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Document 61989TJ0070

Acórdão do Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção) de 10 de Julho de 1991.
British Broadcasting Corporation e BBC Enterprises Ltd contra Comissão das Comunidades Europeias.
Concorrência - Abuso de posição dominante - Direito de autor - Práticas que impedem a edição e a venda de guias televisão gerais semanais.
Processo T-70/89.

Colectânea de Jurisprudência 1991 II-00535

ECLI identifier: ECLI:EU:T:1991:40

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção)

10 de Julho de 1991 ( *1 )

Sumário

 

Matéria de facto e tramitação processual

 

Pedidos das partes

 

Quanto ao pedido de anulação da decisão na sua globalidade

 

— Quanto à violação do artigo 86.° do Tratado e à insuficiência da fundamentação

 

— Argumentos das partes

 

— Apreciação jurídica

 

— A definição dos produtos em causa

 

— A existência de uma posição dominante

 

— A existência de um abuso

 

— Os efeitos no comércio entre os Estados-membros

 

Quanto ao pedido de anulação, a título subsidiário, do artigo 2° do dispositivo da decisão

 

1. Quanto à violação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 17 do Conselho

 

— Argumentos das partes

 

— Apreciação jurídica

 

2. Quanto à violação da Convenção de Berna

 

— Argumentos das partes

 

— Apreciação jurídica

 

Quanto as despesas

No processo T-70/89,

The British Broadcasting Corporation e BBC Enterprises Limited, com sedes sociais em Londres, representadas por Jeremy Lever, QC, Christopher Bellamy, QC, e Rupert Anderson, do foro de Inglaterra e do País de Gales, mandatados por Robin Griffith, solicitor, de Londres, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório dos advogados Loesch e Wolter, 8, rue Zithe,

recorrentes,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por Jacques Bourgeois, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, assistido por Ian Forrester, QC, do foro da Escócia, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Guido Berardis, membro do Serviço Jurídico da Comissão, Centre Wagner, Kirchberg,

recorrida,

apoiada por

Magill TV Guide Limited, sociedade de direito irlandês, com sede em Dublim, representada por John D. Cooke, senior counsel, do foro da Irlanda, mandatado por Gore & Grimes, solicitors, de Dublim, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório do advogado Louis Schütz, 83, boulevard Grande-Duchesse Charlotte,

interveniente,

que tem por objecto a anulação da Decisão 89/205/CEE da Comissão, de 21 de Dezembro de 1988 (JO 1989, L 78, p. 43), relativa a um processo de aplicação do artigo 86.° do Tratado CEE (IV/31.851, Magill TV Guide/ITP, BBC e RTE),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTANCIA (Segunda Secção),

composto por: A. Saggio, presidente de secção, C. Yeraris, C. P. Briėt, D. Barrington e J. Biancarelli, juízes,

secretário: H. Jung

vistos os autos e após a audiência de 21 de Fevereiro de 1991,

profere o presente

Acórdão

Matèria de facto e tramitação processual

1

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 10 de Março de 1989, a British Broadcasting Corporation (a seguir «BBC») e a BBC Enterprises Limited pediram a anulação da decisão da Comissão de 21 de Dezembro de 1988 (a seguir «decisão») que declarou que as políticas e práticas desse organismo, no momento dos factos analisados, em relação à publicação das listas semanais das suas emissões de televisão e de rádio que podem ser captadas na Irlanda e na Irlanda do Norte, constituem violações do artigo 86.° do Tratado CEE, na medida em que impedem a publicação e a venda de guias de televisão semanais gerais nesse território. O presente recurso encontra-se relacionado com os recursos de anulação interpostos paralelamente, contra essa mesma decisão, pelos seus outros destinatários, a Radio Telefis Eireann (a seguir «RTE»), e a Independem Television Publications (a seguir «ITP»), processos T-69/89 e T-76/89.

2

O contexto geral da decisão pode ser resumido da seguinte forma. A maior parte das familias na Irlanda e 30% a 40% das familias na Irlanda do Norte podem captar, pelo menos, seis canais de televisão: a RTE1 e a RTE2, alimentadas pela RTE, que goza do monopolio legal para o fornecimento do serviço nacional de radioteledifusão por via hertziana na Irlanda, a BBC1 e a BBC2, alimentadas pela BBC, bem como a ITV e o Channel 4, que eram alimentados, no momento dos factos em análise, pelas sociedades de televisão que obtiveram a respectiva licença da Independent Broadcasting Authority (a seguir «IBA») para fornecer emissões de televisão privada. No Reino Unido, a BBC e a IBA encontravam-se numa posição de duopólio para a prestação dos serviços nacionais de televisão por via hertziana. Acresce que numerosos telespectadores da Grã-Bretanha e da Irlanda podiam captar, quer directamente quer por intermédio de redes de distribuição por cabo, vários canais difundidos por satélite. Todavia, não existe televisão por cabo na Irlanda do Norte.

À época dos factos, não existia no mercado, na Irlanda e na Irlanda do Norte, qualquer guia geral semanal de televisão, devido à política seguida pelas sociedades destinatárias da decisão quanto à divulgação da informação referente aos programas dos seis canais anteriormente referidos. Com efeito, cada uma dessas sociedades publicava um guia de televisão exclusivamente dedicado aos seus próprios programas e reivindicava, ao abrigo do United Kingdom Copyright Act 1956 (lei britânica sobre o direito de autor) e do Irish Copyright Act 1963 (lei irlandesa sobre o direito de autor), a protecção do direito de autor sobre as suas listas de programas semanais, para se opor à sua reprodução por terceiros.

As referidas listas indicam o conteúdo dos programas, o respectivo canal, as datas, horários e títulos de cada programa. São objecto de vários projectos sucessivos, cada vez mais precisos, até à aprovação definitiva da programação semanal, cerca de duas semanas antes da emissão. Nessa fase, as listas de programas tornam-se um produto comercializável, como indica a decisão (n.° 7).

3

No que se refere mais especificamente ao presente caso, há que notar que a BBC se reservava o exclusivo da publicação das listas de programas semanais da BBC1 e da BBC2 na sua própria revista de televisão, a Radio Times, especializada na apresentação dos seus programas.

4

A BBC foi instituída no Reino Unido por alvará régio e exerce as suas actividades em matéria de radioteledifusão ao abrigo de uma autorização concedida pelo Secretary of State for Home Affairs (ministro do Interior). Tem essencialmente por missão assegurar, enquanto serviço público, serviços de radioteledifusão destinados ao público em geral no Reino Unido. Por resolução de 8 de Janeiro de 1981, anexada à sua autorização, a BBC reconheceu ter por missão manter um nível geral elevado no que se refere à qualidade dos seus serviços e apresentar programas diversificados. Tem igualmente Dor obiecto. Dor forca do seu alvará, reunir. imprimir, editar, publicar, difundir e, de um modo geral, distribuir, gratuitamente ou não, toda a documentação susceptível de contribuir para a realização do seu objecto social.

5

A BBC é financiada por uma taxa, que constitui a sua principal fonte de receitas, por subvenções e pelas suas próprias actividades comerciais, designadamente de edição, exercidas por meio da BBC Enterprises Ltd, que é sua filial a 100%. A título de ilustração, e segundo as informações que constam dos autos, os lucros obtidos antes de impostos, realizados pela BBC no decurso do exercício que terminou em 31 de Março de 1988, foram da ordem de 1198 milhões de UKL, provenientes da taxa e das subvenções. Os lucros antes de impostos, obtidos durante o mesmo período pela BBC Enterprises Ltd, foram de 6,4 milhões de UKL, dos quais 4,2 milhões pela revista Radio Times.

A este respeito, há que notar que a revista de televisão Radio Times é publicada com finalidades comerciais pela BBC Enterprises Ltd, sob controlo da sua socie-dade-mãe, que determina igualmente a política geral prosseguida em matéria de autorizações para as suas listas de programas radiotelevisivos. Nessas condições, a Comissão considerou que as duas sociedades recorrentes (a seguir designadas colectivamente por «BBC» ou «recorrente») deviam ser consideradas, a esse respeito, como uma única empresa para efeitos da aplicação do artigo 86.° no presente processo (ver n.° 19 da decisão impugnada).

6

Aquando da adopção da decisão impugnada, a Radio Times publicava apenas as listas de programas televisivos da BBCl e da BBC2, completadas por fichas técnicas e sinopses, e os programas de rádio da BBC. Continha igualmente artigos de natureza geral ou informações, bem como um correio de leitores, que ocupavam cerca de um terço das páginas da revista, não contando com o espaço publicitário. Tendo em conta a diversidade das situações locais e regionais, eram publicadas semanalmente dezasseis edições da Radio Times. O preço de venda da revista era de 0,37 UKL ou de 0,52 IRL. Na Irlanda, eram vendidos semanalmente cerca de 15000 exemplares da Radio Times. Na Irlanda do Norte, as vendas semanais atingiam cerca de 75000 exemplares, o que significa, remetendo para os documentos dos autos, que cerca de 25% das famílias compravam a revista. Em conjunto com o guia televisivo publicado pela ITV, a TV Times, a Radio Times era uma das duas revistas semanais de maior tiragem no Reino Unido, onde era distribuída mais de 97% da sua tiragem semanal total, que em média excedia os 3 milhões de exemplares, segundo as indicações fornecidas pela recorrente.

7

Em relação a terceiros, a BBC praticava, no momento dos factos em causa, a seguinte política em matéria de informação sobre os seus programas. Distribuía gratuitamente, a pedido, à imprensa diária ou periódica, a programação das suas emissões, acompanhada de uma autorização, pela qual não eram cobrados direitos, que fixava as condições em que podiam ser reproduzidas essas informações. Os programas diários e, na véspera de dias feriados, os programas de dois dias consecutivos podiam, assim, ser publicados nos jornais, ressalvadas determinadas condições referentes ao formato dessa publicação. As revistas semanais estavam ainda autorizadas a publicar os «destaques» da programação televisiva da semana. A BBC velava pelo rigoroso respeito das condições referidas na autorização, se necessário mediante acções judiciais contra as publicações que as não respeitassem.

