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Document 61987CC0228

    Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 31 de Maio de 1988.
    Pretura unificata di Torino contra X.
    Pedido de decisão prejudicial: Pretura unificata di Torino - Itália.
    Normas de qualidade das águas destinadas ao consumo humano.
    Processo 228/87.

    Colectânea de Jurisprudência 1988 -05099

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1988:276

    61987C0228

    Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 31 de Maio de 1988. - PRETURA UNIFICATA DE TURIM CONTRA DESCONHECIDOS. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELA PRETURA UNIFICATA DE TURIM. - NORMAS DE QUALIDADE DAS AGUAS DESTINADAS AO CONSUMO HUMANO. - PROCESSO 228/87.

    Colectânea da Jurisprudência 1988 página 05099


    Conclusões do Advogado-Geral


    ++++

    Senhor Presidente,

    Senhores Juízes,

    A - Factos

    1. O processo pendente perante o Tribunal tem por objecto um pedido de decisão prejudicial do pretore de Turim sobre a interpretação da Directiva 80/778/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1980, relativa à qualidade das águas destinadas ao consumo humano 1.

    2. Na directiva estabelecem-se valores indicativos e determinados valores máximos de concentração de substâncias nocivas na água destinada ao consumo humano. Os valores-limite contidos na directiva foram transpostos para o direito interno italiano pelo decreto do presidente do Conselho de Ministros de 8 de Fevereiro de 1985, adoptado com vista à execução da directiva.

    3. Através de análises laboratoriais, verificou-se que em alguns poços tinham sido ultrapassados os valores-limite em relação a determinados elementos. Não tendo sido tomadas de imediato quaisquer medidas para impedir a utilização da água para consumo humano, foi instaurado um processo crime contra desconhecidos por omissão de actos que incumbem às autoridades

    públicas, nos termos do artigo 328.° do Código Penal italiano; foi no âmbito desse processo que se suscitaram as questões apresentadas pelo pretore de Turim. Está em causa a compatibilidade, com a directiva, das excepções ao decreto que estabelece os valores-limite, introduzidas por vários despachos ministeriais e pelas subsequentes disposições de execução da administração regional piemontesa. A serem lícitas tais excepções, os teores mais elevados em substâncias nocivas situar-se-iam dentro dos limites temporariamente admissíveis, pelo que, na falta dos pressupostos factuais de um comportamento punível, teria de ser arquivado o trabalhoso processo de averiguações.

    4. No âmbito de um pedido de decisão prejudicial, o pretore de Turim submeteu ao Tribunal a seguinte questão:

    "A Directiva 8O/778/CEE ou, mais precisamente, o n.° 1 do seu artigo 10.° deve interpretar-se no sentido de que autoriza os Estados-membros a introduzir derrogações segundo as modalidades e nas circunstâncias a que fazem referência os despachos do Ministério da Saúde e da região do Piemonte?"

    No que respeita aos pormenores da matéria de facto e às observações das partes, remete-se para o relatório para audiência.

    BB - Tomada de posição

    5. I - Quanto à admissibilidade

    A admissibilidade deste pedido de decisão prejudicial parece duvidosa, sob vários pontos de vista. As dúvidas tanto resultam da fase em que se encontra o processo principal como da própria questão apresentada.

    6. Nos termos do segundo parágrafo do artigo 177.° do Tratado CEE, um "órgão jurisdicional" de um Estado-membro pode apresentar ao Tribunal uma questão cuja resposta considere necessária ao "julgamento" de uma causa. A resposta à questão de saber se o pretore a quo satisfaz os requisitos relativos ao conceito de "órgão jurisdicional", na acepção da referida disposição, decorre da interpretação do Tribunal, que conferiu a este conceito jurídico autónomo um sentido amplo. Órgão jurisdicional será, assim, qualquer instância independente chamada a decidir litígios. Deve tratar-se de uma jurisdição obrigatória, dotada de organização permanente e assente em bases legais, instituída para decidir um processo contraditório mediante a aplicação do direito 2. Desde o acórdão proferido no processo 162/73 3, o Tribunal deixou de exigir o elemento relativo ao "processo contraditório", de forma que também os processos em que o Estado é parte - mesmo no exercício de funções de soberania - implicam potencialmente o direito a um pedido prejudicial.

