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Document 61986CC0080

    Conclusões do advogado-geral Mischo apresentadas em 17 de Março de 1987.
    Processo-crime contra Kolpinghuis Nijmegen BV.
    Pedido de decisão prejudicial: Arrondissementsrechtbank Arnhem - Países Baixos.
    Possibilidade de invocar contra um particular uma directiva aínda não transposta.
    Processo 80/86.

    Colectânea de Jurisprudência 1987 -03969

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1987:138

    61986C0080

    Conclusões do advogado-geral Mischo apresentadas em 17 de Março de 1987. - PROCESSO PENAL CONTRA KOLPINGHUIS NIJMEGEN BV. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO ARRONDISSEMENTSRECHTBANK DE ARNHEM. - POSSIBILIDADE DE INVOCAR CONTRA UM PARTICULAR UMA DIRECTIVA AINDA NAO TRANSPOSTA. - PROCESSO 80/86.

    Colectânea da Jurisprudência 1987 página 03969
    Edição especial sueca página 00213
    Edição especial finlandesa página 00215


    Conclusões do Advogado-Geral


    ++++

    Senhor Presidente,

    Senhores Juízes,

    1. As questões que foram submetidas à vossa apreciação pelo Arrondissementsrechtbank de Arnhem evocam mais uma vez o problema da natureza jurídica das disposições de uma directiva para os efeitos do artigo 189.° do Tratado que institui a CEE, e da diferença existente entre as directivas e os regulamentos.

    2. Tem-se, aliás, a impressão de que na origem do presente processo se acha a utilização um tanto inadequada que às vezes se faz das expressões "efeito directo" ou "aplicabilidade directa" a propósito das directivas.

    3. É certo que no passado o Tribunal declarou por diversas vezes que, conquanto os regulamentos, por força do disposto no artigo 189.°, sejam directamente aplicáveis e, consequentemente, pela sua natureza, susceptíveis de produzir efeitos directos, disso não resulta que outras categorias de actos referidos nesse artigo não possam alguma vez produzir efeitos análogos" (1).

    4. Ao utilizar a expressão "efeitos análogos" o Tribunal quis, no entanto, sublinhar, na minha opinião, que não se punha a questão de se considerar as directivas "directamente aplicáveis" com todo o alcance do significado com que esta expressão é utilizada no artigo 189.° relativamente aos regulamentos, nem de ignorar a distinção feita neste artigo entre essas duas categorias de actos.

    5. O Tribunal definiu, de facto, os limites desses "efeitos análogos", indicando que quando as disposições de uma directiva se revelem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá-las no caso de não existirem medidas de aplicação adoptadas no prazo determinado, ou de ter havido transposição incorrecta, contra qualquer disposição nacional que não esteja em conformidade com a directiva, ou ainda na medida em que elas sejam susceptíveis de definir direitos que os particulares possam invocar relativamente ao Estado.

    6. O Tribunal especificou também o raciocínio com base no qual chegou a essa conclusão.

    No acórdão de 4 de Dezembro de 1986, em especial (processo 71/85, Estado neerlandês/Federatie Nederlandse Vakbeweging, n.° 14, Recueil, p. 3855), declara expressamente:

    "Esta jurisprudência baseia-se na consideração de que seria incompatível com o carácter obrigatório atribuído à directiva pelo artigo 189.° do Tratado CEE excluir, em princípio, que a obrigação que ela impõe possa ser invocada por pessoas a quem diga respeito. O Tribunal extrai daí a consequência de que o Estado-membro que não tenha adoptado, no prazo determinado, as medidas de execução impostas pela directiva, não pode invocar contra os particulares o seu próprio incumprimento das obrigações que ela implica."

    7. Numa crónica publicada em 1980 no Recueil Dalloz Sirez ("L' effect des directives communautaires, une tentative de démythification", Dalloz 1980, p. 171 a 176), o juiz P. Pescatore formulava essa concepção do seguinte modo:

    "De acordo com o entendimento do Tribunal, as directivas podem ser invocadas em juízo pelos particulares porque são obrigatórias para os Estados-membros e enquanto reflexo dessa obrigação. É certamente muito menos que a aplicabilidade directa dos regulamentos... No fim de contas, a jurisprudência do Tribunal acerca dessa questão não passa de uma expressão do princípio que é habitualmente designado pelo termo jurídico inglês 'estoppel' , numa acepção ampla, e que os juristas de tradição latina hão por bem exprimir pelo adágio 'venire contra factum proprium' , ou ainda 'nemo auditur' ..."

