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Document 61989CC0010

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 13 de Março de 1990.
SA CNL-SUCAL NV contra HAG GF AG.
Pedido de decisão prejudicial: Bundesgerichtshof - Alemanha.
Livre circulação de mercadorias - Direito de marca.
Processo C-10/89.

Colectânea de Jurisprudência 1990 I-03711

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:112

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

F. G. JACOBS

apresentadas em 13 de Março de 1990 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

I — O contexto do processo

1.

Este caso surge perante o Tribunal através de um pedido de decisão a título prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal federal alemão). Diz respeito, fundamentalmente, à relação entre o princípio da livre circulação de mercadorias, consagrado nos artigos 30.o a 34.o do Tratado CEE, e a excepção àquele princípio consagrada no artigo 36.o do mesmo Tratado, relativa a restrições «justificadas por razões... de protecção da propriedade industrial e comercial». O presente caso vem na sequência do processo 192/73, Van Zuylen/HAG (Recueil 1974, p. 731). Inevitavelmente, aquele caso e o presente ficarão conhecidos como HAG I e HAG II, respectivamente. Estas denominações são cómodas e eu próprio as utilizarei.

2.

A autora no processo principal, HAG GF AG (a seguir «HAG Bremen»), é uma sociedade alemã com sede em Bremen. Foi fundada em 1906 e as suas principais actividades, resultantes da invenção do primeiro processo para descafeinar café, centram-se há muito tempo na produção e distribuição deste café. Em 1907, registou em seu nome a marca «HAG» na Alemanha. No ano seguinte, a mesma marca foi registada em seu nome na Bélgica e no Luxemburgo. Em 1927, criou na Bélgica uma filial, com a designação de «Café HAG SA», por si inteiramente possuída e controlada. Em 1935, transferiu as marcas registadas na Bélgica e no Luxemburgo para aquela filial. Em 1944, todo o património da filial, incluindo as marcas da Bélgica e do Luxemburgo, foi expropriado por ser propriedade do inimigo. A sociedade foi vendida na totalidade à família Van Oevelen. Em 1971, as marcas, entretanto convertidas em marcas Benelux, foram cedidas à sociedade Van Zuylen Frères, com sede em Liège.

3.

Quando, em 1972, a HAG Bremen começou a exportar café para o Luxemburgo com a marca «Kaffee HAG», a Van Zuylen Frères propôs uma acção por contrafacção perante um tribunal luxemburguês. Este processo levou à decisão a título prejudicial no caso HAG I, na qual o Tribunal de Justiça declarou que:

«A proibição da comercialização num Es-tado-membro de um produto que exibe legalmente uma marca noutro Estado-membro, apenas porque no primeiro Estado existe uma marca idêntica com a mesma origem, é incompatível com as disposições que prevêem a livre circulação de mercadorias no interior do mercado comum.»

4.

As implicações desta decisão parecem claras. Foi redigida em termos bastante latos, por forma a dar a impressão de que, se a Van Zuylen não podia invocar a sua marca Benelux para impedir a venda de café pela HAG Bremen com aquela marca no Luxemburgo (e na Bélgica), também a HAG Bremen não podia invocar a sua marca alemã para impedir o abastecimento do mercado alemão pela Van Zuylen com a mesma marca. Todavia, a Van Zuylen não tentou fazê-lo. Na década seguinte, a HAG Bremen continuou a beneficiar do seu uso exclusivo da marca HAG na Alemanha.

5.

Em 1979, a empresa Van Zuylen Frères foi comprada por uma sociedade suíça que agora se chama Jacobs Suchard SA, líder do mercado de produtos de café na Alemanha. De acordo com o alegado pela HAG Bremen, a Jacobs Suchard AG alienou o conjunto dos negocios da Van Zuylen no sector do café, mantendo apenas a entidade jurídica da empresa e a marca HAG. A empresa foi convertida em filial, integralmente possuida pela Jacobs Suchard AG, com o nome de SA CNL-SUCAL NV (a seguir «HAG Bélgica»).

6.

Em 1985, a HAG Bèlgica começou a abastecer o mercado alemão com café descafeinado com a marca HAG. A HAG Bremen, que sustenta que «Kaffee HAG» adquiriu, na Alemanha, o estatuto de marca famosa e que o seu produto é, em virtude de um novo processo de fabrico, de qualidade superior à do café fornecido pela HAG Bélgica, pediu ao tribunal alemão competente que ordenasse à HAG Bélgica que se abstivesse de qualquer acto que violasse o seu direito de marca. Ao pedido da HAG Bremen foi dado provimento pelo Landgericht de Hamburgo e, em via de recurso, pelo Hanseatisches Oberlandesgericht. A HAG Bélgica recorreu para o Bundesgerichtshof, o qual submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 177.o do Tratado CEE, o pedido de decisão das seguintes questões a título prejudicial:

«1)

Atendendo ao disposto no artigo 222.o do Tratado CEE, será compatível com as disposições relativas à livre circulação de mercadorias (artigos 30.o e 36.o do Tratado CEE) o facto de uma empresa estabelecida no Estado-membro A se opor, invocando os direitos à firma e à marca de que goza neste país, à importação de mercadorias similares de uma empresa estabelecida no Estado-membro B, no caso de estas mercadorias disporem legalmente neste país de uma marca que

a)

é susceptível de confusão com a firma e a marca que são objecto de protecção no Estado A em relação à empresa aí estabelecida e

b)

originariamente também tinha pertencido no Estado B à empresa estabelecida no Estado A — posteriormente à protecção da marca neste último Estado — e que foi transferida desta para uma filial vinculada por um acordo de concentração constituída no Estado B,

c)

como consequência da expropriação pelo Estado B desta filial, foi transferida como parte do património da filial expropriada juntamente com esta a um terceiro, que por sua vez transmitiu a marca ao antecessor jurídico da empresa que agora exporta as mercadorias com essa marca para o Estado A?

2)

Caso se responda negativamente à primeira questão:

Deverá responder-se de outra forma à questão apresentada se a marca protegida no Estado A aqui se tiver tornado ‘famosa’, sendo de esperar, devido ao grau invulgar de notoriedade de que goza, que, em caso de utilização de idêntica marca por terceira empresa, não possa ser assegurado o esclarecimento dos consumidores sobre a origem empresarial das mercadorias por forma que não ponha em causa a livre circulação de mercadorias?

3)

Do mesmo modo (em alternativa) no caso de resposta negativa à primeira questão:

A mesma resposta será válida no caso de os consumidores do Estado A associarem à marca aqui protegida não apenas imagens relativas à origem empresarial, mas também determinadas representações relativas a propriedades, em particular à qualidade das mercadorias a que a marca respeita, no caso de as mercadorias importadas do Estado B com a mesma marca não satisfazerem essas expectativas?

4)

No caso de a resposta a todas as questões até agora apresentadas ser negativa:

A apreciação seria diferente caso estivessem reunidas cumulativamente as condições separadamente referidas na segunda e na terceira questões?

Questão 1

II — Os problemas fundamentais suscitados por esta questão

7.

Se a primeira questão for abordada à luz da decisão do Tribunal no caso HAG I, pode dizer-se que suscita dois pontos de importância considerável. Por um lado, o caso coloca directamente a questão da correcção da doutrina da «origem comum», como é geralmente conhecida, e que o Tribunal de Justiça consagrou no processo HAG I; embora sejam provavelmente raras as situações em que a doutrina pode encontrar aplicação, pelo que as consequências da sua manutenção ou abandono têm um alcance relativamente limitado, a possibilidade de inverter directamente a jurisprudência anterior é uma questão fundamental. Em segundo lugar, a questão tem implicações que vão para além da doutrina da origem comum, e que são susceptíveis de afectar categorias bastante mais amplas de marcas. Por razões compreensíveis, às partes não se ocuparam com algumas destas questões fundamentais. Tendo obtido vencimento no processo HAG I, a HAG Bremen não deseja que aquela decisão seja posta em causa; pretende apenas que seja restringido o respectivo alcance. A HAG Bélgica, por seu lado, entende que a decisão anterior deve ser confirmada e a respectiva doutrina aplicada no presente caso. Em consequência, nenhuma das partes se refere às questões fundamentais de que depende a validade do princípio consagrado no acórdão HAG I. Estas questões tão-pouco foram abordadas pelos outros participantes no processo. Antes de tentar resolver aquelas, terei que começar por examinar as normas do Tratado com relevo para a sua decisão, prosseguindo com a análise dos princípios fundamentais que podem ser deduzidos da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de propriedade intelectual.

III — As disposições do Tratado e da legislação comunitária com relevo para a decisão da causa

8.

O artigo 30.o do Tratado dispõe que:

«Sem prejuízo das disposições seguintes, são proibidas, entre os Estados-membros, as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente.»

O artigo 36.o do Tratado dispõe, na parte relevante para este efeito:

«As disposições dos artigos 30.o a 34.o, inclusive, são aplicáveis sem prejuízo das proibições ou restrições à importação, exportação ou trânsito justificadas por razões... de protecção da propriedade industrial e comercial. Todavia, tais proibições ou restrições não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros.»

O artigo 222.o do Tratado determina que:

«O presente Tratado em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados-membros.»

Finalmente, o n.o 1 do artigo 85.o do Tratado, que não tem directamente relevo para a resolução do presente caso, mas que deve em todo o caso ser tomado em consideração, pois contém alguns dos critérios essenciais para decidir se determinado tipo de comportamento é compatível com o direito comunitário, determina que:

«São incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum.»

9.

Os artigos 30.o e 36.o dão expressão a um conflito entre dois interesses contraditórios. Por um lado, o artigo 30.o, conjugado com os artigos seguintes, consagra o princípio fundamental da livre circulação de mercadorias. Por outro lado, o artigo 36.o salvaguarda, entre outras coisas, direitos de propriedade intelectual que, devido à sua natureza territorial, criam inevitavelmente obstáculos à livre circulação de mercadorias. O próprio artigo 36.o aponta em certa medida a forma de resolver aquele conflito. Resulta claramente da redacção daquele preceito que nem todas as restrições ao comércio decorrentes dos direitos de propriedade intelectual estão a salvo da proibição do artigo 30.o Para evitar a proibição, a restrição tem, em primeiro lugar, de ser «justificada», na acepção da primeira frase do artigo 36.o Em segundo lugar, não pode constituir um «meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros», nos termos da segunda frase do artigo 36.o

10.