    7. A posição processual do pretore, no entanto, é problemática face a este pano de fundo porque, no processo de averiguações, exerce duas funções de natureza jurídica diferentes. Na averiguação e esclarecimento dos factos, actua no âmbito das

    competências do Ministério Público, ao passo que, tanto na decisão de arquivar o processo como ao proferir condenações exerce funções de juiz. Uma vez que o pretore de Turim tem necessidade da resposta do Tribunal para decidir do destino a dar ao processo (prosseguir as averiguações ou ordenar o arquivamento), deverá ser considerado um "órgão jurisdicional", na acepção mais ampla do segundo parágrafo do artigo 177.° do Tratado CEE. Aliás o Tribunal já em Junho do ano passado (processo 14/86 4) considerou admissível um pedido de decisaeo prejudicial apresentado pelo pretore de Salò numa situação processual análoga.

    8. A "necessidade da decisão do Tribunal para o julgamento de uma causa" foi implicitamente reconhecida, deixando-se a apreciação da existência desse pressuposto, em princípio, à discricionaridade do tribunal a quo 5. O Tribunal, no citado processo 14/86, limitou-se a reconhecer que o pretore, ainda que não tipicamente nem em relação a todas as suas funções, exerce atribuições de juiz. A questão prejudicial colocava-se no domínio do exercício das competências gerais do pretore, que actua com independência e apenas vinculado ao direito. De acordo com a jurisprudência citada (processo 14/86 6), tanto basta para satisfazer as exigências formais previstas no segundo parágrafo do artigo 177.°

    9. A meu ver, a situação processual em apreço constitui um caso limite. Neste contexto, devem também ser objecto de consideração as outras circunstâncias, caso se pretenda declarar o processo admissível. Não deve ser concedida às instâncias dos Estados-membros a possibilidade de apresentarem ao Tribunal questões de direito abstractas, dado que isso alteraria a natureza do processo de decisão prejudicial, pelo menos tal como o Tribunal o tem definido até agora 7. Nesta ordem de considerações, deve também entrar em linha de conta o facto de o processo principal ser um processo de averiguações contra desconhecidos, não constando ainda dos autos um acusado definido. Este elemento não constitui qualquer obstáculo à admissibilidade se, tal como na qualificação do pretore como "órgão jurisdicional", se analisar a questão na perspectiva do arquivamento do processo. É precisamente para poder proferir esta decisão, de carácter jurisdiconal, que o pretore de Turim necessita da resposta do Tribunal. Se esta constitui o elemento de referência determinante, também deixa de haver lugar a dúvidas quanto ao eventual carácter prematuro (8 )da apresentação do pedido de decisão prejudicial. A objecção de que o processo nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE seria supérfluo, torna-se assim improcedente. Mediante a sua decisão, o Tribunal fornece ao juiz a quo apenas os critérios para apreciar a existência, no caso concreto, dos elementos constitutivos de um tipo legal de crime.

    10. A situação jurídica apresenta-se de forma diferente se se partir da hipótese, não do arquivamento, mas do prosseguimento do processo. Se apenas depois do pedido de decisão prejudicial se encontrar um réu individualizado, então pode ficar prejudicado o direito fundamental da defesa. Este foi consagrado, no que respeita ao processo de reenvio para o Tribunal, no segundo parágrafo do artigo 20.° do estatuto do Tribunal (CEE). De acordo com esta disposição, "as partes", entre outros, têm o direito de apresentar ao Tribunal memorandos ou observações escritas, no prazo de dois meses a contar da notificação do pedido prejudicial.

