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Document 61989CJ0038

Acórdão do Tribunal (Quarta Secção) de 11 de Janeiro de 1990.
Processo-crime contra Guy Blanguernon.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal de police d'Aix-les-Bains - França.
Direito das sociedades - Execução de directivas - Condição de reciprocidade.
Processo C-38/89.

Colectânea de Jurisprudência 1990 I-00083

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:11

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-38/89 ( *1 )

I — Matéria de facto e tramitação processual

1. Enquadramento jurídico

A quarta Directiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, em matéria de sociedades baseia-se no artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado CEE. Versa sobre a coordenação das legislações nacionais relativas às contas anuais de certas formas de sociedade.

O artigo 55.° da directiva estabelece que os Estados-membros porão em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para se conformarem à directiva no prazo de dois anos a contar da sua notificação. Tendo a directiva sido notificada em 31 de Julho de 1978, este prazo terminou em 31 de Julho de 1980.

A quarta directiva foi transposta para o direito francês pela Lei n.° 83-353, de 30 de Abril de 1983, e pelo Decreto n.° 83-1026, de 29 de Novembro de 1983, que modifica o Decreto n.° 67-236, de 23 de Março de 1967.

O artigo 44.°-1, n.° 1, do decreto de 23 de Março de 1967, após as alterações, impõe às sociedades de responsabilidade limitada a apresentação, em dois exemplares, na Secretaria do tribunal de commerce, no mês seguinte à aprovação pela respectiva assembleia geral ordinária:

1)

das contas anuais, relatório de gestão e, eventualmente, relatório dos revisores de contas do ano que terminou;

2)

da proposta de aplicação do resultado submetida à assembleia e da deliberação de aplicação votada.

O incumprimento desta obrigação será, nos termos do artigo 53.° do mesmo decreto, punido com uma multa de 1200 a 3000 FF.

2. Matéria de facto

Guy Blanguernon é o director financeiro da sociedade de responsabilidade limitada PAKEM, constituída segundo o direito francês. Esta sociedade depende do grupo Newtec, especializado na embalagem. Este grupo está sujeito à concorrência de fabricantes estrangeiros, designadamente dos produtores italianos e alemães.

Por instrução do grupo Newtec, Guy Blanguernon não apresentou, no mês seguinte à sua aprovação pela assembleia geral, as contas anuais da sociedade PAKEM na Secretaria do tribunal de commerce de Chambéry. Em virtude desta omissão, o Ministério Público instaurou um processo, perante o tribunal de police de Aix-les-Bains, a Guy Blanguernon por violação do artigo 44.°-1 do decreto de 23 de Março de 1967, supra --referido.

O arguido alegou, na audiência de 16 de Junho de 1988, que a lei de 30 de Abril de 1983 e o decreto de 29 de Novembro de 1983, aprovado para adaptar o direito interno francês à quarta directiva do Conselho, afectam o direito das sociedades francesas. Estas são obrigadas a tornar públicas as suas contas, enquanto que as sociedades italianas e alemãs não o têm de fazer. Com efeito, a Itália e a República Federal da Alemanha não adoptarem medidas de execução da directiva semelhantes às francesas.

3. Questão prejudicial

O tribunal de police de Aix-les-Bains entende ser incontestável que o Tratado CEE prima sobre o direito interno e se aplica directamente aos nacionais dos Estados-membros e aos respectivos órgãos jurisdicionais, e que, por força desse princípio do primado, as directivas do Conselho devem ser aplicadas nos Estados-membros. Sublinha que da quarta directiva do Conselho de 25 de Julho de 1978, bem como do artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado, resulta que o Conselho e a Comissão exercem as suas funções coordenando as garantias exigidas nos Estados-membros às sociedades na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.° do Tratado, na medida em que tal seja necessário e «a fim de tornar equivalentes essas garantias».

Considera, além disso, que no caso em apreço a quarta directiva do Conselho não foi transposta nem para o direito italiano nem para o direito alemão e que, por conseguinte, a regra da reciprocidade estabelecida pelo Tratado CEE não pode ser aplicada.

Nessas condições, o tribunal decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

«De acordo com a letra e o espírito do alínea g) do n.° 3 do artigo 54.° do Tratado de Roma e da quarta directiva do Conselho das Comunidades Europeias de 25 de Julho de 1978, as regulamentações nacionais adoptadas nos termos desses normativos podem entrar em vigor separadamente, antes de todos os Estados-membros das Comunidades Europeias terem adoptado regulamentações equivalentes, condição necessária para a coordenação simultânea que a quarta directiva de 25 de Julho de 1978 pretendeu instaurar?»

4. Tramitação processual

A decisão de reenvio do tribunal de police de Aix-les-Bains, de 30 de Junho de 1988, foi registada na Secretaria do Tribunal em 16 de Fevereiro de 1989.

