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Document 61989CJ0373

Acórdão do Tribunal (Segunda Secção) de 21 de Novembro de 1990.
Caisse d'assurances sociales pour travailleurs indépendants "Integrity" contra Nadine Rouvroy.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal du travail de Nivelles - Bélgica.
Igualdade de tratamento entre homens e mulheres - Segurança social - Directiva 79/7/CEE - Regulamentação nacional que, em determinadas condições, dispensa as mulheres casadas, as viúvas e os estudantes do pagamento de cotizações de segurança social.
Processo C-373/89.

Colectânea de Jurisprudência 1990 I-04243

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:414

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-373/89 ( *1 )

I — Os factos

A — Enquadramento normativo

1.

No Reino da Bélgica, o sistema de segurança social dos trabalhadores independentes tem por base legal o Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes (a seguir «Decreto Real n.o 38» — publicado no Moniteur belge de 29.7.1967). Este decreto define o àmbito de aplicação dos diversos regimes de que beneficiam os trabalhadores independentes e esclarece o conteúdo das obrigações destes. Nos termos do artigo 1.o do Decreto Real n.o 38, o estatuto social abrange: 1) as prestações familiares; 2) as prestações de reforma e de sobrevivência; 3) as prestações em caso de doença ou invalidez. Nos termos do artigo 2.o, «estão sujeitos ao presente decreto e devem, a esse título, cumprir as obrigações dele decorrentes: os trabalhadores independentes e seus colaboradores».

2.

O decreto real de 19 de Dezembro de 1967 (publicado no Moniteur belge de 28.12.1967), modificado pelo decreto real de 20 de Julho de 1981 que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, prevê no n.o 1 do artigo 37.o o seguinte:

«Quando os rendimentos profissionais, na acepção dos n.os 2 e 3 do artigo 11.o do Decreto Real n.o 38, que servem de base para o cálculo das cotizações para determinado ano, não atinjam 77472 BFR, as mulheres casadas, as viúvas e os estudantes sujeitos ao Decreto Real n.o 38 podem solicitar, para esse ano, a sua equiparação às pessoas a que se refere o n.o 2 do artigo 12.o do mesmo decreto.»

3.

O n.o 2 do artigo 12.o do Decreto Real n.o 38 tem a seguinte redacção:

«O contribuinte que, para além da actividade que dá lugar à sujeição ao presente decreto, exerça habitualmente e a título principal outra actividade profissional não é devedor de qualquer cotização se os seus rendimentos profissionais na qualidade de trabalhador independente, obtidos no decurso do ano de referência designado no n.o 2 do artigo 11.o e reavaliados nos termos do n.o 3 do artigo 11.o, não atingirem, no mínimo, 32724 BFR.

No caso de os citados rendimentos atingirem no mínimo 32724 BFR, o contribuinte é devedor, consoante o caso:

1)

das cotizações a que se refere o n.o 1, se os referidos rendimentos atingirem no mínimo 154000 BFR;

2)

caso contrário, de uma cotização anual de 3,30 % para o regime de seguro de doença e invalidez, sector dos cuidados de saúde, e de 8,49 % para os outros regimes.

O rei definirá o que se deve entender, para efeitos de aplicação do presente número, por ocupação habitual e a título principal e o que lhe poderá ser equiparado.

O rei poderá, nas condições que fixar, alargar a aplicação das disposições do presente número às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes que não preencham a condição relativa ao exercício de outra actividade profissional.»

O último parágrafo deste artigo foi modificado pelo artigo 2.o da lei de 13 de Junho de 1985, da seguinte forma:

«O rei poderá, nas condições e limites que fixar, alargar a aplicação das disposições do presente número a determinadas categorias de contribuintes que não preencham a condição relativa ao exercício de outra actividade profissional.»

4.