8

A editora Magill TV Guide Ltd (a seguir «Magill»), sociedade de direito irlandês, é uma filial a 100% da sociedade Magill Publications Holding Ltd. Foi criada com o objectivo de publicar na Irlanda e na Irlanda do Norte uma revista semanal, a Magill TV Guide, contendo informações relativas aos programas de televisão que os telespectadores dessa área podiam captar. Segundo as indicações fornecidas pelas partes, essa publicação iniciou-se em Maio de 1985. No início, a revista limitava-se a dar informações sobre os programas de fim-de-semana da BBC, da RTE, da ITV e do Channel 4, bem como sobre os pontos fortes dos respectivos programas semanais. Foi na sequência da publicação, em 28 de Maio de 1986, de um número da Magill TV Guide que reproduzia a totalidade das listas de programas semanais de todos os canais de televisão que podem ser captados na Irlanda — incluindo a BBCl e a BBC2 — que o juiz irlandês intimou a sociedade Magill, em decisão de medidas provisórias proferida a pedido da BBC, da RTE e da ITP, a cessar a publicação das listas de programas semanais dessas três sociedades. Na sequência dessa intimação, a Magill pôs termo às suas actividades de edição. O mérito da causa foi parcialmente analisado pela High Court, que se pronunciou, em sentença proferida em 26 de Julho de 1989 pelo juiz Lardner, sobre o alcance, em direito irlandês, do direito de autor sobre as listas de programas. A este propósito, a decisão desse tribunal tem o seguinte teor: «Os elementos de prova apresentados convenceram-me de que as listas de programas televisivos semanais da BBC, tal como são publicadas pela Radio Times, constituem o produto final de um longo processo de planificação, preparação, arranjo e revisão, que implica uma grande actividade, uma vasta experiência e o exercício de competência técnica e qualidades de apreciação. São criação da BBC e, na minha opinião, constituem uma obra literária, na acepção de uma “compilação”, segundo as secções 2 e 8 do Copyright Act 1963, ao abrigo do qual a BBC e a BBC Enterprises Limited demonstraram poder invocar o direito de autor na República da Irlanda» (ILRM 1990, p. 534, 550).

9

Já anteriormente, em 4 de Abril de 1986, na perspectiva de publicar as listas semanais completas, a Magill tinha apresentado uma denúncia à Comissão, nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 FI p. 22, a seguir «Regulamento n.° 17»), a fim de obter a declaração de que a ITP, a BBC e a RTE abusam da sua posição dominante ao recusar conceder autorizações para a publicação das respectivas listas de programas semanais. A Comissão decidiu iniciar o processo em 16 de Dezembro de 1987 e enviou à BBC, no mês de Março de 1988, uma comunicação das acusações. Foi no termo desse processo que a Comissão adoptou, em 21 de Dezembro de 1988, a decisão ora impugnada.

10

Na decisão, os produtos em causa são definidos do seguinte modo, quanto às três empresas em questão. Trata-se das listas de programas semanais publicadas pela ITP, pela BBC e pela RTE, bem como dos guias de televisão em que essas listas são publicadas (n.° 20, primeiro parágrafo, da decisão). Uma lista de programas comporta, segundo a definição da Comissão, «uma lista de programas a serem difundidos por ou em nome de uma organização de radiodifusão dentro de um determinado período de tempo, incluindo as seguintes informações: o título de cada programa a difundir, o canal, a data e a hora de transmissão» (n.° 7 da decisão).

A Comissão conclui que, devido ao monopólio de facto dos organismos de radioteledifusão sobre as respectivas listas de programas semanais, os terceiros interessados na publicação de um guia semanal de televisão «estão, portanto, numa posição de dependência económica, característica de uma posição dominante». Além disso, prossegue a Comissão, esse monopólio é reforçado em termos de monopólio legal, na medida em que os mesmos organismos reivindicam a protecção do direito de autor sobre as respectivas listas semanais. Nestas condições, a Comissão observa que «não é possível existir concorrência de terceiros nesses mercados». Daí conclui que «a ITP, a BBC e a RTE detêm, cada uma delas, uma posição dominante na acepção do artigo 86.°» (n.° 22 da decisão).

11

Para determinar a existência de um abuso, a decisão baseia-se mais especificamente no disposto no segundo parágrafo, alínea b), do artigo 86.° do Tratado, nos termos do qual existe um abuso quando uma empresa que ocupa uma posição dominante limita a produção ou a distribuição em prejuízo dos consumidores (n.° 23, primeiro parágrafo, da decisão). Especificamente, a Comissão considera existir no mercado uma «substancial procura potencial... de guias TV gerais»(ibidem, quarto parágrafo). A Comissão verifica que ao utilizar a sua posição dominante «para impedir a introdução de um novo produto no mercado, isto é, um guia TV semanal geral», a recorrente abusa dessa posição. Acrescenta que outro elemento de abuso se traduz no facto de a recorrente reservar para si, graças à política de que é acusada em matéria de informação sobre os seus programas, o mercado derivado dos guias de televisão semanais para esses programas (n.° 23 da decisão).

Nestas condições, a Comissão recusa a ideia de que os factos denunciados se justificam pela protecção do direito de autor, declarando que, neste caso, a ITP, a BBC e a RTE «utilizam de facto os direitos de autor como um instrumento do abuso, de um modo que não integra o âmbito do objecto específico deste direito de propriedade intelectual» (n.° 23, penúltimo parágrafo).

12

Quanto às medidas destinadas a pôr termo à infracção, o artigo 2.° do dispositivo da decisão tem o seguinte teor: «A ITP, a BBC e a RTE devem imediatamente pôr termo à violação, tal como referida no artigo 1.°, mediante o fornecimento recíproco e a terceiros, a pedido e numa base não discriminatória, das suas listas individuais antecipadas de programação semanal e autorizando a sua publicação por esses terceiros. Esta exigência não abrange as informações adicionais aos próprios programas, tal como são definidos na presente decisão ( 1 ). Se optarem por fornecer e permitir a reprodução da sua programação através de licenças, as eventuais royalties exigidas pela ITP, pela BBC e pela RTE deverão ser de um montante razoável ( 2 ). Além disso, a ITP, a BBC e a RTE podem incluir em quaisquer licenças concedidas a terceiros as condições que considerem necessárias para assegurar uma cobertura global de alta qualidade de todos os seus programas, incluindo os de interesse minoritário e/ou regional e os de conteúdo cultural, histórico e educativo. Por conseguinte, deve exigir-se às partes que, no prazo de dois meses a contar da notificação da presente decisão, apresentem propostas para aprovação pela Comissão das condições em que consideram que os terceiros devem ser autorizados a publicar as listas antecipadas da programação semanal que constituem o objecto da presente decisão.»

13

Simultaneamente com o presente recurso de anulação da decisão, a recorrente pediu, por requerimento apresentado no mesmo dia, isto é, em 10 de Março de 1989, a suspensão da execução dos artigos 1.° e 2.° da referida decisão. Por despacho de 11 de Maio de 1989, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou «a suspensão da execução do artigo 2.° da decisão impugnada, na medida em que obriga as recorrentes a pôr imediatamente termo à violação constatada pela Comissão mediante o fornecimento recíproco e a terceiros, a pedido, e numa base não discriminatória, das suas listas individuais antecipadas de programação semanal e autorizando a sua publicação por esses terceiros». Quanto ao mais, os pedidos de medidas provisórias foram indeferidos (n.° 20, 76/89, 77/89 e 91/89 R, Colect., p. 1141).

No âmbito do presente recurso de anulação da decisão, o Tribunal de Justiça ad- mitiu, por despacho de 6 de Julho de 1989, a intervenção da sociedade Magill em apoio dos pedidos da Comissão. A fase escrita do processo correu parcialmente os seus termos perante o Tribunal de Justiça, que remeteu o processo ao Tribunal de Primeira Instância por despacho de 15 de Novembro de 1989, em aplicação do disposto no n.° 1 do artigo 3.° e no artigo 14.° da decisão do Conselho de 24 de Outubro de 1988 que institui um Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias. Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância decidiu, no termo da fase escrita do processo, iniciar a fase oral sem instrução prévia.

Pedidos das partes

14

A BBC, recorrente, conclui pedindo que o Tribunal se digne :

anular a decisão, na medida em que se aplica à BBC;

a título subsidiário, declarar que a Comissão não tem, em direito comunitário, competência para ordenar à BBC que forneça a terceiros, sejam estes quais forem, as suas listas antecipadas de programação semanal e lhe ordenar que autorize a sua reprodução nem em condições aprovadas pela Comissão nem em quaisquer outras condições, designadamente sob a forma da concessão de licenças;

condenar a Comissão nas despesas.

A Comissão, recorrida, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

negar provimento ao recurso;

condenar a recorrente no pagamento das despesas efectuadas pela Comissão.

Quanto ao pedido de anulação da decisão na sua globalidade

15

A recorrente invoca a violação do artigo 86.° do Tratado e a insuficiência da fundamentação em apoio do seu pedido de anulação da decisão, na medida em que esta dá por verificada uma infracção ao referido artigo.

— Quanto à violação do artigo 86. ° do Tratado e à insuficiência da fundamentação

— Argumentos das partes

16

No que se refere à condição de aplicação do artigo 86.° do Tratado relativa à detenção de uma posição dominante, a recorrente contesta a definição do mercado em causa acolhida na decisão. Contrariamente ao que a Comissão afirma, considera que os produtos a ter em consideração para apreciar a sua posição no mercado, nos termos do artigo 86.°, não são as listas dos seus programas semanais e os guias da televisão em que estas são publicadas, mas os serviços de radioteledifusão. Com efeito, a recorrente considera que a sua missão de serviço público de radioteledifusão não consiste apenas em elaborar as listas de programas aquando da planificação das emissões, mas igualmente em divulgar de forma tão vasta quanto possível informações sobre os seus programas. A publicação da revista Radio Times respondia, assim, às exigências da missão de serviço público da BBC, assegurando uma apresentação exaustiva das suas emissões, servindo os interesses das regiões e das minorias e estando disponível no mercado a um preço razoável.

A este respeito, a recorrente alega não deter uma posição dominante no mercado do fornecimento dos serviços de radiotelevisão. Recorda que o principal organismo de teledifusão na Irlanda é a RTE e que a recepção dos programas da BBC nesse país é fortuita. Quanto à Irlanda do Norte, a BBC encontrar-se-ia aí confrontada com uma forte concorrência por parte das empresas de televisão privada.

17

Todavia, a recorrente acrescenta, a título subsidiário, que, caso, contrariamente à sua tese, o mercado dos serviços de radiotelevisão não seja visto como o mercado em causa, este deve ser definido como o mercado da informação sobre os programas televisivos em geral. Com efeito, a recorrente considera que múltiplas fontes de informações sobre os programas televisivos, como a imprensa diária ou semanal, os programas de anuncio, os serviços de teletexto e o conhecimento prévio dos horarios dos programas, podem substituir os guias de televisão, como demonstra, designadamente, o facto de um número relativamente pouco importante de irlandeses comprar a Radio Times. As revistas de televisão não constituiriam, pois, um mercado distinto do da informação sobre os programas em geral.

Quanto a esse aspecto, a recorrente observa que não detém uma posição dominante no mercado da informação sobre os programas televisivos em geral, na medida em que apenas uma pequena proporção dos telespectadores compra guias semanais como a Radio Times. Explica que, para a maioria dos telespectadores, as informações sobre os programas, difundidas designadamente na imprensa diária ou semanal, permitem substituir largamente as revistas semanais de televisão.

