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Document 61987CC0070

Conclusões do advogado-geral Van Gerven apresentadas em 7 de Março de 1989.
Fédération de l'industrie de l'huilerie de la CEE (Fediol) contra Comissão das Comunidades Europeias.
Política Comercial Comum - Práticas comerciais ilícitas - Regulamento n.º 2641/84.
Processo 70/87.

Colectânea de Jurisprudência 1989 -01781

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1989:110

61987C0070

Conclusões do advogado-geral Van Gerven apresentadas em 7 de Março de 1989. - FEDERATION DE L'INDUSTRIE DE L'HUILERIE DE LA CEE (FEDIOL) CONTRA COMISSAO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. - POLITICA COMERCIAL COMUM - PRATICAS COMERCIAIS ILICITAS - REGULAMENTO NO. 2641/84. - PROCESSO 70/87.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 01781
Edição especial sueca página 00067
Edição especial finlandesa página 00079


Conclusões do Advogado-Geral


++++

Senhor presidente,

Senhores juízes,

1. Em 10 de Fevereiro de 1986, a recorrente, a Federação da Indústria Oleícola da CEE, ("Fediol") apresentou à Comissão uma denúncia ao abrigo do n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 do Conselho, de 17 de Setembro de 1984, relativo ao reforço da política comercial comum, nomeadamente no que respeita à defesa contra as práticas comerciais ilícitas (JO L 252, p. 1; EE 11 F21 p. 78). Na sua denúncia (que foi completada em 9 de Maio de 1986) a recorrente pedia à Comissão que abrisse um processo de inquérito quanto a duas práticas da Argentina que qualificava de "práticas comerciais ilícitas", na acepção do Regulamento (CEE) n.° 2641/84.

A denúncia referia-se a duas práticas, a primeira das quais, que podemos designar por "sistema de garantia das margens", dizia respeito a um conjunto de medidas cujo elemento essencial é um "regime de encargos diferenciais" com os quais se pretendeu assegurar à indústria argentina de transformação de soja o aprovisionamento de favas de soja a preço inferior ao preço praticado no mercado mundial. A segunda prática terá consistido na aplicação de restrições quantitativas à exportação de favas e de soja (ver adiante, n.° 21). O Tribunal já analisou essas práticas no âmbito do processo 187/85, mas nessa ocasião tratava-se de detectar a existência de eventuais "medidas de subvenções"; ao recurso interposto pela Fediol nesse processo foi negado provimento por acórdão de 14 de Julho de 1988 (ver adiante, n.° 8).

Contexto geral

2. As "práticas comerciais ilícitas" são definidas no n.° 1 do artigo 2.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 como quaisquer práticas imputáveis a um país terceiro, incompatíveis, em matéria de comércio internacional, com o direito internacional ou com as regras geralmente admitidas. Esse regulamento permite a qualquer pessoa singular ou colectiva, bem como a qualquer associação que actue em nome de uma produção da Comunidade, que se considere objecto de um prejuízo resultante de práticas comerciais ilícitas, apresentar uma denúncia à Comissão a fim de que esta proceda à abertura de um inquérito ((n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)) (1).

Para que tenha êxito, a denúncia apresentada à Comissão deve conter, antes de mais, "elementos de prova suficientes" quanto à existência de práticas comerciais ilícitas, e, em segundo lugar, quanto ao prejuízo daí resultante ((n.° 2 do artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)). É claro que, no que se refere ao primeiro ponto, a prova deve versar, quer sobre a existência das práticas denunciadas, quer sobre a natureza ilícita das referidas práticas.

No que se refere aos elementos de prova apresentados, a Comissão deve seguidamente proceder a consultas no âmbito de um comité consultivo composto por representantes de cada Estado-membro e presidido por um representante da Comissão ((ver artigo 5.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)). Um vez consultado o Comité, o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 prevê que o processo possa seguir duas vias distintas. Passo a citar as duas disposições aplicáveis:

"Quando se afigure, após consultas, que a denúncia não contém elementos de prova suficientes que justifiquem a abertura de um inquérito, o autor da denúncia será desse facto informado" (n.° 5 do artigo 3.°).

ou

"Quando, no termo das consultas, se afigurar à Comissão que existem elementos de prova suficientes para justificar o início de um processo de exame e que tal será necessário no interesse da Comunidade (tomará as medidas necessárias com vista à abertura desse processo)" (n.° 1 do artigo 6.°).

Deduz-se destas disposições que, no decurso dessa análise prévia da denúncia, a Comissão deve, antes de mais, apreciar os elementos de prova que lhe tenham sido apresentados e isso, como já referi, sob três aspectos: a existência da prática denunciada, a sua natureza ilícita, a existência de um prejuízo que resulte dessa prática. Seguidamente - caso entenda que os elementos de prova postos à sua disposição justificam uma análise mais aprofundada - deve também apreciar a necessidade de abrir um processo de inquérito, no interesse da Comunidade.

3. A esta breve exposição da fase inicial do processo, gostaria de acrescentar imediatamente uma observação prévia importante para o conjunto da minha exposição. Essa observação é a seguinte: a natureza da apreciação que a Comissão deve fazer difere consideravelmente consoante a questão que examine. Vou precisar melhor a minha ideia. Há, antes de mais, uma diferença considerável entre a apreciação de elementos de prova, por um lado, e a apreciação do interesse da Comunidade, por outro. Tratando-se de apreciar este último, a Comissão dispõe incontestavelmente de uma grande liberdade de apreciação ou, mais exactamente, de um poder de natureza mais discricionária. Quando se trate de decidir sobre elementos de prova, essa liberdade de apreciação - nesse caso não se trata, certamente, de um poder discricionário - é incontestavelmente mais limitada (2).

De resto, quando se trate de apreciar elementos de prova, podem distinguir-se duas situações, ou seja, a situação em que os elementos de prova apresentados se referem a elementos de facto (à existência das práticas denunciadas e do prejuízo daí resultante) e a situação em que os elementos de prova apresentados dizem respeito à argumentação jurídica (à apreciação da natureza ilícita das práticas estabelecidas, à luz das normas jurídicas invocadas). No primeiro caso, o poder de apreciação recai sobre a natureza aparente dos factos alegados, cuja existência se deve tornar plausível no decurso da fase inicial do processo, que é a fase que aqui nos interessa. No segundo caso, trata-se de um poder de apreciação de outra natureza - recai então sobre a qualificação dos factos à luz das normas jurídicas cuja aplicabilidade constitui uma premissa e sobre a interpretação de certas normas jurídicas face aos factos alegados. Esse poder de apreciação é, em substância, um poder de qualificação e de interpretação. Como teremos mais tarde ocasião de constatar, trata-se, no caso concreto que hoje nos ocupa, principalmente desse último poder, a que nas observações que se seguem sucintamente chamaremos poder de interpretação.

4. Por decisão de 22 de Dezembro de 1986, a Comissão desatendeu a denúncia apresentada pela Fediol. Segundo a Comissão, a denúncia não continha documentos de prova suficientes quanto à existência ou, sendo caso disso, à ilicitude das práticas denunciadas pela Fediol, que justificassem a abertura de um processo de inquérito no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84. A questão da existência de um prejuízo não foi analisada. De igual modo, a Comissão também não invocou a necessidade de abrir um inquérito no interesse da Comunidade. Por outras palavras, a decisão da Comissão refere-se exclusivamente a dois dos quatro pontos de apreciação que anteriormente recordámos (no n.° 3), ou seja, a existência das práticas denunciadas e a sua ilicitude.

Por outro lado, convém assinalar, a propósito desses dois pontos abordados na decisão da Comissão, que esta adopta uma posição diferente em relação a cada uma das duas práticas denunciadas. A propósito da primeira dessas duas práticas, a Comissão reconhece a existência, de facto, do elemento essencial desse regime (o regime de encargos diferenciais), mas não lhe reconhece a ilicitude. Quanto à denunciada prática de restrições quantitativas à exportação, a Comissão na sua decisão contesta a sua própria existência. Mas, mesmo supondo que essa prática tenha (momentaneamente) existido, a Comissão na sua resposta declara que não terá sido ilícita (ver pontos 6, 48 e 49 do relatório para audiência).

5. Tendo sido desatendida a sua denúncia, a Fediol interpôs o presente recurso e pediu ao Tribunal de Justiça que anulasse a decisão da Comissão com base no artigo 173.° do Tratado CEE.

A Comissão não contesta a qualidade da recorrente para agir com base no Regulamento (CEE) n.° 2641/84 e também não contesta que a sua decisão lhe diz directa e individualmente respeito e está sujeita à fiscalização jurisdicional do Tribunal de Justiça "nos limites fixados pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84". Contudo, entende que os fundamentos alegados pela recorrente extravasam da protecção jurídica que o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 e o Tratado CEE lhe concedem e que, por conseguinte, o recurso deve ser julgado inadmissível. Todavia, a Comissão não pede ao Tribunal que decida previamente sobre a admissibilidade do recurso e é a título subsidiário que expõe os seus argumentos quanto ao respectivo mérito.

As presentes conclusões compõem-se de duas partes. Numa primeira parte vamos analisar a medida da protecção jurídica concedida à recorrente, isto é, em que medida uma decisão da Comissão tomada em aplicação do n.° 5 do artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, que notifica a sua recusa em abrir um inquérito, está submetida à fiscalização jurisdicional do Tribunal. Numa segunda parte das minhas conclusões explicarei a que resultados concretos deve chegar essa fiscalização jurisdicional - que creio efectivamente existir - no que se refere ao próprio objecto da decisão impugnada.

Inexistência de fundamentos de inadmissibilidade

6. Para começar, gostaria de sublinhar que a Comissão não me convence de forma alguma quando pretende ver um fundamento de inadmissibilidade no facto de, na sua opinião, o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 apenas assegurar à recorrente uma protecção jurídica limitada (3). Para apreciar a admissibilidade do recurso de anulação interposto pela recorrente para o Tribunal de Justiça, é preciso seguir o disposto no n.° 2 do artigo 173.° do Tratado CEE. Não contestando as partes - o que, de resto, não poderiam razoavelmente fazer - que a decisão impugnada diz directa e individualmente respeito à recorrente (a decisão foi expressamente dirigida à Fediol), a admissibilidade do recurso de anulação não pode, no meu entender, ser sujeita a restrições adicionais. Admitir outras restrições seria incompatível com o conjunto da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, tendo em conta as disposições do artigo 164.° do Tratado CEE, interpreta da forma mais lata possível a protecção jurídica garantida pelo Tratado.

Se o n.° 1 do artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 comporta, efectivamente, um elemento suplementar, é no sentido de uma maior protecção jurídica ao nível da capacidade para agir: dado que reconhece às associações de empresas sem personalidade jurídica o direito de apresentarem uma denúncia à Comissão, há que admitir, como sustenta no seu requerimento a Fediol, que essas associações também têm legitimidade para interpor recurso no Tribunal de Justiça contra a decisão da Comissão que desatenda a sua denúncia ((ver, nesse sentido, as conclusões da advogada-geral Rozès no processo 191/82 (Fediol, Recueil 1983, p. 2939 e 2940) e, implicitamente, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 4 de Outubro de 1983, a que voltarei adiante)).

