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Document 61987CC0301

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 4 de Outubro de 1989.
República Francesa contra Comissão das Comunidades Europeias.
Auxílios estatais - Notificação prévia - Entradas de capital, concessão de empréstimos com juros bonificados e redução de encargos sociais.
Processo C-301/87.

Colectânea de Jurisprudência 1990 I-00307

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1989:357

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

F. G. JACOBS

apresentadas em 4 de Outubro de 1989 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

Neste processo, a República Francesa pede a anulação da Decisão 87/585/CEE da Comissão, de 15 de Julho de 1987 (JO L 352, p. 42). Nessa decisão, a Comissão entendeu que, ao conceder auxílios à Compagnie Boussac Saint Frères, o Governo francês tinha violado o n.o 3 do artigo 93.o do Tratado CEE, que os auxílios eram incompatíveis como o seu artigo 92.o e que uma parte destes devia ser restituída. O Reino Unido interveio em apoio da Comissão, recorrida no processo.

Matéria de facto

2.

O sector têxtil na Comunidade Europeia constitui um sector sensível e difícil. Encontra-se excepcionalmente fragmentado, tanto por existir um grande número de pequenas empresas como pela quantidade de diferentes produtos. Nos anos 60 e 70, o aumento da concorrência de países com baixos custos de produção, bem como a abertura do mercado têxtil e de vestuário, causaram graves dificuldades à indústria comunitária. A Comissão salienta na decisão impugnada que um milhão de postos de trabalho, representando quase 40o/o do total dos efectivos desta indústria, foi suprimido entre 1975 e 1985.

3.

O grupo Boussac foi criado principalmente antes da Segunda Guerra Mundial, tornando-se, no após-guerra, a sociedade francesa mais importante no sector têxtil. No entanto, não se adaptou bem à evolução da situação acima referida e, em 30 de Maio de 1978, foi iniciado um processo para a sua recuperação. Através da sua filial Saint Frères, o grupo Willot assegurou o controlo da sociedade Boussac para constituir a Boussac Saint Frères. No entanto, apesar dos esforços de reestruturação e do encerramento de sectores não rentáveis, iniciou-se em 1981, em relação a quase todas as empresas do grupo, um processo de liquidação. No final de 1981, tornou-se claro que nenhum grupo industrial ou financeiro estava disposto a apresentar uma proposta global de viabilização do grupo. O seu desmantelamento foi considerado inadequado por diversas razões, nomeadamente pelos seus custos sociais, e entraram em jogo dinheiros públicos. A empresa Arthur D. Little foi encarregada de proceder a uma análise aprofundada, tendo proposto uma reestruturação. Institut de développement industriel (a seguir «IDI» e credores privilegiados (bancos) participaram no capital de uma nova sociedade de gestão destinada a controlar as operações da que passaria a ser a Compagnie Boussac Saint Frères ou CBSF (a seguir «Boussac»). Não é contestado que outros importantes montantes foram em seguida concedidos à sociedade pela Société de participation et de restructuration industrielle (a seguir «Sopari»), filial do IDI. Estes dois institutos foram considerados, para efeitos do presente processo, organismos estatais.

Tramitação do processo

4.

Vejo-me na obrigação de descrever as fases do processo de forma algo detalhada, dado que estes pormenores são essenciais para a apreciação das diversas questões processuais invocadas pela França a fim de obter a anulação da decisão da Comissão.

5.

Com base em informações provenientes de fontes diversas das autoridades francesas, a Comissão, por telex de 12 de Julho de 1983, convidou o Governo francês a fornecer informações sobre o montante e a forma dos auxílios previstos para a Boussac no sector dos papéis de higiene. Não tendo obtido resposta, a Comissão enviou um novo telex em 22 de Fevereiro de 1984. Em 22 de Março do mesmo ano, as autoridades francesas responderam sucintamente que a Boussac previa a instalação de uma nova unidade de produção da sua filial Peaudouce em Roanne (Loire), no âmbito do plano de desenvolvimento da Boussac, tendo este plano no seu conjunto sido financiado pela Sopari, designada como accionista maioritária da Boussac. A resposta terminava com a afirmação de que não estava prevista qualquer participação pública especial no investimento de Roanne, cujo custo era de aproximadamente 120 milhões de FF.

6.

Através de um novo telex, de 12 de Julho de 1984, a Comissão solicitou que lhe fosse enviada uma lista de todas as intervenções do IDI em benefício da Boussac desde Dezembro de 1981, data em que, segundo a Comissão, o primeiro-ministro francês dera ao IDI instruções concretas no sentido de salvar a Boussac. A Comissão declarou igualmente ter tido conhecimento de que o IDI decidira conceder à Boussac um empréstimo de 180 milhões de FF com juro bonificado e que tal empréstimo constituía um auxílio que devia ser notificado à Comissão sob a forma de projecto, nos termos do n.o 3 do artigo 93.o do Tratado. A Comissão chamou a atenção do Governo francês para o facto de poder ser exigida a restituição de qualquer auxílio concedido em violação do Tratado.

7.

Por outra carta algo lacónica, datada de 22 de Agosto de 1984, o Governo francês informou a Comissão de que o IDI tinha participado com um montante de 100,1 milhões de FF (50,1 %) no capital inicial da nova sociedade e que essa participação fora mais tarde transferida para a Sopari. Acrescentou que a Sopari tinha concedido, em princípios de 1984, 180 milhões de FF à Boussac e que uma nova entrada de capital de 200 milhões de FF estava a ser efectuada. Por carta de 3 de Dezembro de 1984, a Comissão informou o Governo francês de que tinha decidido dar início ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o do Tratado, notificando-o para apresentar observações. Na sua carta, a Comissão salientava que, embora o Governo tivesse fornecido algumas informações na carta de 22 de Agosto de 1984, enviada em resposta aos três telexes da Comissão, esta ainda não tinha recebido a comunicação a que se refere o n.o 3 do artigo 93.o do Tratado. Em 4 de Fevereiro de 1985, o Governo francês respondeu, de novo de forma bastante lacónica, mencionando as intervenções acima referidas de 100,1 milhões de FF, 180 milhões de FF e 200 milhões de FF, e sugerindo que estas se enquadram no n.o 3, alínea c), do artigo 92.o do Tratado.

8.

A Comisão solicitou mais informações em 14 de Março de 1985 e, não obtendo resposta, insistiu em nota de 14 de Maio de 1985. Em 4 de Junho de 1985, o Governo francês forneceu novas informações, mais tarde completadas por cartas de 11 de Outubro de 1985, 5 de Fevereiro e 19 de Junho de 1986. Estas novas informações consistiam, em larga medida, em diversas notas técnicas destinadas a demonstrar que as intervenções financeiras se integravam num plano de reestruturação e de desenvolvimento da sociedade com vista à redução tanto das capacidades como dos efectivos. Foram igualmente efectuadas três reuniões entre representantes da Comissão e do Governo francês, em 18 de Outubro de 1985, 14 de Maio e 4 de Julho de 1986, tendo ainda a Comissão recebido mais informações por carta de 21 de Julho de 1986.

9.

Tendo presumivelmente a Comissão tornado claro que os argumentos do Governo francês não eram convincentes, o ministro francês da Indústria, Correios e Telecomunicações e do Turismo escreveu, em 10 de Novembro de 1986, ao Sr. Sutherland, então comissário encarregado da concorrência, manifestando-lhe a sua preocupação relativamente às notícias publicadas na imprensa, segundo as quais uma importância considerável devia ser restituida, e pedindo-lhe que reconsiderasse a sua posição. O Sr. Sutherland respondeu por carta de 4 de Dezembro de 1986, declarando não poder aceitar os argumentos do ministro e que recomendaria à Comissão uma decisão negativa.

10.

Em 8 de Dezembro de 1986, Jacques Chirac, então primeiro-ministro francês, escreveu ao presidente da Comissão, Jacques Delors, observando que persistiam entre as duas partes mal-entendidos e divergências quanto aos montantes exactos e às finalidades dos auxílios concedidos, e sugerindo que um novo exame da questão permitiria resolver os problemas. Em 17 de Dezembro de 1986, a Comissão decidiu que os auxílios não eram compatíveis com o mercado comum, tendo igualmente decidido prosseguir a discussão com o Governo francês sobre o montante dos auxílios concedidos, a importância que devia ser restituída e as modalidades dessa restituição. Algumas novas iniciativas da Comissão, incluindo uma resposta de Jacques Delors ao primeiro-ministro francês, ficaram sem resposta imediata.

11.