Após ter exposto a sua tese, a recorrente contesta a argumentação da Comissão referente à existência de um mercado constituído pelas listas dos seus programas. Começa por afirmar que o seu monopólio de facto ou de direito sobre as suas próprias listas de programas, que mais não é, esclarece, do que a consequência do seu direito de autor e do exercício desse direito pelo seu titular, não gera, em si mesmo, uma posição dominante, na acepção do artigo 86.° Invoca, a este respeito, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 8 de Junho de 1971, Deutsche Grammophon, n.° 16 (78/70, Recueil, p. 487). Após esta observação preliminar, a recorrente afirma, em especial, jamais ter existido uma revista semanal geral de televisão no mercado geográfico em causa. O que significaria que nenhum terceiro se encontra efectivamente, no que se refere às listas semanais dos programas da BBC, numa situação de dependência económica característica da existência de uma posição dominante. Daí conclui a recorrente que a simples existência de «potenciais editores» num mercado das revistas gerais semanais de televisão, que considera puramente hipotético, não permite estabelecer a existência de uma posição dominante na acepção do artigo 86.°

18

A recorrente contesta ainda a análise que levou a Comissão a declarar o carácter abusivo, na acepção do artigo 86.°, da sua política em matéria de informação sobre os seus programas. A título principal, afirma que, ao reservar para si a exclusividade da reprodução e da primeira comercialização das suas listas de programas, agiu dentro dos limites do objecto específico do seu direito de autor, o que em caso algum pode constituir um abuso na acepção do artigo 86.° A título subsidiário, sustenta que, ainda que os actos incriminados fossem susceptíveis de constituir um abuso, não se demonstrou que possam ser assim qualificados no presente caso. O raciocínio da recorrente articula-se em quatro partes.

19

A recorrente invoca, em primeiro lugar, o seu direito de autor sobre as suas próprias listas de programas na Irlanda e na Irlanda do Norte. Remetendo para os acórdãos do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 1988, Volvo (238/87, Colect., p. 6211), e de 14 de Setembro de 1982, Keurkoop (144/81, Recueil, p. 2853), recorda que, no estado actual do direito comunitário e na falta de uma unificação no âmbito da Comunidade ou de uma aproximação das legislações nacionais, compete ao legislador nacional fixar as condições e as modalidades da protecção do direito de autor e, designadamente, determinar os produtos que beneficiam dessa protecção. A recorrente recorda que as listas de programas, tal como foram definidas pela Comissão no n.° 7 da decisão, estão protegidas pelo direito de autor nos dois territórios em questão. Remete, a este propósito, para os acórdãos proferidos pela High Court de Inglaterra e do País de Gales, no processo BBC e ITP/Time Out Limited (1984, FSR, p. 64), e pela High Court da Irlanda, no processo RTE, BBC e ITP/Magill, já referidos. Sublinha que, de acordo com as legislações britânica e irlandesa, o direito de autor comporta designadamente, para o seu titular, o direito de se opor à reprodução e à publicação da obra.

20

Nesta perspectiva, a recorrente refere, em segundo lugar, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o simples facto de uma empresa se prevalecer, ao abrigo do direito nacional, da protecção do objecto específico de um direito de propriedade intelectual não constitui uma «exploração abusiva» na acepção do artigo 86.° A este respeito, remete em especial para o acórdão Volvo, já referido, n.° 8. O Tratado, explica, invocando o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 6 de Outubro de 1982, Coditel (262/81, Recueil, p. 3381), e as conclusões do advogado-geral Reischl, não prejudica o objecto específico dos direitos de propriedade intelectual conferidos pelas legislações dos Estados-membros. No que se refere ao objecto específico do direito de autor, em causa nos presentes autos, a recorrente esclarece que ele comporta necessariamente o direito exclusivo de reproduzir e publicar a obra protegida, bem como o recurso às correspondentes vias jurisdicionais (acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 1988, Warner Brothers, n.° 13, 158/86, Colect., p. 2605).

21

Tendo em conta as considerações que antecedem, a recorrente afirma, em terceiro lugar, que, ao recusar autorizar a publicação das suas listas de programas semanais e ao intentar um processo judicial contra a sociedade Magill, se limitou a proteger o objecto específico do seu direito de autor sobre as suas próprias listas de programas. A apreciação da Comissão, segundo a qual as práticas anteriormente referidas não integram «o âmbito do objecto específico (do direito de autor)», seria, portanto, manifestamente errada.

22

Acresce ainda que a instituição recorrida não teria cumprido a sua obrigação de fundamentar a decisão, em violação do artigo 190.° do Tratado, tal como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 26 de Novembro de 1975, Papiers peints/Comissão (73/74, Recueil, p. 1491). A recorrente censura à Comissão, por um lado, não ter precisado, na sua decisão, o que entende por «àmbito do objecto específico (do direito de autor)» e, por outro, não ter indicado as razões pelas quais considerou, contrariamente — segundo a recorrente — a uma jurisprudência assente, consagrada no já referido acórdão Volvo, que o comportamento incriminado exorbitava do objecto específico do direito de autor. Quanto a este aspecto, a recorrente observa, em especial, que a decisão não faz referência a qualquer circunstância excepcional do tipo da referida no n.° 9 (reproduzido adiante, no n.° 33) do acórdão Volvo, ja referido, e que permita estabelecer, eventualmente, o carácter abusivo do exercício de um direito de propriedade intelectual pelo seu titular. No entendimento da recorrente, a natureza irregular dessa falta de fundamentação resulta, em especial, do facto de, na decisão, a Comissão ter, pela primeira vez, posto em causa o direito exclusivo de reprodução e de primeira comercialização do objecto protegido pelo direito de autor.

23

Finalmente, em quarto lugar, a recorrente sustenta a título subsidiário que, ainda que, contrariamente à sua tese anteriormente exposta, os actos incriminados fossem ainda assim susceptíveis de constituir uma exploração abusiva de posição dominante, a Comissão não provou a existência de tal abuso. Com efeito, a Comissão não fez prova de que o conjunto dos consumidores sofreu efectivamente um prejuízo, na acepção do artigo 86.°, segundo parágrafo, alínea b), devido à inexistência de um guia semanal geral de televisão, em razão da política de concessão de autorizações praticada pela recorrente. A recorrente nota que a simples recusa da parte do titular de um direito de autor de participar na criação de um novo produto, isto é, no caso vertente, uma revista geral de televisão, não pode constituir um abuso pelo facto de a Comissão considerar que esse produto corresponde a uma certa procura. Alega, a este respeito, com base no acórdão do Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1978, BP/Comissão (77/77, Recueil, p. 1513), que, na falta de prova de um prejuízo sofrido pelos consumidores, não compete à Comissão fazer com que o seu entendimento prevaleça sobre a política legitimamente prosseguida pela recorrente.

24

Ņo que se refere à condição de aplicação do artigo 86.° referente à afectação do comércio entre os Estados-membros, a recorrente limita-se a referir que, no seu acórdão de 26 de Julho de 1989, já referido, a High Court considerou que a Magill não provara a existência de um efeito importante ou sensível da política da BBC, em matéria de informações relativas aos seus programas, no comércio entre os Estados-membros.

25

A Comissão rejeita toda a argumentação aduzida pela recorrente no que se refere à violação do artigo 86.° e à insuficiência de fundamentação.

26

Para provar a existência de uma posição dominante, a Comissão retoma os argumentos que serviram de base à fundamentação da decisão. Afirma, em substância, que cada uma das recorrentes detém uma posição dominante em dois mercados limitados. O primeiro diz respeito às suas próprias listas de programas para a semana seguinte, cujo monopólio a recorrente detém. O segundo é o mercado das revistas semanais de televisão, que constitui, segundo a Comissão, um submercado distinto do mercado geral das publicações diárias e semanais, dado que é o único a oferecer um produto — concretamente, informações completas sobre os programas semanais da BBC — para o qual existe uma procura específica. A Comissão sublinha a este respeito que, no momento dos factos, a Irlanda e o Reino Unido eram os únicos Estados-membros onde não existia qualquer guia semanal geral de televisão susceptível de entrar em concorrência com a revista Radio Times, que desse modo se encontrava numa situação de monopólio.

27

Para demonstrar a natureza abusiva do comportamento censurado, a Comissão desenvolve o seu raciocínio a partir da premissa — que expressamente admitiu na audiência — de que as listas de programas beneficiam, em direito interno, da protecção do direito de autor. Sustenta, em primeiro lugar, que, mesmo nessas condições, as políticas e práticas em litígio prosseguidas pela recorrente não estão abrangidas pela protecção do direito de autor, tal como é reconhecida em direito comunitário.

28

Nesta perspectiva, a Comissão começa por chamar a atenção, de modo geral, para a incompatibilidade com as normas comunitárias de um direito nacional que consagra a existência do direito de autor sobre as listas de programas. Recorda previamente que, segundo jurisprudência assente, a indústria da televisão está sujeita às normas comunitárias (ver, designadamente, o acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1982, Coditei, 262/81, já referido). Sublinha que uma regulamentação nacional que instituísse um direito de autor sobre as listas de programas permitiria às sociedades de radioteledifusão utilizar um monopólio legal legítimo em matéria de difusão dos programas radiotelevisivos numa determinada frequência, para manter um monopólio ilegítimo no mercado anexo, situado a jusante, das publicações desses programas semanais, e opor-se, desse modo, ao aparecimento de um produto concorrente de um novo tipo, sob a forma de um guia geral de televisão. A protecção das listas de programas pelo direito de autor criaria ainda um obstáculo à realização do mercado único dos serviços de radioteledifusão, baseado no artigo 59.° do Tratado. Com efeito, na falta de um mercado único de informação sobre os programas, o direito dos consumidores de beneficiarem de uma «televisão sem fronteiras» ficaria comprometido, dado que os telespectadores, pouco inclinados a comprar um grande número de revistas contendo, respectivamente, a programação de uma única estação, estariam igualmente menos tentados a ver programas, designadamente em língua estrangeira, sobre os quais possuem poucas informações.

29

A Comissão recorda que, para resolver o conflito referido no número anterior entre, por um lado, o direito de autor e, por outro, as normas relativas designadamente à livre concorrência, a via a seguir consiste, segundo jurisprudência assente, em identificar, em cada caso concreto, o «objecto específico» do direito de propriedade intelectual, único que merece protecção especial no ordenamento jurídico comunitário e justifica por essa razão certas derrogações às normas comunitárias. Para esse efeito, a Comissão convida, antes de mais, a que nos interroguemos sobre a legitimidade e as razões subjacentes à manutenção, que qualifica de invulgar, de um direito de autor sobre as listas de programas. Segundo a instituição recorrida, deve, com efeito, apreciar-se no presente caso o «valor» ou o «bem fundado» do direito de autor sobre as listas semanais, em relação aos objectivos normalmente atribuídos a esse direito. Nesta óptica, precisa a Comissão, é necessário designadamente ter em consideração a natureza do bem protegido, nos seus aspectos tecnológico, cultural ou inovador, bem como os objectivos e a justificação, em direito interno, do direito de autor sobre as listas (ver, designadamente, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 8 de Junho de 1982, Nungesser/Comissão, 258/78, Recueil, p. 2015; de 6 de Outubro de 1982, Coditei, 262/81, já referido; de 30 de Junho de 1988, Thetford, n.os 17 a 21, 35/87, Colect., p. 3585; e de 17 de Maio de 1988, Warner Brothers, n.os 10 a 16, 158/86, já referido).