O meio de defesa avançado pela Comissão, portanto, não diz respeito à admissibilidade do recurso de anulação, mas sim ao mérito deste. Com efeito, levanta a questão de saber qual o alcance da competência atribuída à Comissão pelo n.° 5 do artigo 3.° e pelo n.° 1 do artigo 6.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, bem como a questão de saber em que circunstâncias é que uma decisão da Comissão deve ser anulada por excesso ou desvio de poder.

Primeira parte: O problema da fiscalização jurisdicional no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84

A - A jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de importações provenientes de países terceiros objecto de dumping ou de subvenções

7. A Comissão sustenta que a protecção jurídica que pode exigir o autor da denúncia no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 é mais limitada do que a que lhe cabe no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2176/84 (4). A recorrente contesta esse ponto de vista: na sua opinião, a protecção jurídica é idêntica nos dois casos (ver o relatório para audiência, n.° 19). Com efeito, o Regulamento (CEE) n.° 2176/84 atribui também o direito de apresentar denúncias aos produtores e às associações de empresas, designadamente permitindo-lhes convidar a Comissão a abrir um processo de inquérito sobre as importações provenientes de países terceiros que tenham sido objecto de dumping ou de "subvenções". Impõe-se, pois, a este propósito, uma comparação dos dois regulamentos.

Gostaria de aproveitar para assinalar que o Regulamento (CEE) n.° 2176/84 foi entretanto revogado e substituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2423/88 (5); as disposições do Regulamento (CEE) n.° 2176/84 que citarei nas presentes conclusões foram retomadas em termos idênticos e com a mesma numeração no Regulamento (CEE) n.° 2423/88. As remissões a que se refere o relatório para audiência e as observações das partes têm todas por destino o Regulamento (CEE) n.° 2176/84. Esta é a razão pela qual, a fim de evitar qualquer confusão, me referirei a este último regulamento nas páginas que se vão seguir.

8. Foi precisamente a propósito desse direito de apresentar denúncia em matéria de práticas de dumping ou de subvenção que o Tribunal proferiu o acórdão de 4 de Outubro de 1983 (no processo 191/82, Fediol, Recueil 1983, p. 2913). Esse acórdão versava sobre o Regulamento (CEE) n.° 3017/79, isto é, o regulamento que precedeu o Regulamento (CEE) n.° 2176/84. Também nesse processo a Fediol alegava a ilegalidade cometida pela Comissão por ter desatendido a sua denúncia. A Comissão tinha nessa ocasião retorquido que a sua comunicação a propósito da não abertura do processo de inquérito - tendo em conta o alcance do seu poder de apreciação no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 3017/79 - era uma simples notificação, portanto insusceptível de recurso, na acepção do artigo 173.° do Tratado CEE.

Assim não entendeu o Tribunal de Justiça, que reconheceu à Fediol o direito de recurso, dado que podia retirar do regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 3017/79 um certo número de direitos específicos cuja violação invocava, designadamente o direito de apresentar denúncia, o inerente direito de ver essa denúncia analisada pela Comissão com a atenção devida e nos termos do processo previsto, o direito de obter informações nos limites fixados pelo regulamento e, finalmente, caso a Comissão decida não dar seguimento à denúncia, o direito de obter informações sobre as principais conclusões da Comissão, bem como um resumo das razões invocadas (n.° 28 do acórdão).

Contudo, o Tribunal acrescentou que, na sua apreciação, o juiz terá em conta a natureza das competências reservadas às instituições da Comunidade (n.° 29) e, designdamente, o "muito lato poder de apreciação" de que dispõe a Comissão para determinar, em função dos interesses da Comunidade, as medidas que eventualmente convirá tomar para fazer face à situação constatada (n.° 26 do acórdão). Todavia, isto não impede que, a pedido dos recorrentes, o Tribunal verifique se as garantias processuais que lhes são concedidas foram respeitadas, se não foram cometidos erros manifestos na apreciação dos factos, se não terão sido ignorados elementos essenciais ou se na fundamentação terão intervindo considerações que possam constituir um desvio de poder. É graças a esses critérios de análise que o juiz exerce uma fiscalização sobre o poder discricionário da autoridade, sem, contudo, intervir na apreciação reservada à referida autoridade (n.° 30 do acórdão).

O Tribunal de Justiça confirmou esta análise nos acórdãos que proferiu em 14 de Julho de 1988 nos processos 187/85 e 188/85 (Fediol, Colect. p. 4155 e 4193 respectivamente, n.° 6 de ambos os acórdãos).

B - Comparação do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, relativo às práticas comerciais ilícitas, com os regulamentos relativos às práticas de dumping e de subvenção

9. A Comissão analisa em profundidade as diferenças que existem entre os regulamentos antidumping ((e, ao fazê-lo, tanto cita o antigo Regulamento (CEE) n.° 3017/79 como o novo Regulamento (CEE) n.° 2176/84 que, entretanto, foi substituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2423/88)) e o Regulamento (CEE) n.° 2641/84, consagrado às práticas comerciais. Desenvolve a sua argumentação em dois níveis. Antes de mais, analisa, ao nível do que designa por protecção jurídica, o papel que joga o interesse da Comunidade nas duas categorias de regulamentos, bem como as diferenças no plano das medidas que podem ser adoptadas pela Comissão em aplicação das duas categorias de disposições. Seguidamente, analisa, ao nível do alcance da fiscalização exercida pelo Tribunal de Justiça, as diferenças entre as duas categorias de regulamentos quanto à interpretação das disposições de direito internacional aplicáveis, e especialmente quanto à interpretação das normas do GATT aplicáveis.

Todas as considerações apresentadas pela Comissão, em cada um desses dois níveis, prosseguem o mesmo objectivo: 1) mostrar que no regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84 a protecção jurídica dos autores da denúncia é muito restrita, limitando-se à faculdade de convidarem a Comissão a analisara denúncia e, nessa ocasião, fazerem respeitar as garantias processuais, sem contudo poderem (obter) a fiscalização do resultado da decisão da Comissão (ver o relatório para audiência, n.° 17); e 2) mostrar que a competência de fiscalização do Tribunal de Justiça se limita, nas mesmas proporções, aos casos extremos de manifesto desvio de poder (ver o relatório para audiência, n.° 18). Qualquer outro entendimento equivaleria, segundo a Comissão, a conceder aos autores da denúncia - indirectamente, isto é, pela via do recurso perante o Tribunal de Justiça - a possibilidade de influenciarem as decisões de política comercial da Comissão. Claro que a recorrente está em profundo desacordo com esse ponto de vista. Remeto para o relatório para audiência, para um resumo dos argumentos pró e contra essa tese.

Sem seguir à letra os argumentos das partes, tenho a intenção de abordar, nas páginas seguintes, duas diferenças essenciais entre o Regulamento (CEE) n.° 2176/84, relativo ao combate ao dumping e às práticas de subvenção, e o Regulamento (CEE) n.° 2641/84, relativo às práticas comerciais ilícitas, que está em causa no presente processo. Trata-se, em concreto, por um lado, da remissão que ambos os regulamentos fazem, mas de modo diferente, para as normas do direito internacional e, por outro, da importância que a apreciação do interese da Comunidade ocupa nos dois regulamentos. No que se refere a este último ponto, é verdade que no processo que hoje nos ocupa a Comissão não se pronunciou sobre o interesse da Comunidade mas, contudo, trouxe essa noção à discussão, dado que, segundo ela, essa noção permite situar a posição jurídica global dos autores das denúncias no regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84.

Remissão para o direito internacional

10. Segundo a Comissão, uma errada aplicação do direito internacional no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 apenas poderá ser submetida à fiscalização do Tribunal de Justiça na medida em que a aplicação incorrecta dessas normas constitua uma violação de disposições do direito comunitário que confiram directa e individualmente direitos aos particulares. As normas do GATT a que se refere o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 não são suficientemente precisas para criar esses direitos a favor dos particulares. A recorrente contesta esses argumentos (ver, para o restante, o relatório para audiência, n.os 18 e 19, bem como n.os 31 a 33). A conclusão a que no seu raciocínio chega a Comissão é a de que a forma como interprete a noção de "práticas comerciais ilícitas" apenas em casos absolutamente excepcionais poderá ser sujeita a fiscalização (ver relatório para audiência, n.° 18).

11. Quer no Regulamento (CEE) n.° 2176/84, quer no Regulamento (CEE) n.° 2641/84, a remissão para o direito internacional joga um papel essencial. Com efeito, essa remissão fornece às instâncias comunitárias tanto a base jurídica como o critério de apreciação que lhes permite declarar ilícitos certos comportamentos de países terceiros (ou, em caso de dumping, de empresas de países terceiros) e, sendo caso disso, aplicar contra eles as medidas apropriadas.

Embora a base jurídica para a intervenção da Comunidade seja idêntica, existem contudo diferenças vincadas entre os dois regulamentos. No que se refere às práticas de dumping e de subvenção, as disposições aplicáveis do GATT foram retomadas em substância no Regulamento (CEE) n.° 2176/84 - em conformidade com uma convenção celebrada pelos signatários dos acordos do GATT (6) -, de tal forma que podem facilmente ser invocadas pelos particulares no âmbito do regulamento (ver n.° 8 supra). As coisas apresentam-se de forma um pouco diferente no Regulamento (CEE) n.° 2641/84, sobre as práticas comerciais ilícitas. Os artigos 1.° e 2.° desse regulamento contentam-se em reenviar de forma geral para o direito internacional e para as regras geralmente admitidas. Os antecedentes do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 indicam de forma inequívoca que a remissão para o "direito internacional" é uma remissão para as disposições do GATT; a noção de "regras geralmente admitidas" permite a aplicação das regras inscritas nos acordos do GATT também a países que não subscreveram esses acordos ou refere-se a domínios que, como o sector dos serviços, não se inscrevem no âmbito do GATT (7).

Claro está, esta referência geral inscrita num regulamento de direito comunitário não pode subitamente atribuir efeito directo, na Comunidade, às disposições do GATT que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, tendo em conta o seu espírito, a sua economia e os seus termos, não têm esse efeito directo, isto é, não atribuem aos particulares direitos que estes possam invocar (ver o acórdão de 12 de Dezembro de 1972 nos processos apensos 21 a 24/72, International Fruit Co., Recueil, p. 1219, n.os 20 e 27, e o acórdão de 24 de Outubro de 1973 no processo 9/73, Schlueter, Recueil, p. 1135, n.os 28 e 30). As disposições do GATT apenas poderão produzir efeito directo no interior da Comunidade, de modo a poderem ser invocadas pelos particulares, na medida em que esse efeito possa ser deduzido, explícita ou tacitamente, da norma comunitária de reenvio, no presente caso, o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 (8). Os direitos que os particulares podem dessa forma deduzir das disposições do GATT com base num reenvio efectuado nos termos do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 são, portanto, limitados, num primeiro momento, à possibilidade, materializada num direito de denúncia, de pedir à Comissão que interprete e aplique as disposições do GATT no sentido invocado pelo autor da denúncia. Na medida em que essas disposições sejam menos precisas e na medida em que não tenham sido retomadas textualmente no regulamento comunitário, a competência de interpretação que o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 atribui à Comissão (e, num segundo momento, ao Tribunal de Justiça: ver mais adiante) é mais vasta e os direitos que os particulares podem retirar dessas disposições são delimitados de forma menos precisa que no âmbito de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 2176/84.

