuam a poder subordinar a prestação de serviços no domínio dos seguros de vida a uma autorização para operar.

    Segundo o Governo belga, a dedução fiscal das cotizações de seguro de vida é posteriormente recuperada pela tributação dos rendimentos ou capitais constituídos por meio dessas cotizações. Se a dedução fiscal não é autorizada por as cotizações serem pagas fora da Bélgica, a tributação prevista pelo direito fiscal belga de 16,5 % não pode ser aplicada aos rendimentos ou capitais constituídos por meio dessas cotizações. Segue-se, na opinião do Governo belga, que a não dedução tem por resultado a não tributação dos rendimentos ou capitais. Assim, ainda que houvesse entrave à livre circulação de pessoas ou à livre prestação de serviços, não seria violado o princípio da proporcionalidade, pois que não existem medidas menos restritivas para chegar ao mesmo resultado.

    O Governo belga sustenta que, mesmo que se devesse admitir que a impossibilidade de dedução das cotizações em causa constitui um entrave à livre prestação de serviços, tal entrave justificar-se-ia pelo interesse geral. Com efeito, se só as cotizações de seguro complementar pagas na Bélgica podem beneficiar da imunidade fiscal, é porque a administração fiscal está na impossibilidade de controlar os atestados correspondentes aos pagamentos efectuados no estrangeiro. O Governo belga entende, no entanto, que, no caso de se dever entender que esses entraves são devidos a razões exclusivamente de caracter fiscal, como faz a Comissão, convém recordar que o Tribunal de Justiça, no acórdão de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe/Bundesmonopolverwaltung für Branntwein, n.o 8 (120/78, Recueil, p. 649) admitiu que interesses de carácter fiscal podem justificar restrições à livre prestação de serviços.

    J. C. Moitinho de Almeida

    Juiz-relator


    ( *1 ) Língua do processo: francês.

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    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    28 de Janeiro de 1992 ( *1 )

    No processo C-300/90,

    Comissão das Comunidades Europeias, representada por Jean-Claude Séché, consultor jurídico, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Roberto Heyder, representante do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

    demandante,

    contra

    Reino da Bélgica, representado por Jan Devadder, consultor no Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente, assistido por Ignace Maselis, advogado no foro de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo na sede da Embaixada da Bélgica, 4, rue des Girondins,

    demandado,

    que tem por objecto a declaração de que, ao sujeitar a possibilidade de dedução, aos rendimentos tributáveis, das cotizações de seguro complementar de velhice ou por morte prematura, à condição de essas cotizações serem pagas a empresas estabelecidas na Bélgica ou a estabelecimentos belgas de empresas de seguros estrangeiras, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 48.o e 59.o do Tratado CEE e do n.o 2 do artigo 7o do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    composto por: O. Due, presidente, R. Joliet, F. A. Schockweiler e F. Grévisse, presidentes de secção, C. N. Kakouris, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias, M. Díez de Velasco e M. Zuleeg, juízes,

    advogado-geral: J. Mischo

    secretário: J. A. Pompe, secretário adjunto

    visto o relatório para audiência,

    ouvidas as alegações das partes na audiência de 3 de Julho de 1991,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Setembro de 1991,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 1 de Outubro de 1990, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 169.o do Tratado CEE, uma acção destinada a fazer declarar que, ao submeter a possibilidade de dedução, aos rendimentos tributáveis, de cotizações de seguro complementar de velhice ou por morte prematura à condição de essas cotizações serem pagas a empresas estabelecidas na Bélgica ou a estabelecimentos belgas de empresas de seguros estrangeiras, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 48.o e 59.o do Tratado CEE e do n.o 2 do artigo 7.o do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1, p. 77).

    2

    Segundo o artigo 54.o, ponto 2, do code des impôts sur les revenus (Moniteur belge de 10.4. de 1964, p. 3809, a seguir «CIR»), serão deduzidas ao total dos rendimentos profissionais, as cotizações de seguro complementar de velhice e por morte prematura que o contribuinte tenha pago a título definitivo na Bélgica, e para além qualquer obrigação legal, com vista à constituição de uma renda ou de um capital em caso de vida ou em caso de morte.