30

Aplicando os critérios que acabam de ser enunciados, a Comissão argumenta que, no presente caso, as listas de programas não apresentam em si mesmas qualquer natureza secreta, inovadora ou que se prenda com a investigação. Pelo contrário, constituem simples informações factuais e não podem, portanto, estar protegidas pelo direito de autor. O esforço criativo necessário para a sua elaboração é, com efeito, directamente recompensado pela importância da audiência das emissões. E a violação, feita pela decisão, do direito de autor sobre as listas de programas de modo algum afecta a actividade de radioteledifusão, que é distinta da da publicação. Recordando as conclusões do advogado-geral Mischo no processo Thetford, já referido, a Comissão observa que a manutenção do direito de autor sobre as listas de programas apenas se pode explicar pela vontade de «reservar um monopólio» ao seu titular.

31

Em segundo lugar, após ter sustentado, como acaba de ser exposto, que a protecção das listas de programas pelo direito de autor não corresponde à função essencial deste direito, a Comissão sublinha a natureza abusiva da política da recorrente em matéria de informação sobre os seus programas semanais. Denuncia particularmente a natureza abusiva da recusa arbitrária, isto é, sem justificação que se prenda com as exigências do segredo, da investigação e do desenvolvimento ou com outras considerações objectivamente verificáveis, de autorizar a Magill e outros «potenciais concorrentes» no mercado das revistas semanais de televisão a publicar essas informações, com a única finalidade de impedir o aparecimento de todo e qualquer produto concorrente.

32

A este respeito, a Comissão sustenta, nas suas observações, que a política seguida pela recorrente, em matéria de concessão de autorizações, estabelece uma discriminação «contra um novo produto surgido sob a forma de uma revista geral que faria concorrência à revista de cada uma das (sociedades em questão)», ou, por outras palavras, «contra a Magill e outros potenciais concorrentes no mercado que oferecessem revistas semanais gerais». A Comissão precisa igualmente a este respeito que, «se os organismos de radioteledifusão tivessem decidido, fosse por que razão fosse, não distribuir a ninguém informações sobre os programas previstos, a análise poderia ser diferente; mas distribuem-nos a duas categorias de agentes económicos: aos seus próprios periódicos com leitores certos e às publicações diárias que não fazem concorrência a esses periódicos. Estes factores indicam que a recusa de autorizar a publicação por outras empresas é arbitrária e discriminatória». Esse caracter arbitrário é corroborado pelo facto de a BBC proceder a uma discriminação em relação às revistas gerais de televisão publicadas em certos Estados-membros, mas não se opor a tais publicações na Bélgica e nos Países Baixos.

33

Além disso, a Comissão invoca em apoio da sua tese os acórdãos proferidos pelo Tribunal em 5 de Outubro de 1988, nos processos Volvo, n.° 9 (238/87, já referido) e OCRA, n.° 16 (dito «Renault», 53/87, Colect., p. 6039). Cita, em especial, o n.° 9 do acórdão Volvo, que tem o seguinte teor: «o exercício do direito exclusivo pelo titular de um modelo industrial relativo a painéis de carroçaria de veículos automóveis pode ser proibido pelo artigo 86.° se der origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a certos comportamentos abusivos, tais como a recusa arbitrária de fornecer peças sobresselentes a garagens independentes, a fixação dos preços das peças sobresselentes a um nível não equitativo ou a decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo, apesar de muitos veículos desse modelo ainda continuarem a circular, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-membros». Segundo a Comissão, o comportamento censurado à recorrente está próximo da recusa arbitrária, a que se refere o Tribunal de Justiça nos acórdãos citados, do titular do modelo industrial de fornecer peças sobresselentes a garagens independentes, tributárias desse fornecimento para o prosseguimento das suas actividades. Com efeito, ao recusar autorizar designadamente a sociedade Magill a publicar as suas listas semanais, a recorrente colocou um obstáculo à sua actividade de edição de revistas gerais de televisão.

Na mesma ordem de ideias, a Comissão afirma igualmente que o comportamento censurado à BBC se distingue do que o Tribunal de Justiça considerou lícito no acórdão Volvo, já referido. Com efeito, resulta desse acórdão (n.° 11) que o facto de um construtor automóvel, titular de um direito de modelo industrial regisudo, reservar para si o fabrico da totalidade das peças sobresselentes para os seus veículos não constitui em si um abuso. Concretamente, a Comissão sublinha o facto de que o mercado das peças sobresselentes era o principal sector de actividade da empresa Volvo. Pelo contrário, a BBC explorou uma posição dominante num mercado (o mercado da informação sobre os seus programas), que se insere no seu principal sector de actividade, a radioteledifusão, a fim de obter vantagens no mercado da edição, que constitui um sector económico distinto, situado a jusante. Acresce que o prejuízo sofrido pelos consumidores, que não podiam dispor de um novo produto, isto é, uma revista geral de televisão, para o qual existia grande procura, constitui um factor agravante que transforma em abuso a política da recorrente em matéria de informação sobre os seus programas semanais. Em contrapartida, a Comissão sublinha que, no processo Volvo, os consumidores podiam obter peças sobresselentes e era possível uma concorrência entre as garagens independentes e mesmo entre os vários construtores, cuja clientela tinha a possibilidade de se reorientar para outras marcas caso as peças sobresselentes se tornassem demasiado caras ou pouco disponíveis no mercado.

34

A Comissão refuta ainda a argumentação da recorrente que se baseia nas suas obrigações de serviço público. Considera, com efeito, que incumbia à BBC adaptar o conteúdo e a apresentação da Radio Times caso o considerasse adequado.

35

A Comissão refere ainda que a sua análise quanto à utilização abusiva do direito de autor se aplica igualmente a situações diferentes da do caso em apreço, em matéria, por exemplo, de software para computadores.

36

Para provar que o comportamento incriminado é susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros, a Comissão alega que o efeito no comércio entre a Irlanda e o Reino Unido deve ser determinado por referência, designadamente, ao volume comercial que apresentam, potencialmente, as revistas gerais. Refere que a existência de um fluxo comercial potencial de guias de televisão entre a Irlanda e a Irlanda do Norte é confirmada pelas afirmações de um perito da BBC, na audição da recorrente. Com efeito, ele explicou as reticências da recorrente, no que se refere à publicação de guias gerais, pelo receio de que tais guias, publicados em língua inglesa e contendo, designadamente, os programas da BBC, sejam importados para o Reino Unido.

37

Por seu lado, a interveniente, a sociedade Magill, sublinha que, nesta fase do processo, a High Court já declarou que, em direito irlandês, as listas de programas beneficiam da protecção do direito de autor e que a Magill violou esse direito. Por conseguinte, o resultado do processo que a opõe à BBC, à ITP e à RTE, perante o juiz irlandês, dependerá das respostas dadas pelo juiz comunitário à questão da compatibilidade com o direito comunitário das práticas censuradas na decisão da Comissão. A Magill recorda que os efeitos resultantes dos despachos de medidas provisórias de 1986, bem como as despesas efectuadas com os processos no tribunal nacional, a impossibilitaram de prosseguir as suas actividades e de continuar a concorrer no mercado com a BBC, a ITP e a RTE.

38

Além disso, a Magill apoia o conjunto das observações da Comissão. Refuta a interpretação oferecida pela recorrente, segundo a qual a decisão impõe a concessão de licenças obrigatórias. A este respeito, sublinha a importância do consentimento do titular do direito de autor. Segundo a Magill, «se não fosse concedida nenhuma autorização a terceiros... (a) recorrente poderia verdadeiramente sustentar que mais não faz do que explorar em seu benefício o direito exclusivo de que é titular». Pelo contrário, a partir do momento em que a recorrente aceita conceder autorizações para a reprodução das informações referentes aos seus programas diários, não pode, segundo a Magill, utilizar o seu direito de autor para obstar à publicação das suas listas semanais por terceiros.

39

A Magill afirma igualmente que o comportamento censurado é abusivo, na acepção do artigo 86.°, «precisamente porque foi concebido de modo idêntico pelos três organismos nacionais de televisão, de forma a impor a todos os meios de informação com eles concorrentes no conjunto do território de dois Estados-membros um regime uniforme destituído de justificação objectiva, com a finalidade de proteger uma parte do mercado de que se apropriaram em benefício das suas três publicações próprias». A Magill considera que esse regime comum se funda num acordo tácito.

40

A recorrente responde que a Comissão invoca, perante o Tribunal de Primeira Instância, factos e elementos novos que não figuram nem na comunicação das acusações nem na decisão. A Comissão teria violado, desse modo, os direitos de defesa, quer no âmbito do processo administrativo, quer perante o Tribunal de Primeira Instância (acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1963, Alemanha/Comissão, 24/62, Recueil, p. 129; e de 15 de Março de 1967, Cimenteries CBR/Comissão, 8/66 a 11/66, Recueil, p. 93).

A recorrente sustenta, em especial, que a argumentação da recorrida, que assenta em pôr em causa a compatibilidade, com o direito comunitário, da legislação nacional que prevê a protecção das listas de programas pelo direito de autor, é inadmissível na fase do processo judicial, devido à sua novidade. Nesta perspectiva, sublinha a inadmissibilidade do argumento segundo o qual o direito de autor sobre as listas de programas constitui um «direito de autor sobre factos e ideias». De igual modo, seriam inadmissíveis as alegações da Comissão referentes à natureza arbitrária e discriminatória do comportamento censurado, alegações essas que também não figuram nem na comunicação das acusações nem na decisão. Quanto a este último aspecto, a recorrente observa que os fundamentos expostos no n.° 23 da decisão, admitindo que fossem correctos, não seriam infirmados se a BBC nunca tivesse concedido uma autorização a terceiros. Isso prova que a decisão não se funda na verificação de uma discriminação. Por conseguinte, no entendimento da recorrente, a existência de uma discriminação não pode justificar a decisão, uma vez que não constitui o fundamento desta. Acresce que a recorrente contesta a admissibilidade do fundamento, unicamente invocado pela Magill, baseado na alegada existência de um acordo tácito entre a BBC, a ITP e a RTE. O referido fundamento, nota a recorrente, baseia-se numa violação do n.° 1 do artigo 85.° do Tratado e, portanto, é inadmissível.