    11. A afirmação de que o tribunal a quo tem a faculdade de recorrer ao Tribunal numa fase posterior do processo e de que este Tribunal é, por seu lado, obrigado a respeitar os direitos de defesa, não é, no meu entender, susceptível de eliminar as dúvidas em relação a este princípio fundamental, que está consagrado no direito comunitário e tem de ser observado no processo que decorre perante o Tribunal. Isto tanto mais quanto às partes no processo principal não assiste o direito de recorrer autonomamente ao Tribunal.

    12. Neste aspecto, deverá atender-se antes à situação processual concreta, tal como se apresenta no momento em que o processo surge perante o Tribunal. A este respeito, da via escolhida tem de tirar-se a consequência de que de facto o processo principal constitui já, na fase em causa, um litígio jurídico que permite a apresentação de um pedido prejudicial. Assim, não existe ainda qualquer réu cujas garantias processuais inerentes a um Estado de direito possam ser violadas. A violação do direito em abstracto, puramente ideal, que não pode ser imputada a qualquer sujeito de direito individualizado, não constitui, por isso, no meu entender, qualquer obstáculo ao processo. Não obstante aqui tratar-se de um caso limite, tendo em conta a situação processual, o pedido de decisão prejudicial pode, à luz da jurisprudência do Tribunal (processo 14/86), considerar-se admissível.

    13. Subsistem ainda, no presente processo, dúvidas face à formulação da questão prejudicial. Tal como a apresentou o pretore de Turim, é uma questão de compatibilidade do comportamento do Estado-membro com o direito comunitário. A apreciação desta questão não cabe ao Tribunal em sede de processo de reenvio prejudicial. Pela conformidade do comportamento dos Estados-membros com o direito comunitário vela a Comissão que, em caso de violação, instaura o processo por incumprimento das obrigações resultantes do Tratado, previsto no artigo 169.° do Tratado CEE, através da formulação de um parecer fundamentado. A apreciação pelo Tribunal da questão da compatibilidade do comportamento dos Estados-membros com o direito comunitário não pode, através do expediente do processo de decisão prejudicial, passar para a competência dos tribunais nacionais. Os tribunais dos Estados-membros, devem, ao contrário, por iniciativa própria, fiscalizar a compatibilidade do comportamento do Estado com a ordem jurídica comunitária e, tal sendo o caso, extrair daí as consequências. Para esta tarefa, o Tribunal só pode contribuir mediante a interpretação do direito comunitário.

    14. Porém, o Tribunal não rejeita sem mais como inadmissível um pedido de decisão prejudicial incorrectamente formulado. De acordo com a sua jurisprudência constante (9), examina, tendo em conta as circunstâncias de facto e de direito, a relevância da questão na perspectiva do direito comunitário. Através de uma reformulação da questão e da resposta a dar-lhe, o Tribunal deve esforçar-se por fornecer ao tribunal nacional critérios que sejam úteis para a solução do caso concreto (10).

    15. Em boa lógica, a questão prejudicial do pretore de Turim pode ser interpretada como uma questão sobre a definição das condições de facto a que obedece a derrogação prevista no artigo 10.° da Directiva 80/778/CEE. A questão prejudicial deverá assim

    ser entendida como destinada a saber, no essencial, sob que pressupostos as autoridades nacionais estão autorizadas a admitir, nos termos do n.° 1 do artigo 10.° da Directiva 80/778/CEE, um aumento das concentrações máximas previstas no anexo I. Com este sentido, o pedido de decisão prejudicial do pretore de Turim é admissível.

    II - Quanto ao fundo

    16. Para dar ao tribunal a quo uma interpretação útil para a aplicação do direito comunitário, é necessário especificar as condições de facto referidas nas disposições derrogatórias da Directiva 80/778/CEE. Isto tem de resultar, quer do pano de fundo em que se inscreve a finalidade do acto de direito comunitário, quer da sua sistemática.