Em carta de 19 de Fevereiro de 1987, o primeiro-ministro francês designou um «interlocutor», o Sr. Gadonneix, para analisar com os serviços da Comissão em que medida os auxílios concedidos à Boussac podiam ser auxílios incompatíveis com as regras comunitárias. Em 27 de Março e 21 de Maio de 1987, o Sr. Gadonneix enviou dois memorandos à Comissão. Na carta que acompanhava o primeiro desses memorandos, chamava especialmente a atenção para três aspectos a ter em conta pela Comissão: em primeiro lugar, devia ter-se em consideração a amplitude da reestruturação e a importância da redução de capacidade da Boussac; em segundo lugar, o facto de as intervenções estatais terem sido acompanhadas por consideráveis investimentos privados, e, em terceiro lugar, o facto de a sociedade se encontrar numa situação financeira precária, que não devia sofrer novas desestabilizações.

A decisão

12.

A Comissão não ficou convencida e, em 15 de Julho de 1987, adoptou a decisão impugnada, declarando que as medidas em questão constituíam, de facto, auxílios ilegais. A decisão é complexa mas, se se partir da parte decisória, verificar-se-á que ela se baseia em três medidas ou grupos de medidas. Em primeiro lugar, houve entradas de capital de 333,1 milhões de FF efectuadas pela Sopari em Julho de 1982 para reconstituir e aumentar o capital da sociedade, e outras entradas de capital no montante de 110 milhões de FF em Junho de 1984 e de 190 milhões de FF em Janeiro de 1985, perfazendo um total de 633,1 milhões de FF. Em segundo lugar, verificaram-se adiantamentos da Sopari no montante de 36,8 milhões de FF em Junho de 1984, bem como empréstimos com juro bonificado no montante global de 295 milhões de FF, efectuados era diversas datas entre Dezembro de 1982 e Janeiro de 1985, perfazendo um novo total de 331,8 milhões de FF. Em terceiro lugar, foi paga à sociedade em Junho de 1983 uma importância de 35 milhões de FF sob a forma de redução de encargos sociais, em violação de uma decisão anterior da Comissão, a Decisão 83/245/CEE, de 12 de Janeiro de 1983 (JO L 137, p. 24), decisão essa que o Tribunal declarou, no processo 52/83, Comissão/República Francesa (Recueil 1983, p. 3707) que a França não cumprira. A Comissão calculou que, do montante global assim apurado, de 999,9 milhões de FF, o benefício económico real concedido à Boussac foi de 685,86 milhões de FF. Por todas as razões referidas no ponto X da sua decisão, a Comissão deduziu deste montante global as importâncias pagas pela Boussac em custos de transferências de determinadas instalações de produção e de trabalhadores para sociedades independentes, que posteriormente cessaram a laboração; essas importâncias elevam-se a 347,3 milhões de FF. Sobram assim 338,56 milhões de FF a restituir pela Boussac.

13.

Reflectindo estas conclusões, o artigo 1.o da decisão da Comissão tem o seguinte teor:

«Os auxílios, sob a forma de injecções de capital, num montante de 633,1 milhões de FF e efectuados pela Sopari, após transferência do IDI, de empréstimos a taxas de juro reduzidas, num montante de 331,8 milhões de FF, e as reduções de encargos sociais, num montante de 35 milhões de FF, atribuídos ao abrigo do plano de auxílio à indústria têxtil e de vestuário, concedidos entre 1982 e 1985 à Boussac Saint Frères, um importante fabricante de têxteis, de vestuário e de produtos de papel, e dos quais o Governo francês informou tardiamente a Comissão por telex de 22 de Março e carta de 23 de Agosto de 1984 e, no âmbito do processo previsto no n.o 2 do artigo 93.o, por cartas de 4 de Fevereiro, 4 de Junho e 11 de Outubro de 1985, 5 de Fevereiro, 19 de Junho e 21 de Julho de 1986, 27 de Março e 21 de Maio de 1987, são ilegais visto terem sido concedidos em violação do disposto no n.o 3 do artigo 93.o do Tratado CEE. Além disso, estes auxílios são incompatíveis com o mercado comum, na acepção do artigo 92.o do Tratado CEE.»

O artigo 2.o da decisão exigia que dos 685,86 milhões de FF pagos, fosse restituída uma importância global de 338, 56 milhões de FF.

Fundamentos invocados

14.

Mediante recurso interposto para o Tribunal em 4 de Outubro de 1987, a República Francesa requer a anulação desta decisão, baseando-se em quatro tipos de fundamentos: começa por invocar uma série de questões processuais; em segundo lugar, considera que a decisão violou o artigo 190.o do Tratado na medida em que a sua fundamentação é, em diversos aspectos, insuficiente; em terceiro lugar, defende que a decisão é em vários pontos contrária ao artigo 92.o do Tratado; finalmente, entende que a decisão viola o princípio da proporcionalidade.

15.

A Comissão, apoiada pelo Reino Unido, rejeita todos estes fundamentos. Vou analisá-los sucessivamente, observando em cada caso a ordem seguida pelo recurso da República Francesa.

I — Questões processuais

16.

Comecemos então pelas questões processuais invocadas pelo Governo francês.

Notificação

17.

O Governo francês alega, de facto, em primeiro lugar que, mesmo que as medidas constituíssem auxílios que lhe competisse notificar, o que contesta, deu cumprimento às obrigações que lhe incumbem por força do n.o 3 do artigo 93.o Este artigo dispõe:

«Para que possa apresentar as suas observações, deve a Comissão ser informada atempadamente dos projectos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios. Se a Comissão considerar que determinado projecto de auxílio não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 92.o, deve sem demora dar início ao procedimento previsto no número anterior. O Estado-membro em causa não pode pôr em execução as medidas projectadas antes de tal procedimento ter sido objecto de uma decisão final.»

18.

O n.o 3 do artigo 93.o exige assim que os auxílios projectados sejam notificados à Comissão antes dę serem postos em execução. A ideia avançada pelo Governo francês, segundo a qual este teria cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do h.o 3 do artigo 93.o, não é de aceitar, por ser evidente que a Comissão não foi antecipadamente informada dos auxílios concedidos. Os auxílios foram atribuídos entre 1982 e 1985 e a primeira referência feita pela França ao facto de terem sido concedidos auxílios figurava na carta de 22 de Março de 1984. Como já referi, essa carta dizia respeito à assistência financeira à Peaudouce, filial da Boussac, que não está em causa no presente processo, e não incluía qualquer referência às diversas medidas em causa. A primeira indicação relativa às medidas em questão foi fornecida na carta de 22 de Agosto de 1984, mas nenhuma verdadeira notificação foi efectuada nessa altura ou posteriormente, e só na nota enviada à Comissão em 21 de Julho de 1986, isto é, mais de dezoito meses após a Comissão ter dado início ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o, todos os auxílios foram objecto de uma descrição pormenorizada num único memorando. Nestas circunstâncias, considero que a República Francesa manifestamente não cumpriu a obrigação de informar atempadamente a Comissão sobre a concessão dos auxílios.

19.

Quanto ao argumento do Governo francês nos termos do qual a Comissão não pode fixar os requisitos formais de notificação, que apenas podem ser aprovados pelo Conselho, nos termos do artigo 94.o do Tratado, este argumento não lhe aproveita dado que não efectuou neste caso qualquer notificação, seja sob que forma for. A posição do Governo francês, segundo a qual as orientações fornecidas na carta da Comissão de 2 de Outubro de 1981 relativamente à forma de notificação se devem considerar indicativas e não vinculantes, não é, pois, de acolher. De qualquer modo, a obrigação de notificar os projectos de auxílios é de tal modo importante para o funcionamento do mercado comum que, na falta de regulamentação do Conselho sobre a matéria, a obrigação deve obviamente ser rigorosamente respeitada, tanto material como formalmente, importando sobretudo que resulte claramente da notificação que esta se destina a permitir à Comissão apresentar as suas observações, nos termos do n.o 3 do artigo 93.o, e, eventualmente, dar início ao procedimento previsto no n.o 2 do mesmo artigo antes de os projectos de auxílio serem postos em execução. Considero igualmente que, como alegou o Reino Unido, o respeito das orientações dadas pela Comissão na sua carta de 2 de Outubro de 1981 relativa às informações de que necessita para poder desempenhar as funções que lhe são atribuídas pelo n.o 3 do artigo 93.o, constitui um elemento a ter em conta para determinar se um Estado-membro cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, tendo igualmente presente o artigo 5.o

Demora da Comissão

20.