41

Quanto ao mérito, a recorrente observa que, no que se refere à natureza pretensamente abusiva da sua política em matéria de autorizações, a Comissão não aborda a dificuldade inerente ao facto de a recusa de autorizar a reprodução das listas de programas não poder constituir um abuso, uma vez que tal solução implicaria «a perda, para o titular, da substância do seu direito exclusivo». A este respeito, a natureza do bem protegido pelo direito de autor e o valor relativo deste não têm relevância para a apreciação do alcance desse direito. A recorrente nota, com efeito, que o objecto essencial e a justificação do direito de autor são os mesmos, quer os produtos protegidos sejam ou não inéditos ou se prendam com o «segredo dos negócios» ou com uma actividade de investigação. Assim, a regulamentação relativa ao direito de autor na Irlanda e no Reino Unido não toma em consideração a natureza, segundo a expressão da Comissão, «banal» ou não da obra, o que, de resto, considera a recorrente, releva de uma apreciação puramente subjectiva. De igual modo, o facto de a BBC autorizar gratuitamente numerosos terceiros a divulgar diariamente elementos de informação protegidos pelo direito de autor não só não significa que essas informações tenham pouco valor ou não constituam um bem «precioso», mas não tem também qualquer relevância para efeitos da apreciação do alcance do direito de autor que os protege.

42

A recorrente rejeita ainda a tese da Comissão, relativa à sua pretensa «política discriminatória de concessão de autorizações», que consistiria em reservar a autorização de publicar os elementos protegidos para certas categorias de terceiros e excluir, dentre estes, os que pretendam publicar uma revista geral semanal de televisão. Após ter precisado que a discriminação se define essencialmente como uma diferença de tratamento de situações objectivamente similares, contesta a natureza discriminatória da sua política, afirmando estar disposta a conceder autorizações a qualquer jornal, periódico ou revista, nas condições que até agora aplicou. Na mesma ordem de ideias, rejeita o argumento aduzido pela interveniente, segundo o qual o comportamento em causa excedeu o objecto específico do direito de autor, uma vez que, após ter consentido na publicação das suas listas de programas por parte de terceiros, a BBC restringiu as condições em que estes as podiam publicar. A recorrente expõe a este respeito que, juridicamente, um titular de um direito de autor que prossiga uma política liberal e conceda autorizações em certas condições não fica sujeito, por esse facto, à obrigação de conceder autorizações sem quaisquer restrições.

43

A recorrente contesta igualmente a acusação de arbitrariedade. Observa que o direito de autor tem por objecto essencial permitir ao seu titular opor-se à reprodução, sem o seu consentimento, por terceiros, dos elementos protegidos, sem ter de justificar essa posição por uma «consideração objectivamente verificável». Recorda, todavia, que a sua política é objectivamente justificada. Com efeito, a conjugação das diversas fontes de informação sobre os seus programas, disponíveis no mercado, e da publicação da Radio Times no âmbito da sua missão geral de serviço público (ver n.° 16, supra) seria a melhor maneira de responder às necessidades e às exigências do público. A recorrente sustenta a este respeito que a continuação da publicação da Radio Times deixaria provavelmente de ser rentável comercialmente, na sua forma actual de guia especializado nos programas da BBC, caso fossem publicados na Irlanda e no Reino Unido guias gerais semanais.

44

Ao contrário da recorrente, a Comissão considera que os argumentos jurídicos e de facto que ela aduz no âmbito do presente processo se limitam a amplificar, clarificar e reforçar as considerações subjacentes aos fundamentos da sua decisão, com os quais coincidem, pois, perfeitamente. Mesmo que assim não fosse, a Comissão considera que tal não afectaria de modo algum, e contrariamente ao que alega a recorrente, os seus direitos de defesa quer no Tribunal de Primeira Instância quer no processo administrativo, mas quando muito teria podido conduzir a uma insuficiência ou a um erro de fundamentação da decisão, o que não é o caso. A instituição recorrida recorda, com efeito, que o Tribunal de Justiça decidiu não ser necessário «fundamentar de maneira independente e exaustiva» cada uma das partes de uma decisão quando «possa ser deduzida fundamentação suficiente do contexto de todas as considerações invocadas em apoio do conjunto da decisão» (acórdão de 20 de Março de 1957, Geitling/Alta Autoridade, 2/56, Recueil, p. 9, 36). No caso vertente, os principais pontos da matéria de facto e de direito que estão na base da decisão, embora expostos de forma sucinta, foram claramente explicitados.

45

Em particular, a Comissão observa que o facto de presumir, na decisão, que as informações em questão continuam a estar protegidas pelo direito de autor é inteiramente compatível com o facto de se referir, na fase da fiscalização jurisdicional, a possibilidade de esse direito de autor não dever subsistir no que se refere a banais compilações de informações.

Quanto à declaração da natureza abusiva do comportamento da recorrente, a Comissão sustenta que os qualificativos de arbitrário e discriminatório, aplicados a esse comportamento, não revelam qualquer conceito novo, ainda que não tenham sido utilizados no processo administrativo. Descrevem o abuso resultante do facto de a política de concessão de autorizações da recorrente estabelecer «uma discriminação contra um novo produto, surgido sob a forma de uma revista geral concorrente da revista (da recorrente), ao mesmo tempo que encoraja a publicidade das suas emissões nos jornais diários».

46

Quanto ao mérito, a Comissão referiu, na audiência, que as preocupações manifestadas pela recorrente, a propósito da viabilidade da revista Radio Times, caso fosse confrontada com a concorrência de revistas gerais de televisão, foram desmentidas, entretanto, na sequência da aprovação, em 1990, do Broadcasting Act pelo legislador britânico. As alterações introduzidas por essa lei teriam, com efeito, levado a BBC e a ITP a publicar, a partir do mês de Março de 1991, os seus guias respectivos sob a forma de revistas de vários canais, informando os telespectadores sobre os programas da BBC, da ITV, do Channel 4 e dos canais distribuídos por satélite.

— Apreciação jurídica

47

Face à argumentação expendida pelas partes, acima exposta, a fiscalização do Tribunal de Primeira Instância, no que se refere à validade do fundamento baseado na violação do artigo 86.° e à fundamentação insuficiente, deve incidir sobre quatro aspectos. Deve, antes de mais, analisar-se a definição do mercado dos produtos em causa, antes de se determinar, num segundo momento, a posição da recorrente no referido mercado. Em terceiro lugar, o Tribunal deve verificar se o comportamento censurado apresenta ou não um carácter abusivo e se a decisão está suficientemente fundamentada quanto a esse ponto. Em quarto lugar, cabe-lhe decidir dos efeitos do comportamento censurado no comércio entre os Estados-membros.

— A definição dos produtos em causa

48

No que se refere à delimitação do mercado dos produtos em causa, constituídos, nos termos da decisão, pelas listas de programas semanais da recorrente, bem como pelos guias de televisão em que essas listas são publicadas, o Tribunal considera que, contrariamente às alegações da recorrente, os produtos assim definidos representam mercados específicos, que não podem ser equiparados ao mercado da informação sobre os programas de televisão em geral, nem ao mercado dos serviços de radioteledifusão.

49

Com efeito, no âmbito do presente litígio, o mercado das listas semanais e o das revistas de televisão, nas quais elas são publicadas, inserem-se num domínio da actividade económica, a edição, inteiramente distinto do da radioteledifusão. A este respeito, convém sublinhar, por um lado, que as listas são unicamente utilizáveis enquanto informações sobre os programas, neste caso indispensáveis para a realização das revistas de televisão. Distinguem-se, pois, claramente, dos próprios programas. Por outro lado, a publicação, pela recorrente, da sua própria revista de televisão representa uma actividade de natureza comercial, totalmente independente da sua actividade principal de radioteledifusão. Esta constatação não é posta em causa pelo facto de a recorrente se esforçar, no âmbito da sua missão de serviço público, por assegurar a promoção das emissões que difunde, designadamente velando por que a informação sobre os seus programas, publicada na revista Radio Times, corresponda a certos critérios qualitativos e apresente os programas de forma exaustiva, nas dezasseis edições regionais da revista.

50

Com efeito, o mercado das listas semanais e o das revistas de televisão, nas quais elas são publicadas, constituem submercados do mercado de informação sobre os programas televisivos em geral. Oferecem um produto, a informação sobre os programas semanais, para o qual existe uma procura específica, quer por parte dos terceiros que pretendem publicar e comercializar um guia geral de televisão, quer por parte dos telespectadores. Os primeiros, com efeito, encontram-se na impossibilidade de editar semelhante guia se não dispuserem do conjunto das listas de programas semanais que podem ser captados no mercado geográfico em causa. No que se refere aos segundos, há que notar, como correctamente refere a Comissão na decisão, que as informações sobre os programas disponíveis no mercado no momento da adopção da decisão, ou seja, a lista completa dos programas para um período de 24 horas, ou de 48 horas ao fim-de-semana ou na véspera de dias feriados, publicada em certos jornais diários ou de domingo, bem como as rubricas de televisão de certas revistas, que, além disso, contêm os «destaques» dos programas da semana, apenas em escassa medida podem substituir uma informação prévia dos telespectadores quanto ao conjunto dos programas semanais. Com efeito, apenas os guias semanais de televisão, que contêm a totalidade das listas de programas da semana seguinte, permitem aos utentes prever antecipadamente os programas que pretendem ver e, eventualmente, planificar em conformidade as suas actividades semanais de tempos livres.

Esta fraca capacidade de substituição das informações sobre os programas semanais é especialmente confirmada pelo êxito obtido, na época em questão, pelas revistas de televisão especializadas, que eram as únicas presentes no mercado dos guias semanais na Irlanda e no Reino Unido e, no resto da Comunidade, pelos guias gerais de televisão existentes no mercado dos outros Estados-membros. Isto demonstra claramente a existência de uma procura potencial específica, constante e regular por parte dos telespectadores, neste caso da Irlanda e da Irlanda do Norte, de revistas de televisão que contenham o conjunto das listas de programas televisivos da semana, quaisquer que sejam as outras fontes de informação disponíveis no mercado.

— A existência de uma posição dominante

51

Quanto à posição da recorrente no mercado em causa, o Tribunal considera que a BBC dispunha, graças ao seu direito de autor sobre as suas listas de programas, do direito exclusivo de reproduzir e colocar no mercado as referidas listas. Esta circunstância permitiu-lhe, no momento dos factos em causa, garantir para si o monopólio da publicação das suas listas semanais numa revista especializada nos seus próprios programas, a Radio Times. Daí resulta que a recorrente ocupava manifestamente, na época em questão, uma posição dominante, quer no mercado representado pelas suas listas semanais, quer no das revistas em que estas eram publicadas na Irlanda e na Irlanda do Norte. Com efeito, os terceiros, como a sociedade Magill, que pretendessem editar uma revista geral de televisão, encontravam-se numa situação de dependência económica em relação à recorrente, que tinha, desse modo, a possibilidade de se opor ao aparecimento de qualquer concorrência efectiva no mercado da informação sobre os seus programas semanais (acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1983, Michelin/Comissão, n.° 30, 322/81, Recueil, p. 3461).