12. Todavia, dever-se-á deduzir dessa diferença que afecta a interpretação das disposições do GATT em direito comunitário, tornando-as, em maior ou menor medida, mais facilmente aplicáveis consoante sejam invocadas no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2176/84, por um lado, ou no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, por outro, que o Tribunal de Justiça não dispõe de qualquer poder de fiscalização, no segundo caso, e que o Conselho e a Comissão podem, por si sós, definir, sem fiscalização jurisdicional no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, o conteúdo do que deve ser considerado como prática comercial ilícita à luz do direito internacional (no presente caso, o acordo do GATT)? Naturalmente que não.

O juiz e, de forma especial, o Tribunal de Justiça, têm, com efeito, a competência e a obrigação de interpretar as disposições das leis ou dos tratados desde que essas disposições se tenham tornado aplicáveis no seu ordenamento jurídico próprio (aplicáveis directamente ou aplicáveis indirectamente por transposição ou reenvio), independentemente da questão de saber se, em que medida e com que facilidade os particulares podem obter direitos com base na disposição em questão. O mecanismo jurídico do reenvio em direito internacional privado apresenta a este propósito uma analogia interessante. Embora a disposição de direito internacional para a qual se remete seja, graças ao reenvio e por força dele, inserida e declarada aplicável no ordenamento jurídico interno de forma restrita e a título apenas ocasional, isto é, com vista a uma resolução parcial de determinada relação, e embora os particulares também apenas a título ocasional possam, dessa forma, ver-lhes reconhecidos direitos (ver nota 8, supra), os órgãos jurisdicionais do ordenamento jurídico em questão são, todavia, competentes para interpretar sem restrições a disposição de direito internacional com vista à sua aplicação ao caso concreto. Donde se conclui que a competência do juiz para interpretar uma disposição existe sem restrições desde que essa disposição seja aplicável, nem que seja a título ocasional, e isso independentemente da forma (aqui, no caso de uma disposição de direito internacional, de forma indirecta) como se tornou aplicável, independentemente do alcance do seu efeito directo (isto é, da forma como possa ser invocada pelos particulares) e independentemente da facilidade com que possa ser aplicada.

13. Se as disposições de direito estrangeiro - que foram inseridas e declaradas aplicáveis de forma restrita no ordenamento jurídico interno por uma norma de direito internacional privado - são susceptíveis de ser interpretadas pelo juiz do ordenamento jurídico interno, o mesmo não valerá, a fortiori, para as disposições internacionais, como as disposições do GATT, que, uma vez que vinculam a Comunidade, fazem directamente parte do ordenamento jurídico interno e neste são aplicáveis? Enquanto disposições directamente aplicáveis, devem ser utilizadas pelo juiz como critério de interpretação, independentemente da questão de saber se podem ser invocadas pelos particulares. A jurisprudência do Tribunal de Justiça tem como pacífico que os juízes da Comunidade podem interpretar as disposições do GATT sob a fiscalização do Tribunal de Justiça que, por via das decisões prejudiciais, também procede ele próprio à interpretação dessas disposições, de modo a que sejam aplicadas de modo uniforme no conjunto da Comunidade (ver o acórdão de 16 de Março de 1983 nos processos apensos 267 a 269/81, Administração italiana das Finanças do Estado/SPI e SAMI, Recueil, p. 801; ver também o acórdão de 16 de Março de 1983 nos processos apensos 290 e 291/81, Singer e Geigy/Administração das Finanças do Estado, Recueil, p. 847).

Essa competência do Tribunal de Justiça, que lhe permite interpretar as disposições do GATT, também vale, com efeito, de forma geral, quer quando se trate (como no presente caso) defiscalizar a validade dos actos comunitários, quer quando se trate de julgar da compatibilidade das disposições legislativas nacionais com as disposições do GATT (n.° 15 do referido acórdão proferido nos processos 267 a 269/81). Essa competência também existe quando se trate de interpretar as disposições do GATT face a um comportamento no interior da Comunidade ou quando se trate de as interpretar para julgar um comportamento, no presente caso, de um país terceiro, no comércio externo da Comunidade. De resto, foi precisamente a propósito do comércio externo que o Tribunal de Justiça declarou que a constatação de que os particulares não se podem prevalecer directamente das disposições do GATT em causa "em nada prejudica a obrigação, para a Comunidade, de assegurar, nas suas relações com os Estados terceiros que sejam partes do acordo geral, o respeito das suas disposições" (acórdão de 16 de Março de 1983 no processo 266/81, SIOT/Ministérios italianos das Finanças e da Marinha, Recueil, p. 731 e seguintes, n.° 28, p. 780, vigésimo oitavo considerando).

14. Quando interpretam as disposições de direito internacional, em especial as disposições do GATT, para as quais, como já referi, o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 remete de forma geral, as autoridades comunitárias devem naturalmente inspirar-se nos adequados princípios de interpretação, designadamente tal como são formulados nos artigos 31.° a 33.° da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados. Em conformidade com esses princípios, as disposições de um tratado devem ser interpretadas de boa-fé, de acordo com o sentido corrente a atribuir aos seus termos, no seu contexto e à luz do seu objecto e da sua finalidade, tendo em conta qualquer acordo posterior celebradoeventualmente pelas partes contratantes sobre a sua intepretação e/ou qualquer prática que posteriormente tenha sido seguida para a aplicação desse tratado e que estabeleça a existência de um acordo desse tipo (9). Isso significa que cada uma das partes signatárias de um tratado deve inspirar-se, não apenas nas suas próprias concepções e interpretações, mas também nas das outras partes contratantes. Uma interpretação que, tendo-se em conta o sentido corrente e o contexto, deva ser qualificada de extensiva, e que, face ao objecto e à finalidade do tratado, vá além dos limites de uma interpretação teleológica normal, deve ser rejeitada quando se verifique não encontrar fundamento em acordos posteriormente subscritos entre as partes signatárias do tratado ou na prática posteriormente seguida de forma uniforme na aplicação do tratado pelas referidas partes (10). Com efeito, essa interpretação não seria conforme ao acordado pelas partes do tratado.

As regras de interpretação que acabo de recordar devem ser respeitadas tanto pelo Conselho e pela Comissão como pelo Tribunal de Justiça. Com efeito, contrariamente ao que ocorre no seio do ordenamento jurídico comunitário, o Tribunal de Justiça não pode, no que se refere ao GATT, proferir acórdãos interpretativos que tenham força obrigatória fora da Comunidade, dado que não tem por missão assegurar uma interpretação uniforme das disposições do GATT face aos outros signatários desse acordo (11). Razão pela qual o Tribunal de Justiça se deve abster de proceder a interpretações extensivas das disposições do GATT que possam ir além dos métodos de interpretação normais, designadamente teleológicos, quando essas interpretações não encontrem fundamento num consenso explícito ou tácito das partes signatárias do GATT. Do mesmo modo, deve velar por que a Comissão respeite as normas de interpretação acima referidas e rejeite qualquer interpretação extensiva (que vá além do que acabo de expor) dos direitos e vantagens de que beneficiam a Comunidade ou os nacionais dos países membros quando empresas autoras de denúncias lhe peçam para interpretar as disposições do GATT no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84. Portanto, a competência da Comissão em matéria de interpretação das disposições do GATT está claramente submetida à fiscalização jurisdicional do Tribunal.

Referência ao interesse da Comunidade

15. A condição relativa ao interesse da Comunidade desempenha no Regulamento (CEE) n.° 2641/84 um papel diferente do que lhe cabe no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2176/84. De resto, a Comissão não deixou de comentar largamente essa diferença, devido às suas implicações globais para a situação jurídica dos autores da denúncia. No Regulamento (CEE) n.° 2641/84 o interesse da Comunidade intervêm já desde o fim da análise prévia: desde que se verifique, após a consulta instituída pelo regulamento, que o pedido contém elementos de prova suficientes para justificar a abertura de um inquérito, a Comissão pode decidir dar início a esse processo desde que entenda "que tal será necessário no interesse da Comunidade" ((n.° 1 do artigo 6.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)). O mesmo não ocorre no âmbito do regulamento antidumping e antissubvenção: quando, no termo da análise prévia, a Comissão constate que existem elementos de prova suficientes, "deve imediatamente ((...)) anunciar o início de um processo" ((n.° 1 do artigo 7.° do Regulamento (CEE) n.° 2176/84)). É apenas no decurso ou no termo do processo de inquérito propriamente dito que a Comissão institui direitos provisórios ou toma medidas definitivas quando "os interesses da Comunidade exigem uma acção comunitária" ((n.° 1 do artigo 11.° e n.° 1 do artigo 12.° do Regulamento (CEE) n.° 2176/84)) (12).

16. Portanto, a liberdade de apreciação da Comissão (ou, eventualmente, do Conselho) exerce-se mais rapidamente no âmbito do regime do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 do que no regime do Regulamento (CEE) n.° 2176/84, dado que pode ter sido já tomado em conta o interesse da Comunidade numa fase inicial do processo. Mesmo quando a Comissão chegue à conclusão de que a existência de práticas comerciais ilícitas e de um prejuízo é suficientemente verosímil para justificar a abertura do processo de inquérito propriamento dito, pode, ainda assim, renunciar a esse processo em nome do interesse da Comunidade.

Dever-se-á, todavia, daí concluir que o Regulamento (CEE) n.° 2641/84 não permite ao Tribunal de Justiça fiscalizar (de forma marginal ou periférica) a valoração que tenha sido feita do interesse da Comunidade, enquanto o Regulamento (CEE) n.° 2176/84 autoriza essa fiscalização - como se conclui do n.° 41 dos fundamentos do acórdão que o Tribunal proferiu em 14 de Julho de 1988 e que já citei anteriormente no n.° 8? A Comissão sustenta que essa diferença existe de facto: ressalvados os seus direitos quanto às garantias processuais, o autor da denúncia apenas teria no presente caso o "direito" de convidar a Comissão a examinar a sua denúncia com o cuidado necessário, sem poder obrigá-la a abrir um inquérito, mesmo na hipótese de a denúncia conter "elementos de prova suficientes" (ver o relatório para audiência, n.os 16 e 17). Se pudesse obrigar a Comissão a abrir um inquérito, o autor de denúncia poderia então, segundo a Comissão, influenciar a política comercial das instâncias comunitárias e atar as mãosdo Conselho e da Comissão. Isso não é possível nem lícito: a referência ao interesse da Comunidade significa desde logo que a Comissão dispõe, pelo menos no regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84, de um poder discricionário de natureza política que não pode (a Comissão parece por vezes afirmar: dificilmente pode) ser submetido a fiscalização jurisdicional (13).