De acordo com o seu artigo 2.o, a Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social QO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174), aplica-se à população activa, em que se incluem, designadamente, os trabalhadores independentes. O n.o 1 do artigo 3.o da directiva tem a seguinte redacção:

«A presente directiva aplica-se:

a)

aos regimes legais que assegurem uma protecção contra os seguintes riscos:

doença,

invalidez,

velhice,

acidente de trabalho e doença profissional,

desemprego;

b)

às disposições relativas à assistência social na medida em que se destinem a completar os regimes referidos na alínea a) ou a substituí-los.»

O n.o 1 do artigo 4.o da mesma directiva é do seguinte teor:

«O princípio da igualdade de tratamento implica a ausência de qualquer discriminação em razão do sexo, quer directa, quer indirectamente, por referência, nomeadamente, ao estado civil ou familiar especialmente no que respeita:

ao âmbito dos regimes e às condições de acesso aos regimes,

à obrigação de pagar as cotizações e ao cálculo destas,

ao cálculo das prestações, incluindo os acréscimos devidos na qualidade de cônjuge e por pessoa a cargo e as condições de duração e de manutenção do direito às prestações.»

B — Antecedentes da causa principal

5.

Jean Leloup, arquitecto na Bélgica, sujeito ao estatuto social dos trabalhadores independentes, tal como resulta designadamente do Decreto Real n.o 38, foi demandado pela Caisse d'assurances sociales pour travailleurs indépendants «Integrity» ASBL (a seguir «Integrity») perante o tribunal du travail de Nivelles para pagar cotizações sociais como trabalhador independente. No decurso da instância, J. Leloup, cujos rendimentos profissionais eram muito reduzidos, solicitou a aplicação do artigo 37.o do citado decreto real de 19 de Dezembro de 1967. J. Leloup faleceu em 1988, suce-dendo-lhe no processo pendente os seus herdeiros.

Perante o tribunal du travail de Nivelles, a Integrity argumentou que o artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 apenas se aplica às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes, e não aos homens casados nem aos viúvos. Os herdeiros de J. Leloup sustentaram que, nesse caso, o artigo 37.o em causa é contrário ao princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres.

C — A questão prejudicial

6.

Considerando que o litígio suscitava questões de interpretação de uma regulamentação comunitária, o tribunal du travail de Nivelles, por decisão de 4 de Dezembro de 1989, suspendeu a instância e, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pediu que o Tribunal de Justiça se pronunciasse a título prejudicial sobre a seguinte questão:

«O artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes, é conforme com a Directiva (79/7/CEE) de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social?»

7.

Na fundamentação da decisão de reenvio, o tribunal du travail de Nivelles cita uma questão parlamentar de 7 de Março de 1989, em que o senador belga R. Pataer considerou contrário às concepções actuais da emancipação dos homens e das mulheres o facto de o artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 não ser aplicável aos homens casados. A resposta ministerial, tal como foi retomada pela decisão de reenvio, é a seguinte:

«Sob reserva de eventual parecer prejudicial divergente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, considero que o artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes, não é contrário à Directiva (79/7/CEE) de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social.»

II — Tramitação processual

8.

A decisão de reenvio deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 15 de Dezembro de 1989.

9.

Nos termos do artigo 20.o do Protocolo Relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça, foram apresentadas observações escritas:

em representação de Nadine Rouvroy, viúva de Jean Leloup, e de seus filhos Olivier, Eric e Mathieu, por Franklin Huisman, advogado no foro de Bruxelas,

em representação do Governo belga, por P. Mainil, secrétaire d'État aux Classes moyennes, e

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Marie Wolfcarius, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente.

10.

Com base no relatório do juiz relator e ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

11.

Por despacho de 4 de Julho de 1990, proferido nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 95.o do Regulamento Processual, o Tribunal decidiu atribuir o processo à Segunda Secção.

III — Resumo das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

12.