    17. A Comissão defende a opinião de que os valores máximos previstos na directiva devem ser rigorosamente respeitados, podendo fazer-se uso das possibilidades de derrogação apenas de forma limitada. Pelo contrário, o Governo italiano arroga-se uma margem de discricionaridade relativamente extensa na apreciação da existência das condições que permitem derrogações.

    18. A adopção da directiva foi motivada por considerações que se prendem com a criação de condições iguais de concorrência em toda a Comunidade, com a realização de um desenvolvimento harmonioso das actividades económicas e, ao mesmo tempo, com a consecução de uma melhoria das condições de vida (segundo e terceiro considerandos do preâmbulo). Quanto às normas de qualidade para a obtenção de água potável, foi adoptada uma directiva comunitária já em Junho de 1975 (11). O âmbito de aplicação da Directiva 80/778/CEE é mais lato, pois compreende igualmente as águas superficiais destinadas ao abastecimento de água potável, de forma que estabelece acrescidas exigências de qualidade em relação a esta matéria.

    19. Os Estados-membros podem introduzir excepções às normas de qualidade contidas na directiva. Diversos factores podem legitimar tais derrogações: o artigo 9.° da directiva constitui a base jurídica para derrogações em caso de condições geográficas e meteorológicas excepcionais. De acordo com o artigo 20.° da directiva, em "casos excepcionais", não detalhadamente definidos, pode ser prorrogado o prazo para a transposição do disposto na directiva em relação a determinados valores. O artigo 10.°, além disso, autoriza derrogações aos valores contidos no anexo I em "casos de grave emergência".

    20. Nos considerandos do preâmbulo da directiva (décimo primeiro considerando) refere-se expressamente que os Estados-membros podem introduzir derrogações à directiva "para ter em conta situações especiais". Essa expressão aponta já no sentido de, em circunstâncias excepcionais, considerar inerente à directiva uma certa susceptibilidade de adaptação, o que milita a favor de uma aplicação flexível dos valores-limite, ou seja, no sentido de uma interpretação muito ampla em relação aos elementos de facto que podem dar lugar a uma derrogação. Além disso, essa "flexibilidade" na aplicação é expressamente referida nas versões da directiva em todas as línguas comunitárias (12), excepto nas versões alemã e inglesa. Nestas circunstâncias, a directiva deve ser interpretada de forma a que a susceptibilidade de adaptações e, consequentemente, a flexibilidade, sejam garantidas. Isto pode deduzir-se claramente de quase todas as versões linguísticas e também não contraria o sentido das formulações em língua inglesa e alemã. A intenção, assim formulada, de aplicar com flexibilidade a directiva nos Estados-membros permite abrir uma excepção à regra

    da interpretação restritiva dos elementos de facto requeridos para a derrogação. Com efeito, o reconhecido objectivo da flexibilidade pode apenas atingir-se mediante uma aplicação analogamente liberal das normas derrogatórias.

    21. No que diz respeito à transposição das disposições da directiva para os respectivos direitos internos, pouco importa a forma jurídica utilizada pelos Estados-membros (13). É por isso irrelevante, na óptica do direito comunitário, saber se todas as disposições da directiva foram transpostas por um único acto jurídico (no caso, o citado decreto do presidente do Conselho de Ministros de 2 de Fevereiro de 1985) para a ordem jurídica do Estado-membro ou se as disposições derrogatórias foram transpostas para o direito nacional por meio de actos jurídicos distintos.

    22. A única disposição derrogatória da directiva em causa no presente processo - como de resto as partes têm afirmado concordantemente - é o artigo 10.° da directiva. O artigo 10.° oferece a possibilidade de derrogações aos valores de "concentrações máximas admissíveis" estabelecidos pelo artigo 7.°, conjugado com o anexo I da directiva. A esta categoria pertencem as substâncias nocivas, a atrazina e o molinato, cujo aumento de concentração na água deu origem ao presente processo.