Portanto, a questão que se coloca é a de saber se o facto de a Comissão poder decidir numa fase inicial o não prosseguimento do processo no interese da Comunidade - e é inegável que dispõe desse poder -, implica, como afirma nos presentes autos a Comissão, que essa decisão não é susceptível de ser submetida a uma fiscalização jurisdicional?

17. Neste ponto da minha exposição, gostaria de me debruçar brevemente sobre o artigo 301.° do US Trade Act de 1974, na redacção que lhe foi dada pelas Public Laws 93-618 (1975), 98-573 (1984) e 100-418 (1988).

O artigo 301.° permite ao United States Trade Representative ("USTR") (14) abrir, oficiosamente ou a pedido, um inquérito sobre as práticas de países terceiros que causem prejuízo aos "direitos internacionais" dos Estados-Unidos, que lhe recusem o "tratamento nacional" ou o tratamento de nação "mais favorecida" ou sobre práticas "não razoáveis" (unreasonable). Quando tal for o caso, o USTR adoptará medidas de retorsão como resposta a essas práticas. O USTR actua por sua própria iniciativa ou quando lhe tenha sido apresentada uma denúncia. O artigo 301.°, alínea d), n.° 3, indica que a expressão "não razoáveis" se refere às práticas que, semnecessariamente prejudicarem os direitos internacionais dos Estados Unidos, podem, contudo, ser qualificadas de "unfair" (injustas) e "inequitable" (iníquas). Além disso, precisa-se que esses termos dizem respeito à recusa de dar às empresas americanas oportunidades justas e equitativas de acesso aos mercados estrangeiros ou de concorrência nesses mercados. O texto do artigo 301.° demonstra que a intervenção do USTR não tem que ser necessariamente uma reacção a práticas "ilegais" ou "ilegítimas" de países terceiros, o que situa claramente a intervenção do USTR no sector da política comercial e mesmo, simplesmente, no sector político (15). Até 1988 era admitido, de modo geral, que o poder de intervenção que o artigo 301.° atribui ao presidente, tendo-lhe sido apresentada denúncia ou não, era um poder absolutamente descricionário sobre o qual também não se podia exercer qualquer fiscalização jurisdicional (16). A lei de 1988 transferiu essa competência para o USTR e, ao fazê-lo, reduziu-a ligeiramente, no sentido de que o USTR está, por vezes, obrigado a abrir um inquérito (17). Todavia, de forma geral, é ainda hoje possível ao USTR iniciar ou não um processo de inquérito face a um caso concreto - podendo o seu poder de investigação ficar "subject to the direction of the President" no que se refere a certas modalidades (ver artigo 301.°, alínea a), n.° 1) - e, portanto, é exacto que a sua competência não é susceptível de fiscalização jurisdicional.

18. Possa esta breve referência ao direito dos Estados Unidos da América mostrar quando e porquê a competência de uma autoridade pública pode ser qualificada de poder discricionário de natureza política, insusceptível de fiscalização jurisdicional. Com efeito, tal parece ser o caso quando as noções-chave às quais sesubordina o exercício desse poder não são juridicamente definíveis. No caso do artigo 301.°, com efeito, é possível ao USTR (ressalvada a alteração introduzida em 1988) intervir quanto a práticas que, na sua opinião, embora lícitas em termos de direito, não são contudo razoáveis, ou são injustas ou iníquas. Face aos exemplos enunciados no artigo 301.°, alínea d), n.° 3, ponto B, essas três qualificações têm um conteúdo político, ou, pelo menos, não têm qualquer conteúdo jurídico; portanto, não são susceptíveis de fiscalização jurisdicional. A aplicação desses conceitos foi confiada a uma autoridade cuja legitimidade é política por excelência (tratava-se até 1988 do presidente e, daí em diante, do USTR, que responde perante o presidente e o Congresso) (18). O contrário ocorre no que se refere ao regime instituído pelo Regulamento (CEE)n.° 2641/84. Nos termos desse regulamento, a Comissão apenas tem o poder de dar início a um processo de inquérito quando tenha sido apresentada a prova de uma prática comercial ilícita (19). A decisão da Comissão está, pois, antes do mais, relacionada com um conjunto de normas que podem ser definidas juridicamente (no presente caso, a violação das normas jurídicas internacionais; ver supra, n.os 10 e seguintes). O interesse da Comunidade tem apenas um papel de condição acessória que permite à Comissão não iniciar o processo. Mas, creio eu, também em tal caso a decisão da Comissão não é totalmente livre, pelo menos dado que a Comissão deve expor - e, creio ainda, fundamentar - a razão pela qual lhe "parece" que o interesse da Comunidade não exige a abertura de um processo de inquérito. Com efeito, creio que o princípio da boa administração exige que a Comissão apresente um mínimo de razões que expliquem por que motivo adoptou esse ponto de vista, quando, por hipótese, exista um princípio de prova sobre a existência de práticas comerciais ilícitas e de um prejuízo delas resultante.

19. Trata-se aqui, em substância, do problema bem conhecido da fiscalização jurisdicional a exercer face a uma competência dos poderes públicos caracterizada por uma grande liberdade de apreciação ou mesmo por um grande poder discricionário. Como escreveu Mertens de Wilmars, antigo presidente do Tribunal de Justiça, em artigo que consagrou à forma como actua o Tribunal de Justiça face a uma situação deste tipo, é por etapas que o poder judicial exerce a sua fiscalização quanto a essas competências; começa por verificar se a autoridade não se afastou da matéria para a qual lhe foi atribuído esse vasto poder discricionário; analisa seguidamente se as circunstâncias de facto e de direito às quais está subordinado o exercício dessa competência estão preenchidas e foram correctamente qualificadas; finalmente, verifica se o exercício propriamente dito desse vasto poder discricionário é conforme aos princípios gerais do direito (20), em especial o princípio da boa administração, o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e a obrigação de fundamentar as decisões.

O facto de ser dado à autoridade pública, como princípio directriz da sua intervenção, um conceito tão fluido como o do "interesse da Comunidade", não significa o desaparecimento da fiscalização jurisdicional, ainda que, como no presente caso, esse conceito apenas desempenhe um papel complementar (e negativo), podendo levar a autoridade a renunciar a uma intervenção cujo exercício depende, antes do mais, da existência de práticas ilícitas. Esses conceitos abertos com conteúdo normativo são aplicados regularmente em direito privado, como, por exemplo, o interesse da criança ou da família ou o interesse da sociedade. Isso não implica que o juiz se deva abster de exercer a sua fiscalização, pois também nesse caso deve velar por que não se verifique um desvio de poder. Em contrapartida, deve abster-se de efectuar uma fiscalização completa (isto é, uma fiscalização mais do que marginal ou periférica), dado que não lhe é possível penetrar no âmago da apreciação efectuada pela pessoa ou pela autoridade à qual foi confiado esse poder, de direito privado ou público.

Em conclusão, pode-se afirmar que a referência ao interesse comunitário enquanto condição complementar (a acrescer à condição de uma violação do direito internacional) e negativa (permitindo à Comissão não agir) não exclui a fiscalização jurisdicional, mas limita-a consideravelmente. Não exclui a fiscalização jurisdicional dado que o juiz deve verificar se as condições jurídicas para o exercício do poder largamente discricionário estão preenchidas e se as garantias processuais foram respeitadas, se as circunstâncias de facto estão provadas e foram correctamente qualificadas e se o poder atribuído foi exercido em conformidade com os princípios da boa administração, em especial com o princípio da igualdade, e após ter sido feita uma correcta apreciação dos interesses em jogo. Em contrapartida, a fiscalização jurisdicional continua a ser limitada, dado que, em última análise, é a Comissão que deve definir em que consiste concretamente o interesse da Comunidade. No regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84, o facto de a apreciação do interesse da Comunidade por parte da Comissão ocorrer em fase anterior em relação ao momento em que intervém no regime do Regulamento (CEE) n.° 2176/84, não introduz, na minha opinião, qualquer diferença no que se refere ao alcance da fiscalização jurisdicional, mesmo que essa diferença tenha por efeito ser mais cedo desatendida a denúncia.

C - Conclusão da primeira parte

20. A comparação do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 com os regulamentos (anteriores e actuais) em matéria de combate ao dumping e às subvenções não permitiu aduzir argumentos a favor da conclusão de que o ponto de vista adoptado pelo Tribunal de Justiça nos precedentes processos Fediol no que se refere aos regulamentos antidumping e anti-subvenções (ver supra, n.° 8) não é aplicável da mesma forma no âmbito do Regulamento (CEE) n.° 2641/84. Em nenhum dos casos a Comisssão dispõe de um poder discricionário de natureza política ao abrigo de toda e qualquer fiscalização jurisdicional. Também não é menos verdade que no regime instituído pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84 a Comissão dispõe de um poder, não negligenciável, de interpretação do direito internacional e, numa fase inicial do processo, de um vasto poder discricionário para a apreciação do interesse da Comunidade, mas esses dois poderes podem ser sujeitos a fiscalização jurisdicional.

Segunda parte: O exercício concreto da fiscalização jurisdicional

21. Como já afirmei no início, a recorrente denunciou à Comissão duas práticas da Argentina que qualificou de práticas comerciais ilícitas, na acepção do Regulamento (CEE) n.° 2641/84. Limitar-me-ei a um breve resumo das práticas denunciadas e, para uma exposição mais detalhada, remeto para o relatório para audiência. A denúncia da Fediol tinha por objecto, antes de mais,um "sistema de garantia das margens" destinado a assegurar à indústria argentina de transformação de soja uma oferta importante de favas de soja a preço inferior ao preço praticado no mercado mundial. O elemento operacional (essencial) do sistema é o que se convencionou designar por "regime de encargos diferenciais", aplicável à importação dos produtos do complexo de soja (ou seja, favas, óleo e bagaço). Nos termos desse regime, a exportação de favas de soja (de que se extrai o óleo de soja e o bagaço) é mais fortemente tributada que a exportação de óleo ou de bagaço de soja. Segundo a denúncia apresentada pela Fediol, os respectivos encargos são calculados com base em preços de referência artificiais fixados para esses produtos pelas autoridades argentinas. A mais forte tributação das favas de soja teria por efeito aumentar a oferta desse produto no mercado argentino e diminuir o seu preço de venda para a indústria oleícola argentina, de modo que esta pôde realizar margens importantes (dispondo, de facto, de uma "garantia de margens"), graças ao que pôde vender esses produtos no mercado mundial a preços inferiores ao normal.

Em segundo lugar, a denúncia da Fediol dizia respeito à existência de restrições quantitativas à exportação de favas de soja, designadamente sob a forma de interrupções esporádicas do registo (obrigatório) das exportações de favas de soja.