O Governo francês queixa-se em seguida da demora da Comissão. Começa por afirmar que a Comissão não respeitou as exigências impostas pelo Tribunal no processo 120/73, Lorenz/República Federal da Alemanha (Recueil 1973, p. 1471) e no processo 84/82, República Federal da Alemanha/Comissão (Recueil 1984, p. 1451). Neles, o Tribunal considerou que a Comissão deve actuar diligentemente e sem demora durante a fase preliminar do procedimento previsto no n. 3 do artigo 93.o, devendo tomar posição dentro de um prazo razoável, que o Tribunal fixou em dois meses, expirado o qual o Estado-membro em questão poderá pôr em execução o auxílio projectado, após prévia comunicação à Comissão. Se a Comissão considerar, após o exame preliminar, que os auxílios não são compatíveis com o mercado comum, deverá dar início sem demora ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o O Governo francês defende, no caso em apreço, que a Comissão foi informada das medidas em 22 de Março de 1984, tendo apenas dado início ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o em 3 de Dezembro de 1984. No entanto, a carta de 22 de Março de 1984 dizia respeito, como já referi, a medidas que não estão em causa no presente processo, e as informações posteriores apenas foram fornecidas depois de a intervenção financeira em causa ter sido efectuada. Em consequência, o Governo francês não pode invocar os princípios estabelecidos pelo Tribunal relativamente a projectos de auxílios devidamente notificados com antecedência.

21.

A França alega igualmente que a decisão da Comissão se encontra viciada pela demora em actuar e que essa demora permitira criar a expectativa legítima de que a Comissão acabaria por não se opor aos auxílios. Uma grande demora da Comissão em responder pode, de facto, gerar tal expectativa legítima (ver acórdão de 24 de Novembro de 1987, Rijn-Schelde-Verolme Machinefabrieken en Scheepswerven NWComissão, 223/85, Colect., p. 4617). Ainda que a demora verificada neste processo fosse efectivamente grande, ela deveu-se em larga medida ao comportamento das autoridades francesas. Como já se referiu, a Comissão não recebeu, antes de 22 de Agosto de 1984, quaisquer informações sobre as intervenções do IDI e da Sopari na Boussac. Em 1985 e grande parte de 1986, a Comissão deparou com dificuldades para obter informações coerentes das autoridades francesas e, como já referi, foi apenas em 21 de Julho de 1986 que se conheceu o total dos auxílios concedidos. A carta do comissário Sutherland de 4 de Dezembro de 1986, enviada em resposta ao ministro francês da Indústria, indica claramente que, na sua qualidade de membro da Comissão encarregado da concorrência, tinha a intenção de recomendar à Comissão uma decisão negativa aquando da reunião desta de 17 de Dezembro de 1986. Ressalta dos factos descritos que a restante demora resultou da insistência das próprias autoridades francesas, não tendo estas, em meu entender, o direito de criticar essa demora. Além disso, mesmo quando o ministro da Indústria francês e mais tarde o primeiro-ministro insistiram na necessidade de uma maior discussão e clarificação, o presidente da Comissão tornou claro na sua carta de 20 de Janeiro de 1987, dirigida ao primeiro-ministro francês, que, para a Comissão, essa discussão se limitaria a determinar o montante exacto dos auxílios concedidos e as modalidades da respectiva restituição, e não a apurar se os auxílios tinham ou não sido ilegais. Na sequência dos dois novos memorandos do interlocutor francês, para o que a Comissão também teve de insistir, esta adoptou finalmente a sua decisão em 15 de Julho de 1987.

22.

Nestas condições, a Comissão não pode, em meu entender, ser criticada pela demora verificada na primeira fase do período em questão, decorrida até Julho de 1986, dado que não podia obter informações completas e exactas sobre as operações em causa; e mesmo que após essa data pudesse actuar mais rapidamente, e talvez também mais energicamente, em resposta à insistência do Governo francês, este não tem o direito de criticar neste particular a demora verificada, e ainda menos de invocar expectativas legítimas.

O direito de audiência

23.

O Governo francês considera que os «direitos da defesa» não foram respeitados pela Comissão, na medida em que esta não divulgou as observações que recebera de terceiros interessados, no âmbito do procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o Verifica-se que a Comissão recebeu observações de quatro Estados-membros, seis federações e uma empresa. É pacífico que o direito de audiência constitui um princípio fundamental do direito comunitário, tendo o Tribunal afirmado, no processo 259/85, República Francesa/Comissão (Colect. 1987, p. 4393), na esteira de acórdãos anteriores proferidos nos processos 234/84 e 40/85, Reino da Bélgica/Comissão (Colect., 1986, p. 2263 e 2321), que este princípio exige que ao Estado-membro em questão seja dada a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista sobre as observações apresentadas por terceiros interessados, nos termos do n.o 2 do artigo 93.o, e nas quais a Comissão tenciona basear a sua decisão. O Tribunal declarou ainda que, na medida em que ao Estado-membro não foi dada a possibilidade de comentar essas observações, a Comissão não pode utilizá-las como fundamento da sua decisão contra esse Estado. Dado que o Tribunal de Justiça remeteu, no processo 259/85, República Francesa/Comissão, para observações «nas quais a Comissão pretende basear a sua decisão» (uma formulação ligeiramente diferente da utilizada nos processos referidos intentados pela Bélgica), pode haver lugar a divergências sobre o alcance exacto dó princípio e a sua aplicação aos factos. Podem igualmente surgir, em alguns casos, dificuldades práticas do tipo daquelas a que a Comissão aludiu na audiência, no caso de terceiros serem impedidos de apresentar observações. Em meu entender, compete à Comissão resolver essas dificuldades, dado que está vinculada a observar escrupulosamente o procedimento correcto nos termos do n.o 2 do artigo 93.o, incluindo o respeito dos direitos do Estado-membro em questão, tal como os Estados-membros devem cumprir escrupulosamente as obrigações que lhes incumbem por força do n.o 3 do artigo 93.o

24.

No caso em apreço, considero que a Comissão não seguiu o procedimento correcto. No entanto, não é necessário insistir neste ponto, dado que esta irregularidade não implica a anulabilidade da decisão da Comissão. O Tribunal de Justiça indicou claramente no acórdão República Francesa/Comissão, 259/85, já citado, que, para que tal violação dos direitos da defesa implique a anulação, deve provar-se que, não se verificando essa irregularidade, o procedimento poderia ter tido um desfecho diferente. No caso em apreço, a Comissão propôs, numa fase avançada do processo, apresentar as observações em questão, e fê-lo, de facto, em resposta a um pedido do Tribunal. Ainda que isso não sane, evidentemente, a irregularidade, ressalta claramente da leitura dessas observações que elas nada acrescentam àquilo de que a Comissão tinha conhecimento; nem foi sugerido pelo Governo francês, depois de as observações terem sido finalmente comunicadas, que estas podiam ter alterado o resultado do processo. Tal afirmação seria, de qualquer modo, difícil de sustentar, tendo em conta os contactos estreitos e demorados entre a Comissão e as autoridades francesas nas fases mais adiantadas do processo. A decisão da Comissão não me parece, assim, dever ser anulada com base neste fundamento.

Efeitos da falta de notificação

25.

A última questão processual invocada pelo Governo francês diz respeito aos efeitos da falta de notificação de um projecto de auxílio. O problema colocado é o da extensão dos poderes de que a Comissão dispõe nas situações em que um Estado-membro não cumpre a obrigação de notificar um projecto de auxílios, nos termos do n.o 3 do artigo 93.o do Tratado. Esta questão foi abordada em diversos processos actualmente pendentes no Tribunal, tendo sido completamente exposta nas conclusões que o advo-gado-geral Tesauro apresentou no processo 142/87, Reino da Bélgica/Comissão. Limitar-me-ei a discutir a questão na parte que importa decidir no caso em apreço. O problema coloca-se aqui da seguinte forma: no dispositivo da sua decisão, a Comissão afirmou que os auxílios em causa «são ilegais visto terem sido concedidos em violação do disposto no n.o 3 do artigo 93.o do Tratado CEE». A Comissão prossegue afirmando, como que subsidiariamente, que as medidas eram igualmente incompatíveis com o mercado comum na acepção do artigo 92.o Na fundamentação da decisão (ponto III), a Comissão afirmou:

«Assim sendo, todos estes auxílios deviam ter sido notificados à Comissão, tal como previsto no n.o 3 do artigo 93.o Uma vez que o Governo francês não notificou previamente os auxílios em questão, a Comissão não pôde apresentar as suas observações relativamente às medidas antes da sua aplicação. Por conseguinte, os auxílios são ilegais face ao direito comunitário a partir do momento em que foram postos em prática. A situação decorrente do não cumprimento das obrigações em causa é especialmente grave dado que os auxílios já foram pagos ao beneficiário. Acresce ainda que, tal como confirmado pelo Governo francês, 290 milhões de FF foram concedidos mesmo depois de a Comissão ter dado início, em 21 de Novembro de 1984, ao processo formal de exame nos termos do n.o 2 do artigo 93.o do Tratado CEE. No presente caso, todos os auxílios são considerados ilegais face ao direito comunitário. A este respeito, é necessário recordar que, perante o caracter imperativo e de ordem pública das regras de processo, tal como previstas pelo n.o 3 do artigo 93.o e cujo efeito directo foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 19 de Junho de 1973 processo 77/72), a ilegalidade dos auxílios em causa não pode ser sanada a posteriori. O carácter ilegal de todos os auxílios em causa advém do incumprimento das normas de processo fixadas no n.o 3 do artigo 93.o Além disso, estes auxílios são incompatíveis com o mercado comum na acepção do artigo 92.o do Tratado CEE.

