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Document 61990CC0002(01)

    Conclusões do advogado-geral apresentadas em 19 de Septembro de 1991.
    Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Bélgica.
    Incumprimento de Estado - Proibição de depositar resíduos provenientes doutro Estado-membro.
    Processo C-2/90.

    Colectânea de Jurisprudência 1992 I-04431

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1991:344

    61990C0002(01)

    Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 19 de Septembro de 1991. - COMISSAO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS CONTRA REINO DA BELGICA. - INCUMPRIMENTO PELO ESTADO - PROIBICAO DE DEPOSITAR RESIDUOS PROVENIENTES DE UM OUTRO ESTADO-MEMBRO. - PROCESSO C-2/90.

    Colectânea da Jurisprudência 1992 página I-04431
    Edição especial sueca página I-00031
    Edição especial finlandesa página I-00031


    Conclusões do Advogado-Geral


    ++++

    Senhor Presidente,

    Senhores Juízes,

    1. O Tribunal tem já conhecimento deste processo, no âmbito do qual a Comissão lhe pede que declare que, ao proibir que se depositem, vazem ou descarreguem na Valónia resíduos provenientes de outro Estado-membro ou de uma região diferente da região da Valónia, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força

    1) da Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1985, relativa aos resíduos (JO L 194, p.39; EE 15 F1 p. 129),

    2) da Directiva 84/631/CEE do Conselho, de 6 de Dezembro de 1984, relativa ao controlo na Comunidade das transferências transfronteiras de resíduos perigosos (JO L 326, p. 31; EE 15 F5, p. 122) e

    3) dos artigos 30. e 36. do Tratado CEE.

    2. Foram feitas alegações orais na audiência de 27 de Novembro de 1990 e eu apresentei as minhas conclusões em 10 de Janeiro de 1991. Todavia, por despacho de 2 de Maio de 1990, proferido em conformidade com o artigo 61. do Regulamento de Processo, o Tribunal reabriu a fase oral do processo para facultar às partes, aos restantes Estados-membros e às restantes instituições, a possibilidade de se pronunciarem sobre a seguinte questão: a circulação de resíduos não utilizáveis e não recicláveis, destituídos de valor comercial, está sujeita às disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias ou será que as transacções comerciais relativas à eliminação, ao depósito ou à destruição de tais resíduos são reguladas pelas disposições do Tratado relativas à livre circulação de serviços?

    3. Além disso, a Comissão foi convidada a informar o Tribunal acerca das medidas comunitárias que estariam, eventualmente, a ser preparadas em matéria de transferências transfronteiras, armazenagem, descarga ou depósito de resíduos não perigosos, não recicláveis, e a indicar se tinha intenção de propor medidas no sentido de eliminar os movimentos transfronteira destes resíduos. Por seu lado, o Governo belga foi convidado a indicar se as disposições em causa nos presentes autos (isto é, o decreto do executivo regional da Valónia de 19 de Março de 1987, na redacção dada pelo Decreto de 23 de Julho de 1987) se referiam a resíduos recicláveis ou não recicláveis.

    4. Tanto a Comissão como o Governo belga responderam às questões que lhe tinham sido especificamente dirigidas, bem como à questão geral, mas nenhum outro Estado-membro nem outra instituição apresentaram observações. Quanto à questão que lhe foi dirigida, o Governo belga afirmou que as disposições em questão se referiam apenas aos resíduos que, ou não podiam ser utilizados ou reciclados, ou efectivamente não foram utilizados nem reciclados. Daí resulta que o decreto do executivo da Valónia é aplicável aos resíduos recicláveis que não se destinam a ser reciclados, bem como aos resíduos não recicláveis. Em resposta à questão que lhe tinha sido colocada, a Comissão forneceu cópias de uma comunicação que enviou ao Conselho e ao Parlamento em 14 de Setembro de 1989, relativa a uma estratégia comunitária para a gestão de resíduos, bem como de uma proposta de directiva do Conselho relativa à descarga de resíduos, datada de 22 de Maio de 1991. A Comissão chamou igualmente a atenção do Tribunal para a proposta de regulamento do Conselho relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO 1990, C 289, p. 9) e para a Directiva 91/156/CEE, recentemente adoptada pelo Conselho, em 18 de Março de 1991, que altera a Directiva 75/442/CEE relativa aos resíduos (JO L 78, p. 32).