Por meio da decisão impugnada, a Comissão desatendeu a denúncia da recorrente quanto a esses dois pontos. Se a decisão não contesta a existência do "regime de encargos diferenciais", afirma, contudo, que não é incompatível com nenhuma das disposições do GATT que adiante analiso. No que se refere às alegadas restrições quantitativas à exportação, a decisão afirma que a denúncia da Fediol não continha a menor prova da existência dessas restrições (ver também supra, n.° 5, in fine). Ao decidir desse modo, a Comissão limitou-se a ajuizar da existência, em termos de facto, e do fundamento jurídico das práticas denunciadas (sem invocar, em apoio da sua decisão, o interesse da Comunidade).

Nos parágrafos seguintes, passarei em revista os diferentes pontos da decisão da Comissão e analisarei se, em relação a cada um deles, a Comissão não terá exorbitado da competência que lhe foi atribuída, isto é, no que respeita ao presente processo, principalmente a competência para interpretar as disposições do GATT que permitem concluir pela natureza lícita ou não das práticas denunciadas (21).

A - Terão sido violadas disposições específicas do GATT?

A alegada violação do n.° 1 do artigo III do GATT

22. Este artigo dispõe, designadamente, que os encargos (22) ou outras imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, que afectem as transacções "internas", tais como a venda, a colocação à venda, a compra, etc., não podem ser aplicados aos produtos "importados ou nacionais" de forma a proteger a produção nacional.

A recorrente entende que os encargos diferenciais aplicados pela Argentina podem ser seguramente considerados encargos internos dado que, embora apenas sejam cobrados sobre os produtos exportados, as diferenças entre as taxas aplicáveis teria consequências indirectas no mercado interno, ou seja, a indústria nacional de transformação de soja resultaria protegida. Além disso, a recorrente alega que o n.° 1 do artigo III não visa apenas proteger os produtos importados contra a imposição de encargos discriminatórios, mas proíbe ainda que a protecção da produção nacional tenha por efeito que a exportação de produtos acabados prejudique sectores industriais de países terceiros. Em apoio da sua afirmação, a recorrente remete, designadamente, para os trabalhos preparatórios referentes ao artigo III do GATT e para a jurisprudência do Tribunal de Justiça referente ao artigo 95.° do Tratado CEE (23).

A Comissão refuta os argumentos da recorrente, observando que o n.° 1 do artigo III do GATT apenas diz respeito à cobrança de encargos internos e, principalmente, apenas proíbe qualquer tratamento discriminatório dos produtos importados face aos produtos nacionais. Não sendo os encargos argentinos denunciados "encargos internos" mas, pelo contrário, encargos na exportação, não podem, segundo a Comissão, cair no âmbito de aplicação do n.° 1 do artigo III; por conseguinte, a denúncia apresentada pela recorrente não continha, quanto a este ponto, elementos de prova suficientes quanto à existência de uma violação daquele artigo.

23. Analisando o teor e o alcance do n.° 1 do artigo III do GATT, bem como a aplicação que na prática lhe tem sido dada, vê-se que se justifica a interpretação que dele fez a Comissão. O facto de certos encargos na exportação protegerem a produção nacional não basta para que se possam considerar encargos internos, isto é, encargos aplicáveis às transacções internas (ver o teor do n.° 1 do artigo III). Além disso, o artigo refere-se insistentemente aos produtos importados ou nacionais e não aos produtos exportados. De resto, a recorrente não pôde apresentar qualquer precedente a partir do qual se pudesse concluir que os encargos na exportação também podem cair no âmbito de aplicação do n.° 1 do artigo III. O trecho dos trabalhos preparatórios que cita também não diz respeito aos encargos na exportação(24).

Além disso, convém observar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça referente à interpretação do artigo 95.° não pode ser pura e simplesmente transposta para a interpretação do GATT por via analógica. Com efeito, o Tratado CEE não tem nem o mesmo objectivo nem o mesmo alcance que o GATT; enquanto o GATT se destina a liberalizar o mercado mundial, o Tratado CEE destina-se a construir um mercado único, reproduzindo as condições que se aproximem o mais possível das que caracterizam um mercado interno (25). Contudo, esta diferença não impede que possa ser dada a mesma interpretação a disposições dos dois tratados cujo teor e alcance possibilitem essa identidade de interpretação. Todavia, a recorrente não indica razões que no presente caso justifiquem esse pedido de interpretação.

A alegada violação do n.° 1 do artigo XI do GATT no que se refere ao sistema de garantia das margens

24. O n.° 1 do artigo XI visa eliminar todas as restrições quantitativas, tanto à importação como à exportação de mercadorias, quer a sua aplicação seja feita por meio de contingentes, de licenças de importação ou de exportação, ou "por qualquer outro meio". "Os direitos aduaneiros, encargos ou outras imposições" são, todavia, excluídos formalmente do âmbito de aplicação dessa disposição.

Apesar da exclusão formal dos "direitos aduaneiros, encargos ou outras imposições" do âmbito de aplicação do n.° 1 do artigo XI, a Fediol alega na sua denúncia que as práticas argentinas são, ainda assim, incompatíveis com esse artigo: o regime dos encargos diferenciais mais não seria que parte de um sistema global de garantia das margens, de que certos outros elementos, designadamente a fixação de preços de referência artificiais, cairiam na noção de "outro meio" no sentido do artigo XI, expressão que visaria as medidas de efeito equivalente a restrições à exportação.

A decisão da Comissão parte do princípio de que o sistema argentino denunciado consiste "fundamentalmente" num regime de encargos diferenciais na exportação e na fixação de preços de referência que constituem a base da tributação. Portanto, a Comissão considera que não se pode tratar da violação do n.° 1 do artigo XI. Segundo a Comissão, as práticas argentinas apenas poderiam ser proibidas pelo n.° 1 do artigo XI se o nível dos encargos fosse de tal modo elevado que equivalesse a uma restrição quantitativa ou a uma proibição de exportação. Ainda de acordo com a decisão da Comissão, essa hipótese está excluída no caso concreto, já que resulta das estatísticas que a importação pela Comunidade de favas de soja provenientes da Argentina aumentou consideravelmente entre 1981 e 1985 (ou seja, no decurso dos quatro anos que precederam a apresentação da denúncia da Fediol).

25. A recorrente sustenta perante o Tribunal de Justiça que certos componentes essenciais do regime denunciado (ou seja, a fixação de preços de referência artificiais) constituem medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas e, por conseguinte, são incompatíveis com o n.° 1 do artigo XI. Portanto, a sua argumentação funda-se em duas premissas. A primeira é a de que o sistema argentino (que a recorrente qualifica de sistema de garantia das margens) se compõe de diferentes elementos, devendo cada elemento, em especial a fixação de preços de referência artificiais, ser confrontado com as exigências do GATT enquanto elemento autónomo. A segunda premissa é a de que o n.° 1 do artigo XI proíbe, não apenas as restrições quantitativas à exportação, mas ainda, para retomar a terminologia do Tratado CEE, as medidas de efeito equivalente a restrições à exportação. A este propósito, de resto, remete para a jurisprudência do Tribunal de Justiça referente aos artigos 30.° e 34.° do Tratado CEE.

Nenhuma destas duas premissas me convence e, das duas, a que ainda me convence menos é a segunda. Com efeito, creio que se as partes signatárias dos acordos do GATT tivessem pretendido proibirtambém as medidas de efeito equivalente, no prolongamento das restrições quantitativas à exportação - as únicas a que se faz referência no título do artigo XI -, teriam podido fazê-lo nos termos explicítos em que o fizeram os autores do Tratado CEE. Em conformidade com o que, de forma geral, afirmei anteriormente (ver n.° 14), não compete à Comissão (como sugere a recorrente na réplica), e muito menos ao Tribunal de Justiça, proceder a essa importante assimilação, fundando-se numa interpretação extensiva que não tem por base um consenso das partes do acordo, quer explícito, quer resultante da prática seguida na aplicação desse Acordo, nem adoptar, com base nessa assimilação, eventuais medidas contra outra parte contratante do GATT. A primeira premissa também não me convence mais. A fixação de preços de referência é uma das componentes do regime de encargos diferenciais e determina, designadamente, a base de tributação, não se inserindo enquanto tal na proibição inscrita no n.° 1 do artigo XI.

Face aos elementos que acabo de expor, não há que analisar com mais detalhe o estudo realizado por um grupo de trabalho do GATT em 1950 e que, manifestamente, diz respeito às restrições quantitativas à exportação (e não às medidas que lhes são assimiladas), como de resto também não há que analisar o argumento baseado na jurisprudência do Tribunal e referente aos artigos 30.° e 34.° do Tratado CEE (26). Quanto às estatísticas que as partes invocam, não comportam qualquer indicação que sugira que tenham sido estabelecidas restrições quantitativas à exportação (ver também o número seguinte). O argumento relativo à suspensão das licenças de exportação é analisado no número seguinte.

A alegada violação do n.° 1 do artigo XI do GATT no que se refere à suspensão esporádica das licenças de exportação

26. A denúncia da Fediol mencionava ainda a suspensão periódica das licenças de exportação relativas a favas de soja pela via da suspensão do registo (ou das formalidades de registo) (obrigatório/as) para a exportação desses produtos; em apoio dessa afirmação, a denúncia remetia para o teor de um artigo de revista (em língua inglesa).

A decisão impugnada declara quanto a esse ponto que a denúncia não contém qualquer elemento de prova a esse respeito, e para o efeito remete ainda para as estatísticas já mencionadas, referentes à exportação de favas de soja para a Comunidade Europeia, que indicam um crescimento dessas exportações. Segundo a Comissão, essas estatísticas implicam que a denúncia da recorrente não demonstrou de forma bastante que se tenham efectivamente verificado suspensões das licenças de exportação (27). Na contestação, a Comissão acrescenta que, segundo o citado artigo de imprensa, as (alegadas) suspensões ter-se-iam fundado na necessidade de proceder a adaptações na sequência de certas alterações dos preços de referência no âmbito do denunciado sistema de imposições. Sendo esse o caso, as suspensões justificam-se face ao disposto na alínea b) do n.° 2 do artigo XI.

27. Esta parte da decisão da Comissão funda-se, como já por diversas vezes referi, antes do mais, na ponderação dos elementos de prova apresentados pela Fediol. Há que concluir dos dados queconstam da denúncia e do requerimento inicial que o sistema argentino de licenças de exportação de favas e de soja é o que se convencionou designar por sistema de licenças "automático", não estando a passagem das licenças exigidas sujeita a qualquer condição. As partes não contestam que o n.° 1 do artigo XI do GATT não proíbe, de forma alguma, semelhantes licenças (28). A única questão que, portanto, se põe é a que se refere à alegada suspensão dessas licenças.