Nadine Rouvroy e seus filhos, herdeiros de J. Leloup, alegam que a expressão «mulher casada», constante do n.o 1 do artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967, constitui o cerne da questão prejudicial. Os trabalhos preparatórios do Decreto Real n.o 38 e dos textos de alteração não contêm qualquer explicação ou justificação das razões pelas quais o artigo 37.o opera uma distinção em benefício exclusivo das mulheres casadas. A doutrina também não fornece qualquer justificação para essa distinção, contentando-se em verificá-la e em exigir a modificação do citado n.o 1 do artigo 37.o O tribunal du travail de Nivelles afirmou num acórdão de 24 de Junho de 1987 que:

«O poder judicial deve recusar-se também a aplicar o citado artigo 37.o na medida em que este cria uma discriminação entre homem e mulheres casados, contrariamente aos princípios impostos pela directiva das Comunidades Europeias de 19 de Dezembro de 1978.»

Este acórdão foi anulado pela cour de travail de Bruxelas por razões diversas das contidas na citada passagem.

13.

Os herdeiros de J. Leloup supõem que a ideia subjacente ao n.o 1 do artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 é a concepção tradicional segundo a qual, num casal, o homem exerce uma actividade principal, considerando-se que a mulher, caso trabalhe (ainda que exercendo uma actividade principal), apenas desenvolve uma actividade acessória, sobretudo se forem reduzidos os rendimentos que ela daí retira.

Além disso, na resposta à questão do senador Pataer, o ministre de la Prévoyance sociale admitiu implicitamente que a regulamentação belga não está ao abrigo de críticas. Os herdeiros de J. Leloup acrescentam que o artigo 37.o do decreto de 19 de Dezmbro de 1967 cria indiscutivelmente uma discriminação baseada no sexo, quer directa quer indirectamente, por referência ao estado matrimonial, sendo, pois, contrária ao princípio da igualdade estabelecido pelo artigo 4.o da Directiva 79/7.

14.

Os herdeiros de J. Leloup propõem, em conclusão, que o Tribunal de Justiça dê a seguinte resposta à questão submetida pelo tribunal du travail de Nivelles (secção Wavre):

«O artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes, é contrario à Directiva (79/7/CEE) de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social.»

15.

O Governo belga entende, antes de mais, não existir qualquer forma de discriminação no que se refere ao âmbito de aplicação do estatuto social dos trabalhadores independentes e à obrigação de pagar cotizações para esse regime.

16.

O Governo belga alega, em seguida, que existe uma distinção no que se refere ao cálculo das cotizações. Há, por um lado, as pessoas que exercem habitualmente e a título principal uma actividade profissional independente. Essas pessoas são pelo menos devedoras das cotizações mínimas, ainda que não tenham obtido lucros. Por outro lado, há as pessoas que exercem habitualmente e a título principal uma outra actividade profissional, paralelamente à sua actividade profissional como trabalhador independente. Estas pessoas não são devedoras de cotizações, ou apenas deverão pagar cotizações reduzidas quando os rendimentos profissionais, que auferem como trabalhador independente, não ultrapassem determinado limite.

Esta distinção não se baseia no sexo, não sendo consequentemente contrária ao disposto no artigo 4.o da Directiva 79/7.

O legislador belga constatou, contudo, que determinadas categorias de pessoas desenvolvem uma actividade principal a tempo inteiro, não considerada actividade «profissional» na acepção do direito do trabalho. Assim sucede com as mulheres que se ocupam da educação dos filhos e do lar e com os estudantes. Quando essas pessoas exercem uma actividade profissional como trabalhador independente para além da sua actividade principal, com o objectivo de equilibrar o orçamento familiar ou suportar o custo dos estudos, essa actividade profissional é necessariamente limitada no tempo.

O artigo 37.o em causa veio dar execução ao n.o 2, último parágrafo, do artigo 12.o do Decreto Real n.o 38. Decorre da sua génese que ele se aplica exclusivamente aos rendimentos limitados resultantes, para certas categorias de pessoas, de uma actividade profissional independente necessariamente restrita.

17.