Além disso, em casos de auxílios incompatíveis com o mercado comum, a Comissão, fazendo uso da possibilidade que lhe foi conferida pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 12 de Julho de 1973, proferido no processo 70/72, confirmado no acórdão de 24 de Fevereiro de 1987, proferido no processo 310/85, pode obrigar os Estados-membros a recuperarem dos beneficiários o montante de qualquer auxílio ilegalmente concedido.»

26.

Na petição de recurso, o Governo francês caracteriza a fundamentação da Comissão da seguinte forma: a inobservância das regras processuais estabelecidas no n.o 3 do artigo 93.o do Tratado torna as medidas em questão ilegais «per se» e a título definitivo, de forma que o vício já não pode ser sanado. A ilegalidade por vício de forma torna, assim, inútil qualquer análise do mérito da questão e justifica, por si só, a sanção da restituição.

27.

O Governo francês contesta que as medidas em questão possam ser consideradas ilegais com base num vício processual. Alega que a fundamentação da Comissão é ilógica: embora tenha afirmado que era desnecessária uma análise da questão de fundo, dada a ilegalidade «per se» dos auxílios, a Comissão procedeu de facto a tal exame. Além disso, a Comissão violou os princípios da igualdade de tratamento e da tutela da confiança legítima ao suscitar o problema da ilegalidade per se relativamente a uma violação de regras processuais verificada quatro ou cinco anos antes. O Governo francês considera resultar da economia dos n.os 2 e 3 do artigo 92.o, bem como da jurisprudência do Tribunal, que a Comissão deve proceder a uma análise da questão de fundo antes de declarar que os auxílios são ilegais. Acrescenta na réplica que o facto de não efectuar tal análise pode dar origem a que auxílios perfeitamente aceitáveis sejam rejeitados por meras razões de forma.

28.

Deve notar-se que a interpretação dada pelo Governo francês à fundamentação da Comissão não corresponde exactamente à que se encontra efectivamente exposta na decisão: ressalta, em especial, do último parágrafo da acima citada passagem da decisão que a Comissão invoca conio fundamento da restituição não a violação do n.o 3 do artigo 93.o, mas a alegada incompatibilidade dos auxílios com o mercado comum.

29.

No entanto, a fundamentação da Comissão, tal como ressalta das suas alegações neste processo, aproxima-se bastante da versão dada pelo Governo francês. Na contestação, a Comissão alega que a violação de regras processuais é totalmente distinta da violação das regras materiais, constituindo um fundamento autónomo de ilegalidade, uma forma de ilegalidade «per se» que, como igualmente referiu na fundamentação da decisão, não pode ser sanada a posteriori. A Comissão parece aqui considerar que, em tal caso, ela, e portanto o Tribunal de Justiça, não pode examinar a compatibilidade dos auxílios. De facto, a Comissão observa que considera importante que o Tribunal de Justiça tire todas as consequências da violação das regras processuais e não proceda a uma análise do fundo da questão. Esta posição (que a Comissão admite ser nova) traduzir-se-ia, no seu entender, em importantes economias de trabalho e de tempo ao nível do processo de investigação de auxílios nos termos do n.o 2 do artigo 93.o Dissuadiria ainda os Estados-membros de não cumprirem a obrigação de notificar os projectos de auxílios e contribuiria «para resolver os problemas relacionados com a restituição dos auxílios».

30.

Na sua intervenção, o Reino Unido rebate o ponto de vista da Comissão, segundo o qual a violação das regras processuais estabelecidas no n.o 3 do artigo 93.o determina a ilegalidade «per se» dos auxílios. Alega que a jurisprudência do Tribunal relativa ao efeito directo do n.o 3, última parte, do artigo 93.o é perfeitamente compatível com a tese de que a falta de notificação de auxílios por um Estado-membro não dispensa a Comissão da sua obrigação de verificar se esses auxílios são proibidos pelo artigo 92.o Além disso, a tese de que um auxílio é ilegal pelo simples facto da falta de notificação é contrária à letra e ao espírito do artigo 93.o, podendo determinar a condenação de um Estado-membro sempre que este não tenha efectuado a notificação, qualquer que seja a natureza do pretenso auxílio e mesmo quando a falta de notificação resulta de uma omissão involuntária. O Reino Unido refere ainda não ser necessário que o Tribunal se pronuncie sobre este problema no caso em apreço, dado que os pagamentos são de tal natureza e importância que o Tribunal pode facilmente determinar se eles são susceptíveis de afectar as trocas entre os Estados-membros e, igualmente, se a Comissão dispunha de informações suficientes para fundamentar a sua conclusão de que as intervenções financeiras constituíam auxílios incompatíveis com o mercado comum.

31.

Ainda que interessante, a afirmação do Reino Unido segundo a qual não é necessário que o Tribunal se pronuncie sobre o problema levantado pela República Francesa não me parece aceitável. A decisão da Comissão que é impugnada neste processo, baseava-se fundamentalmente, de acordo com o seu artigo 1.o, na violação do disposto no n.o 3 do artigo 93.o do Tratado. Se os argumentos invocados pelo Governo francês relativamente a este ponto são exactos, a decisão da Comissão deve ser anulada, pelo menos nesta parte. Além disso, tendo em conta a importância que o problema da ilegalidade «per se» e as suas consequências assumiu durante a discussão no Tribunal, designadamente na audiência, sinto-me obrigado, de qualquer modo, a tomar posição.

32.

Antes de o fazer, gostaria de relembrar que, embora o artigo 93.o não atribua, à primeira vista, poderes à Comissão para dar início ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o quando um auxílio não tenha sido notificado, o Tribunal declarou no processo 173/73, Itália/Comissão (Recueil 1974, p. 709), que a Comissão dispunha desse poder. O Tribunal declarou ainda que, em tal caso, a Comissão não era obrigada a seguir o procedimento do n.o 2 do artigo 93.o em todos os aspectos: designadamente, não era exigida a fixação de um prazo parą.dar cumprimento à decisão. O Tribunal de Justiça considerou (n.o 14) que a interpretação do artigo 93.o, no sentido de que um novo auxílio concedido com violação do n.o 3 do artigo 93.o devia estar sujeito apenas ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o, incluindo a fixação obrigatória de um prazo limite, era

«inaceitável, dado que conduziria a privar do seu caracter imperativo o disposto no n.o 3 do artigo 93.o, encorajando mesmo o incumprimento desta disposição» (tradução provisória).

O Tribunal acrescentou (n.o 16):

«que, pelo contrário, o espírito e a economia do artigo 93.o implicam que a Comissão possa, quando verifique que um auxílio foi instituído ou alterado com violação no disposto n.o 3, e designadamente quando considere que esse auxílio não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 92.o, decidir que o Estado interessado deverá suprimi-lo ou alterá-lo, sem ter de estabelecer um prazo para tal, podendo recorrer ao Tribunal se o Estado em questão não actuar com a diligência exigida;

nesse caso, as vias processuais à disposição da Comissão não se restringem ao processo mais complexo do artigo 169.o» (tradução provisória).

33.

A questão decidida no processo 173/73 era a de saber se a Comissão podia, na verdade, utilizar o procedimento do n.o 2 do artigo 93.o e, em caso afirmativo, sujeito a que alterações quando um auxílio não tivesse sido notificado. Contudo, podem igualmente retirar-se dos referidos excertos do acórdão ensinamentos úteis para a análise do problema agora em apreço, que é o de saber se a declaração de ilegalidade nos termos do n.o 2 do artigo 93.o pode basear-se numa violação do n.o 3 do mesmo artigo.

34.

É evidente que o n.o 2 do artigo 93.o não confere expressamente tal poder. De acordo com a sua letra, esta disposição permite à Comissão reprovar auxílios com base na sua incompatibilidade com o mercado comum, mas não com o fundamento de violação do n.o 3 do artigo 93.o Tal como o Tribunal referiu no processo 173/73, o problema deve no entanto ser analisado à luz do sistema e objectivos do artigo 93.o, e designadamente dos seus n.os 2 e 3. O n.o 2 do artigo 93.o institui um processo de exame prévio pela Comissão dos projectos de auxílios, a fim de prevenir a criação de auxílios incompatíveis com o mercado comum. Para tal, o n.o 3 do artigo 93.o exige que os Estados-membros notifiquem à Comissão os projectos de novos auxílios, não procedendo à sua execução enquanto a Comissão não os aprovar. Seria incompatível com este sistema e objectivo o facto de um Estado-membro poder ignorar as exigencias do n.o 3 do artigo 93.o sem recear uma sanção.