— A existência de um abuso

52

Após se ter concluído que a recorrente ocupava uma posição dominante no momento dos factos censurados, há que verificar se a sua política em matéria de difusão de informação sobre os programas semanais da BBC, baseada na exploração do seu direito de autor sobre as listas de programas, apresentava ou não um carácter abusivo, na acepção do artigo 86.° Para esse efeito, deve interpretar-se o artigo 86.° em conjugação com o direito de autor sobre as listas de programas.

53

Na falta de uma harmonização das normas nacionais ou de unificação no âmbito da Comunidade, a fixação das condições e das modalidades da protecção do direito de autor é da competência nacional. Esta repartição das competências em matéria de direitos de propriedade intelectual foi expressamente consagrada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 14 de Setembro de 1982, Keurkoop, n.° 18 (144/81, já referido), e confirmada designadamente nos acórdãos de 5 de Outubro de 1988, Renault, n.° 10 (53/87, já referido), e Volvo, n.° 7 (238/87, já referido).

54

As relações entre os direitos nacionais de propriedade intelectual e as regras gerais do direito comunitário são expressamente regidas pelo artigo 36.° do Tratado, que prevê a possibilidade de se derrogar às normas relativas à livre circulação de mercadorias por razões de protecção da propriedade industrial e comercial. Todavia, esta derrogação é expressamente acompanhada de certas reservas. Com efeito, a protecção dos direitos de propriedade intelectual conferida pelas legislações nacionais é apenas reconhecida, em direito comunitário, nas condições referidas na segunda frase do artigo 36.° Nos termos desta disposição, as restrições à livre circulação resultantes da protecção da propriedade intelectual «não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária, nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros». O artigo 36.° sublinha assim que a conciliação entre as exigências da livre circulação de mercadorias e o respeito devido aos direitos de propriedade intelectual deve ser feita de modo a proteger-se o exercício legítimo desses direitos, único que é justificado nos termos desse artigo, e a excluir qualquer exercício abusivo que seja de molde a compartimentar artificialmente o mercado ou a prejudicar o regime da concorrência na Comunidade. O exercício dos direitos de propriedade intelectual conferidos pela legislação nacional deve, por conseguinte, ser limitado na medida necessária a essa conciliação (ver acórdão de 14 de Setembro de 1982, Keurkoop, n.° 24, 144/81, já referido).

55

Com efeito, no sistema do Tratado, o artigo 36.° deve ser interpretado «na perspectiva dos objectivos e das acções da Comunidade, tal como são definidos pelos artigos 2.° e 3.° do Tratado», como recordou o Tribunal de Justiça no seu acórdão de 9 de Fevereiro de 1982, Polydor, n.° 16 (270/80, Recueil, p. 329). Deve, em especial, ser apreciado tendo em conta as exigências que se prendem com o estabelecimento de um regime de livre concorrência no interior da Comunidade, que refere a alínea f) desse mesmo artigo 3.°, e que se exprimem, designadamente, através das proibições contidas nos artigos 85.° e 86.° do Tratado.

56

A este respeito, resulta do artigo 36.°, como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça à luz dos objectivos prosseguidos pelos artigos 85.° e 86.°, bem como pelas disposições referentes à livre circulação de mercadorias ou de serviços, que apenas as restrições à livre concorrência ou à livre circulação de mercadorias ou de serviços, inerentes à protecção da própria substância do direito de propriedade intelectual, são admitidas em direito comunitário. Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu, no seu acórdão de 8 de Junho de 1971, Deutsche Grammophon, n.° 11, 78/70, já referido, relativo a um direito conexo do direito de autor, que, «embora o Tratado permita proibições ou restrições à livre circulação dos produtos justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial, o artigo 36.° só admite derrogações a esta liberdade na medida em que elas sejam justificadas pela salvaguarda dos direitos que constituem o objecto específico desta propriedade» (ver igualmente os acórdãos de 18 de Março de 1980, Coditei, n.° 14, 62/79, Recueil, p. 881; de 22 de Janeiro de 1981, Dansk Supermarked, n.° 11, 58/80, Recueil, p. 181; e de 6 de Outubro de 1982, Coditei, n.° 12, 262/81, já referido; no que se refere aos direitos de propriedade intelectual diferentes do direito de autor, ver os acórdãos de 31 de Outubro de 1974, Centrafarm, 16/74, Recueil, p. 1183; de 23 de Maio de 1978, Hoffman-La Roche, n.° 8, 102/77, Recueil, p. 1139; de 25 de Fevereiro de 1986, Windsurfing International/Comissão, n.° 45, 193/83, Colect., p. 611; de 5 de Outubro de 1988, Renault, n.° 11, 53/87, e Volvo, n.° 8, 238/87, já referidos; e de 17 de Outubro de 1990, Hag GF, n.° 12, C-10/89, Colect., p. I-3711).

57

E incontroverso que a protecção do objecto específico do direito de autor confere, em princípio, ao seu titular, o direito de reservar para si a exclusividade da reprodução da obra protegida. O Tribunal de Justiça admitiu-o expressamente no seu acórdão de 17 de Maio de 1988, Warner Brothers, n.° 13, 158/86, já referido, no qual declarou que «as duas prerrogativas essenciais do autor, o direito exclusivo de representação e o direito exclusivo de reprodução, não são postas em causa pelas normas do Tratado» (ver igualmente o acórdão de 24 de Janeiro de 1989, EMI Electrola, n.os 7 e 14, 341/87, Colect., p. 79).

58

Contudo, embora seja certo que o exercício do direito exclusivo de reprodução da obra protegida não apresenta, em si, carácter abusivo, já o mesmo não ocorre quando resulte das circunstâncias de cada caso concreto que as condições e modalidades do exercício desse direito exclusivo de reprodução da obra protegida prosseguem, na realidade, uma finalidade manifestamente contrária aos objectivos do artigo 86.° Com efeito, em tal hipótese, o exercício do direito de autor já não corresponde à função essencial desse direito, na acepção do artigo 36.° do Tratado, que é a de assegurar a protecção moral da obra e a remuneração do esforço criativo, no respeito dos objectivos prosseguidos, em especial, pelo artigo 86.° (ver, em matéria de patentes, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 1981, Merck, n.° 10, 187/80, Recueil, p. 2063, e de 9 de Julho de 1985, Pharmon, n.° 26, 19/84, Recueil, p. 2281; e, em matéria de direito de autor, o acórdão de 17 de Maio de 1988, Warner Brothers, n.° 15, 158/86, já referido). Nesse caso, o primado de que goza o direito comunitário, designadamente no que se refere a princípios tão fundamentais como os da livre circulação de mercadorias e da livre concorrência, prevalece sobre uma utilização, não conforme com esses princípios, de uma norma nacional adoptada em matéria de propriedade intelectual.

59

Esta análise é confirmada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, que decidiu, nos seus acórdãos de 5 de Outubro de 1988, Volvo, que foi invocado pela Comissão, e Renault, já referidos, que o exercício de um direito exclusivo, que em princípio se insere na substância do direito intelectual em questão, pode, todavia, ser proibido pelo artigo 86.°, caso dê lugar, por parte de uma empresa em posição dominante, a certos comportamentos abusivos. As questões submetidas ao Tribunal de Justiça no âmbito desses dois pedidos prejudiciais incidiam sobre a licitude do comportamento de dois fabricantes de automóveis que reservavam para si a exclusividade do fabrico e da comercialização das peças sobresselentes para os veículos de sua produção, invocando a protecção dos modelos industriais das referidas peças. A esse propósito, o Tribunal de Justiça citou, a título de exemplo de comportamentos abusivos na acepção do artigo 86.°, a recusa arbitrária de fornecer peças sobresselentes a garagens independentes, a fixação dos preços das peças sobresselentes a um nível não equitativo ou a decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo apesar de muitos veículos desse modelo continuarem a circular (Volvo, n.° 9, 238/87, e Renault, n.° 18, 53/87, já referidos).

60

No presente caso, há que notar que a sociedade recorrente, ao reservar para si a exclusividade da publicação das suas listas de programas semanais de televisão, colocou um entrave ao aparecimento no mercado de um novo produto, ou seja, uma revista geral de televisão, susceptível de entrar em concorrência com a sua própria revista, a Radio Times. Desse modo, a recorrente explorava o seu direito de autor sobre as listas de programas, produzidas no âmbito da sua actividade de teledifusão, para garantir para si um monopólio no mercado derivado dos guias semanais de televisão. A este respeito, é significativo o facto de, além disso, a recorrente autorizar gratuitamente a publicação das suas listas diárias e dos destaques dos seus programas semanais na imprensa da Irlanda e do Reino Unido. Acresce que, nos outros Estados-membros, também autorizava, sem exigir o pagamento de direitos, a publicação das suas listas semanais.

Um comportamento deste tipo — que se caracteriza pelo entrave colocado à produção e à comercialização de um novo produto, para o qual existe uma procura potencial por parte dos consumidores, no mercado anexo das revistas de televisão, e pela correspondente exclusão de toda a concorrência do referido mercado, com a única finalidade de manter o monopólio da recorrente — vai manifestamente além do que é indispensável para a realização da função essencial do direito de autor, tal como é admitida em direito comunitário. Com efeito, a recusa da recorrente de autorizar a terceiros a publicação das suas listas semanais apresenta, neste caso, um caracter arbitrário, na medida em que não se justifica nem pelas necessidades específicas do sector da radioteledifusão, que não está em causa no presente caso, nem pelas que são próprias à actividade de edição de revistas de televisão. A recorrente tinha, pois, a possibilidade de se adaptar às condições de um mercado de revistas de televisão aberto à concorrência para assegurar a viabilidade comercial do seu semanário Radio Times. Nestas condições, os factos censurados não podem, pois, estar abrangidos, em direito comunitário, pela protecção resultante do direito de autor sobre as listas de programas.

61

Em apoio desta conclusão, deve ainda sublinhar-se que, contrariamente às alegações da recorrente, a sua recusa de autorizar terceiros a publicar as suas listas de programas semanais se distingue da recusa das sociedades Volvo e Renault, analisada nos acórdãos de 5 de Outubro de 1988, já referidos, de conceder a terceiros licenças para o fabrico e colocação no mercado de peças sobresselentes. Com efeito, no presente caso, a reprodução exclusiva, pela recorrente, das suas listas de programas tinha por objecto e por efeito excluir toda a potencial concorrência no mercado derivado representado pela informação relativa aos programas semanais emitidos pelos canais da BBC, a fim de manter nesse mercado o monopólio que a recorrente detinha através da publicação da revista Radio Times. Do ponto de vista das empresas terceiras interessadas na publicação de uma revista de televisão, a recusa da recorrente de autorizar, a pedido e de forma não discriminatória, qualquer terceiro a publicar as suas listas de programas está, pois, aparentada, como sublinha correctamente a Comissão, com a recusa arbitrária de um fabricante de automóveis de fornecer peças sobresselentes — produzidas no âmbito da sua actividade principal de fabrico de automóveis — a uma garagem independente que exerce a sua actividade no mercado derivado da manutenção e das reparações dos veículos automóveis. Acresce que o comportamento censurado à recorrente se opunha radicalmente ao aparecimento no mercado de um certo tipo de produtos, as revistas gerais de televisão. Por conseguinte, na medida em que se caracterizava mais especialmente, nesse aspecto, pela falta de tomada em consideração das necessidades dos consumidores, o comportamento censurado apresentava também uma certa similitude com a hipótese — encarada pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos referidos — da decisão eventual de um fabricante de automóveis de deixar de fabricar peças sobresselentes para certos modelos, apesar de ainda subsistir a sua procura no mercado (Volvo, n.° 9, 238/87, e Renault, n.° 18, 53/87, já referidos). Resulta, pois, desta comparação que os factos censurados à recorrente não se prendem, segundo os critérios consagrados na jurisprudência invocada pelas partes, com a própria substância do direito de autor.