O Governo belga entende, ainda, que as pessoas tomadas em consideração para efeitos de aplicação do artigo 37.o não foram designadas com base no critério «sexo», mas em critérios socioeconómicos. Assim, este artigo não se refere apenas às mulheres, visto que abrange também os estudantes (masculinos). Não é aplicável a todas as mulheres, mas apenas às mulheres casadas e às viúvas. Quanto à categoria dos estudantes, foi estabelecido um limite de idade (25 anos), sendo aplicável tanto aos estudantes como às estudantes.

18.

O Governo belga observa ainda que não é automática nem obrigatória a aplicação do artigo 37.o, que está em discussão. Ela é facultativa, devendo ser solicitada. A apresentação de um tal pedido depende, de facto, da situação do interessado do ponto de vista das prestações. Com efeito, os trabalhadores independentes apenas têm direito às prestações quando paguem as cotizações a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o do Decreto Real n.o 38 (cotizações devidas pelas pessoas que exercem a título principal uma actividade profissional como trabalhador independente). Os beneficiários do artigo 37.o podem, apesar disso, ter direito às prestações, visto estarem normalmente abrangidos pelo seguro do cônjuge (mulheres casadas ou viúvas) ou dos pais (estudantes): beneficiam de direitos derivados. Essa possibilidade não existia antes de 1985 para os que estavam excluídos da aplicação do artigo 37.o (por exemplo, os homens casados). Desde então, o legislador belga introduziu a pensão de sobrevivência e a pensão de lar, de tal forma que, teoricamente, este argumento em favor do artigo 37.o deveria desaparecer.

19.

O Governo belga acrescenta, por fim, que tanto a revogação do artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 como a sua extensão aos homens casados têm por consequência uma discriminação indirecta, contrária ao artigo 4.o da Directiva 79/7. A sua revogação imporia uma obrigação de cotização a um número muito maior de mulheres do que de homens, visto que as estatísticas revelam que actualmente existem mais mulheres casadas do que homens casados que, para além das tarefas domésticas, exercem uma actividade profissional limitada como trabalhador independente para equilibrarem o orçamento familiar. No caso de se considerar a extensão da aplicação do artigo 37.o aos homens casados, necessário seria evitar que, no mesmo agregado familiar, ambos os cônjuges a solicitassem, visto que nesse caso ninguém garantiria um direito às prestações. Além disso, no que se refere mais especificamente às prestações de reforma, o montante destas seria frequentemente inferior quando o marido invocasse a aplicação do artigo 37.o do que quando a mulher o fizesse. Esta situação resulta do facto de o montante da pensão ser em função do número de anos de carreira e do facto de a grande maioria das trabalhadoras independentes casadas apenas exercerem efectivamente uma actividade profissional durante uma pequena parcela da sua carreira profissional «potencial». Do ponto de vista do artigo 37.o, um tratamento aparentemente igual dos homens casados e das mulheres casadas implicaria mais desvantagens para as mulheres do que para os homens no que se refere a um eventual direito às prestações.

20.

Em conclusão, o Governo belga propõe que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma à questão submetida pelo tribunal du travail de Nivelles:

«O artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes, é conforme com a Directiva 79/7/CEE, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social.»

21.

A Comissão recorda a jurisprudência do Tribunal de Justiça (e designadamente os acórdãos de 24 de Março de 1987, Cotter, 286/85, Colect., p. 1453; de 24 de Junho de 1987, Borrie Clarke, 384/85, Colect., p. 2865; de 24 de Junho de 1986, Drake, 150/85, Colect., p. 1995; de 8 de Março de 1988, Dik, 80/87, Colect., p. 1601; e de 13 de Dezembro de 1989, Ruzius-Wilbrink, 102/88, Colect., p. 4311), segundo a qual a Directiva 79/7 entrou em vigor em 23 de Dezembro de 1984. O artigo 4.o desta directiva é de aplicação directa e é a expressão concreta da finalidade da directiva, que visa a aplicação do princípio da igualdade de tratamento. Na ausência de medidas de aplicação do n.o 1 do artigo 4.o da directiva, e até o Governo nacional adoptar as medidas de execução necessárias, o sexo objecto de discriminação tem direito a que lhe seja aplicado o mesmo regime que ao sexo privilegiado que se encontre na mesma situação, regime que, na falta de aplicação da directiva, se mantém como único sistema de referência válido.