35.

Além disso, é já evidente que os poderes conferidos à Comissão pelo n.o 2 do artigo 93.o não podem ser limitados pelo teor literal do artigo. Por exemplo, a redacção do n.o 2 do artigo 93.o, que confere poderes à Comissão para ordenar a supressão ou modificação dos auxílios, parece referir-se apenas aos auxílios existentes, não sendo no entanto objecto de contestação os poderes da Comissão para actuar ao abrigo desta disposição relativamente aos projectos de auxílios. Tal como o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente no processo 173/73, Itália/Comissão, os termos do n.o 2 do artigo 93.o não devem também ser interpretados literalmente no que respeita aos auxílios postos em prática sem notificação, dado que, como declarou o Tribunal, a Comissão não é obrigada a fixar um prazo para cumprimento da sua decisão. Acresce que os próprios termos do n.o 2 do artigo 93.o não conferem evidentemente à Comissão o poder de ordenar a restituição dos auxílios, poder esse que, todavia, o Tribunal reconheceu. Todas estas considerações dão a entender, no mínimo, que os poderes conferidos à Comissão pelo n.o 2 do artigo 93.o não devem ser interpretados de forma restritiva.

36.

Deve igualmente rejeitar-se o argumento segundo o qual as obrigações impostas aos Estados-membros pelo n.o 3 do artigo 93.o são apenas de natureza processual, não podendo delas deduzir-se qualquer proibição de direito substantivo. Desde logo, pode referir-se que o n.o 1 do artigo 92.o se aplica expressamente a quaisquer auxílios do tipo aí indicado, «salvo disposição em contrário do presente Tratado». Pode até alegar-se que os auxílios executados com violação do n.o 3 do artigo 93.o não foram concedidos «nos termos previstos do Tratado», sendo assim proibidos pelo n.o 1 do artigo 92.o como incompatíveis com o mercado comum apenas com esse fundamento.

37.

Mas existem outras considerações de maior importância que vêm corroborar a conclusão de que o incumprimento por um Estado-membro das obrigações que lhe incumbem por força do n.o 3 do artigo 93.o pode ter consequências de direito substantivo. Em meu entender, tal resulta implicitamente da jurisprudência elaborada pelo Tribunal a propósito do efeito directo da última parte do n.o 3 do artigo 93.o, que, embora não directamente relevante no caso em apreço, é legitimamente invocada pela Comissão, apesar de esta não explicar o seu significado. O Tribunal de Justiça afirmou (no n.o 8) no supracitado acórdão 120/73, Lorenz, que:

«... o efeito directo da proibição se aplica a qualquer auxílio que tenha sido executado sem ser notificado e, em caso de notificação, opera durante a fase preliminar e, no caso de a Comissão dar início ao processo contraditório, até à decisão final» (tradução provisória).

Daqui resulta, em meu entender, que em caso de violação da proibição, quer através da aplicação de novos auxílios sem notificação quer por auxílios notificados serem aplicados antes de aprovados pela Comissão, os tribunais nacionais, a pedido de qualquer interessado, têm o dever de aplicar a proibição. É óbvio que, ao aplicarem essa proibição, os tribunais nacionais não estão limitados a medidas processuais, consistentes em bloquear provisoriamente a aplicação dos auxílios. Pelo contrário, é-lhes exigido que decidam no sentido de que qualquer intervenção já efectuada com violação do disposto no artigo 93.o, in fine, é ilegal, e que decretem todas as providências adequadas possíveis, impedindo a restituição dos montantes já pagos. Apenas desta forma podem satisfazer a exigência de proporcionar uma via jurisdicional eficaz, exigência que é inerente à noção de direito de aplicação directa.

38.

Se os tribunais nacionais podem declarar que os auxílios aplicados sem notificação são ilegais por falta de notificação, deverá, em meu entender, permitir-se igualmente à Comissão, que detém a responsabilidade principal pela fiscalização dos auxílios estatais, decidir que tais auxílios são ilegais apenas com esse fundamento.

39.

Contudo, o elemento essencial para determinar o âmbito dos poderes da Comissão parece-me encontrar-se no princípio do efeito útil. Este princípio exige uma interpretação ampla desses poderes, tendo em conta a importância essencial que reveste o disposto no artigo 93.o para garantir o bom funcionamento do mercado comum, importância que o Tribunal salientou por diversas vezes (ver, por exemplo, processos apensos 91/83 e 127/83, Heineken Brouwerijen BV/Inspecteur der Vennootschapsbelasting, n.o 20, Recueil 1984, p. 3435). Na audiência, o agente da Comissão referiu-se às dificuldades colocadas pelas repetidas faltas de cumprimento, por determinados Estados-membros, das obrigações que lhes incumbem pela força do n.o 3 do artigo 93.o do Tratado. E evidente que, em tais casos, a Comissão se encontra impedida de exercer os poderes que lhe são conferidos no n.o 2 do artigo 93.o do Tratado. O próprio facto de o Tratado obrigar os Estados-membros a não porem em execução os projectos de auxílios enquanto estes não forem aprovados pela Comissão permite, em meu entender, concluir legitimamente que a Comissão se deve considerar investida dos mais amplos poderes quando um Estado-membro actue ilegalmente.

40.

Deve lembrar-se que o Tribunal de Justiça se baseou na consideração do efeito útil no processo 173/73, Itália/Comissão, ao decidir que a Comissão não tem necessidade de fixar um prazo quando recorre ao procedimento previsto no n.o 2 do artigo 93.o relativamente a auxílios postos em execução sem terem sido notificados. Uma interpretação extensiva do Tratado, considerada necessária para garantir o efeito útil daquelas disposições, foi também adaptada no quadro das normas imperativas sobre auxílios estatais, quando o Tribunal admitiu que a Comissão pode requerer e obter uma medida provisória contra um Estado-membro em processos intentados com base no artigo 93.o ou no artigo 169.o: ver os processos 31/77 R e 53/77 R, Comissão/Reino Unido e Reino Unido/Comissão (Recueil 1977, p. 921), e o processo 61/77 R, Comissão/Irlanda (Recueil 1977, p. 1411). No processo 70/72, Comissão/República Federal da Alemanha, n.o 20 (Recueil 1973, p. 813), o Tribunal declarou, além disso, que o n.o 3 do artigo 93.o«implica, para a Comissão, o poder de adoptar, quando necessario, medidas provisorias imediatas». Acrescente-se que o Tribunal adoptou um critério semelhante no que respeita aos procedimentos desencadeados pela Comissão com vista à aplicação dos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE, os quais se integram no mesmo capítulo do Tratado, com a epígrafe «As regras de concorrência», tal como os artigos 92.o a 94.o relativos aos auxílios concedidos pelos estados; ver, por exemplo, processo 792/79 R Camera Care Ltd/Comissão (Recueil 1980, p. 119).

41.

Embora no presente caso a Comissão tenha incluído numa mesma decisão as suas conclusões relativamente à ilegalidade por violação do n.o 3 do artigo 93.o e por incompatibilidade com o mercado comum, ela pode, em meu entender, adoptar uma decisão provisória a partir do momento em que apura uma violação do n.o 3 do artigo 93.o, podendo posteriormente analisar a questão de fundo da compatibilidade dos auxílios com o mercado comum.

42.

Por estas razões, a Comissão parece-me ter poderes para adoptar, ao abrigo do n.o 2 do artigo 93.o, uma decisão que declare que os auxílios aplicados sem notificação são, por esse facto, ilegais. Não me convence o argumento invocado pelos governos francês e britânico, nos termos do qual este entendimento podia levar à reprovação de auxílios que, de facto, não são incompatíveis com o mercado comum: a via para evitar este problema potencial é precisamente o processo de notificação previsto no n.o 3 do artigo 93.o De qualquer modo, como já se referiu, a ilegalidade material dos auxílios por violação dos requisitos do n.o 3 do artigo 93.o pode já ser invocada perante os tribunais nacionais, independentemente da questão de saber se tais auxílios podem considerar-se compatíveis com o mercado comum com base numa interpretação adequada.

43.

Relativamente à questão de saber se uma declaração de ilegalidade por violação do n.o 3 do artigo 93.o pode, por si só, servir de base à restituição, não parece ser necessário que o Tribunal se pronuncie no caso em apreço sobre este ponto, dado que a Comissão não invocou na decisão impugnada esse facto como fundamento da restituição. Como já se referiu, embora a argumentação da Comissão relativamente a este problema não seja isenta de ambiguidade, a sua decisão baseia a exigência da restituição não na ilegalidade per se do auxílio, mas na incompatibilidade deste com o mercado comum. No entanto, se fosse necessário decidir esta questão, eu partilharia o ponto de vista expresso pelo advogado-geral Tesauro no processo 142/87, Bélgica/Comissão, nos termos do qual a Comissão tem o poder de ordenar a restituição de auxílios exclusivamente com base na violação do n.o 3 do artigo 93.o

44.