    Os resíduos e a livre circulação de mercadorias

    5. No âmbito das precedentes conclusões, afirmei, no n. 16, que as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias devem considerar-se aplicáveis a todos os tipos de resíduos, mesmo aos que não são recicláveis nem reutilizáveis. Pode ser útil aprofundar as razões que estão na base deste ponto de vista, à luz da resposta que as partes deram à questão colocada pelo Tribunal.

    6. As disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias são a pedra angular da Comunidade. Nos termos do artigo 9. do Tratado, a Comunidade "assenta numa união aduaneira que abrange a totalidade do comércio de mercadorias...". Porém, o Tratado não fornece uma definição para o termo "mercadoria" (ao contrário do que sucede com o Tratado CECA, que inclui uma definição dos termos "carvão" e "aço".). A inexistência de qualquer definição indica possivelmente que o termo deve ser interpretado no seu sentido amplo. Em contrapartida, o termo "serviços" foi objecto de uma definição, ainda que incompleta, no artigo 60. do Tratado, segundo o qual:

    "Para efeitos do disposto no presente Tratado, consideram-se 'serviços' as prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas.

    ...".

    7. Como refere o artigo 60. , a noção de serviços abrange uma categoria residual de transacções não abrangidas pela livre circulação de mercadorias, capitais e pessoas: v. acórdão de 11 de Julho de 1985, Cinéthèque, n.os 10 e 11 (60/84 e 61/84, Recueil, p. 2605). O carácter residual das disposições do Tratado relativas aos serviços foi recentemente assinalado pelo acórdão de 30 de Abril de 1991, Boscher (C-239/90, Colect., p. I-2023). Neste processo, uma legislação nacional que restringia a venda em leilão de mercadorias ao impor aos proprietários das mercadorias uma condição de registo local foi considerada incompatível com o artigo 30. do Tratado. O artigo 59. não era aplicável mesmo não sendo duvidoso que a restrição constituía igualmente um obstáculo à prestação de serviços pelos arrematantes aos clientes estabelecidos noutro Estado-membro.

    8. Consequentemente, as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias podem aplicar-se, independentemente de as transacções em questão possibilitarem ou não igualmente a prestação de serviços. Ainda que se admita que o contratante responsável pela eliminação dos resíduos presta ao respectivo produtor um "serviço" na acepção do Tratado, isso não é suficiente para que a transacção seja regulada pelas disposições do Tratado relativas aos serviços. Com efeito, estas só se aplicam se a transacção em questão não for regulada pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias. Isso não significa que não existam circunstâncias que impliquem que uma transacção, que envolve a livre circulação de mercadorias e igualmente a prestação de serviços, possa, com razão, considerar-se regulada pelo artigo 59. : exemplo disso é o transporte temporário de mercadorias para outro Estado-membro tendo em vista a sua restauração ou a sua reparação. Nestes casos, a circulação de mercadorias não é mais do que um aspecto acidental da transacção em questão. Quando, porém, à semelhança do que acontece no caso vertente, a transacção se destina precisamente a deslocar permanentemente um bem de um Estado-membro para outro com o intuito de o armazenar, depositar ou destruir, a circulação da mercadoria não pode considerar-se um mero aspecto acidental da prestação de serviços, mesmo que as operações de armazenagem, depósito ou destruição não se considerem "serviços" na acepção do Tratado: referência ao acórdão de 7 de Maio de 1985, Comissão/França, n. 12 (18/84, Recueil, p. 1339).

    9. Consequentemente, são dois os problemas a examinar: o primeiro consiste em saber se os resíduos não recicláveis são efectivamente "mercadorias" para efeitos de aplicação do Tratado e o segundo em saber se as transacções têm uma outra característica que lhes permita escaparem ao campo de aplicação das disposições relativas à livre circulação de mercadorias. Ambos os problemas serão, a seu tempo, evocados.