Em conformidade com o artigo 20.° do protocolo relativo ao estatuto do Tribunal de Justiça, o Governo da República Francesa, representado pelos agentes Edwige Belliard e Sylvie Grassi, e a Comissão, representada pelos seus consultores jurídicos, Antonio Caeiro e Étienne Lasnet, apresentaram observações escritas.

Com base no relatório do juiz relator e ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

II — Resumo das observações escritas

O Governo francês considera, à luz de uma jurisprudência constante, que a entrada em vigor de qualquer diploma legal, adoptado em execução de uma directiva, não pode depender da adopção de diplomas equivalentes por outros Estados-membros. O direito comunitário não está submetido à condição de reciprocidade a que a questão do tribunal de police faz alusão. Com efeito, a ordem jurídica própria da Comunidade integrada na dos Estados-membros torna inoperante a excepção baseada na falta de reciprocidade. O incumprimento, por um Es-tado-membro, de uma obrigação comunitária está sujeito ao mecanismo dos artigos 169.° e 170.° do Tratado onde se prevê que, respectivamente, a Comissão e cada Estado-membro podem intentar uma acção por incumprimento se entenderem que outro Estado-membro, não fazendo o jogo comunitário, introduziu distorções nessa ordem jurídica. Assim, um Estado-membro não fica dispensado das suas obrigações comunitárias pelo simples facto de outro Estado-membro não as respeitar.

O Governo francês sublinha, além disso, que, de qualquer forma, o direito comunitário não impede um Estado-membro de adoptar, relativamente aos seus nacionais, medidas mais severas do que as previstas numa directiva.

Nestas circunstâncias, o Governo francês propõe que o Tribunal responda à questão prejudicial declarando que um diploma legal nacional adoptado em conformidade com o Tratado de Roma e uma directiva pode entrar em vigor embora outros Estados-membros não tenha adoptado legislação equivalente.

No entender da Comissão, deve-se, em primeiro lugar, esclarecer a situação de facto a respeito da transposição da quarta directiva nos diferentes Estados-membros. Com excepção da Espanha, Portugal e Itália, as disposições necessárias à transposição dessa directiva foram aprovadas pelos Estados-membros. A Comissão chama a atenção para o facto de, na sequência de um processo nos termos do artigo 169.° do Tratado, o Tribunal ter declarado no acórdão de 20 de Março de 1986, Comissão/República Italiana (17/85, Colect. p. 1199), que a Itália não cumpriu as suas obrigações comunitárias ao não adoptar, nos prazos fixados, as medidas previstas pela quarta directiva. Como a Itália não tirou as consequências deste acórdão, a Comissão instaurou-lhe um novo processo de infracção nos termos do artigo 171.° do Tratado.

A Comissão assinala, todavia, que, de acordo com uma jurisprudência constante do Tribunal, o cumprimento por cada Estado-membro das suas obrigações comunitárias não pode, em caso algum, estar subordinado ao respeito das mesmas obrigações pelos outros Estados-membros. Por conseguinte, a Comissão propõe que se responda pela afirmativa à questão colocada, precisando que cada Estado-membro tem obrigação, e não a mera faculdade, de adoptar as medidas necessárias à transposição para o respectivo direito interno das disposições da quarta directiva, até ao termo do prazo estabelecido por esta, mesmo que outros Estados-membros ainda não tenham adoptado as medidas necessárias para esse efeito.

T. Koopmans

Juiz relator


( *1 ) Língua do processo: franccs.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL (Quarta Secção)

11 de Janeiro de 1990 ( *1 )

No processo C-38/89,

que tem por objecto o pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo tribunal de police de Aix-les-Bains (França), destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Ministère public

e

Guy Blanguernon,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado CEE e da quarta Directiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, relativa às contas anuais de certas formas de sociedades (JO L 222, p. 11; EE 17 Fl p. 55), para efeitos de definir quando é que os diplomas legais adoptados em conformidade com esses normativos podem entrar em vigor,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

constituído pelos Srs. C. N. Kakouris, presidente de secção, T. Koopmans e M. Diez de Velasco, juízes,

advogado-geral : C. O. Lenz

secretário: B. Pastor, administradora

vistas as observações apresentadas:

em representação de G. Blanguernon por P. Lippens de Cerf, advogado, na audiencia,

em representação do Governo francês por E. Belliard e S. Grassi, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias pelos seus consultores jurídicos, E. Lasnet e A. Caeiro, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 10 de Outubro de 1989,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência da mesma data,

profere o presente

Acórdão

1

Por decisão de 30 de Junho de 1988, entrada no Tribunal em 16 de Fevereiro seguinte, o tribunal de police de Aix-les-Bains colocou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial relativa à interpretação do artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado bem como da quarta Directiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, relativa às contas anuais de certas formas de sociedades (JO L 222, p. 11; EE 17 Fl p. 55, adiante «quarta directiva»).