Em conformidade com a sua natureza de traité-cadre, o Tratado CEE não se propõe criar um código exaustivo de normas que regulamentem o estatuto dos direitos de propriedade intelectual em direito comunitário. Limita-se a fornecer a ossatura. Compete ao legislador comunitário e ao Tribunal de Justiça dar-lhe substância. Em matéria de direito sobre marcas, o legislador näo tem sido tão activo como poderia ter sido, tendo tomado apenas duas iniciativas importantes, uma das quais — a proposta de regulamento do Conselho sobre a marca comunitária (JO 1984, C 230, p. 1) — não foi ainda levada a termo. A única medida aprovada até agora é a Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados-membros em matéria de marcas (JO L 40, p. 1, que a partir de agora designarei por «directiva sobre marcas»). Referirei posteriormente o relevo que esta directiva assume no presente caso.

IV — Os princípios fixados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça

11.

Atendendo às modestas dimensões da actividade legislativa em matéria de marcas e de propriedade intelectual em geral, a tarefa de conciliar os interesses contraditórios consagrados nos artigos 30.o e 36.o do Tratado tem recaído essencialmente sobre o Tribunal de Justiça. Este desenvolveu três princípios fundamentais, que têm desempenhado um papel importante no conjunto do domínio da propriedade intelectual, e que têm todos origem no processo 78/70, Deutsche Grammophon/Metro (Recueil 1971, p. 487).

i)

Embora o Tratado não ponha em causa a existência de direitos de propriedade industrial, há, todavia, circunstâncias em que o exercício destes direitos pode ser restringido através de proibições contidas no Tratado (ver, por exemplo, Deutsche Grammophon, n.o 11).

ii)

O artigo 36.o só permite excepções à livre circulação de mercadorias na medida em que sejam necessárias para a salvaguarda dos direitos que constituem o objecto específico do tipo de propriedade intelectual em questão (Deutsche Grammophon, já citado). A principal vantagem desta fórmula, para além do facto de limitar o âmbito das excepções admitidas pelo artigo 36.o, talvez seja a de permitir a realização de distinções subtis, consoante o tipo de propriedade intelectual em questão.

iii)

O direito exclusivo atribuído ao titular da propriedade intelectual esgota-se, em relação aos produtos em questão, quando aquele os põe no mercado, em algum local dentro do mercado comum. Ou, mais precisamente, «o titular de um direito de propriedade industrial e comercial protegido pela legislação de um Estado-membro não pode invocar esta legislação para se opor à importação ou à comercialização de um produto que foi licitamente colocado no mercado de outro Estado-membro pelo próprio titular do direito, com o seu consentimento ou por pessoa que a ele esteja ligada por laços de dependência jurídica ou económica» (ver, por exemplo, processo 144/81, Keurkoop/Nancy Kean Gifts, Recueil 1982, p. 2853, 2873, um dos numerosos processos em que é confirmado o princípio desenvolvido pela primeira vez no processo Deutsche Grammophon).

12.

Por outro lado, o Tribunal desenvolveu o princípio de que os direitos conferidos em direito nacional por uma marca (ou, presumivelmente, por qualquer outra forma de propriedade intelectual) não podem ser exercidos de forma a iludir as regras sobre concorrência do Tratado (processos apensos 56/64 e 58/64, Consten e Grundig/Comissão, Recueil 1966, p. 429, 500; processo35/83, BAT/Comissäo, Recueil 1985, p. 363, 385). O exercício destes direitos não tem que resultar de acordos ou práticas concertadas que tenham por objecto ou efeito o isolamento ou a compartimentação do mercado comum, em violação do artigo 85.o do Tratado (ver processo 51/75, EMI Records/CBS United Kingdom, Recueil 1976, p. 811). Em particular, o proprietário de uma marca não pode usá-la para erguer «fronteiras impermeáveis entre os Estados--membros», confiando a exploração da marca a pessoas diferentes em diferentes Estados-membros (processo 40/70, Sirena/Eda, n.o 10, Recueil 1971, p. 69, 83).

13.

É neste contexto que é necessário considerar a doutrina da origem comum, nos termos da qual, quando as marcas similares ou idênticas, com origem comum, se encontram na titularidade de pessoas diferentes em Estados-membros diferentes, o proprietário de uma das marcas não pode invocá-la para impedir a importação de mercadorias comercializadas licitamente com a outra marca pelo seu proprietário noutro Estado-membro. A doutrina da origem comum foi formulada pelo Tribunal de Justiça no processo HAG I e confirmada no processo 119/75, Terrapin/Terranova (Recueil 1976, p. 1039). A decisão do caso HAG II dependerá em grande medida de aquela doutrina ser reconhecida como filha legítima do direito comunitário.

14.

Se compararmos os quatro princípios acima enumerados e a doutrina da origem comum com as normas dos artigos 30.o, 36.o, 85.o e 222.o do Tratado, não podemos deixar de sentir uma certa discrepância. Enquanto os quatro princípios podem razoavelmente ser deduzidos daquelas disposições do Tratado, é bastante mais difícil encontrar naquelas normas uma base sólida para a teoria da origem comum. A dicotomia entre existência e exercício, incorporada no primeiro princípio, decorre do teor dos artigos 36.o e, talvez, 222.o Pouco interessa neste contexto saber se, como é por vezes sugerido, o artigo 222.o consagra uma garantia da propriedade aproximada à que se encontra nas constituições nacionais, com a consequência de o direito comunitário não poder ameaçar a existência de direitos de propriedade intelectual. Tal é, de qualquer modo, confirmado pelo artigo 36.o, que salvaguarda expressamente aqueles direitos, sendo desnecessário, do meu ponto de vista, considerar independentemente o artigo 222.o Mas resulta de forma igualmente clara da natureza limitada da derrogação consentida pelo artigo 36.o que há circunstâncias em que a proibição constante do artigo 30.o se pode, em todo o caso, aplicar ao exercício do direito. O conceito de objecto específico incorporada no segundo princípio é um elemento essencial da dicotomia existência/exercício, pois torna possível a determinação, em relação a cada tipo de propriedade intelectual, das circunstâncias dentro das quais o exercício do direito será admissível, face ao direito comunitário. O terceiro princípio, concretamente o princípio do esgotamento dos direitos, encontra-se também firmemente ancorado nos artigos 30.o e 36.o Na sua falta, como observou o Tribunal no processo Deutsche Grammophon, as empresas poderiam isolar mercados nacionais e recorrer a práticas que se encontrariam «em colisão com os objectivos fundamentais do Tratado». Uma medida que salvaguardasse estas práticas não seria, claramente, «justificada», na acepção da primeira frase do artigo 36.o

Quanto ao quarto princípio acima mencionado, consiste numa aplicação pura e simples do artigo 85.o

15.

E quanto à doutrina da origem comum? É muito mais difícil encontrar justificação para este princípio no Tratado. Pode percorrer-se em vão o Tratado em busca de uma base para a afirmação de que o proprietário de uma marca não pode impedir a importação de mercadorias produzidas pelo proprietário de uma marca paralela noutro Estado-membro, apenas porque as duas marcas têm origem comum. Sem querer decidir já a questão neste momento, não posso deixar de apontar que um princípio de direito comunitário sem fundamento evidente no Tratado é, de algum modo, de ascendência duvidosa.

V — Natureza e função das marcas

16.

Antes de ir mais longe na questão de qual a justificação, se existe alguma, para a doutrina da origem comum apresentada no acórdão HAG I, terei que fazer uma observação preliminar acerca da forma como o Tribunal de Justiça tinha abordado em processos anteriores a natureza e função das marcas. Com algum distanciamento, é possível ver que havia na jurisprudência sinais de uma atitude injustamente negativa em relação ao valor das marcas. Assim, o advo-gado-geral Dutheillet de Lamothe observou, no processo Sirena (40/70, Recueil 1971, p. 69, 88), que:

«Com efeito, os interesses que a legislação sobre patentes se destina a proteger são económica e humanamente mais respeitáveis do que aqueles que são garantidos pelo direito à marca.

...

Se nos colocarmos no plano humano, é certo que a dívida que a colectividade pode ter em relação ao ‘inventor’ do nome Prep Good Morning não tem a mesma natureza, é o mínimo que se pode dizer, da dívida que a humanidade tem em relação ao inventor da penicilina.»

O Tribunal fez-se eco destas observações no acórdão (n.o 7):

«O exercício do direito à marca é particularmente susceptível de contribuir para a repartição dos mercados e de atentar, assim, contra a livre circulação das mercadorias entre os Estados, essencial ao mercado comum. De resto, o direito à marca pode distinguir-se de outros direitos de propriedade industrial e comercial pelo facto de os elementos protegidos por estes terem, frequentemente, um interesse e um valor superiores aos que resultam de uma simples marca.»

17.

É de notar que esta concepção dos méritos relativos das marcas e de outras formas de propriedade intelectual se baseava numa comparação deselegante entre uma marca bastante banal e uma das mais importantes descobertas na história da medicina. Comparações diferentes poderiam ter levado a resultados diferentes, mais favoráveis às marcas. A verdade é que, pelo menos em termos económicos, e talvez também «humanamente», as marcas não são menos importantes e não merecem menos protecção que qualquer outra forma de propriedade intelectual. São, nas palavras de um autor, «nem mais nem menos que a base da maior parte da concorrência no mercado» (W. R. Cornish, Intellectual Property: Patents, Copyright, Trade Marks and Allied Rights, 2.a edição, 1989, p. 393).

18.