Outra questão é a de saber se, após ter declarado os auxílios ilegais por falta da notificação prevista no n.o 3 do artigo 93.o, a Comissão pode ou deve proceder à análise da validade material do auxílio. Contrariamente à posição adoptada no caso em apreço pela Comissão, considero que esta pode proceder ao exame da compatibilidade de auxílios não notificados. Na falta de quaisquer normas de execução adoptadas nos termos do artigo 94.o, deve considerar-se que a Comissão dispõe de amplos poderes e da maior flexibilidade para o seu exercício. A situação relativamente ao artigo 93.o é distinta da respeitante ao artigo 85.o do Tratado, no âmbito do qual as normas de execução contidas no artigo 6.o do Regulamento n.o 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de aplicação dos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE (JO 13, p. 104), impedem expressamente a Comissão de conceder uma isenção a um acordo não notificado: ver processo 30/78, Distillers/Comissão (Recueil 1980, p. 2229). Em meu entender, o Tratado não exige que a Comissão proceda em todos os casos à análise da compatibilidade dos auxílios (e este é o único ponto em que me permito discordar das conclusões do advogado-geral Tesauro no processo Reino da Bélgica/Comissão), nem a impede de o fazer quando tal seja conveniente. Ao decidir se deve analisar a compatibilidade com o mercado comum de auxílios não notificados, a Comissão pode ter em conta factores como a natureza da falta de notificação, a natureza dos auxílios e quaisquer consequências que a falta de notificação possa já ter causado, como a questão de saber se os auxílios foram já restituídos. Como refere o advogado-geral Tesauro no processo 142/87, Reino da Bélgica/Comissão (n.o 12), pode por vezes ser importante, no interesse geral, apurar se os auxílios são ou não materialmente legais. Relativamente à tese da Comissão, segundo a qual nem ela própria nem o Tribunal podem analisar a compatibilidade de auxílios não notificados, escusado será dizer que, quando a Comissão opte por analisar a compatibilidade dos auxílios, a sua decisão a este respeito se encontra sujeita à fiscalização do Tribunal de Justiça, mesmo que a Comissão tenha concluído igualmente que os auxílios são ilegais por violarem o n.o 3 do artigo 93.o

45.

Resumindo, no caso em apreço, a Comissão baseou a sua decisão sobre a ilegalidade dos auxílios quer na violação do n.o 3 do artigo 93.o quer na incompatibilidade destes com o mercado comum. Considero que tinha o direito de basear a decisão em ambos os fundamentos. A Comissão baseou a sua ordem de restituição no último fundamento, como claramente podia fazer. Ainda que a fundamentação e os argumentos da Comissão sejam, em alguns pontos, susceptíveis de crítica, ela é, em meu entender, convincente relativamente aos pontos essenciais. Considero assim ser de rejeitar a argumentação final apresentada pela República Francesa a respeito das questões processuais suscitadas no caso em apreço.

II — A fundamentação da decisão da Comissão

46.

O Governo francês defende que, em diversos aspectos, a decisão da Comissão se encontra fundamentada de forma inexacta ou insuficiente.

Parte de mercado e efeitos sobre o comércio

47.

O Governo francês começa por alegar que a decisão da Comissão contém afirmações inexactas relativamente à parte de mercado da empresa e às trocas comerciais. Critica, designadamente, o facto de a Comissão afirmar na sua decisão que, «entre 1982 e o final de 1984, período em que os auxílios foram concedidos, as exportações de têxteis para outros Estados-membros aumentaram em 32 %». O Governo francês refere-se igualmente à afirmação da Comissão de que cerca de 40 % da produção têxtil francesa é exportada, observando que essa percentagem é de apenas 16 % para a Boussac, que além disso detém menos de 0,5 % do mercado europeu. Em meu entender, estes aspectos dizem menos respeito à pertinência da fundamentação da Comissão do que à sua apreciação do efeito dos auxílios nas trocas e na concorrência, questão que será adiante analisada (nos n.os 57 a 63).

A alegada não indicação pela Comissão de como a liquidação da empresa era preferível à sua reestruturação

48.

O Governo francês entende, baseando-se numa passagem do acórdão 323/82, Intermills/Comissão (Recueil 1984, p. 3809, especialmente a p. 3832, n.o 39), que a Comissão «não demonstrou por que a acção da recorrente no mercado, na sequência da reorientação da sua produção graças à concessão do auxílio, era de natureza a alterar as condições das trocas a ponto de o desaparecimento da empresa ser preferível ao seu saneamento» (tradução provisória).

49.

Esta passagem do acórdão foi, no entanto, retirada do seu contexto. Quando integrada no contexto global da parte relevante do acórdão Intermills (n.os 34 a 39), torna-se evidente que a passagem reflecte o circunstancialismo específico daquele processo, não lhe podendo ser atribuído um significado mais amplo. No processo Intermills, o Tribunal considerou que a Comissão não tinha demonstrado de que modo um auxílio sob a forma de participação no capital de uma empresa tinha afectado negativamente as condições da concorrência numa medida contrária ao interesse comum em circunstâncias em que a decisão impugnada da Comissão tinha reconhecido ter-se efectuado uma operação de reestruturação, e, além disso, não tendo a Comissão explicado por que razão o referido auxílio não podia ser considerado parte integrante da operação de reestruturação. No caso presente, a Comissão indicou exaustivamente, nos pontos V a VIII da sua decisão, as razões pelas quais concluíra não haver uma verdadeira reestruturação da Boussac. Em meu entender, não existe, pois, qualquer paralelo com o processo Intermills, devendo considerar-se improcedente este fundamento.

Outras alegadas insuficiências da fundamentação

50.

Não me parece que a Comissão tenha limitado a sua apreciação, como defende o Governo francês, a um exame de rotina da compatibilidade do auxílio com as suas orientações, nem que se tenha abstido de ter em conta as reduções de efectivos e de capacidade da Boussac. Pelo contrário, a decisão revela que a Comissão considerou plenamente a aplicação das suas orientações, tendo refutado especificadamente as afirmações do governo relativas à alegada diminuição da produção.

III — Quanto ao mérito

51.

A série seguinte de fundamentos invocadas pelo Governo francês levanta questões de natureza material.

As intervenções constituem auxílios?

52.

Em primeiro lugar, o Governo francês alega que os montantes em causa não constituem auxílios na acepção do artigo 92.o do Tratado, salientando que o critério determinante foi enunciado no acórdão 234/84, Reino da Bélgica/Comissão (Colect. 1986, p. 2263), no qual o Tribunal declarou:

«No caso de uma empresa cujo capital social é detido pelas autoridades públicas, convém nomeadamente apreciar se, em circunstâncias similares, um sócio privado, baseando-se nas possibilidades de rentabilidade previsíveis, abstraindo de qualquer consideração de caracter social ou de política regional ou sectorial, teria procedido a tal entrada de capital...

... um sócio privado podia razoavelmente contribuir com o capital necessário para assegurar a sobrevivência de uma empresa que conhece dificuldades passageiras, mas que, eventualmente depois de uma reestruturação, seria capaz de reencontrar a sua rentabilidade.»

53.

O Governo francês alega que o auxílio concedido à Boussac respeita este critério. Satisfaz igualmente o critério fixado pela própria Comissão num documento relativo a participações realizadas por entidades públicas [SG(84) D 11839], na medida em que devem considerar-se concedidos «em circunstâncias que seriam aceitáveis para um investidor privado que operasse nas condições normais de uma economia de mercado». Neste contexto, o Governo francês remete para a análise efectuada pelo gabinete de peritos Arthur D. Little, que concluiu que a empresa era viável e podia, através de uma reestruturação, atingir num prazo razoável um nível de rentabilidade normal. Observa igualmente que foi adoptado um programa de reestruturação, sendo este periodicamente revisto e actualizado. O Governo francês alega ainda que foram efectuadas contribuições substanciais pelo sector privado, as quais foram ignoradas pela Comissão. E certo que alega na sua petição, com base nos números referidos no memorando de 21 de Maio de 1987 do «interlocutor», Sr. Gadonneix, que tinham sido disponibilizadas importâncias no montante de 1401 milhões de FF, sob a forma de entradas de capital, empréstimos e linhas de crédito a curto prazo, de forma que as contribuições provenientes do sector privado excederam de facto os montantes provenientes de fundos públicos. Por último, o Governo francês contesta igualmente a decisão da Comissão pelo facto de esta não mencionar o facto de o investidor privado, que adquiriu a empresa por um franco simbólico, ter mais tarde, no âmbito dos acordos de transmissão da empresa, entrado igualmente com o montante de 400 milhões de FF para o capital desta.