62

A luz das considerações precedentes, o Tribunal declara que, apesar de as listas de programas estarem protegidas, no momento dos factos em litígio, pelo direito de autor, tal como está consagrado no direito nacional que continua a ser competente para determinar as modalidades dessa protecção, o comportamento em causa não era susceptível de beneficiar dessa protecção, no âmbito da necessária conciliação que deve efectuar-se entre os direitos de propriedade intelectual e os princípios fundamentais do Tratado referentes à livre circulação de mercadorias e à livre concorrência. Com efeito, esse comportamento prosseguia objectivos manifestamente contrários aos do artigo 86.°

63

Quanto a este aspecto, a recorrente sustenta, todavia, a título complementar, que a decisão está insuficientemente fundamentada. Esta acusação não pode ser acolhida. Com efeito, a Comissão indicou claramente, na decisão, as razões por que concluiu que, ao utilizar o seu direito exclusivo de reprodução das listas como instrumento de uma política contrária aos objectivos prosseguidos pelo artigo 86.°, a recorrente foi além do necessário para assegurar a protecção da própria substância do direito de autor e cometeu um abuso na acepção do artigo 86.° Contrariamente ao que alega a recorrente, a fundamentação da decisão impugnada permite, pois, aos interessados conhecer os principais elementos de facto e de direito que serviram de base às conclusões a que chegou a Comissão, e confere ao Tribunal a possibilidade de exercer a sua fiscalização jurisdicional. Desse modo, preenche as condições que se prendem com o respeito dos direitos da defesa, tal como foram definidas de modo constante pela jurisprudência. Assim, o Tribunal de Justiça declarou, designadamente, no seu acórdão de 17 de Janeiro de 1984, VBVB e VBBB/Comissão, n.° 22 (43/82 e 63/82, Recueil, p. 19), que, «embora, por força do artigo 190.° do Tratado, a Comissão seja obrigada a mencionar os elementos de facto de que depende a justificação da decisão e as considerações jurídicas que a levaram a tomá-la, essa disposição não exige que a Comissão discuta todos os pontos de facto e de direito que foram tratados no processo administrativo» (ver igualmente o acórdão de 11 de Julho de 1989, Belasco e outros/Comissão, n.os 55 e 56, 246/86, Colect., p. 2117). De igual modo, os argumentos de facto e de direito indispensáveis à determinação das acusações formuladas contra a recorrente, na decisão, figuravam na comunicação das acusações. Portanto, a tese da recorrente referente à irregularidade do processo administrativo deve ser de igual modo rejeitada (acórdão do Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 1983, AEG//Comissão, n.° 30, 107/82, Recueil, p. 3151).

— Os efeitos no comércio entre os Estados-membros

64

No que se refere à condição de aplicabilidade do artigo 86.° relativa aos efeitos do comportamento abusivo no comércio entre os Estados-membros, deve recordar-se, a título liminar, que deve ser interpretada e aplicada tomando «como ponto de partida a finalidade dessa condição, que é a de delimitar, em matéria de regulamentação da concorrência, o domínio do direito comunitário relativamente ao do dos Estados-membros. Assim, estão abrangidos pelo domínio do direito comunitário os acordos, decisões e práticas concertadas e quaisquer práticas susceptíveis de pôr em causa a liberdade de comércio entre os Estados-membros num sentido que poderia prejudicar a realização dos objectivos de um mercado único entre os Estados-membros, designadamente compartimentando os mercados nacionais ou alterando a estrutura da concorrência no mercado comum» (acórdão do Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 1979, Hugin/Comissão, n.° 17, 22/78, Recueil, p. 1869; ver igualmente os acórdãos de 6 de Março de 1974, Commercial Solvents/Comissão, n.° 32, 6/73 e 7/73, Recueil, p. 223; de 13 de Fevereiro de 1979, Hoff-man-La Roche/Comissão, n.° 125, 85/76, Recueil, p. 461; e de 14 de Fevereiro de 1978, United Brands/Comissão, n.° 201, 27/76, Recueil, p. 207). Com efeito, para que o artigo 86.° seja aplicável, basta que o comportamento abusivo seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros. Portanto, não é necessário que se verifique a existência de um efeito actual e real no comercio interestatal (ver, designadamente, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1983, Michelin, n.° 104, 322/81, já referido; e de 23 de Abril de 1991, Höfner e Eiser, n.° 32, C-41/90, Colect., p. I-1979).

65

No presente caso, o Tribunal considera que o comportamento censurado alterou a estrutura da concorrência no mercado dos guias de televisão na Irlanda e na Irlanda do Norte, o que afectou o fluxo potencial das trocas comerciais entre a Irlanda e o Reino Unido.

Com efeito, a recusa da recorrente de autorizar os terceiros interessados a publicar as suas listas semanais repercutiu-se de forma determinante na estrutura da concorrência no sector das revistas de televisão no território representado pela Irlanda e pela Irlanda do Norte. Ao obstar, através da sua política de autorizações, à edição, designadamente pela Magill, de uma revista geral de televisão destinada a ser comercializada na Irlanda e na Irlanda do Norte, a recorrente não apenas eliminou uma empresa concorrente do mercado dos guias de televisão, como também excluiu qualquer concorrência potencial no mercado em causa, o que teve por efeito manter a compartimentação dos mercados representados, respectivamente, pela Irlanda e pela Irlanda do Norte. Nestas condições, é inegável que o comportamento em causa era susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros.

Acresce que deve referir-se que o efeito sensível da política em causa nos potenciais fluxos de trocas entre a Irlanda e o Reino Unido é claramente demonstrado pela existência de uma procura específica para uma revista geral de televisão do tipo da «Magill TV Guide», como testemunha o êxito das revistas de televisão especializadas nos programas de uma única estação de televisão, na falta de um guia geral de televisão no momento dos factos censurados no mercado geográfico em causa. A este respeito, há que recordar que a política da recorrente em matéria de informação sobre os seus programas semanais obstava à produção e à difusão de revisus gerais de televisão que se destinassem ao conjunto dos telespectadores da Irlanda e da Irlanda do Norte. Com efeito, o território geográfico em causa, no qual se encontra já realizado um mercado único de serviços de teledifusão, representa, correlativamente, um mercado único da informação sobre os programas de televisão, tendo particularmente em conta a grande facilidade das trocas comerciais do ponto de vista linguístico.

66

Pelo conjunto das razões expostas, devem ser rejeitados os fundamentos que se baseiam na violação do artigo 86.° e na insuficiência da fundamentação da decisão.

67

Pelo que deve ser negado provimento ao pedido de anulação da decisão na sua globalidade.

Quanto ao pedido de anulação, a título subsidiário, do artigo 2.° do dispositivo da decisão

68

Em apoio dos seus pedidos a título subsidiário, a recorrente invoca a violação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 17, bem como a violação da Convenção de Berna relativa à protecção das obras literárias e artísticas, de 1886, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo acto de Bruxelas de 1948 e pelo acto de Paris de 1971 (a seguir «Convenção de Berna»), para obter a anulação parcial da decisão, limitada ao artigo 2° do dispositivo, na medida em que lhe impõe uma licença obrigatória.

1. Quanto à violação do artigo 3.°, n.° 1, do Reguhmento n.° 17do Conselho

— Argumentos das partes

69

A recorrente contesta, a título subsidiário, a obrigação que lhe é imposta, no artigo 2.° do dispositivo da decisão, de autorizar terceiros a publicar as suas listas de programas semanais. Sustenta que a Comissão violou o n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento n.° 17, nos termos do qual «se a Comissão verificar, a pedido ou oficiosamente, uma infracção ao disposto no artigo 85.° ou no artigo 86.° do Tratado, pode, através de decisão, obrigar as empresas e associações de empresas em causa a pôr termo a essa infracção». Esse artigo apenas autorizaria a Comissão a intimar as empresas a porem termo à infracção. A recorrente alega que a instituição recorrida não se limitou a obrigar a pôr termo à infracção, mas determinou as modalidades precisas da cessação da infracção, prevendo a concessão de «licenças obrigatórias de exploração das obras protegidas». A recorrente invoca, a esse respeito, outras opções que permitem, em seu entendimento, pôr termo à infracção: a cessação da publicação da Radio Times, pelo menos na Irlanda, a venda dessa revista na sua qualidade de empresa, ou a venda pública, pela maior oferta, das listas de programas semanais. Nestas condições, considera que compete exclusivamente às partes determinar as modalidades da cessação da infracção que a Comissão impôs.

70

A Comissão sustenta, pelo contrário, que o artigo 2.° da decisão não excede a competência que lhe é atribuída pelo artigo 3.° do Regulamento n.° 17. Recorda que o artigo 2.° propõe dois meios para pôr termo à infracção: o fornecimento aos terceiros, a pedido e numa base não discriminatória, dos programas em litígio, para publicação — que tem a preferência da Comissão — ou a concessão de licenças em condições que correspondam às preocupações legítimas das partes. A decisão não impõe, pois, contrariamente ao que alega a recorrente, uma única solução, mas propõe, de modo flexível, certos tipos de comportamentos destinados a pôr termo à infracção, em conformidade com uma jurisprudência e uma prática assentes (ver o acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Março de 1974, Commercial Solvents, 6/73 e 7/73, já referido).