Tal como as patentes, as marcas encontram a sua justificação numa conciliação harmoniosa entre interesses públicos e privados. Enquanto as patentes recompensam a criatividade do inventor, estimulando por esta forma o progresso científico, as marcas recompensam o fabricante que se empenha em produzir mercadorias de alta qualidade, estimulando por esta forma o progresso económico. Sem a protecção das marcas haveria pouco incentivo para os produtores desenvolverem novos produtos ou manterem a qualidade dos já existentes. As marcas podem obter este efeito porque funcionam como garantia, para o consumidor, de que todas as mercadorias que exibem uma determinada marca foram produzidas por, ou sob o controlo, de um mesmo fabricante, sendo portanto presumivelmente da mesma qualidade. A garantia de qualidade dada por uma marca não é, certamente, absoluta, pois o fabricante tem liberdade para alterar a qualidade; contudo, fá-lo por sua conta e risco, sendo ele — e não os concorrentes — que sofrerá as consequências, se permitir um declínio da qualidade. Assim, embora as marcas não forneçam qualquer forma de garantia jurídica de qualidade — a falta da qual pode ter levado alguns a subestimar o significado daquelas —, em termos económicos fornecem uma garantia equivalente, na qual os consumidores confiam quotidianamente.

19.

Uma marca só pode cumprir o seu papel se for exclusiva. Se o proprietário for forçado a partilhá-la com um concorrente, perderá o controlo sobre o prestígio associado à marca. A reputação dos seus produtos ficará prejudicada se o concorrente vender produtos de qualidade inferior. Do ponto de vista do consumidor verificar-se--ão consequências igualmente indesejáveis, porque a clareza do sinal transmitido pela marca ficará enfraquecida. O consumidor ficará confuso e iludido.

20.

Tenho que acrescentar que, pouco depois de proferido o acórdão HAG I, o Tribunal de Justiça mudou de atitude e reconheceu a dupla função das marcas definida acima — concretamente, proteger o prestígio do proprietário e evitar a confusão e ilusão do consumidor: ver processo 16/74, Centrafarm/Winthrop (Recueil 1974, p. 1183). Voltarei em devida altura à jurisprudência posterior. Contudo, a abordagem anterior, mais negativa, das marcas pode bem ajudar a explicar a decisão no caso HAG I.

VI — A falta de justificação da doutrina da origem comum no caso HAG I

21.

Dado que a doutrina da origem comum tem tão pouca base no Tratado e nada na jurisprudência parece sugerir a sua existência, podia talvez esperar-se encontrar no acórdão do Tribunal no processo HAG I uma exposição detalhada e convincente das razões que levaram aquele a dar à luz este novo princípio de direito comunitário. Mas tal não acontece. A fundamentação está condensada em dez curtos parágrafos (n.os 6 a 15):

«6.

Segundo as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, e nomeadamente o artigo 30.o, são proibidas entre os Estados-membros todas as medidas restritivas à importação e todas as medidas de efeito equivalente.

7.

Nos termos do artigo 36.o, essas disposições não impedem a existência de proibições ou restrições justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial.

8.

No entanto, resulta deste artigo, nomeadamente da segunda frase, bem como no seu contexto, que, embora o Tratado não afecte a existência dos direitos reconhecidos pela legislação de um Estado-membro em matéria de propriedade industrial e comercial, o seu exercício pode ser, segundo as circunstâncias, afectado pelas proibições do Tratado.

9.

Na medida em que introduz uma excepção a um dos princípios fundamentais do mercado comum, o artigo 36.o apenas permite derrogações à livre circulação de mercadorias quando estas se justificam pela protecção dos direitos que constituem o objecto específico da propriedade industrial e comercial.

10.

De qualquer forma, a aplicação da legislação relativa à protecção das marcas protege o legítimo detentor de uma marca contra a contrafacção praticada por pessoas que não possuem qualquer título jurídico.

11.

O exercício do direito à marca é susceptível de contribuir para o isolamento dos mercados, prejudicando assim a livre circulação de mercadorias entre Estados-membros, tanto mais que, ao contrário de outros direitos de propriedade industrial e comercial, não se encontra sujeito a limitações de ordem temporal.

12.

Consequentemente, não se pode admitir que o caracter exclusivo do direito à marca, que pode ser consequência dos limites territoriais da legislação nacional, seja invocado pelo detentor de uma marca com o objectivo de proibir num Estado-membro a comercialização de mercadorias legalmente produzidas noutro Estado-membro com uma marca idêntica e com a mesma origem.

13.

Efectivamente, essa proibição, consagrando o isolamento dos mercados nacionais, prejudica um dos objectivos essenciais do Tratado, que pretende obter a fusão dos mercados nacionais num mercado único.

14.

Embora nesse mercado seja útil a indicação da origem de um produto de marca, a informação dos consumidores a este respeito pode ser realizada através de outros meios que não prejudiquem a livre circulação de mercadorias.

15.

O facto de se proibir a comercialização num Estado-membro de um produto que, num outro Estado-membro, tem legalmente aposta uma marca, pela única razão de existir no primeiro Estado uma marca idêntica e com a mesma origem, é incompatível com as disposições que consagram a livre circulação de mercadorias no interior do mercado comum.»

22.

Devo confessar que esta fundamentação não me parece muito convincente. Salvo o devido respeito, é defeituosa, de vários pontos de vista.

Em primeiro lugar, a ênfase é colocada, à partida, na segunda frase do artigo 36.o, a qual não tinha relevo para este caso, pois não podia seriamente argumentar-se que o uso por Van Zuylen da sua marca constituía «um meio de discriminação arbitrária» ou «qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros».

Em segundo lugar, a argumentação é deficiente porque, tendo declarado no n.o 9 que o artigo 36.o apenas permite derrogações justificadas pela necessidade de proteger os direitos que constituem o objecto específico do tipo de propriedade intelectual em questão, acaba por não definir o objecto específico das marcas. De facto, foi só alguns meses depois, no acórdão do processo 16/74, Centrafarm/Winthrop, já citado, que o Tribunal definiu pela primeira vez o objecto específico de direitos sobre marcas.

Em terceiro lugar, a afirmação contida no n.o 11 de que «o exercício do direito à marca é susceptível de contribuir para o isolamento dos mercados» não vem em apoio do argumento, pois aquela afirmação aplica-se do mesmo modo a qualquer direito de propriedade intelectual limitado ao território de um Estado-membro. Quanto ao argumento de que as marcas não estão sujeitas a limitações de ordem temporal, é verdade que, a este respeito, estes direitos têm efeitos potencialmente mais permanentes. A isto tem todavia de ser contraposto o facto de que, de outro ponto de vista, as marcas são menos limitativas da livre circulação de mercadorias e da competição que várias outras formas de propriedade intelectual, tais como as patentes, direitos de autor e direitos a desenhos e modelos industriais. Enquanto estes últimos permitem ao titular do direito afastar totalmente do mercado as mercadorias de um concorrente, uma marca só permite ao seu possuidor o afastamento das mercadorias que a ostentem; os concorrentes têm acesso ao mercado sem restrições, desde que usem marcas diferentes.

Em quarto lugar, a argumentação é defeituosa porque comporta, no n.o 12, uma conclusão que, muito simplesmente, não decorre das respectivas premissas. O que, provavelmente, se queria dizer no número anterior era que a titularidade fraccionada de uma marca — ou seja, o facto de pertencer a diversas pessoas em diferentes Estados-membros — tende a compartimentar os mercados. Mas esta nefasta consequência decorre, em qualquer caso, da titularidade fraccionada (ou, mesmo, da coexistência de marcas separadas, mas semelhantes), independentemente do facto de as marcas terem origem comum. Neste caso, por que razão deu o Tribunal tanta importância a este argumento? Na realidade, o principal defeito do acórdão no caso HAG I consiste em o Tribunal nunca, em lado algum, ter explicado por que motivo o mero facto de as marcas serem de origem comum devia ser relevante na ausência de qualquer acordo de partilha do mercado. Deve notar-se, a este respeito, que o Tribunal sustentou, no n.o 5 do acórdão, que o artigo 85.o não tinha aplicação, uma vez que não existia qualquer «vínculo jurídico, financeiro, técnico ou económico» entre as empresas.

VII — A tentativa de justificar a doutrina da origem comum no acórdão Terrapin/Terranova

23.

Foi só dois anos depois, no já mencionado processo 119/75, Terrapin/Terranova, que o Tribunal, provocado, talvez, pelo coro de críticas com que o acórdão HAG I foi recebido, tentou explicar ex post facto por que razão tinha dado tanta importância à origem comum das marcas. Aquele caso envolvia uma marca alemã e outra inglesa, de origens independentes, que os tribunais alemães entendiam ser semelhantes a ponto de poder causar confusão. O Tribunal declarou, no n.o 6 do acórdão, que

«... o titular de um direito de propriedade industrial e comercial protegido pela legislação de um Estado-membro não poderá invocar esta legislação para se opor à importação de um produto que foi lançado legalmente no mercado de um outro Estado-membro pelo próprio titular ou com o seu consentimento. O mesmo sucede quando o direito invocado deriva do fraccionamento quer voluntário quer através de medida coerciva pública, de um direito de marca que originariamente pertenceu ao mesmo titular. Nestas hipóteses, a função essencial da marca, que consiste em garantir aos consumidores a identidade da origem do produto, já se encontra posta em causa pelo próprio fraccionamento do direito originário.»

24.

Esta é uma tentativa corajosa de legitimar a doutrina da origem comum, mas a lógica em que se baseia é, parece-me, falaciosa. É verdade que a função essencial das marcas consiste em «garantir aos consumidores a identidade de origem do produto». Mas a palavra origem, neste contexto, não respeita à origem histórica da marca; respeita à origem comercial das mercadorias. O consumidor, parece-me, não se interessa pela genealogia das marcas; interessa-se em saber quem fabricou as mercadorias que está a comprar. A função da marca é a de indicar ao consumidor que todas as mercadorias vendidas com aquela marca foram produzidas por ou sob o controlo de uma mesma pessoa, e serão, muito provavelmente, de qualidade uniforme. A função básica da marca HAG nunca foi posta em causa na Alemanha, onde sempre esteve nas mãos de uma só companhia, desde que foi concebida. Também não tinha sido posta em causa na Bélgica e no Luxemburgo até à decisão do Tribunal de Justiça no processo HAG I. E certo que a marca passou por uma mudança de titularidade em 1944 nestes dois países. Tal pode ou não ter levado a uma mudança de qualidade, que pode ou não ter sido detectada pelos consumidores na Bélgica e no Luxemburgo. Mas tal não tem relevo, pois o titular de uma marca tem liberdade para modificar a qualquer momento a qualidade dos seus produtos. O que interessa é que, através da sua história (ou seja, até 1974), a marca tinha estado, em cada território, na titularidade exclusiva de uma única pessoa que tinha o poder de, ou consolidar o goodwill àquele associado, mantendo a qualidade do produto, ou de destruir aquele goodwill, permitindo a degradação da qualidade. A partir do momento em que o possuidor de uma marca fica privado do direito exclusivo de fazer uso daquela, perde o poder de influenciar o goodwill que lhe está associado e perde o incentivo para produzir mercadorias de alta qualidade. Analisando a questão do ponto de vista do consumidor, o resultado de tudo isto é inteiramente insatisfatório, pois a marca deixa de funcionar como garantia de origem. Na melhor das hipóteses, aquele fica confundido; na pior, é induzido em erro. Nestas circunstâncias, é difícil não concluir que a função essencial da marca fica comprometida, o respectivo objecto específico é afectado e — mais grave ainda — a sua pròpria existência é posta em causa. Nenhuma destas consequências resultou do fraccionamento da marca em 1944; resultaram da decisão do Tribunal de Justiça no processo HAG I.