    3

    O decreto real de execução de 4 de Março de 1965(Moniteur belge de 30.4.1965, p. 4722) dispõe que «os premios únicos ou periódicos pagos pelo contribuinte em execução de contratos de seguro de vida que tenha celebrado individualmente só serão... deduzidos ao total dos rendimentos profissionais do segurado se: 1) os contratos forem celebrados com empresas belgas ou estabelecimentos belgas de empresas estrangeiras que contraiam obrigações cuja execução dependa da duração da vida humana, incluindo as instituições públicas ou privadas de previdência regidas por leis especiais...» (artigo 45.o, que se tornou o artigo 44.o a partir do decreto real de 7 de Janeiro de 1989, Moniteur belge de 10.1.1989, p. 999). Quanto a cotizações de seguro complementar pagas pelas entidades patronais por via de desconto na renumeração, o artigo 33.o sexies do mesmo decreto real determina que a dedução aos rendimentos tributáveis está submetida, entre outras coisas, à condição de as cotizações serem «pagas a uma sociedade de seguros de vida ou a um fundo de pensão, que tenha na Bélgica a sede social, o seu principal estabelecimento ou a sede da sua direcção ou da administração ou a um estabelecimento na Bélgica de uma tal sociedade ou fundo que tenha a sua sede ou o seu principal estabelecimento no estrangeiro...»

    4

    Tendo o artigo 54.o do CIR sido revogado pelo artigo 35.o, n.o 1, ponto 6, da lei de 7 de Dezembro de 1988(Moniteur belge de16.12.1988, p. 17 312), esta matéria é actualmente regulada pelos artigos 12.o, n.o 2, ponto 1, e 13.o, n.o 1, ponto 1, dessa lei, nos termos dos quais:

    «São consideradas como encargos profissionais :

    1)

    as cotizações de seguro complementar de velhice ou por morte prematura que o contribuinte tenha pago a título definitivo, na Bélgica, para além de qualquer obrigação legal, com vista à constituição de uma renda ou de um capital em caso de vida ou em caso de morte, com intervenção da sua entidade patronal, por via de retenção feita na sua renumeração» (artigo 12.o, n.o 2);

    «Serão deduzidas ao total dos rendimentos profissionais...

    1)

    as cotizações de seguro complementar de velhice e por morte prematura que o contribuinte tenha pago a título definitivo, na Bélgica, para além de qualquer obrigação legal, com vista à constituição de uma renda ou de um capital em caso de vida ou em caso de morte em execução de um contrato de seguro de vida que tenha celebrado individualmente» (artigo 13.o, n.o 1).

    5

    Para mais ampla exposição dos factos, da tramitação processual e dos fundamentos e argumentos das partes, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

    Quanto à violação do artigo 48.o do Tratado e do artigo 7o, n.o 2, do Regulamento n.o 1612/68

    6

    O Governo belga alega que as disposições em litígio se aplicam sem distinção de nacionalidade aos trabalhadores belgas e aos trabalhadores nacionais de outros Es-tados-membros que optem por conservar o benefício dos contratos subscritos anteriormente no estrangeiro, e que a afirmação da Comissão segundo a qual essas disposições actuam mais especialmente em detrimento dos contribuintes nacionais dos outros Estados-membros está desprovida de qualquer fundamento.

    7

    A este propósito, há que salientar que os trabalhadores que exercem uma actividade profissional num Estado-membro e que, a seguir, trabalham noutro Estado-membro, ou aí estão à procura de um emprego, subscreveram normalmente os seus contratos de seguro de vida com seguradores estabelecidos no primeiro Estado. Segue-se que as disposições em causa podem actuar particularmente em detrimento desses trabalhadores que, regra geral, são nacionais de outros Estados--membros.