2

Esta questão foi colocada no âmbito de um processo-crime instaurado contra G. Blanguernon, director financeiro da sociedade de responsabilidade limitada PAKEM. G. Blanguernon é acusado de não ter apresentado as contas anuais dessa sociedade na Secretaria do tribunal de commerce de Chambéry, no mês seguinte à sua aprovação pela assembleia geral.

3

Esta omissão é punida pela legislação francesa relativa às obrigações contabilísticas dos comerciantes e de determinadas sociedades. Esta legislação tem por objecto a transposição, para o direito francês, do disposto na quarta directiva, que se baseia no artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado. Este artigo prevê a adopção de directivas que coordenem, na medida do necessário e a fim de as tornar equivalentes, as garantias exigidas nos Estados-membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.° do Tratado, para protecção dos interesses tanto dos sócios como de terceiros.

4

G. Blanguernon alegou, perante o órgão jurisdicional nacional, que a aplicação da legislação francesa em matéria de obrigações contabilísticas afecta os direitos das sociedades francesas visto estas serem obrigadas a tornar públicas as contas, ao passo que os seus concorrentes de outros Estados-membros não estão sujeitos a essas obrigações. Com efeito, alguns Estados-membros não adoptaram as medidas de execução da quarta directiva.

5

Face a esta argumentação, o tribunal de police de Aix-les-Bains decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

«De acordo com a letra e o espírito da alínea g) do n.° 3 do artigo 54.° do Tratado de Roma e da quarta directiva do Conselho das Comunidades Europeias de 25 de Julho de 1978, as regulamentações nacionais adoptadas nos termos desses normativos podem entrar em vigor separadamente, antes de todos os Estados-membros das Comunidades Europeias terem adoptado regulamentações equivalentes, condição necessária para a coordenação simultânea que a quarta directiva de 25 de Julho de 1978 pretendeu instaurar?»

6

Para mais ampla exposição de matéria de facto do processo principal, tramitação do processo, bem como das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos dos autos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

7

Convém sublinhar, antes de mais, que, de acordo com uma jurisprudência constante, um Estado-membro não pode justificar o incumprimento das obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, pela circunstância de outros Estados-membros não terem igualmente cumprido as suas obrigações (ver, designadamente, acórdão de 26 de Fevereiro de 1976, Comissão/República Italiana, 52/75, Recueil p. 277). Com efeito, na ordem jurídica estabelecida pelo Tratado, a aplicação do direito comunitário pelos Estados-membros não pode estar sujeita à condição de reciprocidade. Os artigos 169.° e 170.° do Tratado prevêem as vias de recurso apropriadas para fazer face aos incumprimentos pelos Estados-membros das obrigações que lhes incumbem por força do Tratado.

8

Segue-se que o direito nacional de um Estado-membro que dá cumprimento a uma directiva comunitária deve ser plenamente aplicável, mesmo que a directiva em questão não tenha sido ainda transposta e entrado em vigor nas legislações de outros Estados-membros.

9

Esta observação aplica-se igualmente à legislação nacional que dá cumprimento à quarta directiva baseada no artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado. Se esta directiva e este artigo referem a equivalência das garantias exigidas nos Estados-membros para proteger os interesses dos sócios e de terceiros, é para esclarecer qual o grau de harmonização pretendido. Deste objectivo não se pode, portanto, deduzir que a aplicabilidade das medidas de execução da quarta directiva num Estado-membro depende da adopção de medidas equivalentes em todos os outros Estados-membros.

10

Por conseguinte, deve-se responder à questão prejudicial declarando que o disposto no artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado e na quarta directiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, relativa às contas anuais de certas formas de sociedades, deve ser interpretado no sentido de que os diplomas legais dos Estados-membros que têm por objecto dar cumprimento a essa directiva devem entrar em vigor e ser aplicados, mesmo que outros Estados-membros ainda não tenham adoptado as medidas para a sua execução.

Quanto às despesas

11

As despesas efectuadas pelo Governo francês e a Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo tribunal de police de Aix-les--Bains, por decisão de 30 de Junho de 1988, declara:

 

O artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado e a quarta directiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, relativa às contas anuais de certas formas de sociedades, devem ser interpretados no sentido de que os diplomas legais dos Esta-dos-membros que têm por objecto dar cumprimento a essa directiva, devem entrar em vigor e ser aplicados, mesmo que outros Estados-membros ainda não tenham adoptado as medidas para a sua execução.

 

Kakouris

Koopmans

Diez de Velasco

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 11 de Janeiro de 1990.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Quarta Secção

C. N. Kakouris


( *1 ) Língua do processo: francês.

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