25.

Pode objectar-se que a análise precedente pressupõe a continuação da existência de mercados separados, delimitados de acordo com fronteiras nacionais, e que a questão de saber se uma marca continua a cumprir a sua função de garantia de origem tem que ser examinada atendendo não à situação existente nos mercados nacionais separados, mas a um ponto de vista comunitário. Um autor sublinha que milhões de turistas alemães passam férias na Bélgica e que muitos belgas viajam na Alemanha (H. Johannes, «Zum Kaffee-HAG-Urteil des Gerichtshofes der Europäischen Gemeinschaften», GRUR Int. 1975, p. 111). Se na Bélgica só se vender HAG belga e na Alemanha só se vender HAG alemão, estes consumidores transnacionais não ficarão confusos e induzidos em erro quanto à origem das mercadorias? Superficialmente, este é um argumento sedutor. Mas não pode, contudo, salvar a doutrina da origem comum, por duas razões:

em primeiro lugar, o consumidor transnacional ficará de qualquer maneira confuso e induzido em erro, mesmo que os dois tipos de HAG estejam disponíveis em todos os países em causa. De facto, não há qualquer modo de evitar a confusão daquelas pessoas enquanto a marca continuar com titularidade dividida nos vários países que visitam (a menos, certamente, que se aceite que os produtos podem ser diferenciados pelo uso de elementos distintivos adicionais, tema que abordarei brevemente). Não me parece de forma alguma convincente a afirmação de que, uma vez que uma minoria de consumidores transnacionais se encontra confusa e induzida em erro em relação à origem de certas mercadorias, devemos, através do direito comunitário, impor que os consumidores internos de toda a Comunidade sejam igualmente confundidos e induzidos em erro;

em segundo lugar, a confusão sofrida nestes casos pelos consumidores transnacionais não depende do facto de as duas marcas terem origem comum. O consumidor alemão que vai à Bélgica e compra café HAG, acreditando que tem a mesma origem comercial que o café que usa em casa, é induzido em erro exactamente da mesma forma que o consumidor alemão que vai ao Reino Unido e associa os produtos Terrapin aos produtos Terranova, que está habituado a ver no seu país. O facto de num caso as duas marcas terem origem comum, enquanto tal não acontece no outro, é irrelevante.

VIII — A conclusão de que não há base racional para a doutrina da origem comum

26.

A desagradável, mas inevitável, conclusão que resulta da análise anterior é a de que a doutrina da origem comum não é um produto legítimo do direito comunitário. A teoria não tem fundamento claro no Tratado, e não foi avançada qualquer explicação da sua necessidade no acórdão HAG I. A tentativa de a legitimar ex post facto no acórdão Terrapin/Terranova falhou, pelas razões que expus. Embora os problemas causados pela divisão da titularidade de marcas semelhantes ou idênticas a ponto de causar confusão não devam ser subavaliados, tanto quanto eu possa ver, não há qualquer base racional para fazer depender a resolução destes problemas do facto de as marcas terem origem comum. Além disso, quaisquer receios de que o abandono daquela doutrina abriria caminho a tentativas de compartimentação do mercado, através da atribuição de marcas a pessoas diversas em Estados-membros diversos, são ilusórios. Aquelas tentativas poderiam sempre ser frustradas quer recorrendo ao artigo 85.o quer aplicando o princípio do esgotamento de direitos. De facto, os quatro princípios que enumerei nos n.os lie 12 [concretamente, i) a dicotomia existência/exercício, ii) a restrição da protecção ao objecto específico do direito em questão, iii) o princípio do esgotamento de direitos e iv) a aplicabilidade do artigo 85.o a acordos de partilha do mercado de marcas] constituem um sistema completo que permite a ponderação das exigências de um mercado unificado com os interesses dos titulares de propriedade intelectual e dos consumidores. Não havia qualquer lacuna a necessitar de ser preenchida com a doutrina da origem comum.

IX — A dificuldade de conciliar a doutrina da origem comum com o desenvolvimento subsequente da jurisprudência do Tribunal de Justiça

27.

No que respeita ao desenvolvimento subsequente da jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve recordar-se que o acórdão HAG I surgiu numa altura em que a jurisprudência do Tribunal. sobre propriedade intelectual estava na infância. Só tinha havido um punhado de casos naquela área e alguns dos princípios básicos ainda não tinham sido inteiramente desenvolvidos. A maior parte dos processos tinham sido resolvidos com base nas regras sobre concorrência, com execepção do caso Deutsche Grammophon, que pôde ser solucionado de forma relativamente fácil com base na teoria do esgotamento de direitos. Foi uma infelicidade o Tribunal de Justiça ter tido que decidir um caso tão difícil como o HAG I numa altura em que tinha tido poucas ocasiões de definir a relação entre a livre circulação de mercadorias e a protecção de direitos de propriedade intelectual. Só este facto já enfraquece o valor do acórdão HAG I como precedente.

28.

Houve dois desenvolvimentos fundamentais desde que foi proferido o acórdão HAG I. Em primeiro lugar, a articulação do objecto específico do direito de marca. Em segundo lugar, o apuramento do princípio do esgotamento de direitos, apresentado pela primeira vez no acórdão Deutsche Grammophon, e a importância fundamental atribuída ao consentimento por parte do titular dos direitos de propriedade intelectual.

29.

Quanto ao primeiro aspecto, já referi que o Tribunal reconheceu a dupla função das marcas : protecção do goodwill do titular e salvaguarda do consumidor contra confusão e indução em erro. Na terminologia adoptada pelo Tribunal, a primeira é descrita como o objecto específico da marca e a segunda como a sua função essencial. O objecto específico foi definido pela primeira vez no processo 16/74, Centrafarm/Winthrop, n.o 8 (Recueil 1974, p. 1183). A jurisprudência foi ainda desenvolvida em acórdãos subsequentes: ver processo 102/77, Hoffmann La Roche/Centrafarm (Recueil 1978, p. 1139, 1164); processo 3/78, Centrafarm/American Home Products Corporation (Recueil 1978, p. 1823, 1840); e processo 1/81, Pfizer/Eurim-Pharm (Recueil 1981, p. 2913, 2925 e seguintes). No processo American Home Products, o Tribunal afirmou (n.os 11 a 14):

«O objecto específico do direito de marca consiste, nomeadamente, na garantia de utilização da marca pelo titular do direito exclusivo, para a primeira colocação em circulação de um produto, e na protecção contra os concorrentes que pretendessem abusar da posição e da reputação da marca vendendo produtos que a ostentem indevidamente;

para determinar, em situações excepcionais, o alcance exacto deste direito exclusivo reconhecido ao titular da marca, é necessário ter em consideração a função essencial da marca, que consiste em garantir ao consumidor ou ao utilizador final a identidade de origem do produto marcado;

é inerente a esta garantia de proveniência que só o titular possa identificar o produto através da aposição da marca;

com efeito, a garantia de proveniência en-contrar-se-ia comprometida se fosse permitido a um terceiro apor a marca sobre o produto, mesmo original.»

30.

No que respeita ao princípio do esgotamento de direitos, o Tribunal de Justiça sustentou, no processo 187/80, Merck/Stephar (Recueil 1981, p. 2063), que o detentor de uma patente nacional num Estado-membro que comercializa o produto patenteado noutro Estado-membro onde não é patenteável não pode confiar na sua patente para impedir importações paralelas. E irrelevante o facto de não ter beneficiado do privilégio normal do detentor da patente de comercializar o seu produto em condições de monopólio, tendo assim que se contentar com um lucro menor. Tudo o que importava era o seu consentimento. A importância fundamental deste foi ainda sublinhada, de novo em relação a patentes, no processo 19/84, Pharmon/Hoechst (Recueil 1985, p. 2281), onde o Tribunal sustentou que o titular de urna patente pode impedir a importação de um produto fabricado noutro Estado-membro sob uma licença obrigatória respeitante a uma patente paralela detida pelo mesmo titular, independentemente de ter ou não aceitado royalties pagáveis com base na licença obrigatória.

31.

A HAG Bremen apoia-se em grande medida no acórdão Pharmon, sustentando que a vítima de uma expropriação pode ser comparada ao titular de uma patente em relação à qual foi concedida uma licença obrigatória. Este argumento tem bastante peso. Em qualquer dos casos um acto coercivo das autoridades públicas priva o titular da propriedade do poder de determinar, por sua própria vontade, qual o uso que deseja dar àquela. Já indiquei que não considero as marcas menos dignas de protecção que as patentes. Parece-me bastante difícil compreender qual o motivo porque o direito comunitário deveria dar menos protecção ao titular de uma marca que é vítima de uma expropriação do que ao titular de uma patente que é sujeito a uma licença obrigatória, tendo particularmente em atenção que a expropriação não dá lugar a compensação, enquanto que são pagos royalties relativos à licença obrigatória. Além disso, pode argumentar-se que o titular da patente que obtém uma patente paralela num país em que é possível a atribuição de licenças obrigatórias aceita, pelo menos, o risco de que venha a ser atribuída uma licença daquele tipo, enquanto que dificilmente se pode dizer que o proprietário de uma marca que a regista num outro país aceita o risco de esta vir um dia a ser expropriada.

32.

A conclusão que retiro desta análise dos desenvolvimentos subsequentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça é a de que é verdadeiramente difícil, senão impossível, conciliar a doutrina da origem comum com aqueles desenvolvimentos.