    23. Primeira condição para a utilização da autorização de derrogação, de acordo com o n.° 1 do artigo 10.° da directiva, é a existência de um "caso de grave emergência". Já a caracterização dos pressupostos de tal caso de grave emergência é discutida entre as partes. A ideia da Comissão vai no sentido de se exigir um evento súbito, imprevisto, inesperado. A isto contrapõe o Governo italiano que para haver um caso de grave emergência não tem importância o tipo de situação ou a forma como foi causada, sendo exclusivamente determinante a existência de uma situação excepcional. Se nos contentássemos apenas com causas independentes do comportamento humano, seriam excluídas da previsão da norma situações de emergência típicas, como o envenenamento das condutas de água por meio de um atentado terrorista (14).

    24. A existência de um "caso de grave emergência" deve ser apreciada independentemente da sua causa. São abrangidos, por isso, tanto eventos naturais como comportamentos humanos. Atender exclusivamente aos factos independentes do comportamento humano limitaria desnecessariamente o âmbito de aplicação da norma. O artigo 10.° da directiva deve ser aplicável, em princípio, a todos os casos de grave emergência, sejam quais forem as suas origens.

    25. Para a caracterização das outras circunstâncias do caso de grave emergência deve considerar-se o contexto dos termos jurídicos. Na verdade, o conceito de caso de grave emergência implica a ocorrência súbita de uma situação de excepção. Todavia, a definição do "caso de grave emergência" não pode ser vista desligada dos restantes elementos da situação de facto. Em particular, deve ser tido em consideração o último elemento contido no n.° 1 do artigo 10.°, ou seja, a impossibilidade de garantir de qualquer outra maneira o abastecimento de água destinada ao consumo humano.

    26. A terminologia utilizada neste último pressuposto deve, porém, ser objecto de uma nota prévia. Só nas versões alemã e dinamarquesa do texto da directiva se fala de "abastecimento de água potável" no n.° 1 do artigo 10.° Nas versões oficiais de todas as outras línguas da Comunidade consta a expressão correspondente ao título da directiva: "água destinada ao consumo humano". O sentido de "água destinada ao consumo humano" é mais

    amplo que o da expressão "abastecimento de água potável", uma vez que nele são também envolvidas formas outras de obtenção, que não as águas superficiais (15). Além disso, o n.° 2 do artigo 10.° contém uma disposição derrogatória para assegurar o abastecimento de água potável mediante recurso à água superficial. Tanto o facto de o artigo 10.° prever logicamente, em primeiro lugar, uma disposição derrogatória em relação ao âmbito global de aplicação da directiva, como igualmente o facto de a obtenção de água potável mediante recurso às águas superficiais ter dado origem a uma norma especial, militam no sentido de a versão concordante em sete línguas oficiais ser também a autêntica.

    27. A incapacidade de assegurar o abastecimento de água destinada ao consumo humano é uma característica essencial do caso de grave emergência. Certamente - e quanto a isto é de aderir às afirmações do Governo italiano 14 -, um Estado-membro não pode, para justificar o seu comportamento anterior ilícito, invocar um caso de grave emergência. Se o Estado-membro, pelo contrário, se vir confrontado com o problema de não poder observar os valores prescritos pela directiva e tomar medidas para remediar esta situação, de acordo com o sentido e a finalidade da regulamentação, então deverá ter a possibilidade de invocar a disposição derrogatória em relação ao período de transição. Pelo contrário, se os valores contidos na directiva não puderem ser de imediato atingidos, estar-se-á perante um comportamento contrário ao direito comunitário, sem que o Estado-membro possa restabelecer uma situação conforme ao direito comunitário.

    28. A questão de saber em que circunstâncias não é possível o abastecimento de água destinada ao consumo humano necessita de uma análise mais pormenorizada. Coloca-se especialmente a questão de saber se um abastecimento de urgência, mediante reservatórios e cisternas, constitui ainda um abastecimento suficiente, de forma que não se possa fazer uso da disposição derrogatória.