    8. As respostas a dar às questões do Arrondissementsrechtbank de Arnhem derivam dessa delimitação e dessa explicação do "efeito análogo" das directivas.

    A - Quanto à primeira e à segunda questões

    9. A primeira questão formulada pelo Arrondissementsrechtbank está redigida nos seguintes termos:

    "Uma autoridade nacional (neste caso a autoridade encarregada de instaurar o processo penal) pode invocar contra os seus nacionais uma disposição de uma directiva relativamente à qual o Estado-membro em questão não adoptou as medidas legislativas ou regulamentares para a sua aplicação?"

    10. Por unanimidade, o que raramente se verifica, os três governos que apresentaram observações ao Tribunal e à Comissão propuseram que fosse dada uma resposta negativa a essa questão.

    11. Quanto a mim, não hesito em apoiar essa posição.

    12. Para resumir os fundamentos dessa atitude, nada melhor que citar, mais uma vez, P. Pescatore, que, de maneira muito clara e sintética, soube condensar o essencial da argumentação:

    "Se bem que a directiva vincule os Estados-membros, certamente não tem como efeito impor-se aos particulares. Não é a eles que a directiva está dirigida. A sua publicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias é feita com objectivo de informação; não se trata de uma "publicação legal" e, ao contrário da publicação dos actos regulamentares, não possui efeito jurídico. Os particulares só estarão vinculados pelos actos legislativos e regulamentares adoptados pelo Estado para dar cumprimento à directiva. Deste modo, a directiva, enquanto tal, não pode ser invocada contra os particulares, que não podem, de forma alguma, por efeito da mesma, ficar obrigados relativamente ao Estado ou relativamente a outros sujeitos de direito."

    13. Este ponto de vista foi partilhado pelo advogado-geral P. VerLoren Van Themaat nas conclusões que apresentou no processo 89/81 (Staatssecretaris van Financiën/Hong-Kong Trade, Recueil 1982, p. 1277).

    14. O Tribunal teve ocasião de pronunciar-se sobre a questão cerca de vinte dias depois de o Arrondissementsrechtbank ter formulado as questões que devemos examinar no presente processo, no acórdão de 26 de Fevereiro de 1986, proferido no processo 152/84 (Marschall/ Southhampton and South-West Hampshire Area Health Authority, Recueil, p. 723), no qual se lê o seguinte:

    "Quanto ao argumento segundo o qual uma directiva não pode ser invocada contra um particular, é conveniente sublinhar que, segundo o artigo 189.° do Tratado, o carácter vinculativo de uma directiva, sobre o qual se baseia a possibilidade de a invocar perante um tribunal nacional, existe apenas relativamente ao 'Estado-membro destinatário' . Do que resulta que uma directiva não pode, por si, criar obrigações na esfera jurídica de um particular e que uma disposição de uma directiva não pode ser, portanto, invocada, enquanto tal, contra tal pessoa" (n.° 48).

    15. O Arrondissementsrechtbank pergunta também, na sua segunda questão, se o juiz nacional é obrigado a aplicar directamente as disposições de uma directiva que a isso se prestem, quanto não tenham sido adoptadas medidas para dar cumprimento a essa directiva, mesmo no caso de o interessado não pretender invocar qualquer direito com base nessas disposições.

    16. A resposta que deve ser dada a esta segunda questão é decorrente da resposta - negativa - que deve dar-se à primeira.

    17. Uma vez que uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações para os particulares e ques estes somente estão vinculados pelos actos legislativos e regulamentares adoptados pelo Estado para dar cumprimento à directiva, o juiz nacional não pode, em nenhuma hipótese, aplicar directamente as disposições de uma directiva a um particular e, a fortiori, não está obrigado a fazê-lo.