A denúncia continha elementos de prova suficientes quanto a esse ponto? Observe-se que o artigo invocado não provém de qualquer fonte oficial, nem mesmo de fonte argentina, mas, aparentemente, foi retirado de uma publicação especializada, europeia ou americana, cuja origem não é mencionada de forma clara na denúncia ou no requerimento inicial do recurso. O artigo em questão versa sobre o aumento dos encargos diferenciais adoptado na sequência de uma desvalorização de 18% do peso e apenas no final da exposição se assinala que foi temporariamente suspenso o registo das exportações para se poderem efectuar "as adaptações necessárias". Portanto, resulta do próprio teor do artigo que, a ter havido qualquer restrição, foi introduzida apenas a título temporário e no âmbito de uma alteração do regime de encargos diferenciais, regime que, se nos reportarmos ao teor do n.° 1 do artigo XI, não cai, enquanto tal, no âmbito de aplicação desse artigo.

Dado que o único elemento de prova apresentado é um artigo de revista que praticamente não foi identificado e que, admitindo que tenha existido, ainda que temporariamente, a restrição em causa, enquanto parte do regime de imposições, não cai no âmbito de aplicação do n.° 1 do artigo XI, entendo que, nessas condições, a Comissão podia decidir que a denúncia da Fediol não continha elementos de prova suficientes quanto à existência de restrições ilícitas à exportação. Também aqui, os dados estatísticos não fornecem qualquer elemento conclusivo.

A alegada violação do artigo XX do GATT

28. O artigo XX contém uma enumeração de um certo número de práticas que, apesar da sua natureza de restrições ao comércio, são, contudo, autorizadas expressamente no âmbito do GATT, na condição (de ordem geral) de não constituirem, nem uma forma de discriminação arbitrária ou injustificada, nem uma restrição dissimulada ao comércio internacional. A recorrente sustenta que as práticas argentinas denunciadas constituem uma violação da alínea i) do artigo XX (esse fundamento de recurso está reproduzido por extenso no relatório para audiência, n.° 50). Este artigo, que autoriza a derrogação condicional no que se refere às restrições à exportação de matérias-primas nacionais, constitui, para a recorrente, uma disposição autónoma de proibição, caso as condições que enuncia não sejam preenchidas. Caso o Tribunal não compartilhe esse ponto de vista, as práticas denunciadas deverão ser consideradas ilícitas em aplicação do artigo XX, conjugado com os artigos III, XI, n.° 1, e XXIII. A alegada violação do artigo XX foi invocada pela Fediol na ampliação do pedido que apresentou em 9 de Maio de 1986. A Comissão rejeita a tese segundo a qual o artigo XX, que, segundo ela, não contém obrigações suficientemente concretas, comporta uma proibição autónoma. Afirma que, dado que a alínea i) do artigo XX contém uma derrogação ao artigo XI, essa disposição será apenas aplicável quando tenha sido violado o artigo XI (isto é, quando se esteja em presença de restrições quantitativas à exportação), o que não ocorre no presente caso (ver supra, n.os 24 a 27).

29. Parece-me que devemos partilhar a posição da Comissão. Quer o teor do artigo XX (29), quer a prática seguida na sua aplicação, mostram que essa disposição não é entendida como tendo instituído obrigações ou proibições próprias. De resto, reformular uma norma geral, partindo de uma excepção a essa mesma norma geral, parece-me um método de interpretação contestável. Portanto, a Comissão decidiu de forma juridicamente correcta que a denúncia da Fediol não continha elementos de prova suficientes quanto a este ponto.

Se é verdade (como sublinha a recorrente) que na decisão impugnada a Comissão não abordou a questão da alegada violação do artigo XX, pelo menos observou, quanto a esse ponto, que a sua decisão não tem que corresponder de forma detalhada a todos os pontos da argumentação exposta na denúncia. A regra, arvorada em princípio pelo primeiro acórdão Fediol proferido pelo Tribunal de Justiça, é de que a decisão da Comissão deve ser notificada ao autor da denúncia e de que "essa informação deve, pelo menos, comportar uma exposição das conclusões essenciais da Comissão e um resumo dos seus fundamentos, nos mesmo termos do que está estabelecido ((...)) para o caso de encerramento dos inquéritos formais" (Recueil 1983, p. 2934, n.° 25). No presente caso, essa exigência foi satisfeita, dado que a decisão da Comissão se fundou essencialmente numa análise dos artigos III, XI e XXIII.

B - Terá sido violado o artigo XXIII do GATT, relativo ao processo?

30. O artigo XXIII tem por objectivo proteger as facilidades e vantagens atribuídas em aplicação do GATT. Permite às partes signatárias do GATT intervirem em certos casos quando constatem que uma das facilidades ou vantagens que para elas resultam do acordo foi anulada por a outra parte contratante não ter cumprido as suas obrigações ((alínea a) )), ou por ter aplicado uma medida, contrária ou não às disposições do acordo ((alínea b) )), ou por qualquer outra situação ((alínea c) )). A recorrente sustenta que as vantagens concedidas à Comunidade ficaram reduzidas a nada em razão de uma intervenção da Argentina contrária às disposições do GATT ou de uma intervenção ilícita da Argentina que, contudo, não é contrária às disposições do GATT. Na primeira hipótese, não seria necessário fazer prova de que as vantagens foram, como se diz no texto do acordo, anuladas, dado que a violação do acordo do GATT constituiria uma princípio de presunção de que se atentou contra uma vantagem (30) e, na segunda hipótese, a anulação dessas vantagens representaria uma violação da confiança legítima, pelo menos quanto a três pontos.

Antes de analisar esta argumentação em mais detalhe, convém observar que a recorrente não conseguiu demonstrar a existência de uma violação do artigo XXIII enquanto tal, pelo menos nesta fase do processo. Esse artigo não contém, com efeito, qualquer norma substantiva, prevendo apenas um processo que as partes contratantes do GATT que assim o desejem devem seguirquando considerem que uma vantagem resultante do acordo está anulada ou comprometida. Esse artigo diz respeito, pois, a uma eventual intervenção de uma das partes do GATT que se considere prejudicada (na ocorrência, a Comunidade) e não contém qualquer preceito que permita julgar as práticas denunciadas (trata-se, no presente caso, das práticas seguidas pela Argentina). Acresce que é apenas à parte signatária que se considera prejudicada que cabe recorrer, caso o deseje, ao processo previsto por este artigo.

Esta faculdade de que dispõem as partes contratantes do GATT implica manifestamente um vasto poder discricionário que, no que respeita à Comunidade enquanto parte no acordo do GATT e em conformidade com o Regulamento (CEE) n.° 2641/84, apenas se exerce no decurso da última fase, ou seja, no termo do processo de inquérito propriamente dito, quando se trata de decidir que medidas devem ser tomadas contra uma prática comercial ilícita, que terá então sido já definitivamente constatada. O n.° 2 do artigo 10.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 prevê que nesse momento os processos internacionais de consulta ou de resolução de diferendos eventualmente aplicáveis, como os que prevê o artigo XXIII do GATT, devem ser seguidos, de acordo com o mecanismo complexo para tomada de decisões que se rege pelo disposto na alínea a) do n.° 2 do artigo 11.° e no artigo 12.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84. A invocação do artigo XXIII do GATT por parte da recorrente equivale, pois, de facto, a um pedido ao Tribunal de Justiça para que fiscalize desde logo uma decisão que a Comissão ((com a participação do Conselho: ver artigo 12.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)) ainda não tomou e não podia ainda tomar nessafase, tendo em conta o processo previsto pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84 (31).

Na verdade, a recorrente serve-se do artigo XXIII para afirmar terem sido violados diversos artigos do GATT e um certo número de princípios gerais de direito, alguns dos quais não são, ou quase não são, mencionados na sua denúncia. Embora, pelas razões gerais que antes expus, pudesse deixar de abordar a discussão dessas questões, vou contudo analisar brevemente esses artigos e princípios invocados a título subsidiário e, por assim dizer, através do prisma do artigo XXIII. Ao fazê-lo, não terei em conta os artigos do GATT que já comentei anteriormente (ou seja, os artigos III, XI e XX do acordo do GATT), que voltam a ser invocados - mas agora em conjunto - pela recorrente. Dado que não existiu violação de cada um desses artigos, considerados separadamente, também não vejo como é que, mesmo assim, poderiam ter sido infringidos conjuntamente.

A alegada violação do artigo XVI conjugado com o artigo XX, e do preâmbulo, em conjugação com o artigo XXIII do GATT

31. A propósito do artigo XXIII do GATT, a recorrente alega em primeiro lugar (para além dos artigos III, XI e XX, de que já falámos) que as práticas argentinas anulam certas vantagens e violam o artigo XVI, parte A, do GATT, que proíbe as subvenções. A aplicação do artigo XVI do GATT - primeiramente em si próprio e seguidamente em conjugação com o artigo XX, que já comentei e cuja aplicação afastei (ver supra, n.° 28) - é invocada pela recorrente, relativamente às práticas argentinas denunciadas, pela primeira vez no requerimento inicial.

Quanto a este ponto, observe-se que no âmbito do presente recurso de anulação a Fediol não pode basear qualquer argumento numa disposição do GATT que não tenha invocado na denúncia ou, pelo menos, apresentado antes de a Comissão ter adoptado a decisão ora impugnada (32). Além disso, o artigo diz respeito à atribuição de subvenções, isto é, a uma matéria que não se insere no âmbito de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 (ver supra, n.° 7, nota 4) (33).

A recorrente afirma ainda que a decisão da Comissão constitui uma violação das regras enunciadas no preâmbulo do Acordo do GATT (proibição geral de medidas discriminatórias), em conjugação com os artigos do GATT que contêm normas específicas que proíbem qualquer discriminação. A Comissão responde que o preâmbulo do GATT não enuncia qualquer obrigação especial cujo desrespeito possa, enquanto tal, constituir uma infracção ao Acordo do GATT. Também quanto a este ponto, é correcta a posição da Comissão.

A alegada violação do princípio da confiança legítima, em conjugação com o artigo XXIII do GATT

32. A recorrente afirma, com razão, que é ainda possível recorrer ao processo previsto no artigo XXIII do GATT (mas consultar-se-á também a este propósito o n.° 30 anterior) quando a perda de uma vantagem por uma das partes signatárias do GATT não resulte daviolação de uma obrigação específica fundada no acordo do GATT, mas de uma medida tomada por outra parte contratante ((ou mesmo da existência de outra situação: ver artigo XXIII, n.° 1, alínea c) )). Esta noção de medida pode também incluir, como a recorrente já afirmou na denúncia e depois repetiu mais detalhadamente no requerimento inicial, a violação de normas geralmente admitidas, como por exemplo o princípio da boa-fé ou mesmo a proibição de discriminações (de que trata o preâmbulo do acordo do GATT) ou a proibição de se subtrair às obrigações resultantes do acordo (designadamente, o artigo XVI, que proíbe as subvenções, conjugado com o artigo XX do acordo).

A vantagem que a Comunidade teria perdido por efeito dessa violação residiria na sua confiança legítima, que teria sido prejudicada pelo menos quanto a três pontos (ver, quanto ao restante, o relatório para audiência, n.° 60).