    10. O alcance do conceito "mercadorias" estava directamente em causa no acórdão de 10 de Dezembro de 1968, Comissão/Itália (7/68, Recueil, p. 617). Neste processo, o Governo italiano tentou defender que os artigos com um valor artístico, histórico, arqueológico e etnográfico não constituíam "mercadorias ordinárias" e, consequentemente, produtos sujeitos ao artigo 16. do Tratado (que proíbe a imposição de direitos aduaneiros sobre a exportação e os encargos de efeito equivalente). Afastando este argumento, o Tribunal afirmou no seu acórdão (Recueil, p. 626) que

    "nos termos do artigo 9. do Tratado, a Comunidade assenta numa união aduaneira 'que abrange a totalidade das mercadorias' ;

    por mercadorias, na acepção desta disposição, devem entender-se os produtos avaliáveis em dinheiro e susceptíveis, como tal, de ser objecto de transacções comerciais;

    os produtos visados pela lei italiana, sejam quais forem, aliás, as qualidades que os distinguem dos restantes bens de comércio, partilham, no entanto, com estes últimos, a característica de serem avaliáveis em dinheiro e de poderem, assim, ser objecto de transacções comerciais..."

    11. Referindo-se à passagem acabada de citar, o Governo belga sustenta que não basta que os artigos em questão constituam objecto de transacções comerciais; é também necessário que tenham um "valor"; com isto o Governo belga quer, evidentemente, dizer que os bens devem ter um valor positivo e não um valor negativo. Parece-me, no entanto, que a expressão "avaliáveis em dinheiro" que figura na passagem citada não deve ter uma interpretação tão restritiva. Considerando o problema que foi colocado ao Tribunal no processo 7/68, é evidente que "avaliáveis em dinheiro" se opunha não à expressão "destituídos de valor" ou "com um valor negativo", mas à expressão "inestimáveis", isto é, que possuem um valor (artístico, histórico, etc.) de tal modo elevado ou, eventualmente, indeterminável ou indescritível que não pode ser expresso em termos pecuniários. Como o Tribunal salientou, não só os artigos podiam ser avaliados em termos pecuniários, como o encargo italiano em causa era, de facto, calculado com base neste valor pecuniário.

    12. Pode perguntar-se se no processo 7/68 o Tribunal pretendeu dar ao termo "mercadorias" uma definição exaustiva, apesar de ser evidente que, seja como for, produtos com um valor "negativo" (isto é, de que o seu proprietário pretende ver-se livre, estando, para tal, na disposição de pagar) podem ser objecto de transacções comerciais. Além disso, as actividades comerciais de eliminação e reciclagem de resíduos não seriam possíveis se não se pudesse determinar um preço com base no qual é comercialmente rentável ver-se confiar tais resíduos. Se o mercado dos resíduos é livre, estes preços "negativos" serão determinados pelas forças do mercado à semelhança do que sucede com o caso habitual das mercadorias que têm um valor positivo. Os resíduos são, consequentemente, algo que pode ser avaliado em dinheiro, constituindo, desta forma, objecto de transacções comerciais. Consequentemente, entendo que, apesar de a definição de "mercadorias" dada no acórdão 7/68 se dever considerar exaustiva, seria conforme com esta directiva qualificar os objectos com valor comercial negativo, como é o caso dos resíduos não recicláveis, como mercadorias na acepção do Tratado.

    13. Deve sublinhar-se igualmente que as noções de preço negativo e valor negativo são bem conhecidas dos economistas

    "Existe quantidade negativa em economia, tal como noutras ciências, quando uma variável, depois de ter ultrapassado o zero, se torna inferior a nada, de modo a que a sua adição dá origem, não um aumento mas uma diminuição. A maior parte das quantidades económicas são susceptíveis de tal mudança de sinal. Assim, a riqueza, quando afectada por um sinal menos, transforma-se em dívida ... Jevons propõe que se empregue o termo 'discommodity' (coisa incómoda) para designar qualquer substância ou acção por oposição a 'commodity' (coisa cómoda ou mercadoria), isto é tudo aquilo de que pretendemos desfazer-nos como, por exemplo, as cinzas ou as águas de esgoto (Theory, 2ª ed., p. 63). Pode afirmar-se de tal artigo que tem um valor negativo...".