    29. Uma obrigação de reorganização do abastecimento de água imposta por um acto normativo, para impedir uma derrogação ao abrigo do artigo 10.° da directiva, apenas seria então legítima se assim pudesse ser qualitativamente melhorado o abastecimento. Porém, isto não seria precisamente garantido no caso do abastecimento em situação de emergência. O sentido e a finalidade dos pressupostos de facto para uma derrogação não podem traduzir-se em obrigar o Estado-membro a um abastecimento de água pior e mais dispendioso antes de estar autorizado a adoptar normas derrogatórias.

    30. Além disso, deve ficar ao Estado-membro uma certa margem para apreciar em que medida a exploração de outras fontes de abastecimento é economicamente defensável e conveniente.

    31. Um outro argumento a considerar, no que respeita ao abastecimento regular através da rede de condutas, resulta das disposições relativas à água potável contidas no n.° 2 do artigo 1.° da Directiva 75/440/CEE, que diz o seguinte: "Para aplicação da presente directiva, considera-se água potável qualquer água superficial destinada ao consumo humano e fornecida por redes de canalização para uso da colectividade."

    32. A favor de uma interpretação ampla do n.° 1 do artigo 10.° milita igualmente o facto de, segundo o n.° 2, serem possíveis derrogações à garantia do abastecimento de água obtida a partir das águas superficiais sem atender expressamente à existência de um caso de grave emergência. Este texto limita-se a afirmar: "sempre que um Estado-membro for obrigado..."; e os restantes elementos da situação de facto do n.° 1 e do n.° 2 coincidem. De resto, o tribunal a quo, na apreciação da admissibilidade das medidas adoptadas pelo Estado-membro, devia também ter presente a disposição contida no n.° 2 do artigo 10.°

    33. As derrogações são a priori apenas admissíveis por "um período de tempo limitado". Quanto à forma como esse "período de tempo limitado" é calculado, subsiste desacordo. Segundo o processo principal, a disposição derrogatória teria sido estabelecida em primeiro lugar por meio ano. Simultaneamente, através do mesmo acto normativo, foram adoptadas medidas para remediar a presença de valores exagerados de substâncias nocivas 16. Antes do termo do prazo de meio ano, o período de vigência do despacho foi prorrogado por um ano quanto ao seu conteúdo global 17. Assim, foi permitido pelo período de um ano e meio o

    valor-limite de atrazina de 1 micrograma, em contraste com o valor de 0,1 micrograma previsto na directiva. Muito antes do termo do prazo de vigência do despacho ultimamente referido, foram

    admitidos, em Abril de 1987, novos valores-limite mais elevados para a atrazina (1,7 microgramas) e, pela primeira vez, para o molinato (6 microgramas).

    34. Esta nova intervenção legislativa aponta no sentido de que não foi possível assegurar valores-limite mais baixos em data anterior. Finalmente, foram novamente permitidas derrogações aos valores da directiva - como foi alegado na audiência por parte do representante do Governo italiano - até fins de 1988. Em comparação com os despachos precedentes, os valores-limite foram reduzidos (1 microgramas de atrazina, 4 microgramas de molinato). No conjunto, foram portanto admitidas derrogações por um período de dois anos e meio.

    35. A Comissão é de opinião que isto não corresponde ao que se pode entender por um "período de tempo limitado". É certo que a directiva não faz qualquer alusão à duração absoluta de uma norma de excepção admissível. Os actos legislativos dos Estados-membros estão sujeitos a prazos, quando o conjunto dos seus períodos de vigência se traduz num período de tempo previsível. Não é porém justo estabelcer uma grandeza absoluta para a caracterização de um "período de tempo limitado". Pelo contrário, deve também aqui ser levado a cabo um processo de ponderação em que devem intervir elementos como a premência das medidas para remediar um caso de grave emergência, a possibilidade de medidas alternativas e a necessidade de admissão de valores-limite mais elevados.