    8

    O Governo belga observa além disso que, embora os nacionais de outros Estados-membros que trabalham na Bélgica e que são beneficiários de contratos de seguro de vida subscritos anteriormente num outro Estado-membro, não possam deduzir as suas cotizações ao total dos rendimentos tributáveis, em contrapartida, as pensões, rendas, capitais ou valores de remição que lhes são pagos pelos seguradores em execução dos referidos contratos não constituem rendimentos tributáveis, tal como resulta do artigo 32.o bis, inserido no CIR pela lei de 5 de Janeiro de 1976(Moniteur belge de 5.2.1976, p. 81). Se, ao regressarem ao seu país de origem, tiverem de pagar imposto sobre tais montantes, tal não decorre dum entrave à livre circulação de trabalhadores criado pela lei belga, mas da falta de harmonização das legislações fiscais dos Estados-membros.

    9

    Este argumento não pode ser acolhido. Com efeito, são normalmente os nacionais de outros Estados-membros que, após terem trabalhado na Bélgica, regressam ao seu país de origem no qual as somas devidas pelos seguradores são objecto de tributação e não podem assim compensar a impossibilidade de dedução de cotizações em matéria de impostos sobre o rendimento com não tributação dos montantes devidos pelos seguradores. É certo que tal situação resulta da falta de harmonização das legislações fiscais dos Estados-membros, mas essa harmonização não poderá ser transformada em condição prévia da aplicação do artigo 48.o do Tratado.

    10

    O Governo belga alega que, de qualquer forma, as disposições em litígio são justificadas por razões de interesse geral. Por um lado, é difícil, se não impossível, controlar o pagamento das cotizações nos outros Estados-membros, e, por outro, tais disposições são necessárias para assegurar a coerência do regime fiscal em causa.

    11

    No que respeita à eficácia dos controlos fiscais, há que salientar que a Directiva 77/799/CEE do Conselho, 19 de Dezembro de 1977, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados-membros no domínio dos impostos directos (JO L 336, p. 15; EE 09 Fl p. 94, a seguir «directiva») pode ser invocada por um Estado-membro a fim de controlar se foram efectuados pagamentos noutro Estado-membro, quando, como acontece no caso vertente, o cálculo correcto do imposto sobre o rendimento deva ter em conta os referidos pagamentos (n.o 1 do artigo 1.o).

    12

    O Governo belga alega todavia que certos Estados-membros não dispõem de qualquer base jurídica para exigir dos seguradores as informações necessárias ao controlo dos pagamentos efectuados no seu território.

    13

    Há que salientar, a este propósito, que o n.o 1 do artigo 8.o da directiva não impõe a colaboração das autoridades fiscais dos Estados-membros quando a sua legislação ou a sua prática administrativa não autorizem a autoridade competente nem a efectuar investigações, nem a obter ou utilizar informações no próprio interesse desse Estado. Todavia, o facto de não poder solicitar tal colaboração não pode justificar a impossibilidade de dedução das cotizações de seguro. Com efeito, nada impede as autoridades fiscais belgas de exigirem ao interessado as provas que entenderem necessárias e, se for esse o caso, de recusarem a dedução se essas provas não forem apresentadas.

    14

    No que respeita à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal em causa, há que declarar que existe, na regulamentação belga, uma ligação entre a possibilidade de dedução das cotizações e a tributação das somas devidas pelos seguradores em execução de contratos de seguro de velhice ou por morte. Com efeito, segundo o artigo 32.o bis do CIR, já referido, as pensões, rendas, capitais ou valor de remição dos contratos de seguro de vida estão isentos do imposto quando a dedução das cotizações prevista no artigo 54.o não tiver sido obtida.

    15

    Segue-se que, no regime fiscal belga em causa, a perda de receitas que resulta da dedução de cotizações do seguro de vida ao rendimento total tributável é compensada pela tributação de pensões, rendas ou capitais devidos pelos seguradores. Nos casos em que a dedução de tais cotizações não tenha sido obtida, essas somas estão isentas do imposto.