    (The new Palgrave: A Dictionary of Economics, sob a direcção de Eatwell, Milgate e Newman, Londres, 1987; artigo intitulado "Negative quantities", já publicado no Palgrave' s Dictionary of Political Economy).

    14. A questão a analisar seguidamente consiste em saber se as transacções em questão se caracterizam por um aspecto - isto é, o de que implicam o transporte para além das fronteiras nacionais de resíduos não recicláveis com vista ao seu armazenamento, depósito ou eliminação - que lhes permite escaparem ao âmbito de aplicação dos artigos 30. a 36. do Tratado.

    15. Deve observar-se, em primeiro lugar, que é possível a determinados produtos beneficiarem das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, independentemente de transporem ou não as fronteiras nacionais com vista à sua venda ou revenda. O princípio da liberdade de circulação das mercadorias não se limita às mercadorias que se destinam a ser comercializadas no Estado-membro de importação; o princípio é, por exemplo, extensivo à importação de bens por um particular para satisfação de necessidades do seu consumo pessoal: v. os acórdãos de 7 de Março de 1989, Schumacher (215/87, Colect., p. 617) e de 7 de Março de 1990, GB-Inno-BM (C-362/88, Colect., p. I-667), bem como as observações do advogado-geral Warner no acórdão de 14 de Dezembro de 1979, Henn e Darby (34/79, Colect., pp. 3795, 3827).

    16. Além disso, parece-me, em princípio, errado restringir a livre circulação das mercadorias à circulação dos objectos com valor positivo. Um objecto com valor negativo é, à semelhança do objecto que tem um valor positivo, algo a que podem ser associados direitos de propriedade e obrigações. Entre estes direitos e obrigações devem contar-se aqueles que se referem à eliminação não perigosa do objecto. O proprietário de um objecto goza, em geral, não só do direito de o utilizar para fins lícitos, mas também do direito de decidir, igualmente no respeito da legalidade, do método adequado quanto à disposição deste objecto. Não me parece possível estabelecer uma distinção útil, para efeito do caso vertente, entre o direito de dispor de um objecto através do consumo e o direito de o fazer através da armazenagem, depósito ou descarga. Para um ecologista, por exemplo, este último direito pode ser mais importante do que o primeiro. Daí resulta, a meu ver, que a livre circulação das mercadorias inclui não só a liberdade de fazer transpor a determinados artigos uma fronteira nacional para se desfazer deles de forma menos onerosa ou mais segura noutro Estado-membro, mas também a liberdade de fazer transpor a fronteira a determinados bens pessoais destinados ao consumo privado, como acontece no processo Shumacher, já referido (n. 15). Consequentemente, a livre circulação de mercadorias aplica-se não só às mercadorias destinadas a serem novamente colocadas no mercado mas também àquelas que se destinam ao consumo, à armazenagem ou à eliminação.

    17. Na audiência, o Governo belga tentou fazer a distinção entre a circulação de um objecto tendo em vista o seu consumo noutro Estado-membro e a circulação dos resíduos com vista à sua eliminação. Defendeu, em especial, que o consumo de um produto constituía a "própria finalidade" das transacções comerciais pelo que era um elemento essencial do circuito económico constituído pela produção, a troca e o consumo. Consequentemente, o Governo belga parece não considerar a produção e a eliminação dos resíduos como um elemento essencial do circuito da actividade económica. Não posso subscrever este ponto de vista. Tanto o fabrico como o consumo dos produtos levam não só à produção de objectos com utilidade positiva, como também, de forma igualmente inevitável, à formação de resíduos inúteis e, por vezes, perigosos. As decisões relativas à eliminação destes resíduos são parte integrante do circuito económico, tal como o são as que se referem ao consumo, à armazenagem ou à eliminação.

    18. Consequentemente, deve, a meu ver, considerar-se como "mercadoria" na acepção do Tratado qualquer objecto material móvel a que podem ser associados direitos de propriedade ou obrigações (e que pode, em consequência, ser apreciado em termos pecuniários, positivos ou negativos). Se o exercício de tais direitos ou o facto de se liberar de tais obrigações implicam a escolha de um método de eliminação e se o método escolhido supõe a circulação do objecto entre Estados-membros, as disposições nacionais que restringem esta circulação devem analisar-se à luz dos artigos 30. a 36. do Tratado.