Em contrapartida, a Comissão considera, na sua decisão, que a recorrente não precisa em que consistiria a vantagem anulada em virtude das práticas argentinas denunciadas. A esse propósito, a decisão refere-se ao facto de a consolidação a nível zero do direito de importação sobre o bagaço de soja - que a recorrente apresenta como uma vantagem perdida - não representar qualquer vantagem para a Comunidade (ao que a recorrente replica existir uma vantagem indirecta, ou seja, poder a Comunidade, por esse intermédio, exigir concessões recíprocas), a não ter havido qualquer negociação com a Argentina para esse efeito e a não poderem as vantagens resultantes do acordo do GATT ser consideradas sectorialmente, mas sim de forma global. Na contestação, a Comissão acrescenta ainda a este propósito que "a ofensa a uma vantagem", no sentido do artigo XXIII do GATT, não visa apenas as vantagens de natureza geral, como a ausência de distorções na concorrência internacional ou a ausência de prejuízos para a indústria nacional, mas sim as vantagens bem determinadas que são negociadas pelo Estado em questão.

33. A recusa da Comissão, fundada nestes argumentos, de abrir um processo de inquérito, parece justificada. Antes de mais e principalmente porque, como já disse anteriormente em termos gerais a propósito do artigo XXIII, na actual fase do processo a Comissão ainda não tomou uma decisão baseada nesse artigo (ver supra, n.° 30). Seguidamente, porque o facto de "prejudicar a confiança legítima" não pode, creio eu, ser qualificado de prejuízo ou de vantagem, na acepção do artigo XXIII do GATT, e muito menos quando se trata de expectativas de ordem tão geral como as que são invocadas pela recorrente. A propósito da mais específica dessas expectativas (a consolidação a nível zero dos direitos sobre o bagaço de soja), as observações feitas pela Comissão deixam subsistir sérias dúvidas quanto à sua legitimidade. Finalmente, é muito duvidoso que se trate no presente caso de uma violação do princípio da boa-fé. Como já indiquei (ver supra, n.° 14), esse princípio de interpretação das disposições dos tratados refere-se à necessidade, quando se pede que sejam tomadas medidas contra outro contratante, de não proceder unicamente com base nas suas próprias convicções mas de ter ainda em conta as das outras partes signatárias do acordo.

A alegada violação do artigo XXXVI, que fixa os objectivos gerais do GATT

34. No requerimento ampliado que apresentou em 9 de Maio de 1986 em complemento da denúncia (isto é, antes de a Comissão ter adoptado a decisão em causa), a Fediol também sustentou que era necessário aplicar o artigo XXXVI do GATT. Neste artigo, as partes signatárias do acordo enunciam um certo número de objectivos gerais no domínio do comércio internacional. A decisão impugnada da Comissão não aborda essa parte da denúncia. A recorrente não apresentou pedidos expressos quanto a este ponto no presente processo perante o Tribunal de Justiça.

Entendo que é possível concordar com o ponto de vista da Comissão, que afirma que o artigo XXXVI não contém qualquer obrigação juridicamente compulsória e que não é possível, portanto, concluir com base nesse artigo pela existência de uma prática comercial ilícita.

C - Conclusão da segunda parte

35. Das precedentes observações não resulta que a Comissão, na decisão impugnada, tenha feito uma utilização incorrecta da sua competência.

As despesas

36. A recorrente conclui pedindo a condenação da Comissão nas despesas, mesmo na hipótese de esta obter ganho de causa no presente processo. Funda-se para o efeito no n.° 3 (segundo parágrafo) do artigo 69.° do Regulamento Processual, que permite ao Tribunal condenar uma das partes, mesmo vencedora, a reembolsar à outra parte as despesas em que a tenha feito incorrer e que o Tribunal considere inúteis. Entendo que não há que abordar essa questão, já que os argumentos de direito invocados pela recorrente não resistem a uma análise, como vimos na exposição precedente, e uma vez que, ao desatender a denúncia, a Comissão não obrigou a recorrente a suportar "despesas inúteis", dando ao Regulamento (CEE) n.° 2641/84 uma interpretação inutilmente restritiva.

Ainda assim, sugiro que se aplique a norma inscrita no primeiro parágrafo do n.° 3 do artigo 69.°, nos termos do qual o Tribunal pode determinar que as partes suportem as respectivas despesas quando tenham sido desatendidos alguns dos seus argumentos. No presente caso, há que, na minha opinião, desatender o argumento da Comissão referente ao que ela designa por seu poder discricionário e que invocou como fundamento de inadmissibilidade do recurso de anulação. Razão pela qual entendo que cada uma das partes deve suportar as respectivas despesas (ver, designadamente, o acórdão de 9 de Março de 1978 no processo 54/77, Herpels, Recueil, p. 585; o acórdão proferido em 18 de Março de 1980 nos processos apensos 154, 205, 206, 226 a 228, 263 e 264, 39, 31, 83 e 85/79, Valsabbia, Recueil, p. 907, bem como o acórdão de 25 de Fevereiro de 1985 no processo 56/83, Itália/Comissão, Recueil, p. 705).

Conclusão geral

37. Com base na precedente análise, concluo, portanto, que:

1) deve ser rejeitada a excepção de inadmissibilidade invocada pela Comissão contra o recurso apresentado pela recorrente com vista à anulação da decisão da Comissão de 22 de Dezembro de 1986;

2) deve ser rejeitado o recurso apresentado pela recorrente com vista à anulação da referida decisão da Comissão;

3) cada uma das partes deve ser condenada a suportar as respectivas despesas.

(*) Língua original: neerlandês.

(1) Os Estados-membros também podem pedir à Comissão a abertura do referido processo de inquérito ((n.° 1 do artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)). Além disso, dispõem ainda de um segundo processo ((ver alínea b) do n.° 1, a comparar com a alínea a) do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)).

(2) Essa diferença surge na versão neerlandesa do regulamento devido à escolha das palavras; no n.° 5 do artigo 3.°, refere-se a propósito da apreciação dos elementos de prova: "waneer na overleg blijkt ..." (versão francesa: "Lorsqu' il apparaît que ..."); quanto à dupla apreciação dos elementos de prova, por um lado, e ao interesse da Comunidade, por outro, o n.° 1 do artigo 6.° tem a seguinte redacção: "waneer de Commissie ... van mening is dat ..." (versão francesa : "Lorsque... il apparaît à la Commission que ...") (o sublinhado é nosso).

(3) Na contestação, a Comissão formula ainda uma reserva quanto à admissibilidade do recurso da recorrente pelo facto de o recurso de anulação interposto pela Fediol no processo 187/85, no qual, como já antes indiquei (n.° 1), são postas em causa as mesmas práticas mas sob um ponto de vista diferente, estar ainda pendente no Tribunal de Justiça (ver relatório para audiência, n.° 20). Entretanto, o Tribunal de Justiça proferiu o seu acórdão e a Comissão abandonou a reserva que tinha formulado (ver também a nota seguinte). Na contestação, a Comissão também pôs em dúvida o interesse da Fediol no prosseguimento do processo, devido aos rumores segundo os quais a Argentina teria entretanto abandonado as práticas denunciadas. Esses rumores vieram a demonstrar-se inexactos, como a Comissão reconheceu na audiência.

(4) Regulamento (CEE) n.° 2176/84 do Conselho, de 23 de Julho de 1984, relativo à defesa contra as importações que são objecto de dumping ou de subvenções por parte de países não membros da Comunidade Económica Europeia. As práticas de dumping e de subvenção também se inserem na definição de práticas comerciais ilícitas, mas apenas podem ser atacadas em direito comunitário com base no Regulamento (CEE) n.° 2176/84. Com efeito, o artigo 13.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84 dispõe que esse regulamento não se aplica "nos casos objecto das outras regulamentações existentes no domínio da política comercial comum". No acórdão que proferiu em 14 de Julho de 1988 (processo 187/85, Fediol, Colect. p. 4155) o Tribunal declarou, como já assinalei no n.° 1, que as práticas da Argentina denunciadas pela Fediol não podiam ser qualificadas de "subvenções", na acepção do Regulamento (CEE) n.° 2176/84. No caso que nos ocupa, podemos, pois, analisar se as práticas denunciadas devem ser qualificadas de práticas comerciais ilícitas, na acepção do Regulamento (CEE) n.° 2641/84.

(5) JO 1988, L 209, p. 1.

(6) Os n.os 1 e 6 do artigo 16.° do acordo relativo à aplicação do artigo VI do GATT (versão modificada do código antidumping), bem como os artigos 1.° e 19.°, n.°s 1 e 5, do acordo relativo à interpretação e à aplicação dos artigos VI, XVI e XXIII do GATT (Código das Subvenções e dos Direitos de Compensação), impõem aos signatários desses acordos a obrigação de adaptarem as suas legislações internas e os seus processos administrativos às disposições desses acordos. Ver o preâmbulo do Regulamento (CEE) n.° 2176/84, JO 1984, L 201, p. 1.

(7) Para mais detalhes sobre os antecedentes do regulamento, consulte-se designadamente Bronckers M./Selective Safeguard Measures in Multilateral Trade Relations, Haia, 1985, p. 211 a 219.

(8) Não é necessário, no âmbito deste processo, abordar a questão de saber se as disposições do GATT têm ou não efeito directo (na acepção de que podem ser invocadas pelos particulares), dado que, como posteriormente referirei no texto, a competência de interpretação do Tribunal de Justiça não depende de semelhante efeito da disposição a interpretar na ordem jurídica própria (e também não depende da sua aplicabilidade directa). Para que se compreenda bem o meu raciocínio, gostaria, contudo, de prestar alguns esclarecimentos quanto à minha concepção das coisas. O meu ponto de partida é a diferença que existe entre a aplicabilidade (directa ou indirecta), por um lado, e o efeito directo (na acepção anteriormente definida), por outro, das disposições de direito estrangeiro (ver infra) ou internacionais. Uma disposição é directamente aplicável quando faz directamente parte da ordem jurídica própria, isto é, quando não necessita de transposição (é o caso das disposições do GATT que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, vinculam a Comunidade e fazem integralmente parte do ordenamento jurídico comunitário); é indirectamente aplicável quando é necessário que seja declarada como tal por uma disposição do ordenamento jurídico próprio (é o caso de uma disposição de direito estrangeiro que uma regra de reenvio de direito internacional privado declara aplicável de forma restrita, a saber, para a resolução de umaparte de uma relação jurídica específica; ver infra, n.° 12 do texto). O efeito directo de uma disposição distingue-se da sua aplicabilidade. Por efeito directo deve entender-se que os particulares podem retirar direitos subjectivos de uma disposição revestida de semelhante efeito. Esse efeito depende, em primeiro lugar, da natureza e do alcance da própria disposição em questão (é assim que, segundo o Tribunal de Justiça, face "ao seu espírito, à sua economia e à sua letra", as disposições do GATT, ou pelo menos algumas delas, não têm efeito directo, isto é, não podem ser invocadas pelos particulares). Contudo, considero que essa disposição, que não tem por si só efeito directo, pode ainda, dentro de determinado ordenamento jurídico, ser convertida por uma norma desse ordenamento jurídico numa disposição dotada de efeito directo, isto é, numa norma que pode ser invocada pelos particulares (é o caso das disposições do GATT que são retomadas num regulamento comunitário ou, sendo caso disso, daquelas para as quais remete um regulamento comunitário e das quais os particulares podem, por esse facto, com base e no âmbito desse regulamento, retirar direitos em maior ou menor medida; esse também é o caso de uma disposição de direito estrangeiro ocasionalmente declarada aplicável no ordenamento jurídico próprio por uma regra de reenvio de direito internacional privado e que pode por esse facto ser invocada directamente nesse âmbito). Gostaria ainda de acrescentar que, segundo creio, qualquer disposição internacional ou de direito estrangeiro directamente aplicável num ordenamento jurídico determinado ou onde isso ocorre pela sua transposição para esse ordenamento jurídico, se vê assim conferir, ipso facto, um certo efeito directo dentro desse ordenamento jurídico, no sentido de que pode em qualquer caso ser invocada pelos particulares enquanto critério de interpretação mas também, creio eu, enquanto critério da validade de actos ou de normas inferiores.