X — O problema geral dos conflitos de marcas em direito comunitário

33.

Já exprimi a opinião de que os problemas causados pela titularidade fraccionada de marcas idênticas ou susceptíveis de confusão não podem ser resolvidos com base na distinção consoante as marcas têm origem comum ou independente. Por outras palavras, a situação surgida no caso HAG I não deveria ser tratada de forma diversa da situação surgida no caso Terrapin/Terranova. Em meu entender, o primeiro caso foi incorrectamente decidido, enquanto o segundo o foi correctamente (com algumas reservas). Contudo, há defensores do entendimento contrário. Mesmo antes da decisão do caso Terrapin/Terranova alguns autores expressaram a esperança de que o ponto de vista integracionista adoptado no processo HAG I fosse alargado a casos em que as marcas não tivessem origem comum (ver, por exemplo, H. Johannes, «Anwendung der Prinzipien des Kaffee-HAG-Urteils auf nichtursprungsgleiche Warenzeichen und Freizeichen», RIW7AWD 1976, p. 10 e seguintes, e Röttger, «Kollision von identischen oder verwechslungsfähigen Warenzeichen und Firmennamen innerhalb der Europaischen Gemeinschaft», RIWIAWD 1976, p. 354 e seguintes).

34.

Aquele entendimento tem pelo menos a virtude de sublinhar o que está em causa. Embora possa não haver muitos casos de marcas idênticas na titularidade de pessoas diversas em diversos Estados-membros (como no caso HAG I), há um grande número de casos de marcas protegidas num Estado-membro susceptíveis de confusão com marcas na titularidade de outrem em outro Estado-membro (como acontecia no caso Terrapin/Terranova). O direito das marcas não distingue, geralmente, entre estes dois tipos de casos; o titular da marca pode confiar naquele para evitar que outras pessoas forneçam mercadorias com marcas idênticas ou susceptíveis de confusão. Isto mesmo é confirmado pelo n.o 1 do artigo 5.o da directiva sobre marcas, que dispõe o seguinte :

«A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)

de qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)

de um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista, no espírito do público, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca.»

35.

Em consequência, se a decisão do Tribunal de Justiça no processo HAG II seguir a maneira de ver adoptada no acórdão Terrapin/Terranova, afectará não só o número limitado de casos de conflito entre marcas idênticas, mas ainda o grupo bastante mais numeroso de casos em que se entende existir perigo de confusão entre marcas similares. Já foi sugerido que o número de marcas similares a ponto de causar confusão dentro da Comunidade é de várias centenas de milhares (aparentemente, este número foi apresentado pelo Governo alemão nas observações que apresentou no processo Terrapin/Terranova: F. K. Beier, «Trade-mark conflicts in the Common Market: Can they be solved by means of distinguishing additions?», IIC 1978, p. 221). Mesmo que aquela estimativa seja demasiado elevada, é óbvio que os conflitos entre marcas podem constituir um entrave considerável ao comércio intracomunitário.

36.

Para piorar as coisas, o conceito de marcas susceptíveis de confusão terá inevitavelmente que variar de um Estado-membro para outro, o que pode levar a uma certa falta de reciprocidade e a distorções no comércio. Os tribunais alemães, por exemplo, no caso Terrapin/Terranova, entenderam que havia risco de confusão entre as duas marcas. É duvidoso que um tribunal inglês partilhasse aquele ponto de vista. Isto podia ter a lamentável consequência de o produtor inglês ser impedido de comercializar os seus produtos na Alemanha com a marca habitual, enquanto o produtor alemão tinha acesso ilimitado ao mercado inglês. Na verdade, parece que os tribunais alemães têm um entendimento particularmente lato do conceito de marcas susceptíveis de confusão, como é bem ilustrado pelos factos do processo perante a Comissão publicado com o título Tanabe Seiyaku Company/Bayer AG, CMLR 1979, 2, p. 80. Num caso célebre (BPatG, 28 de Março de 1973, GRUR 1975, p. 74) o Bundespatentgericht sustentou que a marca «LUCKY WHIP» era susceptível de confusão com a marca «Schöller-Nucki», decisão que parece supor a existência de um grande número de consumidores atacados por uma forma aguda de dislexia. É contra o pano de fundo deste tipo de jurisprudência nacional que o Tribunal de Justiça tem de considerar se deve confirmar e alargar a maneira de ver adoptada no processo Terrapin/Terranova.

XI — Os argumentos a favor da coexistência de marcas em conflito: exemplos retirados dos direitos nacionais

37.

Os que defendem o modo de ver adoptado no acórdão HAG I e sustentam que devia ser alargado a casos em que as marcas não têm origem comum argumentam que as marcas idênticas ou susceptíveis de confusão podem coexistir no mesmo mercado, se forem distinguidas através de sinais suplementares. Citam também exemplos de coexistência retirados de direitos nacionais, como a doutrina do «honest concurrent user» do direito inglês ou a lei alemã de 1959 relativa à integração do Sarre em matéria de propriedade industrial (Gesetz über die Eingliederung des Saarlandes auf dem Gebiete des gewerblichen Rechtsshutzes, BGBl. 1959 I, p. 388). Estes exemplos retirados de direitos nacionais são merecedores de atenção, e analisá-los-ei antes de passar ao exame da questão da possibilidade de distinguir marcas idênticas ou similares através de sinais adicionais.

38.

A doutrina da common law do «honest concurrent user» foi desenvolvida no século XIX. Até àquela altura, o comércio era, em grande parte, local e acontecia às vezes, por acaso, que dois ou mais comerciantes adoptassem marcas idênticas ou similares em diferentes zonas do país. Não havia perigo de confusão porque as marcas, embora aplicadas nos mesmos produtos, não eram usadas no mesmo mercado geográfico. Contudo, se dois comerciantes com marcas susceptíveis de confusão desenvolvessem as respectivas actividades para além das respectivas localidades, as marcas podiam entrar em conflito. Para acorrer a esta situação, os tribunais ingleses desenvolveram a teoria do «honest concurrent user», de acordo com a qual cada um dos comerciantes em causa tinha o direito de continuar a usar a respectiva marca, naquelas circunstâncias (ver acórdão General Eletric Co./The General Electric Co. Ltd, All E. R. 1972, 2, p. 507, 519, Lord Diplock). Esta doutrina está agora consagrada no n.o 2 do artigo 12.o do Trade Marks Act de 1938, nos termos do qual as autoridades competentes têm o poder de autorizar o registo de marcas semelhantes ou susceptíveis de confusão tratando-se de «honest concurrent user», sob reserva das condições e limitações que entendam necessárias.

39.

A lei alemã de integração do Sarre previu a extensão ao conjunto da Alemanha de direitos de marca que eram reconhecidos apenas no Sarre e vice-versa. Em caso de conflitos entre marcas idênticas ou susceptíveis de confusão, determinava-se que uma ou ambas fossem complementadas com elementos distintivos adicionais. Os litígios que surgissem em relação aos elementos distintivos adicionais necessários deviam ser resolvidos por uma comissão de arbitragem dependente da repartição alemã de patentes.

40.

Por muito atractivos que pareçam estes precedentes retirados de direitos nacionais, não creio que qualquer deles seja adequado para resolver conflitos de marcas em direito comunitário. No que respeita à doutrina do «honest concurrent user», é necessário ser cuidadoso para não sobrestimar o seu significado. Na sua forma moderna aquela doutrina resume-se a um poder discricionário atribuído ao Registrar of Trade Marks e aos tribunais competentes para autorizar o registo de marcas idênticas ou susceptíveis de confusão, dentro de certas condições. As condições impostas envolvem frequentemente limitações territoriais (ver Kerly's Law of Trade Marks and Trade Names, 12.a edição, 1986, por T. A. Blanco White e R. Jacob, p. 159), o que pode não ser considerado aceitável em direito comunitário. Além disso, mesmo que sejam autorizados registos concorrentes, cada titular da marca poderá vir a ser bem sucedido numa acção por concorrência desleal («passing off») se puder demonstrar que na sua zona do país o goodwill associado à marca lhe pertence e que as mercadorias do outro titular se confudiriam com as suas (ver Cornish, obra citada, p. 452). O resultado é que, se a doutrina do «honest concurrent user» fosse aplicada ao caso presente, a HAG Bremen e a HAG Bélgica poderiam ainda excluir-se reciprocamente dos respetivos territórios.

41.

No que respeita à lei alemã de integração do Sarre, é necessário ter presente, antes de mais, que a escala dos interesses económicos em questão é dificilmente comparável. Em segundo lugar, muito depende da medida em que é possível distinguir marcas idênticas ou susceptíveis de confusão através da acção de elementos distintivos. Tratarei esta questão nos números seguintes.

XII — O uso de elementos distintivos adicionais

42.

A possibilidade de distinguir marcas em conflito através de elementos adicionais é explicitamente referida na segunda questão apresentada pelo Bundesgerichtshof. Esta apresenta, todavia, importância geral e podia afectar a resposta à primeira questão. Se o Tribunal tencionasse responder a esta questão em sentido negativo, isto é, no sentido de que a HAG Bremen não se pode opor às importações em questão, seria necessano tomar seriamente em consideração este aspecto do caso. Surgem duas questões: em primeiro lugar, será possível distinguir efectivamente marcas em conflito através da adição de elementos distintivos suplementares (ou, talvez, do uso de cores diferentes, como no caso Persil referido no decorrer do processo) por forma a dissipar a confusão criada na mente do consumidor por marcas idênticas ou similares? Em segundo lugar, será possível, na prática, fazê-lo de uma forma que seja menos lesiva para a livre circulação de mercadorias do que a exigência de uso de uma marca completamente diferente? No acórdão HAG I, o Tribunal partiu do princípio (n.o 14) de que ambas as questões deviam ter resposta afirmativa, mas não tentou explicar qual a razão. O assunto não é de forma alguma tão simples como o Tribunal de Justiça parecia imaginar e deu origem a um volume considerável de literatura (ver, por exemplo, F. K. Beier, «Trademark conflicts in the Common Market: Can they be solved by means of distinguishing additions?», IIC 1978, p. 221).

43.