    19. Como acabei de indicar, não só seria, em princípio, errado restringir as regras do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias aos produtos que têm um valor positivo, como isso seria dificilmente realizável na prática. Como a Comissão sublinha, não se pode estabelecer uma distinção útil, para efeitos do caso sub judice, entre resíduos que são recicláveis e resíduos que o não são. Ambas as formas de resíduos podem ser produtos com um valor negativo, uma vez que, em ambos os casos, o produtor dos resíduos pode estar na disposição de pagar para deles se desembaraçar, isto é, a praticar um preço "negativo". No caso dos resíduos não recicláveis, como é óbvio, o preço é sempre negativo, mas pode acontecer que seja igualmente negativo quando os resíduos são reciclados, pelo facto de o produto da reciclagem não poder cobrir a totalidade dos custos do transporte e da regeneração. Em determinados casos, os resíduos podem ser reciclados, mas, de facto, não serem destinados à reciclagem; recorde-se que o decreto do executivo regional da Valónia abrange tais resíduos. A questão da reciclagem ou não de determinada quantidade de resíduos depende de um certo número de variáveis, entre as quais, o estado actual dos conhecimentos técnicos, o custo das matérias primas concorrentes, o custo do próprio processo de reciclagem e as intenções e a capacidade de quem recicla. Consequentemente, é extremamente difícil, a meu ver, distinguir entre estas diferentes categorias de resíduos, qualificando umas como "mercadorias" e as outras simplesmente como ocasiões de prestação de um serviço, e, com efeito, o Tribunal não parece inclinar-se favoravelmente para tal distinção nos processos precedentes relativos a resíduos: v. os acórdãos de 10 de Março de 1983, Inter-Huiles (172/88, Colect., p. 555) e de 7 de Fevereiro de 1985, ADBHU (240/83, Colect., p. 531). Neste contexto, a Comissão cita igualmente os acórdãos de 12 de Maio de 1987, Traen (372/85 a 374/85, Colect., p. 2141) e de 28 de Março de 1990, Vessoso e Zanetti (C-206/88 e C-207/88, Colect., p. 1461); no entanto, não me parece que, nesses processos, o âmbito de aplicação da livre circulação de mercadorias tenha estado em causa, ainda que indirectamente.

    20. Além disso, a mesma remessa de resíduos pode incluir resíduos recicláveis e resíduos não recicláveis ou pode incluir resíduos recicláveis e, de facto, só uma parte se destinar a ser reciclada. Em minha opinião, não seria aceitável concluir que uma parte da remessa está sujeita à livre circulação de mercadorias ao abrigo do artigo 30. do Tratado e que o resto está sujeito ao mesmo regime, mas nos termos do artigo 59.

    21. Não só seria difícil estabelecer uma distinção entre os resíduos recicláveis e não recicláveis, como também distinguir entre resíduos recicláveis e outras matérias primas. Deve salientar-se que os "desperdícios e resíduos" são mencionados no artigo 4. , n. 2, alínea i), do Regulamento (CEE) n. 802/68 do Conselho, de 27 de Junho de 1968, relativo à definição comum da noção de origem das mercadorias (JO L 148, p. 1; EE 02 F1, p. 5). Além disso, como a Comissão observa, diferentes tipos de resíduos figuram na Pauta Aduaneira Comum, sem dúvida porque constituem uma fonte importante de matérias primas. Poderia dar-se, obviamente, o caso de as categorias de resíduos que aí figuram serem aquelas que normalmente têm um valor mercantil positivo e não negativo, embora, para mim, não exista razão para distinguir entre os dois casos quando está em causa o princípio da liberdade de circulação, especialmente porque um determinado tipo de resíduos pode estar sucessivamente abrangido pelas duas categorias, em função da custo e da existência de outras fontes de matérias primas.