    36. Só por si, o facto de ser prorrogado o prazo de vigência de uma regulamentação derrogatória não milita contra a sua admissibilidade. Com efeito, não pode admitir-se a manutenção

    injustificada de uma derrogação que tenha sido adoptada. Na prorrogação, tal como na adopção da regulamentação, deve ser examinada a sua necessidade, tendo em consideração as circunstâncias.

    37. De acordo com o artigo 10.°, quaisquer disposições derrogatórias apenas poderão ser adoptadas sob a condição de que "não apresentem qualquer risco inaceitável para a saúde pública". É legítimo perguntar em que condições este elemento característico se encontra preenchido.

    38. A Comissão é de opinião 18 que o Estado-membro tem de apresentar prova da inocuidade das medidas, não podendo atender-se apenas aos efeitos de cada substância em particular (atrazina e molinato), mas também aos efeitos de outras substâncias tóxicas e ao respectivo concurso (efeito sinergético). No caso presente, não pode "ser excluído em absoluto" 19 um risco para a saúde pública. A favor desta argumentação milita o facto de, com base nas concentrações máximas admissíveis de substâncias nocivas previstas na directiva, poder admitir-se uma presunção da nocividade das substâncias para além dos valores-limite.

    39. O Governo italiano alega contra isto que, aqui, não se trata de uma repartição do ónus da prova no sentido clássico. A favor deste ponto de vista estão as seguintes considerações: a própria Comissão não alegou que no caso de aumento dos valores estabelecidos pela directiva surge um risco para a saúde humana. A directiva prossegue de facto a finalidade de melhorar a qualidade de vida. Porém, isso não significa que, acima dos valores-limite estabelecidos pela directiva, exista ou pelo menos deva supor-se um perigo para a saúde. Precisamente, a possibilidade de princípio de derrogações aos valores sob determinadas condições milita contra a existência de um perigo absoluto. Também o teor literal da disposição da directiva segundo a qual o risco inaceitável constitui obstáculo à derrogação, permite a conclusão de que um risco ligeiro, se for esse o caso, é de tolerar. O simples aumento eventual de um risco que é de supor sempre no caso de um aumento dos valores estabelecidos na directiva não basta ainda para constituir obstáculo a uma regulamentação derrogatória. A possibilidade de derrogação ficaria esvaziada de sentido e de âmbito de aplicação se nos contentássemos com esse aumento de risco teórico para inviabilizar uma regulamentação derrogatória.

    40. Contra uma repartição do ónus da prova no sentido pretendido pela Comissão vai ainda o facto de o Estado-membro ter de demonstrar a ausência de determinadas circunstâncias sem que a norma forneça critérios concretos para a determinação de tais circunstâncias. Estes imponderáveis do problema da prova não permitem criticar a actuação de um Estado-membro no âmbito da norma de autorização que é o artigo 10.° da directiva. O "risco inaceitável" para a saúde pública deve ser pelo menos provável, para este elemento característico poder impedir uma derrogação. Na medida em que não exista tal probabilidade, o Estado-membro dispõe de um poder discricionário de apreciação. A postulada flexibilidade da directiva só pode ser convenientemente atingida por meio de um poder discricionário na apreciação das condições de derrogação, a exercer pelo Estado-membro. No processo de ponderação, porém, deve ser igualmente considerado o efeito sinergético das substâncias nocivas.

    41. Finalmente, é de esclarecer em que medida a violação da obrigação de comunicar as medidas adoptadas à Comissão poderá obstar à sua admissibilidade (n.° 3 do artigo 10.° da Directiva 80/778/CEE). Dado que se trata aqui de uma informação posterior, a comunicação não pode constituir pressuposto de eficácia, como por exemplo uma condição de aprovação. Uma vez que também no caso de actuação correcta do Estado-membro apenas se dá conhecimento da derrogação à Comissão quando o processo de ponderação chegou ao seu termo, não pode também partir-se do princípio de que deve ser concedida à Comissão, através do n.° 3 do artigo 10.°, uma possibilidade de influenciar a configuração das medidas concretas. A falta de comunicação ou a comunicação tardia afiguram-se comportamentos do Estado-membro contrários ao direito comunitário. Todavia, não constituem obstáculo à norma derrogatória adoptada, quanto ao mais, de forma regular.