No que respeita à primeira das duas questões formuladas, tudo terá, naturalmente, que depender dos factos. Quando as marcas em conflito são idênticas, como acontece no presente caso, a impressão que o consumidor inicialmente tem de que as mercadorias têm a mesma origem comercial é tão forte que duvido que possa ser dissipada por qualquer quantidade de elementos adicionais ou pelo uso de cores diferentes. Duvido que algum consumidor que veja pacotes azuis e verdes de Persil lado a lado numa prateleira de supermercado pense, por um momento que seja, que não foram produzidos pela mesma empresa, ou sob o controlo desta. No que respeita a marcas susceptíveis de confusão, mas não idênticas, o problema pode não ser tão insuperável. Seria por exemplo possível, creio, afastar qualquer confusão entre produtos Terrapin e Terranova através de elementos impressos adicionais, tais como uma declaração de que não há qualquer ligação entre as duas empresas. Por outro lado, é pouco provável que um consumidor desatento ao ponto de confundir «LUCKY WHIP» com «Schöller--Nucki» seja esclarecido por qualquer informação suplementar que seja.

44.

No que respeita à segunda das questões acima formuladas, é claro que a invocação de uma marca não constitui uma barreira absoluta a importações; uma sugestão, feita na audiência pelo representante do Reino Unido, ia no sentido de o titular de uma marca que está também na titularidade de outra pessoa noutro Estado-membro ser simplesmente obrigado a tapar aquela marca com uma etiqueta com uma marca diferente. Seria ilógico, afirma-se, sustentar que esta exigência contraria as disposições relativas à livre circulação de mercadorias, enquanto a exigência de apor uma etiqueta nas mercadorias que declare que estas não têm qualquer relação com as de outro comerciante seria compatível com aquelas regras, uma vez que ambas as medidas seriam de igual forma opressivas e afectariam a livre circulação de mercadorias na mesma medida. Este argumento tem muito peso. Contudo, não é tão devastador como pode parecer. Há, realmente, uma diferença considerável entre uma etiqueta, colocada ao lado da marca, que negue qualquer relação com outros produtos e uma etiqueta que esconde a marca e a substitui por outra diferente. Enquanto a primeira pode ser inteiramente aceitável para os consumidores, quanto mais não seja pela sua franqueza, a segunda tenderia, creio, a suscitar suspeitas de que há algo de errado com os produtos. Além disso, o consumidor podia sentir-se enganado, no caso de retirar a etiqueta depois de comprar as mercadorias e descobrir que estas parecem ter uma origem diferente da que ele tinha suposto. O fabricante podia preferir colocar as mercadorias numa embalagem completamente diferente — o que seria mais custoso do que o simples expediente de apor uma etiqueta — a correr o risco de lesar o seu goodwill

45.

A conclusão que se pode retirar das considerações precedentes é a de que há circunstâncias nas quais seria prático distinguir marcas em conflito através da aposição de elementos adicionais, mas que estas circunstâncias constituem a excepção e não a regra. Duvido que aquele método seja alguma vez eficaz no caso de marcas idênticas usadas para produtos idênticos. Acima de tudo, tem que se sublinhar que aquela não é uma panaceia para todos os problemas suscitados por conflitos de marcas, como o Tribunal de Justiça pareceu entender no acórdão HAG I.

XIII — Conclusão: o titular da marca pode invocar o respectivo direito contra o titular de um direito paralelo em outro Estado--membro

46.

Tendo em atenção as considerações anteriores, estou convencido de que tem que ser concedida ao titular de uma marca a possibilidade de excluir do seu território mercadorias em que tenha sido aposta uma marca idêntica por outra pessoa, não relacionada com aquele, que seja titular da marca em outro Estado-membro. O mesmo vale em relação a marcas susceptíveis de confusão, excepto, talvez, em casos em que seja prática a distinção através de elementos distintivos adicionais. Esta conclusão justifica-se quer do ponto de vista do titular da marca quer do ponto de vista do consumidor. Do ponto de vista do titular da marca, o objecto específico do direito — concretamente, o direito exclusivo de usar a marca no território em causa e, assim, de se proteger contra a concorrência desleal — seria lesado, e a existência do direito seria ameaçada, se aquele fosse obrigado a tolerar o uso da marca por um concorrente. Do ponto de vista do consumidor, a função essencial da marca de evitar a confusão e indução em erro daquele quanto à origem das mercadorias que adquire ficaria comprometida. Seria altamente indesejável que o direito comunitário promovesse a coexistência, no mesmo mercado, de marcas idênticas ou susceptíveis de confusão.

47.

A conclusão a que se chegou acima confirma a minha crença de que o modo de ver seguido no acórdão Terrapin/Terranova era correcto (tenho apenas reservas quanto à genuinidade do perigo de confusão e à possibilidade de o eliminar através de informação adicional) e de que o processo HAG I não foi decidido de forma acertada. Todavia, não posso subscrever sem reservas aquele entendimento sem primeiro me assegurar de que de algum modo é possível evitar os piores excessos que podem resultar das interpretações divergentes dadas nos direitos nacionais ao conceito de marcas susceptíveis de confusão. Mas eles existem, certamente.

48.

A meu ver, um entendimento demasiado lato do conceito de marcas susceptíveis de confusão — exemplificado de forma extrema na decisão do caso «LUCKY WHIP» — contrariaria o artigo 30.o do Tratado e não seria «justificado», na acepção da primeira frase do artigo 36.o Além disso, uma concepção demasiado lata é vedada pela segunda frase do mesmo artigo. No caso de os tribunais nacionais aceitarem a invocação de uma marca para impedir a importação de mercadorias fabricadas noutro Estado-membro quando o risco de confusão fosse mínimo, tal constituiria uma discriminação arbitrária. Isto mesmo foi sugerido pelo Tribunal de Justiça no n.o 4 do acórdão Terra-pin/Terranova.

49.

Naquele acórdão, por outro lado, o Tribunal não pôs de lado a possibilidade de ser legitimamente chamado a decidir a questão da similaridade e do perigo de confusão, pelo menos em relação às respectivas implicações em matéria de direito comunitário. Aquela possibilidade foi reforçada pela directiva sobre marcas, pois o conceito de marcas susceptíveis de confusão é agora um conceito de direito comunitário [ver a alínea b) do n.o 1 dos artigos 4.o e 5.o da directiva]. Embora a directiva não possa produzir efeito directo em relação a particulares (processo 152/84, Marshall/Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority, Colect. 1986, p. 723), depois do termo do prazo para a sua transposição, os tribunais nacionais terão que interpretar o direito nacional, em particular as regras nacionais de execução da directiva, à luz do teor e finalidades desta (processo 14/83, Von Colson e Kamann/Land Nordrhein-Westfalen, Recueil 1984, p. 1891). Aqueles tribunais terão o direito, ou o dever, de apresentar pedidos de decisão a título prejudicial, e o Tribunal de Justiça, ao assegurar uma interpretação uniforme — e, talvez, restritiva — do conceito de marcas susceptíveis de confusão, poderá afastar os abusos de discrepancias a que me referi acima.

50.

Assim, estou convencido de que o Tribunal pode sem perigo confirmar o modo geral de ver adoptado no acórdão Terrapin/Terranova e alargá-lo a casos respeitantes a marcas com origem comum.

XIV — A directiva sobre marcas

51.

Tenho que examinar detidamente as possíveis implicações da directiva sobre marcas acima referida, pois grande parte do peso do argumento assentou nesta. O Governo alemão sustenta que o presente caso devia ser resolvido com base nas disposições daquele diploma. Reconhece que a directiva não pode ter efeito directo em relação a particulares e que, de qualquer modo, o período para a sua transposição ainda não terminou, mas sustenta que, em todo o caso, a directiva deve ser tomada em conta, pois contém uma afirmação definitiva da posição do legislador sobre que limitações da livre circulação de mercadorias se justificam pela protecção da propriedade industrial e comercial. Ao omitir deliberadamente a inclusão na directiva da doutrina da origem comum, o Conselho indicou tacitamente que não há lugar para esta em direito comunitário. Além disso, as disposições da lei alemã invocadas pela HAG Bremen estão inteiramente conformes com a directiva e não podem, assim, ser consideradas incompatíveis com o direito comunitário.

52.

Do ponto de vista do Tribunal de Justiça, esta solução pode parecer sedutora, pois evitaria a necessidade de admitir que o processo HAG I não foi decidido de forma acertada. Seria possível dizer que aquele processo foi correctamente decidido, mas a base legal da decisão foi anulada por legislação subsequente. Em todo o caso, antes de adoptar esta solução, o Tribunal deve certificar-se de que a directiva tem realmente os efeitos que o Governo alemão lhe atribui. Não estou convencido de que tal seja certo.

53.

Em primeiro lugar, temos que tomar cuidado para não 1er demasiado no silêncio do legislador. O silêncio é, por natureza, ambíguo e não pode ser interpretado como aprovação ou reprovação, consoante o ponto de vista subjectivo do intérprete. Com a mesma facilidade, podia deduzir-se da falta de referência à doutrina da origem comum na directiva sobre marcas quer a intenção de a confirmar quer a intenção de a afastar. Esta última presunção só se justificaria se fosse claro que a directiva se destinava a codificar a jurisprudência do Tribunal em relação à livre circulação de mercadorias e protecção de direitos de marca e que se pretendia tratar esta matéria exaustivamente. Contudo, não é este o caso. É certo que, no artigo 7o, a directiva adoptou a jurisprudência do Tribunal sobre o esgotamento de direitos, incluindo parte da jurisprudência sobre reembalagem. Mas mesmo esta matéria não foi exaustivamente tratada pela directiva. Para o verificar, basta comparar as disposições notavelmente vagas do n.o 2 do artigo 7o com as regras excepcionalmente detalhadas que o Tribunal elaborou no processo 102/77, Hoffmann-La Ro-che/Centrafarm (Recueil 1978, p. 1139, 1165 e seguintes). Além disso, há outro aspecto importante da jurisprudência do Tribunal de Justiça que é totalmente ignorado na directiva. No processo American Home Products, o Tribunal sustentou que, se um produtor usa marcas diferentes em Estados-membros diferentes com o objectivo de compartimentar artificialmente o mercado, pode perder o direito de impedir o uso não autorizado das marcas por terceiros, uma vez que estaria a exercer o seu direito de modo a criar uma restrição dissimulada ao comércio. Teria relutância em deduzir do silêncio do Conselho quanto a este ponto que ele tencionava conferir aos titulares de marcas o poder de criar este tipo de restrições dissimuladas ao comércio. Mas tal seria a conclusão lógica do argumento do Governo alemão, pois não podemos interpretar o silêncio do Conselho quanto àquele ponto no sentido de confirmar implicitamente os princípios definidos pelo Tribunal de Justiça e, ao mesmo tempo, retirar a conclusão exactamente contrária do seu silêncio em relação à doutrina da origem comum.