22.

A Comissão entende que o artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 constitui um caso de discriminação directa contra os homens e que essa discriminação cai sob a alçada da Directiva 79/7, na medida em que o artigo 2.o deste diploma visa expressamente os trabalhadores independentes, o artigo 3.o, n.o 1, visa os regimes de protecção contra a doença, invalidez e velhice, e o artigo 4.o, n.o 1, proíbe qualquer discriminação em razão do sexo no que se refere à obrigação de pagar as cotizações e ao cálculo destas.

Assim sendo, o artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967 deve ser considerado contrário à Directiva 79/7 e designadamente ao n.o 1, segundo travessão, do artigo 4.o, na medida em que, em diversos sectores abrangidos pela directiva, exclui os homens casados e os viúvos do benefício concedido às mulheres casadas e às viúvas, mesmo quando preencham as mesmas condições.

A Comissão conclui daí que os homens casados ou viúvos que exerçam uma profissão independente a título principal, mas cujo rendimento profissional não exceda o limite legal, devem, caso o solicitem, ser equiparados às pessoas que exercem idêntica profissão a título complementar, como sucede com as mulheres casadas ou viúvas. Em condições iguais, os homens que exercem uma profissão independente têm direito a que lhes seja aplicado o sistema privilegiado de cálculo de cotizações para a segurança social actualmente reservado às mulheres que exercem uma profissão independente, sistema esse que é, na falta de medidas de aplicação do n.o 1 do artigo 4.o da directiva, o único sistema de referência válido. A Comissão recorda que a directiva não efectua qualquer distinção entre discriminação «positiva» e «negativa» e que, em consequência, um Estado-membro não pode justificar uma disposição discriminatória com o argumento de que ela é «positiva» em favor da mulher.

23.

A Comissão propõe que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial da seguinte forma:

«A legislação nacional que reserva às mulheres casadas ou viúvas o benefício de uma dispensa ou redução de cotizações para os regimes legais que garantem protecção contra um ou mais dos riscos a que se refere o n.o 1, alínea a), do artigo 3.o da Directiva 79/7/CEE, de 19 de Dezembro de 1978, sem conceder a mesma dispensa de cotização aos homens casados ou viúvos, ainda que preencham as mesmas condições, não é conforme com o n.o 1 do artigo 4.o da mesma directiva.»

G. F. Mancini

Juiz relator


( *1 ) Lingua do processo: francês.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

21 de Novembro de 1990 ( *1 )

No processo C-373/89,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado, pelo tribunal du travail de Nivelles, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Caisse d'assurances sociales pour travailleurs indépendants «Integrity», ASBL,

e

Nadine Rouvroy, viúva de Jean Leloup, e seus filhos Olivier, Eric e Mathieu,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação e aplicação da Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174),

O TRIBUNAL (Segunda Secção),

constituído pelos Srs. T. F. O'Higgins, presidente de secção, G. F. Mancini e F. A. Schockweiler, juízes,

advogado-gerąl: F. G. Jacobs

secretário: D. Louterman, administradora principal

vistas as observações apresentadas

em representação de Nadine Rouvroy, viúva de Jean Leloup, e de seus filhos Olivier, Eric e Mathieu, por Franklin Huisman, advogado no foro de Bruxelas,

em representação do Governo belga, por P. Mainil, secrétaire d'État aux Classes moyennes,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Marie Wolfcarius, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 4 de Outubro de 1990,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de Outubro de 1990,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão interlocutòrio de 4 de Dezembro de 1989, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 15 de Dezembro de 1989, o tribunal de travail de Nivelles (Bélgica), secção Wavre, submeteu, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, uma questão prejudicial relativa à interpretação da Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174).