    42. As despesas efectuadas pelo Governo italiano e pela Comissão não são reembolsáveis. Competirá ao órgão jurisdicional nacional decidir sobre as despesas do processo prejudicial (n.° 3 do artigo 104.° do Regulamento Processual).

    C - Conclusão

    Proponho que se responda da seguinte forma à questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional nacional:

    43. Estar-se-á perante uma disposição excepcional compatível com o n.° 1 do artigo 10.° da Directiva 80/778/CEE quando se encontrem reunidas todas as condições de facto, assistindo aos Estados-membros um amplo poder de apreciação das condições de cada caso.

    (*) Tradução do alemão.

    1.JO L 229 de 30.8.1980, p. 11; EE 15 F2 p. 174.

    2.Acórdão de 30 de Junho de 1986 no processo 61/65, Vaassen-Goebbels, Recueil, p. 377.

    3 Acórdão do Tribunal de 21 de Fevereiro de 1974 no processo 162/73, Birra Dreher/Amministrazione delle finanze dello Stato, Recueil, p. 201.

    4 Acórdão do Tribunal de 11 de Junho de 1987 no processo 14/86, Pretore de Salò/desconhecidos, Colect., p. 2545.

    5 Acórdão de 16 de Dezembro de 1981 no processo 244/80, P. Foglia/M. Novello, Recueil, p. 3045, n.° 15 e seguintes.

    6 Locução citada, n.° 7.

    7 Processo 244/80.

    (8) Ver, quanto à fase processual da causa principal no processo de decisão prejudicial, o acórdão de 10 de Março de 1981 nos processos apensos 36 e 71/80, Irish Creamery Milk Suppliers Association e outros/Governo da Irlanda e outros, Recueil,, p. 735.

    (9) Ver o acórdão de 29 de Novembro de 1978 no processo 83/78, Pigs Marketing Board/Raymond Redmond, Recueil, p. 2347; mais recentemente, o acórdão de 20 de Abril de 1988 no processo 204/87, Bekaert/República Francesa, Colect., p. 2029.

    (10) Processo 204/87, locução citada n.° 5 e seguintes.

    (11) Directiva 75/440/CEE do Conselho, de 16 de Junho de 1975 (JO L 194, p. 26 (EE 15 F1 p. 123).

    (12) Em dinamarquês: en vis smidighed

    Em grego: enilixir

    Em espanhol: una cierta flexibilidad

    Em francês: une certaine souplesse

    Em italiano: una certa elasticità

    Em neerlandês: een zekere soepelheid

    Em português: uma certa flexibilidade

    (13) Artigo 189.° do Tratado CEE.

    (14) Ver p. 10 da acta da audiência.

    (15) Artigo 1.° da Directiva 75/440/CEE.

    14 Ver p. 10 da acta da audiência.

    16 Ver a decisão do Ministério da Saúde de 25 de Junho de 1986 que prevê um período de vigência até 31 de Dezembro de 1986.

    17 Ver o despacho de 22 de Dezembro de 1986, com efeitos até 31 de Dezembro de 1987.

    18 Ver p. 17 da acta de audiência.

    19 Ci troviamo quindi dinazi ad una ipotesi in cui non è possibile escludere assolutamente, come lo fa la direttiva, un rischio inaccetabile per la salute pubblica (Encontramo-nos aqui, por isso, perante uma hipótese em que não se pode excluir em absoluto, como o faz a directiva, um risco inaceitável para a saúde pública).

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