— Apreciação jurídica

71

Deve interpretar-se o n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento n.° 17, a fim de verificar se a Comissão tem o direito de intimar a recorrente a autorizar a publicação das suas listas semanais por terceiros, eventualmente por meio da concessão de licenças. A este respeito, o Tribunal observa que o poder de obrigar as empresas interessadas a cessarem a infracção constatada, atribuído à Comissão no referido artigo 3.°, implica, segundo jurisprudência assente, o direito de dirigir a essas empresas certas intimações, para agirem ou se absterem de agir, a fim de porem termo à infracção. Nesta perspectiva, as obrigações impostas às empresas devem ser definidas em função das exigências que se prendem com a reposição da legalidade, tendo em conta as características do caso concreto em questão. Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu no seu acórdão de 6 de Março de 1974, Commercial Solvents, n.° 45, 6/73 e 7/73, já referido, que «esta disposição (o artigo 3.° do Regulamento n.° 17) deve ser aplicada em função da natureza da infracção verificada e pode igualmente compreender a obrigação de efectuar determinadas acções ou prestações, ilicitamente omitidas, para além da proibição de continuar determinadas actividades, práticas ou situações contrárias ao Tratado». O Tribunal precisou que, «com este fim, a Comissão pode eventualmente obrigar as empresas em causa a apresentar-lhe propostas que visem repor a situação de modo conforme com as exigências do Tratado». Acresce que o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente, num despacho de 17 de Janeiro de 1980, Camera Care, n.° 17 (792/79 R, Recueil, p. 119), que a Comissão deve poder exercer «do modo mais eficaz e mais adequado às circunstâncias de cada situação concreta» o direito de decisão que lhe confere o n.° 1 do artigo 3.°

72

No presente caso, o Tribunal considera que os elementos constitutivos da infracção, tal como foram identificados no àmbito da análise do primeiro fundamento, justificam as medidas impostas no artigo do dispositivo da decisão. Com efeito, a obrigação imposta à recorrente de fornecer, à ITP, à RTE ou a terceiros, a pedido e de modo não discriminatório, as suas listas semanais com vista à sua publicação, constitui, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto — referidas pelo Tribunal aquando da análise dos elementos constitutivos da infracção —, o único meio de pôr termo à referida infracção, como considerou a Comissão na decisão impugnada. As diversas opções referidas pela recorrente — que afirma, sem contudo parecer encarar ou sugerir a sua implementação, que seriam susceptíveis de pôr termo ao abuso, o que demonstraria que a Comissão excedeu os seus poderes ao impor a concessão de licenças — não são suficientes, atendendo à estrutura do mercado das revistas de televisão, para eliminar o efeito de exclusão da concorrência, tal como foi acima qualificado, e que é constitutivo de um abuso. Ao intimá-la a autorizar terceiros, a pedido e de modo não discriminatório, a publicar as suas listas semanais, a Comissão não privou, pois, a recorrente da sua opção entre as diversas medidas susceptíveis de pôr termo à infracção. A este respeito, importa, além disso, sublinhar que a obrigação imposta à recorrente de autorizar a publicação das suas listas por terceiros, eventualmente contra pagamento de uma royalty razoável, é acompanhada da faculdade, correctamente reconhecida à recorrente no artigo do dispositivo, de incluir nas licenças concedidas as condições necessárias para assegurar «uma cobertura global de alta qualidade de todos os seus programas, incluindo ps de interesse minoritário e/ou regional e os de conteúdo cultural, histórico e educativo». Foi nesta óptica que a Comissão intimou a recorrente, no mesmo artigo 2.°, a submeter-lhe para aprovação propostas relativas a essas condições. O conjunto das obrigações impostas à recorrente, no artigo do dispositivo da decisão, justifica-se, pois, face à sua finalidade, tal como está definida no n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento n.° 17, concretamente a cessação da infracção. Daí resulta que a Comissão não excedeu os limites do seu poder de apreciação no âmbito da aplicação da referida decisão.

73

Pelo conjunto das razões expostas, o fundamento baseado em violação do n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 deve ser rejeitado.

2. Quanto à violação da Convenção de Berna

— Argumentos das partes

74

A recorrente sustenta, a título ainda mais subsidiário, que, mesmo que se entenda que o artigo 3.° do Regulamento n.° 17 permite à Comissão impor, eventualmente, a concessão de licenças obrigatórias, tal solução é incompatível com a Convenção de Berna. Considera, com efeito, que, na medida em que todos os Estados-membros da Comunidade são partes na Convenção de Berna, a referida convenção deve ser tida como sendo parte integrante do direito comunitário e expressão dos princípios relevantes desse direito, por força do artigo 234.° do Tratado.

A recorrente recorda que o n.° 1 do artigo 9.° dessa convenção consagra, em benefício do autor de uma obra literária ou artística, o direito exclusivo de reprodução da obra protegida. Alega que o n.° 2 desse mesmo artigo, introduzido aquando da revisão feita pelo acto de Paris de 1971, autoriza um Estado signatário a permitir a reprodução de obras literárias e artísticas, em certos casos especiais, desde que essa reprodução não seja incompatível com a exploração normal da obra e não cause um prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.

A recorrente deduz daí que o artigo 2.° da decisão é incompatível com a Convenção de Berna, na medida em que atenta, em seu entender, contra a exploração normal do seu direito de autor sobre as listas de programas e em que causa um prejuízo grave aos seus interesses legítimos.

75

A Comissão sustenta, pelo contrário, que a Convenção de Berna não se aplica ao presente caso. Com efeito, explica a Comissão, a Comunidade não é parte na convenção, e é jurisprudência constante que «o Tratado CEE prevalece, nas matérias por ele regidas, sobre as convenções celebradas pelos Estados-membros antes da sua entrada em vigor» (acórdão do Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1962, Comissão/Itália, 10/61, Recueil, p. 1). Acresce que, em todo o caso, a convenção não seria aplicável, dado que as listas de programas não são susceptíveis, segundo a Comissão, de ser abrangidas pela protecção do direito de autor, na acepção da referida convenção. Todavia, mesmo admitindo que a decisão vise informações protegidas pelo direito de autor, a Comissão argumenta, subsidiariamente, que o facto de a informação ser fornecida gratuitamente a certos terceiros, para publicação, demonstra que a obrigação de conceder licenças contra uma royalty razoável não prejudica os interesses legítimos da recorrente e, portanto, é conforme à convenção.

— Apreciação jurídica

76

Deve, logicamente, analisar-se em primeiro lugar o problema da aplicabilidade, ao caso vertente, da Convenção de Berna, e o argumento da Comissão segundo o qual o direito comunitário prevalece sobre as disposições da referida convenção. A este respeito, o Tribunal considera, antes de mais, que a Comunidade — que, no estado actual do direito comunitário, não beneficiou de uma transferência de competências em matéria de direitos de propriedade intelectual e comercial — não é parte na Convenção de Berna, que foi ratificada por todos os seus Estados-membros. No que se refere às convenções celebradas pelos Estados-membros, há que notar que o Tratado rege, no artigo 234.°, as relações entre as suas disposições e as convenções internacionais celebradas pelos Estados-membros antes da sua entrada em vigor. Nos termos desse artigo, «as disposições do presente Tratado não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções celebradas, antes da entrada em vigor do presente Tratado, entre um ou mais Estados-membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro». O Tribunal de Justiça interpretou o referido artigo no sentido de que visa apenas as obrigações contraídas pelos Estados-membros com Estados terceiros. No seu acórdão de 11 de Março de 1986, Conegate, n.° 25 (121/85, Recueil, p. 1007), o Tribunal de Justiça declarou que «o artigo 234.° tem por objecto garantir que a aplicação do Tratado não afecte nem o respeito devido aos direitos dos países terceiros resultantes de uma convenção antes celebrada com um Estado-membro, nem a observância das obrigações derivadas desta convenção para este Estado-membro. As convenções celebradas antes da entrada em vigor do Tratado não podem, portanto, ser invocadas nas relações entre Estados-membros para justificar restrições ao comércio intracomunitário» (ver igualmente os acórdãos de 27 de Fevereiro de 1962, Comissão/Itália, 10/61, já referido, especialmente p. 27; e de 14 de Outubro de 1980, Attorney General, n.° 8, 812/79, Recueil, p. 2787).

77

Há que referir que, no presente caso, em que estão em causa a Irlanda e o Reino Unido, o artigo 234.° do Tratado se aplica, por força do artigo 5.° do acto de adesão, às convenções celebradas antes da sua adesão à Comunidade, em 1 de Janeiro de 1973. Daí resulta que, nas relações intracomunitárias, as disposições da Convenção de Berna, ratificada pela Irlanda e pelo Reino Unido antes de 1 de Janeiro de 1973, não podem pôr em causa as disposições do Tratado. Portanto, a recorrente não se pode prevalecer dessas disposições para justificar restrições ao regime da livre concorrência, tal como foi criado e desenvolvido na Comunidade em aplicação das disposições do Tratado e, designadamente, do seu artigo 86.° O argumento de que o artigo 2.° do dispositivo da decisão é contrário ao n.° 1 do artigo 9.° da Convenção de Berna deve, pois, ser rejeitado, sem ser necessário analisá-lo quanto ao mérito.

A mesma conclusão vale no que se refere ao n.° 2 do referido artigo 9.° A este respeito, basta observar que foi introduzido pelo acto de Paris de 1971, de que o Reino Unido é parte desde 2 de Janeiro de 1990, e que a Irlanda não ratificou. No que se refere ao Reino Unido, o acto de Paris — e em particular o n.° 2 do artigo 9.° da convenção — foi, pois, ratificado posteriormente à sua adesão à Comunidade e não pode, por conseguinte, pôr em causa uma disposição do Tratado. Com efeito, os Estados-membros não podem afastar as regras que resultam do Tratado, celebrando um acordo ou uma convenção internacional. Para esse efeito, estão obrigados a recorrer ao processo previsto no artigo 236.° do Tratado. Donde resulta que o n.° 2 do artigo 9.° da Convenção de Berna não pode ser invocado para limitar a competência atribuída à Comunidade pelo Tratado, para aplicação das regras da concorrência que enuncia e, designadamente, do artigo 86.° e das suas normas de execução, como o artigo 3.° do Regulamento n.° 17.

78

O fundamento baseado em violação da Convenção de Berna deve, pois, e em qualquer caso, ser rejeitado.

79

Por conseguinte, os pedidos a título subsidiário de anulação do artigo 2.° do dispositivo da decisão não devem ser acolhidos e deve ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

Quanto às despesas

80

Nos termos do n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, aplicável mutatis mutandis ao processo perante o Tribunal de Primeira Instância, por força do terceiro parágrafo do artigo 11.° da decisão do Conselho de 24 de Outubro de 1988, já referida, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida em todos os seus fundamentos, há que condená-la nas despesas, incluindo as efectuadas pela interveniente.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção)

decide:

 

1)

É negado provimento ao recurso.

 

2)

A recorrente é condenada nas despesas, incluindo as efectuadas pela interveniente.

 

Saggio

Yeraris

Briët

Barrington

Biancarelli

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 10 de Julho de 1991.

O secretário

H. Jung

O presidente da Segunda Secção

A. Saggio


( *1 ) Língua do processo: inglės.

( 1 ) NT: Parte omissa na versão oficial portuguesa da decisão.

( 2 ) NT: E nao, «se escolherem faze-lo através de licenças, considera-se razoável a exigencia de royalties por parte da ITP, da BBC e da RTE», como consta da versão oficial portuguesa.

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