54.

O Governo francês tem razão ao salientar que o critério relevante se encontra estabelecido no processo 234/84. No entanto, considero que deve igualmente ter-se em conta o facto de, nesse processo, o Tribunal, após o excerto citado, prosseguir declarando que a Comissão tinha o direito de considerar pouco provável que a empresa em causa conseguisse obter as importâncias indispensáveis à recuperação da empresa nos mercados privados de capitais, designadamente pelo facto de a empresa vir acusando nos últimos anos prejuízos significativos e porque os seus produtos tinham de ser vendidos num mercado caracterizado por capacidades excedentárias. Considerações semelhantes são obviamente aplicáveis ao caso em apreço.

55.

Relativamente à questão das intervenções do sector privado e dos montantes específicos citados pelo Governo francês, há que reconhecer que este ponto não é especificamente abordado na decisão da Comissão e que não foi completamente respondido na contestação. Na audiência foi discutida a questão de saber se as intervenções em causa foram efectivamente financiadas pelo sector privado, dadas as relações alegadamente existentes entre as autoridades francesas e os bancos. No entanto, o que me parece decisivo é que ressalta claramente do mesmo memorando do Sr. Gadonneix, invocado pelo Governo francês, que as novas entradas em questão se inserem num projecto global de recuperação da Boussac. E razoável, talvez mesmo inevitável, concluir que essas intervenções (tendo presente a difícil situação financeira da sociedade e a situação do mercado em causa) não se teriam efectuado sem as entradas directamente provenientes dos fundos públicos. Embora tivesse sido mais conveniente que a decisão impugnada tratasse especialmente a natureza e a extensão das intervenções do sector privado, considero assim que a decisão concluiu legitimamente, no essencial, que a Boussac não poderia ter obtido nos mercados privados os capitais necessários à sua recuperação, devendo portanto as intervenções provenientes dos fundos públicos ser tidas como auxílios.

56.

Quanto às entradas dos investidores privados que adquiriram a sociedade, estas só tiveram lugar, segundo o próprio Governo francês, em finais de 1985, ou seja, depois da efectivação integral das entradas provenientes de fundos públicos, que constituem o objecto da decisão da Comissão. As entradas dos investidores privados são, assim, irrelevantes para efeitos da questão de saber se as intervenções provenientes dos fundos públicos constituem auxílios.

Os efeitos sobre as trocas comerciais e a concorrência

57.

O Governo francês alega em seguida que os auxílios concedidos à Boussac não se enquadram no n.o 1 do artigo 92.o, dado que não falsearam nem ameaçaram falsear as trocas comerciais entre os Estados-membros.

58.

No que respeita aos efeitos na concorrência, o Governo francês alega que a solução alternativa à concessão de auxílios à Boussac teria provocado uma distorção da concorrência ainda maior: caso se tivesse aceitado a liquidação da sociedade, o seu activo teria sido adquirido por empresas concorrentes a preços bastante inferiores ao valor real, o que contribuiria para perpetuar o problema das capacidades excedentárias. Alega igualmente que a Comissão não demonstrou ter a Boussac adoptado um comportamento anticoncorrencial.

59.

Não é necessário repisar estes argumentos. Para que o n.o 1 do artigo 92.o se aplique, basta apenas que um auxílio falseie ou ameace falsear a concorrência. O facto de uma solução alternativa, por exemplo admitir que uma empresa em dificuldades seja declarada falida, poder levar a distorções da concorrência mais graves que a concessão dos auxílios é irrelevante. O mesmo se diga do comportamento da empresa em questão, face ao disposto no n.o 1 do artigo 92.o

60.

Quanto aos efeitos nas trocas comerciais, o Governo francês alega que a Boussac detém uma parte muito pequena do mercado têxtil comunitário, de apenas 0,3 %. Refere ainda que a Comissão afirmou erradamente na sua decisão que as exportações da Boussac tinham aumentado em 32 % entre 1982 e 1984, esquecendo que os números inflacionados de 1984 se deveram a um aumento conjuntural da procura de linho. O Governo francês considera que a Comissão devia antes ter tomado em consideração o período 1982-1986, no decurso do qual, segundo afirma, as exportações da Boussac para outros Estados-membros diminuíram 33 % em valor real. Apresenta igualmente números que revelam, em seu entender, que durante esse período o mercado interno francês de um determinado conjunto de produtos têxteis do tipo dos fabricados pela Boussac foi progressivamente invadido por exportações provenientes de outros Estados-membros.

61.

A Comissão avalia a parte da Boussac no mercado comunitário em 0,38 %, salientando que, num mercado muito repartido e em que o produtor mais importante apenas detém 0,8 %, tal parte não é negligenciável. Salienta igualmente que a parte da Boussac é substancialmente mais importante em determinados sectores do mercado.

62.

As divergências entre as partes relativamente a estas questões não me parecem de importância decisiva. No processo 730/79, Philip Morris/Comissão (Recueil 1980, p. 2671), o Tribunal declarou (no n.o 11):

«Quando um auxílio financeiro concedido pelo Estado reforça a posição de uma empresa relativamente a outras empresas concorrentes nas trocas intracomunitárias, estas devem considerar-se afectadas pelo auxílio» (tradução provisória).

63.

No caso presente, é pacífico que a Boussac é um importante produtor comunitário, o terceiro em França e o quinto a nível comunitário. Não é igualmente contestado que a Boussac participa no comércio internacional exportando 16 % da sua produção para outros Estados-membros. Também não existem dúvidas de que os montantes dos auxílios concedidos à Boussac foram muito substanciais, tendo-lhe permitido reduzir os seus custos numa altura em que todas as empresas têxteis da Comunidade deparavam com dificuldades. Nestas condições, parece-me que a Comissão podia legitimamente concluir que os auxílios afectaram as trocas entre os Estados-membros e falsearam ou ameaçaram falsear a concorrência. Em consequência, proponho que seja considerado improcedente o fundamento baseado no n.o 1 do artigo 92.o

Os auxílios eram compatíveis com o mercado comum na acepção do n.o 3 do artigo 92.o?

64.

O n.o 3 do artigo 92.o dispõe:

«Podem ser considerados como compatíveis com o mercado comum:

a)

os auxílios destinados a promover o desenvolvimento económico das regiões em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista grave situação de subemprego;

b)

...

c)

os auxílios destinados a facilitar o desenvolvimento de certas actividades ou regiões económicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum...

d)

...».

65.

Na decisão impugnada, a Comissão declarou que os auxílios não preenchiam os requisitos necessários para uma derrogação nos termos do n.o 3, alíneas a) ou c), do artigo 92.o No que respeita ao n.o 3, alínea a), do artigo 92.o, a Comissão salientou que o nível de desemprego nas regiões a que respeitam os auxílios não era suficientemente grave. De qualquer modo, alegou, os auxílios destinavam-se a uma empresa determinada, independentemente da sua situação geográfica, não podendo assim ser considerados auxílios de carácter regional. O Governo francês entende, pelo contrário, que os auxílios foram concedidos em regiões onde o nível de desemprego é substancialmente mais elevado que a média nacional ou comunitária.

66.

Neste ponto, a Comissão tem manifestamente razão. No processo 248/84, República Federal da Alemanha/Comissão (Colect. 1987, p. 4013), o Tribunal decidiu, no n.o 19 do acórdão, que:

«... a utilização, na derrogação constante da alínea a), dos termos ‘anormalmente’ e ‘grave’ demonstra que essa derrogação apenas abrange regiões em que a situação económica é particularmente desfavorável relativamente ao conjunto da Comunidade».

O Governo francês salienta que em três das quatro regiões a que respeitam os auxílios, ou seja, Nord, Pas-de-Calais e Picardie, as taxas de desemprego se elevavam em 1986 a 13,5 %, 14,85 % e 12,53 %, respectivamente. Contudo, embora essas taxas fossem de facto um pouco superiores à média comunitária de 11,5%, não pode afirmar-se que elas indicam uma situação «extremamente desfavorável» em relação ao conjunto da Comunidade.

67.