    22. Por todas as razões acabadas de expor, concluo que o termo "mercadorias" na acepção do Tratado abrange os resíduos não recicláveis e inutilizáveis e que as restrições à livre circulação dos resíduos entre os Estados-membros estão sujeitas às disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias e não que se referem à livre circulação de serviços. Do mesmo modo, não obstante o facto de a legislação nacional em questão no caso vertente se aplicar exclusivamente aos resíduos que não podem ser reutilizados ou reciclados ou que, de facto, não o são, entendo que tal legislação viola o artigo 30. do Tratado.

    23. Foram debatidas, na audiência, as medidas que um Estado-membro pode ser autorizado a adoptar com vista a proteger regiões ou localidades específicas da afluência indesejável de resíduos não recicláveis. É evidente que tais medidas deveriam poder ser justificadas, em conformidade com princípios bem estabelecidos, quer ao abrigo do artigo 36. quer ao abrigo de uma das exigências imperativas reconhecidas pelo direito comunitário, entre as quais figura a protecção do ambiente: v. acórdão de 20 de Setembro de 1988, Comissão/Dinamarca (302/86, Colect., p. 4607). Se a justificação assenta numa exigência que não consta do artigo 36. , as medidas em questão devem ser indistintamente aplicáveis aos resíduos nacionais e aos importados. Mesmo que as transacções fossem qualificadas como prestações de serviços, a justificação de uma qualquer restrição devia, a meu ver, ser examinada à luz de princípios semelhantes. Assim, o artigo 56. , que se aplica aos serviços por força do artigo 66. , prevê um excepção à livre circulação dos serviços por razões de saúde pública e, tratando-se de medidas indistintamente aplicadas, as restrições relativas aos serviços podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral (v. o acórdão de 25 de Julho de 1991, Stiching Collectieve Antennevoorziening Gouda, n. 13, C-288/89, Colect., p. I-4007).

    24. Em aplicação destes princípios, parece-me que pelo menos algumas das restrições à transferência dos resíduos se poderiam justificar por razões relacionadas com o ambiente. Apesar de a protecção do ambiente ser uma exigência imperativa que não figura no artigo 36. , tal medida deveria, no entanto, ser indistintamente aplicável aos resíduos nacionais e aos estrangeiros. Como referi nas precedentes conclusões, n. 20, esta condição pode não ser preenchida por uma medida que restringe simplesmente a utilização das instalações de eliminação dos resíduos de determinada região ou localidade aos resíduos produzidos nessa localidade ou região. Uma disposição deste tipo favorece claramente os resíduos produzidos no território nacional, nomeadamente quando, como é o caso dos decretos do executivo regional da Valónia, são admitidas excepções para os resíduos provenientes de outras regiões do mesmo Estado-membro. Consequentemente, nas circunstâncias do caso em análise, as medidas em questão não podem ser justificadas por razões que se prendem com a protecção do ambiente. Em contrapartida, uma disposição aplicável sobre a totalidade do território de uma região de um Estado-membro que exige que os resíduos sejam eliminados na localidade onde foram produzidos pode considerar-se uma disposição indistintamente aplicável. Uma disposição deste tipo impediria que os resíduos produzidos em determinado local fossem exportados para outra localidade ou outro Estado-membro, tal como impediria a eliminação dos resíduos provenientes de outro Estado-membro ou de outra localidade. Tal medida poderia, além disso, justificar-se pela necessidade de reduzir a quantidade de resíduos em trânsito e de limitar as zonas utilizadas para a eliminação de resíduos. A questão de saber se a medida é, de facto, proporcional a estes objectivos só pode, como é evidente, ser resolvida à luz de todos os elementos pertinentes.

    Regulamentação comunitária recente e prevista

    25. Como referi no n. 4, a Comissão chamou a atenção do Tribunal para vários instrumentos comunitários recentes ou previstos em matéria de resíduos. Nas minhas conclusões precedentes, nos n.os 23 a 26, analisei a resolução do Conselho de 7 de Maio de 1990 sobre a política de resíduos (JO C 122, p. 2) e a proposta de regulamento do Conselho relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO 1990, C 289, p. 9). Continuo a defender que a proibição geral de importação de resíduos fixada pelo executivo regional da Valónia não pode ser justificada pela resolução do Conselho ou pelo projecto de regulamento, ainda que a primeira fosse um instrumento obrigatório ou que o último estivesse actualmente em vigor.