(9) Para um breve comentário dos artigos 31.° e seguintes da Convenção de Viena, ver, designadamente, D. Carreau, Droit International, Paris, 1986, p. 363 a 379, n.os 366, 372 e 373.

(10) Isto vale especialmente para o acordo do GATT, atendendo à tradição de arbitragem dos conflitos em caso de consenso das outras partes no acordo, tradição de forma geral admitida no âmbito desse acordo ((de resto, ver o artigo 10.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84, ao qual voltaremos no n.° 15)).

(11) Ver Petersmann E. U.: "Application of GATT by the Court of Justice of the European Communities", Comm. M. L. Rev., 1983, p. 397 a 437, 403, 404 e 417 a 420; Maresceau M.: "The Gatt in the Case-law of the European Court of Justice", em The European Community and GATT, Hilf M., Jacobs F. e Petersmann E. U., ed., 1986, p. 107 a 126, 113 e 117; Ehlermann C. D., "Application of GATT rules in the European Community", em The European Community and GATT, obra citada, p. 127 a 140, 136.

(12) Na mesma ordem de ideias, existe ainda outra diferença entre os dois regulamentos, a saber, no que se refere às medidas que devem finalmente ser tomadas quando a Comissão chega a tal decisão no termo do processo de inquérito. No Regulamento (CEE) n.° 2641/84 é de novo tida em conta a necessidade de semelhantes medidas no interesse da Comunidade (n.° 1 do artigo 10.°) e a compatibilidade das medidas eventualmente adoptadas com as obrigações e os processos internacionais existentes (n.os 2 e 3 do artigo 10.°). O Regulamento (CEE) n.° 2176/84 é nitidamente mais incisivo: quando ressaltar da verificação definitiva dos factos que existe dumping ou subvenção, bem como um prejuízo, e quando os interesses da Comunidade exijam uma acção comunitária, "será instituído um direito antidumping ou de compensação definitivo pelo Conselho ((...))" (n.° 1 do artigo 12.°).

(13) A Comissão parece conceber o direito atribuído aos autores de denúncias pelo Regulamento (CEE) n.° 2641/84 como uma espécie de protecção diplomática. No direito internacional (em que tem origem essa construção jurídica) é normalmente admitido que uma autoridade de um Estado que é convidado a assegurar uma protecção diplomática não está obrigada a aceder a esse pedido. O "direito" do nacional que pede à autoridade uma protecção diplomática está limitado ao "direito" de lhe pedir que lhe conceda assistência. É à autoridade que cabe apreciar a importância relativa da pretensão individual face às implicações políticas que resultariam da uma eventual intervenção da sua parte.

(14) Antes de a lei ter sido alterada em 1988, o poder de intervenção conferido pelo artigo 301.° cabia ao presidente. Em 1988, esse poder do presidente foi transferido para o USTR. O USTR foi instituído em 1962 pelo Congresso americano a fim de retomar o papel do "State Department" (Ministério dos Negócios Estrangeiros) nas negociações sobre os acordos comerciais, e isto porque se temia que o State Department sacrificasse os interesses comerciais aos interesses políticos dos Estados Unidos. O USTR é nomeado pelo presidente, mas essa nomeação deve ser confirmada pelo Congresso. É responsável tanto perante o Congresso como perante o presidente.

(15) A expressão "práticas não razoáveis" aplica-se também, por exemplo, à recusa em reconhecer aos trabalhadores o direito de reunião e o direito de participação nas negociações colectivas ou ainda o facto de lhes serem impostas certas condições de trabalho. Ver artigo 301.° alínea d), n.° 3, ponto B, iii).

(16) Ver, designadamente, o relatório do Senado (1298), em anexo ao texto original do Trade Act de 1974, publicado em US Code Cong. & Adm. News 7186 (1974). Ver também Hansen P.: "Defining unreasonableness in international trade: section 301 of the Trade Act of 1974", Yale Law Journal, 1987, p. 1122 a 1146, p. 1129, nota 36; Hilf: "International Trade Disputes and the Individual : Private Party Involvement in national and international Procedures regarding unfair foreign Trade Practices", Aussenwirtschaft, 1986, p. 441 e seguintes, 458.

(17) A lei de 1988 acrescentou um "superartigo 301.°" que obrigaria o USTR a abrir um inquérito sobre certas "práticas prioritárias" e sobre certos "países prioritários" (essas expressões fazem referência a obstáculos existentes cuja eliminação seria particularmente vantajosa para os exportadores americanos) que são identificados pelo USTR com base no relatório anual do "National Trade Estimate". Além disso, a lei prevê um certo número de processos "expeditos" em relação a países que não asseguram qualquer protecção "adequada e efectiva" dos direitos de propriedade intelectual ou não asseguram um acesso justo e equitativo ao seu mercado aos nacionais americanos que confiam na protecção dos direitos de propriedade intelectual.

(18) Não abordarei aqui a questão de saber se essa legislação nacional é compatível com os princípios de comércio livre que estão na base dos acordos do GATT e que autorizem uma intervenção unilateral contra práticas de outra parte contratante do GATT quando infrinjam o direito internacional. Do que não há dúvida é de que é por essa razão que a Comunidade Europeia adoptou uma atitude crítica face ao artigo 301.°, porque vê na condenação de um comportamento lícito mas não razoável, que consta desse artigo, uma derrogação ao espírito do GATT. Ver as referências que figuram no artigo de Denton R.: "The new Commercial Policy Instrument and AKZO v. Dupont", European Law Review, 1988, p. 3, 4.

(19) Essa restrição das práticas comerciais ilícitas, que se afastava do artigo 301.° do US Trade Act, foi uma escolha deliberada (ver as remissões em Bronckers, obra citada, p. 213 a 219, e Denton, artigo citado, p. 5 e 6).

(20) "The case-law of the Court of Justice in relation to the review of the legality of economic policy in mixed-economy systems", Legal Issues of European integration, 1982/1, p. 5 e seguintes.

(21) Para a análise das disposições do GATT que foram invocadas, consultei as seguintes fontes: o texto do GATT, as notas interpretativas em anexo a esse acordo, os "panel reports" aprovados pelas partes signatárias do GATT e, finalmente, para completar essas fontes, a doutrina.

(22) As duas versões autênticas do acordo geral do GATT (em inglês e em francês) falam respectivamente de "internal taxes" e de "taxes intérieures".

(23) Refere-se ao acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 29 de Junho de 1978 no processo 140/77, Statens Kontrol (Recueil, p. 1543).

(24) Segundo o artigo 32.° da Convenção de Viena (ver supra, n.° 13) os trabalhos preparatórios apenas constituem, de resto, um meio de interpretação subsidiário e limitado.

(25) Acórdão proferido em 26 de Outubro de 1982 pelo Tribunal de Justiça no processo 104/81, Hauptzollamt Mainz/Kupferberg (Recueil, p. 3641, n.° 30), que se refere ao acórdão proferido pelo Tribunal em 9 de Fevereiro de 1982 no processo 270/80, Polydor/Harlequin Record Shops (Recueil, p. 329, n.° 18).

(26) De resto, no que se refere a esses dois argumentos, ver supra, n.° 23, bem como as notas 22 e 23.

(27) Segundo a recorrente, essas estatísticas não contradizem o seu ponto de vista. Segundo ela, o crescimento das exportações de favas de soja argentinas para a Comunidade é uma consequência do aumento substancial da produção (desde 1980), aumento que, de resto, foi acompanhado de um aumento menos rápido da capacidade da indústria argentina para transformar essas favas de soja. Tratar-se-ia, pois, de uma situação temporária que desapareceria quando a capacidade de produção atingisse um nível suficiente.

(28) Ver, designadamente, o "Panel Report" sobre o programa da CEE em matéria de preços minímos na importação, de licenças e de depósitos em garantia, relatório aprovado em 18 de Outubro de 1978. Ver Analytical Index (edição GATT em folhas soltas, Genebra) artigo XI, n.° 4.

(29) A recorrente não conseguiu citar um único precedente nem a mínima opinião doutrinal em apoio da sua afirmação. Remeto, na medida do necessário, para as notas, decisões e declarações a propósito do artigo XX do GATT, tal como foram reproduzidas no Analytical Index que já antes citei, e que não oferecem o mínimo apoio à afirmação da recorrente.

(30) Ver, quanto a este ponto, o Analytical Index, a propósito do artigo XXIII, n.° 11 alínea a).

(31) Não abordarei aqui a questão de saber em que medida uma decisão adoptada pela Comissão, sob reserva da intervenção (de facto, um direito de veto) do Conselho, pode ser objecto de fiscalização jurisdicional. Trata-se aqui, com efeito, de um "acto de Governo" na plena acepção da expressão, tomado no contexto internacional, desta vez respeitante (não à interpretação mas) à implementação de um mecanismo internacional previsto no Tratado.

(32) A recorrente entende que o Tribunal está obrigado a analisar todos os fundamentos que tenham sido invocados antes de se tornar definitiva a decisão da Comissão. Esse raciocínio parece-me correcto no contexto do processo que hoje nos ocupa. Trata-se aqui, com efeito, do ponto de saber se a Comissão considerou correctamente que não dispunha, ao momento em que adoptou a decisão impugnada, de elementos de prova suficientes para justificar a abertura de um inquérito ((artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 2641/84)). É claro que a Comissão não está obrigada a ter em consideração elementos de prova de que não dispunha nesse momento e sobre os quais não se podia pronunciar (a menos que resulte de forma evidente, dos elementos de prova que figuram na denúncia, existir uma violação do artigo XVI, o que não é o caso: ver nota seguinte).

(33) A recorrente afirma, é verdade, que o artigo XVI do GATT não diz apenas respeito às subvenções, mas também "a todos os meios de protecção dos rendimentos ou de apoio dos preços" (ver n.° 1 do artigo XVI), mas a letra do artigo XVI indica, contudo, claramente, que se trata nesse caso de uma forma de subvenção.

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