54.

Além disso, existe a dificuldade adicional de saber se o Conselho podia derrogar por via legislativa uma doutrina que é suposta basear-se no Tratado. O Governo alemão tenta suplantar esta dificuldade com o argumento de que os princípios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça que regem as relações entre os artigos 30.o e 36.o deixam de ser relevantes a partir do momento em que o direito substantivo dos Estados-membros foi harmonizado. Durante a harmonização, aqueles princípios desempenham uma «Ersatzfunktion»; depois da harmonização tornam-se redundantes, pois foram substituídos pelas disposições da directiva de harmonização. A legislação nacional não pode ser contrária ao artigo 30.o do Tratado se estiver em conformidade com a directiva e não pode ser salva pelo artigo 36.o se não respeitar aquela.

55.

Este argumento pode ter alguma verdade em relação a directivas que harmonizam regras de direito nacional relativas, por exemplo, à composição dos alimentos para gado, como no processo Tedeschi, citado pelo Governo alemão (processo 5/77, Recueil 1977, p. 1555), porque neste caso a origem do impedimento à livre circulação — nomeadamente as discrepâncias nas legislações nacionais — é afastada pela directiva. Mas o argumento não se mantém ao ser aplicado à directiva sobre marcas. Muitos dos conflitos entre direitos de propriedade intelectual e livre circulação de mercadorias, incluindo os conflitos causados pelo fraccionamento da titularidade de uma marca, são devidos não a discrepâncias nos direitos nacionais, mas apenas à territorialidade destes. A directiva não fez nada para limitar esta territorialidade e, assim, também nada fez para resolver os problemas que naquela têm origem. Em consequência, as disposições de direito nacional que permitem ao titular de uma marca que se oponha a importações de outro Estado-membro continuam a cair sob a alçada do artigo 30.o e a precisar de encontrar justificação no artigo 36.o É, portanto, ilusório pretender que a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 36.o foi tornada redundante pela directiva. Além disso, seria sempre erróneo supor que todas as discrepâncias entre as legislações dos Estados-membros teriam sido afastadas pela directiva. Na realidade, esta (como o indica o seu título, «Primeira directiva») constitui apenas uma primeira etapa no sentido da harmonização das legislações nacionais.

56.

Entre parênteses, gostaria de acrescentar que estes problemas não serão resolvidos, mesmo depois da aprovação da regulamentação proposta para a criação de uma única marca comunitária. As marcas nacionais existentes continuarão a coexistir com a marca comunitária e, como foi reconhecido pela Comissão na audiência, onde existir uma marca dividida não haverá possibilidade de obter uma marca comunitária.

57.

Regressando à directiva, concluo da análise precedente que aquela não é directamente relevante para o presente caso. Menos ainda se pode sustentar, com base na directiva, que o processo HAG I foi correctamente decidido, à data, tendo contudo a decisão perdido validade em virtude da directiva. Por sedutora que esta solução possa parecer, não creio que se possa sustentar que a doutrina da origem comum veio à luz como filha legítima do artigo 36.o, tendo entretanto ficado órfã em consequência de um acto do legislador.

XI — A possibilidade de distinguir entre os processos HAG I e HAG II

58.

O entendimento de que o caso HAG II pode ser distinguido do HAG I é minuciosamente examinado pela HAG Bremen. Tal só dificilmente surpreenderia. Tendo recuperado acesso aos mercados belga e luxemburgês com a marca HAG, como resultado do litígio anterior, aquela empresa não deseja renunciar àquele benefício, pondo em causa a validade da decisão no processo HAG I. Em lugar disso, tentou demonstrar que a decisão devia ter sido tomada com fundamentos diferentes que não teriam por efeito forçá-la a partilhar a marca HAG com a HAG Bélgica na Alemanha e no resto da Comunidade. Os principais argumentos jurídicos que apresenta são os seguintes:

em primeiro lugar, sublinha a importância do consentimento na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao esgotamento de direitos. Uma vez que foi compulsoriamente privada da marca HAG na Bélgica e no Luxemburgo, não se pode dizer que tenha consentido na subdivisão da marca ou no seu uso por terceiros. A HAG Bélgica, por outro lado, adquiriu os respectivos direitos sobre a marca à família Van Oevelen e ao Governo belga, não podendo assim encontrar-se numa posição jurídica mais forte do que aqueles. Estes, contudo, consentiram na subdivisão da marca e adquiriram os respectivos direitos em relação a esta com pleno conhecimento de que fora da Bélgica e do Luxemburgo ela se encontrava na titularidade de terceiro;

em segundo lugar, sustenta que permitir à HAG Bélgica o uso na Alemanha da marca HAG equivaleria a atribuir efeitos extraterritoriais à expropriação que teve lugar em 1944, violando assim um princípio estabelecido de direito internacional;

em terceiro lugar, sustenta que, embora a função essencial da marca de indicar a origem das mercadorias se encontrasse comprometida na Bélgica e no Luxemburgo como consequência da expropriação, tal nunca aconteceu na Alemanha, onde a marca permaneceu sempre na mesma titularidade.

59.

Na medida em que estes argumentos tendem a sugerir que a doutrina da origem comum devia ser modificada por forma a ter aplicação em relação ao caso HAG I, mas não ao HAG II, devido a diferenças materiais quanto à matéria de facto nos dois casos, não terão que ser considerados mais em pormenor, dado que, de acordo com o entendimento que defendo, a doutrina, tal como foi aplicada no caso HAG I, será abandonada. Isto é particularmente verdade em relação ao terceiro argumento acima referido. Aquele argumento pode certamente ser defendido com base na doutrina da origem comum, tal como explicada e modificada no acórdão Terrapin/Terranova, mas, como tentei demonstrar acima, a análise desta doutrina revela-a como indefensável, mesmo na versão modificada.

60.

Os argumentos podem também ser entendidos como conduzindo a uma conclusão diferente, concretamente a de que, se a doutrina da origem comum for abandonada, a HAG Bremen ainda terá o direito de usar a sua marca na Bélgica e no Luxemburgo com base em qualquer outro princípio legal. Tal pode bem acontecer, mas não seria adequado exprimir uma opinião sobre aquela questão neste processo, onde ela não se coloca: muito simplesmente, o destino da HAG Bremen na Bélgica e no Luxemburgo não é matéria para ser decidida pelos tribunais alemães neste processo. Terei de qualquer modo que analisar os argumentos, para o caso de eles virem a ser considerados relevantes.

61.

Se o argumento relativo ao consentimento fosse utilizado para justificar a decisão do processo HAG I, tal implicaria modificar completamente a base da decisão. Equivaleria a dizer que a decisão do processo HAG I não devia ter sido baseada na espúria doutrina da origem comum; em seu lugar, devia ter sido baseada seja no princípio desenvolvido em relação ao artigo 85.o no processo 40/70, Sirena/Eda, já citado, seja numa aplicação bastante invulgar do princípio do esgotamento de direitos. Qualquer das soluções apresenta numerosas dificuldades.

62.

O caso Sirena assemelhava-se ao HAG, na medida em que respeitava a uma marca fraccionada muito antes da entrada em vigor do Tratado CEE. Naquele caso, contudo, o fraccionamento resultava de uma cessão contratual e não de um acto coercivo da autoridade. Foi tratado exclusivamente com base no artigo 85.o O Tribunal de Justiça sustentou que o exercício de um direito de marca «pode cair na alçada das proibições do Tratado, sempre que se apresentar como objecto, meio ou resultado de um acordo», e que, «se os acordos foram celebrados antes da entrada em vigor do Tratado, é necessário e suficiente que continuem a produzir efeitos após essa data». No acórdão HAG I, o Tribunal de Justiça sustentou que o artigo 85.o näo era aplicável, na ausência de qualquer ligação entre os titulares da marca — jurídica, financeira, técnica ou econômica. Contudo, podia ter sido possível argumentar que, embora a HAG Bremen não tivesse cedido a marca por acordo, Van Oevelen e os respectivos sucessores na titularidade daquela obtiveram-na por aquela forma. Não deixaria de ser razoável afirmar que aquelas partes deveriam ser tratadas da mesma forma que um cessionário contratual da marca e que, nestas circunstâncias, poderiam ser abrangidas pela regra definida no acórdão Sirena. O problema é que esta regra foi modificada, num aspecto importante, no processo 51/75, EMI Records/CBS United Kingdom, já citado. Aquele processo também dizia respeito a uma marca que foi fraccionada, através de cessão contratual, muito antes da entrada em vigor do Tratado. O Tribunal de Justiça decidiu que:

«Um acordo só será entendido como continuando a produzir efeitos se puder ser deduzida, da actuação das pessoas em causa, a existência de elementos de concertação e de coordenação próprios do acordo e que levam ao resultado pretendido com este.

Tal não é o caso quando os ditos efeitos não excedem os que resultam normalmente do exercício dos direitos nacionais de marca.»

Se aplicarmos este teste aos factos do processo HAG I, continua a ser difícil evitar a conclusão de que aquele não foi correctamente decidido. Não há, manifestamente, qualquer concertação entre a HAG Bremen e a HAG Bèlgica e os efeitos do «acordo» putativo não excedem os que resultam do exercício normal de direitos nacionais de marca.

63.