    16

    A coerência deste regime fiscal, cuja concepção é do Estado belga, pressupõe portanto que, no caso de este Estado ser obrigado a aceitar a dedução das cotizações de seguro de vida pagas noutro Estado-membro, ele possa cobrar o imposto sobre as somas devidas pelos seguradores.

    17

    A este propósito, convém declarar que um compromisso do segurador de pagar o referido imposto não pode constituir uma garantia suficiente. Com efeito, se tal compromisso não for respeitado, será necessário fazê-lo executar no Estado-membro do estabelecimento, e, mesmo independentemente da dificuldade de um Estado conhecer a existência e o montante dos pagamentos efectuados por seguradores estabelecidos noutro Estado, não se exclui que razões de ordem pública possam então ser invocadas para impedir a cobrança do imposto.

    18

    Tal compromisso poderia certamente ser, em princípio, acompanhado do depósito de uma caução pelo segurador, mas daí resultariam encargos suplementares para este, que deveriam ser repercutidos nos prémios de seguro de modo que os segurados, que poderiam além disso estar sujeitos a dupla tributação das somas devidas em execução dos contratos, já não teriam qualquer interesse em manter estes últimos.

    19

    É certo que existem convenções bilaterais entre certos Estados-membros, que admitem a dedução fiscal das cotizações pagas no Estado contratante que não o que concede tal vantagem, e reconhecem a um único Estado-membro o poder de tributar as somas devidas pelos seguradores em execução dos seus contratos. Tal solução só é todavia possível por essa via ou pela adopção, pelo Conselho, das medidas de coordenação ou de harmonização necessárias.

    20

    Segue-se que, no estado actual do direito comunitário, a coerência do regime fiscal em causa não pode ser assegurada por medidas menos restritivas que as previstas pelas disposições em litígio, e que qualquer outra medida que permitisse garantir a cobrança pelo Estado belga do imposto previsto na sua legislação sobre as somas devidas pelos seguradores em execução dos seus contratos teria consequências semelhantes às que resultam da impossibilidade de dedução das cotizações.

    21

    Tendo em conta o que precede, há que admitir que as disposições em litígio da lei belga são justificadas pela necessidade de garantir a coerência do regime fiscal em causa e que, por isso, não violam o artigo 48.o do Tratado. Acontece o mesmo no que respeita ao artigo 7o do Regulamento n.o 1612/68.

    Quanto à violação do artigo 59.o do Tratado

    22

    Convém declarar, a este propósito, que as disposições em causa constituem uma restrição à livre prestação de serviços. Com efeito, disposições que implicam o estabelecimento do segurador num Estado-membro para que os segurados possam beneficiar, nesse Estado, de certas deduções fiscais desencorajam os segurados de se dirigirem a seguradores estabelecidos noutro Estado-membro e, por conseguinte, constituem, para estes últimos, um obstáculo à livre prestação de serviços.

    23

    Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (ver, entre outros, o acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, n.o 52, 205/84, Colect., p. 3755), a exigência de um estabelecimento é todavia compatível com o artigo 59.o do Tratado se constituir uma condição indispensável para atingir o objectivo de interesse geral procurado. Ora, tal como resulta das considerações antes desenvolvidas, tal acontece no caso em apreço.

    24

    Segue-se que as disposições em litígio não são contrárias ao artigo 59.o do Tratado e que, por conseguinte, a acção deve ser julgada improcedente no seu conjunto.

    Quanto às despesas

    25

    Por força do disposto no n.o 2 do artigo 69.o do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená-la nas despesas.

     

    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

    decide:

     

    1)

    A acção é julgada improcedente.

     

    2)

    A Comissão é condenada nas despesas.

     

    Due

    Joliét

    Schockweiler

    Grévisse

    Kakouris

    Moitinho de Almeida

    Rodríguez Iglesias

    Diez de Velasco

    Zuleeg

    Proferido em audiencia pública no Luxemburgo, em 28 de Janeiro de 1992.

    O secretário

    J.-G. Giraud

    O presidente

    O. Due


    ( *1 ) Língua do processo: francês.

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