2

Esta questão foi suscitada no àmbito de um litígio entre, por um lado, a Caisse d'assurances sociales pour travailleurs indépendants «Integrity», ASBL (a seguir «Integrity»), e, por outro, Nadine Ŕouvroy, viúva do arquitecto Jean Leloup, e seus filhos Olivier, Eric e Mathieu, a respeito do pagamento das cotizações sociais como trabalhador independente reclamadas relativamente aos anos de 1985 e 1986.

3

Nos termos do artigo l.o do Decreto Real belga n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes (publicado no Moniteur belge de 29.7.1967, p. 1001), este estatuto abrange as prestações familiares, as prestações de reforma e de sobrevivência e ainda as prestações em caso de doença ou invalidez. Estão sujeitos a este regime os trabalhadores independentes e seus colaboradores.

4

O decreto real de 19 de Dezembro de 1967 (publicado no Monitem belge de 28.12.1967, p. 1496), modificado pelo decreto real de 20 de Julho de 1981 (publicado no Moniteur belge de 20.7.1981, p. 1218), que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, determina, no artigo 37.o, n.o 1, primeiro parágrafo :

«Quando os rendimentos profissionais, na acepção dos n.os 2 e 3 do artigo 11.o do Decreto Real n.o 38, que servem de base para o cálculo das cotizações para determinado ano, não atinjam 77472 BFR, as mulheres casadas, as viúvas e os estudantes sujeitos ao Decreto Real n.o 38 podem solicitar, para esse ano, a sua equiparação às pessoas a que se refere o n.o 2 do artigo 12.o do mesmo decreto.»

5

Nos termos do n.o 2 do artigo 12.o do já referido Decreto Real n.o 38, o contribuinte que, para além da actividade que origina a sua integração no estatuto social dos trabalhadores independentes, exerça habitualmente e a título principal outra actividade profissional não é devedor de qualquer cotização com base no Decreto Real n.o 38 se os seus rendimentos profissionais, como trabalhador independente, não atingirem um determinado limite. Esta dispensa de cotização não faz perder ao seu beneficiário o direito às prestações previstas no estatuto social dos trabalhadores independentes.

6

No decurso do processo perante o tribunal du travail de Nivelles, J. Leloup, cujos rendimentos eram muito reduzidos, solicitou a aplicação do artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967. A Integrity opòs-se a esse pedido com fundamento em que o artigo 37.o apenas se aplicava às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes, com exclusão dos homens casados e dos viúvos. Os herdeiros de J. Leloup, ao retomarem a instância, sustentaram que esse artigo 37.o é contrário ao princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social.

7

O tribunal du travail de Nivelles, secção Wavre, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 37.o do decreto real de 19 de Dezembro de 1967, que institui o regulamento geral de execução do Decreto Real n.o 38, de 27 de Julho de 1967, que estabelece o estatuto social dos trabalhadores independentes, é conforme com a Directiva (79/7/CEE) de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social?»

8

Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, da tramitação processual e das observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça, remete-se para o relatório para audiência. Esses elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação do Tribunal.

9

Deve observar-se a título liminar que, embora lhe não caiba pronunciar-se, no âmbito do artigo 177.o do Tratado, sobre a compatibilidade de uma regulamentação nacional com o direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em contrapartida, competente para fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação decorrentes desta ordem jurídica que lhe permitam apreciar tal compatibilidade na decisão do processo que lhe foi submetido (ver, por último, o acórdão de 11 de Outubro de 1990, Nespoli, C-196/89, Colect., p. I-3647).

10

Nos termos do artigo 2.o da referida Directiva 79/7/CEE, este diploma aplica-se, designadamente, aos trabalhadores independentes. O artigo 3.o enumera os regimes e disposições em que deve aplicar-se o princípio da igualdade de tratamento em matéria de segurança social. Finalmente, o n.o 1 do artigo 4.o da directiva dispõe:

«O princípio da igualdade de tratamento implica a ausência de qualquer discriminação em razão do sexo, quer directa quer indirectamente, por referência, nomeadamente, ao estado civil ou familiar especialmente no que respeita:

ao âmbito dos regimes e às condições de acesso aos regimes,

à obrigação de pagar as cotizações e ao cálculo destas,

ao cálculo das prestações, incluindo os acréscimos devidos na qualidade de cônjuge e por pessoa a cargo e as condições de duração e de manutenção do direito às prestações.»