A solução alternativa, que consiste na aplicação do princípio do esgotamento de direitos, é igualmente problemática. Em primeiro lugar, implicaria uma aplicação um pouco invulgar daquele princípio. Se a HAG Bremen tivesse cedido voluntariamente as marcas belgas e luxemburguesa a Van Oevelen, seria fácil dizer que a HAG Bremen tinha consentido no uso da marca por Van Oevelen noutro Estado-membro, tendo por esta forma esgotado os seus direitos. Assim, a HAG Bremen não poderia invocar a sua marca alemã para impedir a importação para a Alemanha dos produtos de Van Oevelen. Mas o mesmo princípio aplicar-se-ia em sentido inverso? Logicamente, tal deveria acontecer, embora dificilmente se pudesse dizer que o cessionário da marca fraccionada tivesse esgotado o seu direito; seria mais exacto dizer que tinha adquirido um direito que já estava esgotado. Mas, mais uma vez, a questão é complicada pelo facto de o fraccionamento da marca ter tido lugar em 1944, catorze anos antes da entrada em vigor do Tratado. A essência da teoria do esgotamento consiste em que o titular de um direito de propriedade intelectual num Estado-membro esgota aquele direito no conjunto da Comunidade ao consentir na comercializiação do produto em questão em outro Estado-membro. Poder-se-á dizer que o titular de um direito de propriedade intelectual esgotou este direito no conjunto da Comunidade através de um acto praticado muito antes de aquela ter surgido? Esta é uma questão importante de princípio que não foi resolvida na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Em meu entender, uma questão tão importante não devia ser resolvida através de um obiter dictum. Por esta razão, não creio que fosse acertado tentar defender o acórdão HAG I com base em que Van Oevelen e os seus sucessores consentiram no fraccionamento do direito.

64.

No que respeita ao argumento de que, ao permitir à HAG Bélgica o uso da marca HAG na Alemanha, o Tribunal estaria a atribuir efeitos extraterritoriais à expropriação que teve lugar em 1944, não me parece que isto venha acrescentar muito à já avassaladora argumentação da HAG Bremen ou que justifique a distinção entre ös processos HAG I e HAG II. Digo-o, porque o direito comunitário não pode, em qualquer caso, ter o efeito de expropriar alguém sem compensação, em particular privando-o dos seus direitos de propriedade intelectual. Pelas razões apresentadas, creio que o acórdão HAG I veio afectar a existência dos direitos de Van Zuylen, e que uma decisão semelhante no processo HAG II afectaria a existência dos direitos da HAG Bremen. A questão essencial está em que o goodwill associado à marca HAG é propriedade, na Alemanha, da HAG Bremen, enquanto na Bélgica e no Luxemburgo é propriedade da HAG Bèlgica. O goodwill na Bélgica e no Luxemburgo deixou de estar na titularidade da HAG Bremen aquando da expropriação em 1944. Não compete ao direito comunitário anular os efeitos da expropriação na Bélgica e no Luxemburgo, tal como não compete ao direito comunitário alargar à Alemanha o âmbito territorial de aplicação daquela expropriação.

65.

No que respeita ao argumento baseado na função essencial da marca de indicar a origem das mercadorias, já tentei demonstrar que, desde que aquela função seja correctamente entendida, se terá que concluir que não foi mais posta em causa na Bélgica e no Luxemburgo, antes de 1974, do que na Alemanha. Assim, aquele argumento não pode justificar a distinção entre os casos HAG I e HAG II.

66.

Concluo que, embora possa haver razoes para distinguir entre os casos HAG I e HAG II, os argumentos neste sentido não são muito convincentes. A verdadeira diferença entre os dois casos encontra-se talvez em que a injustiça que pode ser causada pela doutrina da origem comum é talvez mais óbvia no processo HAG II do que no HAG I. Mas trata-se apenas de uma questão de grau. Creio que seria mais saudável reconhecer que a decisão do processo HAG I não foi acertada do que agravar o erro inventando uma distinção espúria entre os dois casos.

XVI — A questão da modificação do sentido da jurisprudência do Tribunal de Justiça

67.

Se, como entendo ser necessário, a primeira questão for respondida em sentido afirmativo, o Tribunal deveria, em meu entender, tornar claro, no interesse da segurança jurídica, que está a abandonar a doutrina da origem comum definida no acórdão HAG I. O Tribunal tem, em jurisprudência constante, reconhecido o seu próprio poder de se afastar de decisões anteriores, por exemplo, afirmando claramente que os tribunais nacionais podem apresentar pedidos de decisões sobre questões que o Tribunal já tenha decidido: ver os processos apensos 28/62, 29/62 e 30/62, Da Costa & Schaake (Recueil 1963, p. 59), onde o Tribunal admitiu a possibilidade de apreciar de novo «uma questão materialmente idêntica», e o processo 283/81, CILFIT/Ministero delia sanità, n.o 15 (Recueil 1982, p. 3415); ver também o processo 28/67, Molkerei-Zentrale (Recueil 1968, p. 211, 226 a 229), no qual o Tribunal reexaminou expressamente questões que já tinham sido decididas anteriormente. A necessidade de, no caso presente, o Tribunal contrariar expressamente uma decisão anterior é, creio, inevitável, mesmo que o Tribunal nunca o tenha feito explicitamente antes. No presente caso, os argumentos no sentido de abandonar a doutrina da origem comum são excepcionalmente fortes; além disso, e como já sugeri, a validade daquela doutrina já foi posta em dúvida, como consequência da jurisprudência posterior. Responder em sentido afirmativo à primeira questão sem abandonar aquela doutrina, ou procurar racionalizar aquela resposta com qualquer outro fundamento, parece-me ser uma fonte de confusão.

XVII — As restantes questões

68.

As segunda, terceira e quarta questões só se colocam se a primeira questão tiver resposta negativa. Uma vez que, do meu ponto de vista, a resposta àquela questão deve antes ser afirmativa, não é necessário tomar em consideração as restantes questões. Contudo, para o caso de virem a ser consideradas relevantes, comentá-las-ei abreviadamente.

69.

A segunda questão destina-se essencialmente a saber se a resposta à primeira questão será diferente no caso de a marca invocada ser tão conhecida que, se for usada por mais do que uma empresa no mesmo território, tal tornará impossível a informação do consumidor quanto à origem comercial das mercadorias sem repercussões nocivas sobre a livre circulação de mercadorias. A terceira questão destina-se a saber se a resposta seria ainda a mesma no caso de os consumidores associarem a marca invocada não só com uma certa origem comercial, mas também com certas representações relativas à qualidade das mercadorias. Para ser completo, a quarta questão destina-se a saber se as condições apresentadas nas segunda e terceira questões, tomadas no seu conjunto, podiam alterar a resposta à primeira questão, embora nenhuma delas tivesse isoladamente aquele efeito.

70.

Os dois factores adicionais referidos nas segunda e terceira questões são de certo importantes — tão importantes, de facto, que não me foi possível tratar a primeira questão sem os abordar. Pouco precisa de ser acrescentado ao que já disse.

71.

Quanto à segunda questão, não creio que fosse acertado criar duas categorias de marcas — as muito e as pouco conhecidas. E certo que a directiva sobre marcas reconhece que as marcas que gozam de uma certa reputação têm, em certos aspectos, direito a um grau de protecção mais elevado. Contudo, não vejo que relação possam ter com o presente caso as disposições em questão (n.os 3 e 4 do artigo 4. e n.o 2 do artigo 5.o). No que respeita à tarefa de informar o consumidor acerca da origem comercial das mercadorias que utilizam a marca, já exprimi o entendimento de que, em caso de marcas idênticas para produtos idênticos, o risco de confusão é tão grande que não poderá ser prevenido com qualquer quantidade que seja de elementos distintivos adicionais. Tal terá que ser verdade não só em relação a marcas que são de conhecimento geral, mas também em relação às que são relativamente obscuras, pois qualquer marca pode ser bem conhecida dentro de um determinado círculo de consumidores, grande ou pequeno, que compram ou tencionam comprar o produto em questão. A confusão sofrida pelos consumidores que estão familiarizados com uma marca não aumenta ou diminui com o número daqueles.

72.

No que respeita à tendência de uma certa marca para criar nos consumidores representações relativas à qualidade dos produtos que ostentam a marca, já apontei que aquela tendência está associada à função essencial das marcas em geral. Diz-se por vezes que a função essencial da marca é a de exercer o papel de garantia de origem e não de qualidade. Tal é verdade, na acepção limitada de que o produtor não tem o dever de garantir que todos os produtos vendidos com uma certa marca têm a mesma qualidade. Mas, como sugeri, a relevância da função da marca como garantia de origem não deixa de assentar no facto de a marca criar no consumidor certas representações relativas à qualidade das mercadorias que a ostentam. O consumidor não está interessado na origem comercial das mercadorias por curiosidade fútil; o seu interesse baseia-se na presunção de que mercadorias com a mesma origem terão a mesma qualidade. E por esta forma que a protecção das marcas alcança a sua justificação fundamental, de recompensar o produtor que produz continuadamente mercadorias de alta qualidade. Dar uma resposta negativa à primeira questão seria ignorar este aspecto da função essencial das marcas. Assim, não é possível responder em sentido negativo à primeira questão, vir depois dizer que a resposta pode ser diferente se estiver presente o factor referido na terceira questão.

XVIII — A resposta às questões apresentadas ao Tribunal

73.

Como acontece frequentemente em processos baseados no artigo 177.o, uma das tarefas mais difíceis é a redacção da resposta às questões apresentadas pelo tribunal nacional. Uma das críticas que podem ser formuladas contra a decisão do processo HAG I é a de que esta foi consideravelmente mais lata do que era necessário. Tendo em atenção a necessidade de evitar a repetição daquele erro, proporei uma resposta à primeira questão do tribunal nacional que lhe permitirá decidir o caso que lhe foi apresentado, mas não afectará a questão dos direitos da HAG Bélgica contra a HAG Bremen na Bélgica e no Luxemburgo. Esta última questão levanta alguns complexos problemas jurídicos que não foram inteiramente debatidos neste processo. Assim, proponho que seja dada a seguinte resposta às questões apresentadas pelo Bundesgerichtshof:

«Os artigos 30.o e 36.o do Tratado CEE não impedem uma empresa de invocar uma marca de que é titular num Estado-membro para se opor às importações, em proveniência de outro Estado-membro, de mercadorias similares com uma marca idêntica ou susceptível de confusão com a sua, que tenha inicialmente pertencido à mesma empresa, mas tenha sido seguidamente adquirida por outra empresa inteiramente independente sem o consentimento da primeira.»


( *1 ) Lingua original: inglês.

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