Relativamente ao n.o 3, alínea c), do artigo 92.o, a Comissão afirmou na sua decisão que os auxílios franceses estavam sujeitos às orientações da Comissão sobre os auxílios à indústria têxtil comunitária, definidas em 1971 e 1977, bem como aos critérios especiais para os auxílios à indústria têxtil francesa fixados em 1983 como condição para a retirada pela Comissão das suas objecções aos auxílios financeiros concedidos sob a forma de redução de encargos sociais. No entender da Comissão, os auxílios concedidos à Boussac não satisfizeram nem os critérios do regime comunitário nem os do regime especial francês, designadamente porque não implicaram uma verdadeira reestruturação da empresa. O conceito de reestruturação foi definido de forma mais completa na contestação da Comissão, como a reorganização fundamental de uma empresa com vista à manutenção ou restabelecimento da sua competitividade, através de alterações fundamentais no domínio da mão-de-obra, dos meios e do processo de produção, da capacidade de produção e outros aspectos da actividade da empresa. Ainda que a Comissão tenha admitido que a Boussac fora objecto de uma reorganização que implicava, designadamente, uma redução substancial dos efectivos, considerou que as alterações não tinham ¡do além de uma mera modernização ou racionalização das actividades da empresa.

68.

No entender da Comissão, os auxílios concedidos à Boussac constituíram uma medida de recuperação que, no entanto, não satisfazia os critérios de aprovação de auxílios de recuperação definidos pela Comissão na carta enviada aos Estados-membros em 24 de Janeiro de 1979. Isso porque os auxílios não se destinavam a proporcionar uma ajuda de curto prazo a uma empresa em dificuldades, mas potencialmente competitiva, até à adopção urgente de medidas de reestruturação, mas, pelo contrário, foram concedidos durante um longo período a fim de preservar artificialmente a existência da Boussac sem qualquer exigência de uma reestruturação de base. Além disso, a Comissão considerou que os auxílios não satisfaziam o requisito negativo enunciado no n.o 3, alínea c), do artigo 92.o, na medida em que alteraram as condições das trocas comerciais de forma contrária ao interesse comum. Neste contexto, a Comissão alegou que o facto de se manter artificialmente a Boussac em actividade num mercado comunitário caracterizado por capacidade excedentária e por uma concorrência feroz deve ter enfraquecido a competitividade de outras empresas têxteis que tiveram de efectuar a necessária reorganização das suas actividades sem beneficiarem de auxílios estatais.

69.

O Governo francês, embora não contestando as orientações definidas pela Comissão, defende que estas não têm valor normativo, e que a Comissão não devia aplicar as orientações de forma rígida e mecânica, e sim proceder a um exame em concreto da legalidade dos auxílios. De qualquer forma, os auxílios concedidos à Boussac satisfaziam efectivamente os critérios enunciados nas orientações, tendo portanto a Comissão cometido um erro manifesto ao não aplicar a derrogação. Designadamente, os auxílios implicaram uma verdadeira reestruturação da empresa, como demonstram as reduções substanciais de efectivos, de capacidade e de linhas de produção. O Governo francês acrescenta que os auxílios não podem ser considerados apenas como uma medida de salvamento, dado que foram concedidos no quadro de um plano de reestruturação durante um período que pode considerar-se curto tendo em conta a extensão da reorganização.

70.

Na avaliação destes pontos de vista opostos, deve começar-se por salientar que, enquanto excepção à proibição geral enunciada no n.o 1 do artigo 92.o, a derrogação prevista no n.o 3, alínea c), do artigo 92.o deve ser interpretada e aplicada de forma restritiva. Além disso, como referiu o Tribunal no supracitado processo Philip Morris, na aplicação do n.o 3 do artigo 92.o,

«... a Comissão dispõe de um poder discricionário cujo exercício implica apreciações de ordem econòmica e social que devem ser efectuadas num contexto comunitário» (tradução provisória).

71.

Deve entender-se que tanto a definição de orientações aplicáveis à concessão de auxílios a determinados sectores da indústria como a apreciação de auxílios concretos à luz de tais orientações implicam o exercício de um poder discricionário subtraído ao controlo do Tribunal, a não ser que esse exercício se encontre viciado por erro manifesto ou exceda os limites do poder discricionário. A questão essencial discutida pelas partes no contexto do n.o 3, alínea c), do artigo 92.o é a de saber se os auxílios concedidos à Boussac implicavam uma verdadeira reestruturação da empresa. Trata-se da quinta-essência de uma questão que engloba apreciações complexas de ordem económica e social. Embora existam divergências entre as partes quanto aos elementos de prova que devem ser tidos em conta e a importância que lhes deve ser atribuída, não me parece que o Governo francês tenha conseguido provar que a apreciação feita pela Comissão da extensão da reorganização da Boussac estivesse viciada por erro manifesto. De qualquer modo, a qualificação exacta do grau de reorganização revela-se algo académica. O facto é que em 1980 existia um considerável excesso de capacidade na indústria têxtil comunitária e que todas as empresas do sector têxtil se viram forçadas a questionar o respectivo futuro. Em 1981, a Boussac Saint Frères encontrava-se em situação de falência com dívidas enormes. Em 1986, a sociedade que lhe sucedeu, a Boussac, apresentava uma pequena margem de lucros, esperando-se melhores resultados para 1987. Entretanto, montantes consideráveis dos dinheiros públicos tinham sido colocados à disposição da Boussac. Nestas condições, cabe ao Governo francês o pesado ónus de provar que os auxílios concedidos não eram acima de tudo auxílios de salvamento, ainda que, evidentemente, tenham sido concedidos sob a condição de o grupo se modernizar. Em meu entender, tal prova não foi feita.

72.

Além disso, como a Comissão referiu na sua decisão, a concessão à Boussac de auxílio de montante considerável permitiu à empresa reduzir os seus custos e reforçar assim a sua situação relativamente aos seus concorrentes na Comunidade. Dado que a Boussac era um importante produtor têxtil que exportava uma parte significativa da sua produção para outros Estados-membros e uma vez que o mercado comunitário se caracterizava, na altura dos factos, por excesso de capacidade e forte concorrência, parece-me evidente que a Comissão não excedeu os limites do seu poder discricionário ao considerar que os auxílios concedidos à Boussac alteraram as condições das trocas comerciais de maneira contrária ao interesse comum.

73.

Acrescentarei que, ao examinar a forma como a Comissão exerceu o seu poder discricionário, o Tribunal apenas pode ter em conta as informações de que dispunha a Comissão no momento em que aprovou a decisão impugnada. Assim, é do interesse dos Estados-membros providenciar no sentido de todas as informações relevantes serem comunicadas à Comissão nessa fase; e, de qualquer modo, não é permitido aos Estados-membros apresentarem ao Tribunal importantes elementos de prova novos, como fez o Governo francês neste processo.

IV — O princípio da proporcionalidade

74.

Por último, a França alega que a decisão viola o princípio geral da proporcionalidade. Em seu entender, a decisão não tem em conta os custos da reestruturação. Além disso, a decisão é desproporcionada relativamente aos objectivos de racionalização do sector têxtil, dado que, se não tivesse sido garantida a recuperação da Boussac, esta teria sido declarada falida, o que teria graves consequências não apenas para os credores mas igualmente no plano social e regional, bem como para o mercado têxtil em geral. A solução adoptada pelo Governo francês levou a suprimir capacidades excedentárias em vez de uma venda a baixo preço e de contribuir assim para o excesso de capacidade.

75.

Considero que neste caso não houve violação do princípio da proporcionalidade. A questão de saber se houve ou não verdadeira reestruturação foi já analisada anteriormente. Ao calcular o montante dos auxílios estatais ou do «equivalente líquido de subvenção», a Comissão teve em conta as importâncias consideráveis pagas pela transferência de instalações de produção que posteriormente foram encerradas. Além disso, à luz designadamente das observações apresentadas na audiência pelo Reino Unido, é possível que a Comissão tenha subestimado o montante real do equivalente de subvenção, beneficiando o Governo francês. De qualquer modo, não pode, em meu entender, pôr-se o problema de uma violação do princípio da proporcionalidade por uma decisão como a impugnada neste processo, que se limita a exigir a restituição de auxílios concedidos em violação do Tratado, e isto, aliás, depois de a Comissão ter por diversas vezes advertido de que todos os auxílios concedidos com violação do Tratado podem ter de ser restituídos.

Despesas

76.

Dado que a República Francesa não obteve ganho de causa, deve ser condenada a pagar as despesas da Comissão. No que respeita às despesas do Reino Unido, como interveniente, é jurisprudência pacífica que a parte interveniente que obtém ganho de causa tem direito ao reembolso das despesas por si efectuadas, caso o tenha expressamente requerido. O Reino Unido alegou que o Tribunal devia condenar a recorrente nas despesas. Isto pode ser razoavelmente interpretado como requerendo ao Tribunal a condenação da recorrente a suportar as despesas da parte interveniente.

Conclusão

77.

Em consequência, deve, em meu entender, ser negado provimento ao recurso, devendo condenar-se a República Francesa no pagamento das despesas, incluindo as efectuadas pelo Reino Unido.


( *1 ) Língua original: inglês.

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