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Document 61977CJ0061

Acórdão do Tribunal de 16 de Fevereiro de 1978.
Comissão das Comunidades Europeias contra Irlanda.
Pesca marítima.
Processo 61/77.

Edição especial inglesa 1978 00169

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1978:29

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

16 de Fevereiro de 1978 ( *1 )

No processo 61/77,

Comissão das Comunidades Europeias, representada pelo seu consultor jurídico, John Temple Lang, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Mario Cervino, membro do Serviço Jurídico, edifício Jean Monnet, Kirchberg,

demandante,

apoiada por

Reino dos Países Baixos, representado por G. W. Maas Geesteranus, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por M. J. Kuiper, administrador principal no Serviço Jurídico do Ministério da Agricultura e das Pescas, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada dos Países Baixos,

interveniente,

contra

Irlanda, representada por Liam J. Lysaght, Chief State Solicitor, na qualidade de agente, assistido por R. J. O'Hanlon, SC, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada da Irlanda,

demandada,

que tem por objecto fazer declarar que, ao introduzir certas medidas restritivas no sector da pesca marítima, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, M. Sørensen e G. Bosco, presidentes de secção, A. M. Donner, P. Pescatore, A. J. Mackenzie Stuart e A. 0'Keeffe, juízes,

advogado-geral: G. Reischl

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por requerimento de 13 de Maio de 1977, a Comissão propôs, nos termos do artigo 169. o do Tratado CEE, uma acção tendente a obter a declaração de que a Irlanda, ao aplicar certas medidas restritivas no sector da pesca marítima, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.

Quanto aos antecedentes do litígio, à sua conexão com o processo 88/77 e às medidas provisórias

2

Os factos que estão na origem do litígio não são contestados pelas partes.

3

Convém recordar em primeiro lugar que, quando da sua sessão de 30 de Outubro de 1976 em Haia, o Conselho aprovou uma resolução, formalmente adoptada a 3 de Novembro seguinte (a seguir «Resolução de Haia»), através da qual foi acordado que os Estados-membros, por meio de uma acção concertada, alargariam, a contar de 1 de Janeiro de 1977, os limites das suas zonas de pesca às 200 milhas marítimas ao largo das suas costas do Mar do Norte e do Atlântico Norte.

4

Na mesma Resolução, o Conselho decidiu que, a partir dessa data, a exploração dos recursos da pesca nessas zonas, por parte de navios de pesca de países terceiros, seria regulada através de acordos entre a Comunidade e os países terceiros interessados e fixou ainda o princípio de uma acção concertada por parte dos Estados-membros, tendo em vista os trabalhos futuros no âmbito dos organismos internacionais competentes para as questões da pesca.

5

Além disso, o Conselho referiu certos aspectos do regime intracomunitário em matéria de pesca e frisou, muito em particular, a necessidade de se definirem medidas comuns com vista à conservação dos recursos, salvaguardando a possibilidade de os Estados-membros instituírem eventualmente, em cooperação com a Comissão, as medidas provisórias apropriadas enquanto não entrasse em vigor uma regulamentação comum (anexo VI da Resolução).

6

Ainda no âmbito desta Resolução, o Conselho expressou a intenção de aplicar as disposições da política comum da pesca de maneira a garantir um desenvolvimento contínuo e progressivo da indústria da pesca irlandesa.

7

Nesta sequência, o Conselho retomou as deliberações relativas à instituição de um regime comunitário de conservação e de gestão dos recursos da pesca, com base numa proposta de regulamento que lhe foi submetida pela Comissão em 8 de Outubro de 1976 (JO C 255, p. 3).

8

Em face das dificuldades que se manifestaram, a Comissão introduziu, em 3 de Dezembro de 1976, uma proposta que se limitava à instituição de medidas provisórias, proposta que, posteriormente, modificou repetidas vezes, tendo em conta as divergências surgidas no Conselho.

9

Convém salientar que o Governo irlandês tomou parte activa nos trabalhos do Conselho relativos a este problema e apresentou, em 13 de Dezembro de 1976, propostas adicionais com vista a completar as medidas de conservação projectadas.

10

Estas incluíam uma série de disposições, tais como a exclusão de navios-fábrica, a determinação de zonas de protecção especiais para certas espécies, a proibição de certos métodos de pesca, bem como a exclusão de embarcações de pesca que ultrapassassem o comprimento de 85 pés ou a potência de 1000 CV numa zona de 20 milhas a partir da costa.

11

No decurso desta fase dos trabalhos, a delegação irlandesa não cessou de chamar a atenção do Conselho para a necessidade urgente de adoptar medidas de conservação, dando conhecimento que, na falta de um rápido acordo, a Irlanda se veria constrangida a agir unilateralmente.

12

Tendo sido insistentemente repetido este aviso no decurso da sessão do Conselho de 8 e 9 de Fevereiro de 1977 — sessão infrutífera, mais uma vez —, a Comissão, numa mensagem de 11 de Fevereiro de 1977, chamou a atenção do Governo irlandês para o facto de, nos termos da Resolução de Haia, as medidas de conservação não poderem ser adoptadas por um Estado-membro antes deste consultar a Comissão e procurar a sua aprovação, acrescentando que as discussões no Conselho não substituíam este procedimento.