    26. Com a Directiva 91/156/CEE, o Conselho liberou-se do compromisso de modificar a Directiva 75/442, que tinha formulado na sua Resolução de 7 de Maio. O artigo 5. da directiva, na versão alterada, determina o seguinte:

    "1. Os Estados-membros tomarão as medidas adequadas... para a constituição de uma rede integrada e adequada de instalações de eliminação ... Esta rede deverá permitir que a Comunidade no seu conjunto se torne auto-suficiente em matéria de eliminação de resíduos e que os Estados-membros tendam para esse objectivo, cada um por si, tendo em conta as circunstâncias geográficas ou a necessidade de instalações especializadas para certo tipo de resíduos.

    2. Esta rede... deverá além disso permitir a eliminação de resíduos numa das instalações adequadas mais próxima, graças à utilização dos métodos e das tecnologias mais adequadas..."

    Parece-me que a proibição unilateral, por um Estado-membro, de importar resíduos pode, efectivamente, revelar-se incompatível com o estabelecimento da referida rede integrada. Tal proibição poderia, em especial, resultar na impossibilidade de os resíduos de um Estado-membro adjacente serem eliminados numa das instalações adequadas mais próximas.

    27. É certo que o artigo 5. da directiva, na versão alterada faz referência ao objectivo dos Estados-membros que é o de tenderem para a auto-suficiência em matéria de eliminação dos resíduos. Porém, é óbvio que este objectivo não pode ser alcançado de uma forma incompatível com os artigos 30. a 36. do Tratado. Do mesmo modo, ainda que uma redução das transferências transfronteiras de resíduos possa constituir um objectivo legítimo da política da Comunidade em matéria de ambiente, tal objectivo não deve ser alcançado através de restrições quantitativas nas fronteiras nacionais. Pelo contrário, esse objectivo deve ser alcançado através de uma melhoria das instalações de eliminação de resíduos e, talvez, acima de tudo, através de uma limitação da quantidade dos resíduos produzidos (v. o quarto considerando da versão alterada da directiva). Por outras palavras, tal objectivo deve ser alcançado mediante a redução da necessidade de exportar resíduos, em vez de se proibir a sua importação a partir de outros Estados-membros.

    28. Além disso, o objectivo da auto-suficiência nacional referido no artigo 5. é temperado pela necessidade de ter em conta "condições geográficas", bem como pela "necessidade de instalações adequadas para certos tipos de resíduos", devendo ser alcançado graças à fixação, pelos Estados-membros, de planos de gestão dos resíduos, em conformidade com a directiva modificada. É por referência a tais planos que os Estados-membros são autorizados a adoptarem as medidas necessárias com vista a impedir os movimentos de resíduos (v. artigo 7. , n. 3).

    29. Consequentemente, ainda que continue a defender que a proibição decretada pelo executivo regional da Valónia não viola a versão actualmente em vigor da Directiva 75/442, pode não ser esse o caso a partir de 1 de Abril de 1993, decorrido o prazo de aplicação da directiva, na sua nova versão.

    30. A proposta de directiva do Conselho relativa à descarga de resíduos de 22 de Maio de 1991 não tem qualquer relação directa com o movimento de resíduos entre Estados-membros, uma vez que se refere antes à harmonização dos processos e dos critérios de utilização deste método de eliminação no território dos Estados-membros. Não deixa de ser verdade que tal harmonização das normas a um nível elevado de protecção do ambiente (v. o segundo considerando do projecto de directiva) constitui um complemento adequado à livre circulação dos resíduos e poderia mesmo responder, em certa medida, às preocupações do executivo regional da Valónia.

    Conclusão

    31. Proponho que o Tribunal:

    1) declare que, ao proibir o armazenamento, depósito ou vazamento na Valónia dos resíduos provenientes de outros Estados-membros e na medida em que isso afecta os resíduos provenientes de outros Estados-membros e outras regiões da Bélgica diferentes da Valónia, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 84/631/CEE do Conselho e do artigo 30. do Tratado CEE;

    2) Negue provimento ao recurso quanto ao restante;

    3) Condene o Reino da Bélgica nas despesas.

    (*) Língua original: inglês.

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