11

Deve, pois, entender-se a questão prejudicial como incidindo sobre a questão de saber se, designadamente, o artigo 4.o da Directiva 79/7/CEE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-membro reserve exclusivamente às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes a faculdade de serem equiparados a pessoas não obrigadas a pagar qualquer cotização social quando sejam reduzidos os seus rendimentos profissionais obtidos numa actividade como trabalhador independente e exerçam habitualmente e a título principal outra actividade profissional.

12

Decorre de jurisprudência constante (ver, por último, o acórdão de 13 de Dezembro de 1989, Ruzius-Wilbrink, C-102/88, Colect., p. 4311) que, considerado em si e atendendo à finalidade e conteúdo da Directiva 79/7/CEE, o n.o 1 do artigo 4.o é suficientemente preciso para poder ser invocado por um particular perante um órgão jurisdicional nacional a fim de que este afaste qualquer disposição nacional não conforme com o mesmo artigo. Cabe recordar, a este respeito, que aquela disposição impõe aos Estados-membros a obrigação de suprimirem qualquer disposição contrária ao princípio da igualdade de tratamento.

13

O Tribunal de Justiça decidiu ainda, no referido acórdão de 13 de Dezembro de 1989, que, em caso de discriminação directa, os membros do grupo desfavorecido têm direito a ser tratados da mesma forma e a que lhes seja aplicado o mesmo regime que aos membros do grupo favorecido que se encontrem na mesma situação, regime esse que, na falta de adequada execução da directiva, se mantém como único sistema de referência válido.

14

Convém finalmente sublinhar que, de acordo com a lógica interna da directiva, o artigo 4.o, que define o alcance do princípio da igualdade de tratamento, apenas se aplica dentro do âmbito de aplicação pessoal e material daquele diploma (acórdão de 27 de Junho de 1989, J. G. Achterberg-te Riele, 48/88, 106/88 e 107/88, Coleet., p. 1963). A este respeito, o advogado-geral observou justificadamente nas suas conclusões que, no caso de cotizações sociais indivisíveis corresponderem a prestações sociais apenas parcialmente integráveis no âmbito de aplicação material da Directiva 79/7/CEE, o princípio da igualdade de tratamento se aplica todavia à totalidade dessas cotizações. Diversa é a situação quando seja possível autonomizar as cotizações em função das prestações individuais.

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À luz do conjunto destas considerações, cabe responder à questão submetida pelo tribunal du travail de Nivelles, secção Wavre, que o n.o 1 do artigo 4.o da Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional reserve às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes a possibilidade de serem equiparados a pessoas que não estão obrigadas a pagar qualquer cotização social, sem conceder a mesma possibilidade de dispensa das cotizações aos homens casados e aos viúvos que preencham, no restante, as mesmas condições.

Quanto às despesas

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As despesas efectuadas pelo Governo belga e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

pronunciando-se sobre a questão que lhe foi submetida por acórdão de 4 de Dezembro de 1989 do tribunal du travail de Nivelles, secção Wavre, declara:

 

O n.o 1 do artigo 4.o da Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional reserve às mulheres casadas, às viúvas e aos estudantes a possibilidade de serem equiparados a pessoas que não estão obrigadas a pagar qualquer cotização social, sem conceder a mesma possibilidade de dispensa das cotizações aos homens casados e aos viúvos que preencham, no restante, as mesmas condições.

 

O'Higgins

Mancini

Schockweiler

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de Novembro de 1990.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Segunda Secção

T. F. O'Higgins


( *1 ) Língua do processo: francês.

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