    18. Do mesmo modo que a Comissão, proponho-vos que se responda às duas primeiras questões do órgão jurisdicional neerlandês retomando essencialmente a fórmula utilizada no acórdão Marshall:

    "Uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações na esfera jurídica dos particulares e uma disposição de uma directiva não pode, por isso, ser invocada, enquanto tal, contra os mesmos pela autoridade nacional ou ser-lhe aplicada por um juiz nacional."

    B - Quanto à terceira questão

    19. Quando um juiz nacional é chamado a interpretar uma norma de direito nacional, deve ou pode, para tal interpretação, guiar-se pelo conteúdo de uma directiva aplicável? Eis os termos da terceira questão colocada ao Tribunal pelo órgão jurisdicional neerlandês.

    20. Nas suas observações, o Governo do Reino Unido recordou mui oportunamente que, segundo o acórdão do Tribunal de 10 de Abril de 1984 (processo 14/83, Von Colson e Kamann/Land Nordrhein-Westfalen, Recueil, p. 1891, 1909 e 1910-1911), compete ao órgão jurisdicional nacional, na medida em que lhe é "dada uma margem de apreciação pelo seu direito nacional, dar à lei adoptada para cumprimento da directiva uma interpretação e uma aplicação que estejam em conformidade com as exigências do direito comunitário" (tradução provisória).

    21. Trata-se de um caso especial quando um Estado-membro, por um lado, tenha legislado para dar cumprimento a uma parte das disposições da directiva e, por outro, tenha considerado que determinados diplomas preexistentes do seu direito nacional ofereciam já todas as garantias de um cumprimento eficaz das outras disposições da directiva, ou quando tenha entendido - e dado conhecimento desse facto à Comissão - que a situação do seu direito nacional tornava supérflua qualquer medida de transposição. Neste caso, cabe evidentemente ao juiz nacional dar às normas nacionais em questão uma interpretação e uma aplicação que estejam em conformidade com as exigências do direito comunitário.

    22. Quando, pelo contrário, se trate de uma disposição nacional preexistente à directiva, que, portanto, não foi adoptada com vista a dar-lhe cumprimento, e que também não é susceptível, em princípio, de garantir a observância de uma disposição de uma directiva, penso, como o advogado-geral Sir Gordon Slynn no processo 152/84, Marshall (conclusões de 18 de Setembro de 1985, Recueil, p. 725, 733), que não existe nenhum princípio de direito comunitário que imponha ao juiz nacional uma interpretação à luz da directiva.

    23. Resta averiguar se o direito comunitário permite a interpretação da legislação nacional à luz da directiva. A este propósito, há que fazer uma distinção que gostaria de ilustrar por intermédio das circunstâncias do caso sub judice.

    24. No processo principal, está-se na presença de uma disposição de direito nacional de natureza penal, neste caso, o artigo 2.° do Keuringsverordening (regulamento de inspecção) da comuna de Nimègue, que proíbe um determinado comportamento. Esta disposição estipula que é proibido conservar armazenados, tendo em vista a sua venda e entrega, produtos alimentares destinados à comercialização e ao consumo humano que possuam uma composição defeituosa. O regulamento não define a expressão "composição defeituosa".

    25. De acordo com as declarações do Ministério Público (Officier van justitie) houve falsificação por parte de Kolpinghuis relativamente aos clientes que encomendavam água mineral, porquanto a água fornecida não possuía as propriedades que os clientes poderiam atribuir-lhe com base nessa denominação.

    26. O órgão jurisdicional a que foi submetida a causa poderia, desde logo, começar por examinar os hábitos linguísticos bem como os usos comerciais e verificar, por exemplo (refiro-me a uma mera hipótese), que a língua neerlandesa possui os conceitos de "água mineral", por um lado, e de "água gasosa" ou "com borbulhas", por outro lado. Em seguida, poderia considerar que para a maior parte da população a expressão "água mineral" implica que a água em questão provenha de uma fonte num local bem determinado, que contém certos elementos minerais aos quais se atribuem efeitos benéficos para a saúde e que não deva tratar-se, de modo algum, de água da torneira. Poderia, por último, desde que as normas nacionais de interpretação lho permitissem, reportar-se à Directiva 80/777 para verificar que esta tende a confirmar que a interpretação restritiva da expressão "água mineral" corresponde à tradição da maioria dos países da Comunidade, porquanto tal interpretação foi seguida no quadro dessa directiva, entretanto executada nos Países Baixos. O órgão jurisdicional poderia assim chegar à conclusão de que já no momento em que se verificaram os factos, ou seja, antes da transposição da directiva, uma bebida vendida sob a denominação de "água mineral" mas fabricada à base de água da torneira devia ser considerada nos Países Baixos como um "produto de composição defeituosa".

    27. Por outras palavras, o juiz pode, no meu entender, desde que as normas nacionais de interpretação lho permitam, recorrer à directiva para confirmar uma interpretação do direito nacional fundamentada, principalmente, em outros elementos.

    28. Pelo contrário, o Arrondissementsrechtbank poderia também vir a comprovar que nos Países Baixos as expressões "água mineral" e "água gasosa" são utilizadas alternativamente, sem que a primeira tenha um alcance mais preciso que a segunda, ou então que não existe outra expressão diferente de "água mineral" para designar tanto as águas com uma composição bem específica como as águas a que simplesmente se adiciona gás carbónico. Nestas últimas hipóteses, o órgão jurisdicional não poderia utilizar o alcance muito preciso atribuído pela directiva à expressão "água mineral" para interpretar o conceito de "produto de composição defeituosa", sob pena de substituir a interpretação susceptível de ser extraída do contexto nacional (e que, no caso em apreço, é favorável à ré) pela interpretação contrária derivada da directiva (que é desfavorável à ré).

    29. Desse modo, por via indirecta, o juiz acabaria, de facto, por invocar as disposições de uma directiva não transposta contra um particular, o que, nos termos do acórdão Marschall, não é admissível.

    30. Concluindo, proponho-vos que se responda à terceira questão do seguinte modo:

    "Não existe nenhum princípio de direito comunitário que

    obrigue um órgão jurisdicional nacional a guiar-se pelo

    conteúdo de uma directiva aplicável mas ainda não executada pelo Estado-membro em questão com vista à interpretação de uma norma de direito nacional insuficientemente precisa no seu conteúdo. A questão de saber se o pode fazer para confirmar a interpretação que infere de elementos de apreciação puramente nacionais deve resolver-se à luz das normas de interpretação nacionais. Em contrapartida, o juiz não poderia fundamentar-se em tal directiva para modificar, num sentido desfavorável para o particular, a interpretação que se deduz de elementos de apreciação nacionais."

    C - Quanto à quarta questão

    31. Em último lugar, o Arrondissementsrechtbank de Arnhem pergunta se a resposta às três primeiras questões seria diferente se, no momento dos factos, o prazo fixado para os Estados-membros adoptarem a sua legislação nacional às prescrições da directiva ainda se não tivesse vencido.

    32. Dado que uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações na esfera jurídica dos particulares, e que o órgão jurisdicional nacional não é obrigado a inspirar-se numa directiva ainda não transposta, é evidente que, como diz a Comissão, não importa que o prazo previsto para a adaptação da legislação nacional a uma directiva se tenha ou não vencido.

    33. A título principal, proponho-vos, por isso, que se responda a essa questão do seguinte modo:

    "A resposta às três primeiras questões não seria diferente se, no momento dos factos, o prazo fixado ao Estado-membro para adaptar a legislação nacional ainda não tivesse decorrido."

    34. Como, porém, o órgão jurisdicional nacional, ao colocar a quarta questão, provavelmente terá partido da ideia de que o transcurso desse prazo permitiria efectivamente aplicar a directiva contra a ré no processo principal, e como, na minha opinião, este não seria o caso, também poderíeis eventualmente responder que, à luz da resposta dada pelo Tribunal às três primeiras questões, a quarta questão já não tem sentido.

    (1) - Ver, especialmente, acórdão de 5 de Abril de 1979, processo 148/78, Ministério Público/Ratti, Recueil, p. 1629.

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