13

Numa comunicação de 14 de Fevereiro de 1977, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Irlanda, após recordar as propostas apresentadas pelo seu país, em 13 de Dezembro de 1976, informou a Comissão de que «infelizmente, o governo decidiu que não pode adiar este assunto por mais tempo e que deve agora adoptar medidas unilaterais de conservação, com natureza provisória», acrescentando indicações sumárias sobre o essencial das medidas decididas e anunciando que os diplomas que lhes davam efeito seriam adoptados pelo ministro das Pescas no dia seguinte, 15 de Fevereiro.

14

Com efeito, em 16 de Fevereiro de 1977, o ministro das Pescas irlandês adoptou dois diplomas, tendo o primeiro, intitulado «Sea Fisheries (Conservatíon and Rational Exploitation) Order, 1977», como objecto proibir o acesso de embarcações de pesca bem como quaisquer actividades de pesca numa zona marítima localizada no interior da zona de pesca exclusiva do Estado irlandês, delimitada a norte pelo paralelo de 56o 30' de latitude norte, a oeste pelo meridiano de 12o de longitude oeste e a sul pelo paralelo de 50o 30' de latitude norte, enquanto o segundo, intitulado «Sea Fisheries (Conservatíon and Rational Exploitation) (No 2) Order, 1977», isentava desta proibição qualquer embarcação de pesca marítima cujo comprimento registado não excedesse 33 m ou não dispusesse de uma força motriz superior a 1100 CV (estes diplomas são a seguir designados «medidas irlandesas»).

15

Na sequência de uma consulta realizada com carácter de urgência junto dos representantes dos Governos tanto da Irlanda como dos outros Estados-membros interessados, a Comissão, por carta de 22 de Fevereiro de 1977, formulou uma reserva absoluta em relação às medidas irlandesas e solicitou ao Governo a suspensão da sua aplicação, na expectativa do desfecho das próximas deliberações do Conselho, as quais, à época, permitiam esperar a breve prazo uma conclusão.

16

Na sessão de 25 de Março de 1977, houve, efectivamente, um largo consenso entre os membros do Conselho, dos quais a Irlanda, quanto às últimas propostas da Comissão, mas não foi possível adoptar uma decisão devido à oposição manifestada por um dos Estados-membros.

17

Face a este fracasso, numa comunicação de 4 de Abril de 1977, o Governo irlandês deu a conhecer à Comissão que os diplomas de 16 de Fevereiro de 1977 passariam a ser aplicados a partir de 10 de Abril seguinte.

18

Na sequência desta acção unilateral da Irlanda, a Comissão iniciou o procedimento previsto no artigo 169.o, o qual se conclui pelo recurso ao Tribunal.

Quanto à conexão com o processo 88/77

19

Por decisão de 7 de Julho de 1977, a District Court da cidade de Cork (Irlanda) submeteu questões prejudiciais ao Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado, no âmbito de uma acção penal intentada contra os mestres de diversos arrastões holandeses por terem infringido as proibições decorrentes dos diplomas de 16 de Fevereiro de 1977, a fim de lhe permitir apreciar a compatibilidade destas medidas com o direito comunitário.

20

No âmbito deste processo, inscrito no registo do Tribunal com o número 88/77, foram apresentadas observações pelas partes no processo principal, pelos Governos da República Francesa e do Reino dos Países Baixos, bem como pela Comissão.

21

Embora as questões apreciadas no âmbito deste processo sejam, na essência, idênticas aos problemas jurídicos suscitados na presente acção, é, no entanto, de ter em consideração que os arguidos no processo penal pendente na District Court da cidade de Cork, à semelhança do Governo francês, expuseram alguns argumentos específicos que parece aconselhável tomar igualmente em consideração no âmbito do presente processo, com vista a uma apreciação completa de todos os aspectos do litígio.

22

Este procedimento respeita os direitos das partes, tendo em consideração que todas as partes que participam na presente acção intervieram também no processo 88/77.

Quanto às medidas provisórias

23

Convém finalmente recordar que, quando da apresentação do seu requerimento, nos termos do artigo 169.o do Tratado CEE, a Comissão pediu ao Tribunal, nos termos do artigo 186.o do Tratado e do artigo 83.o do Regulamento Processual, que decretasse medidas provisórias ordenando ao Governo irlandês a suspensão das medidas objecto do litígio, na expectativa de uma decisão do Tribunal quanto ao mérito.

24

O Tribunal acolheu este pedido em sucessivos despachos de 22 de Maio, de 21 de Junho e de 13 de Julho de 1977 (Recueil p. 937 e 1411), tendo, neste último, ordenado à Irlanda que suspendesse, o mais tardar até 18 de Julho de 1977, as medidas em litígio.

25

O Governo irlandês deu a conhecer que se absteve de aplicar as medidas em litígio a partir da data indicada no despacho do Tribunal, tendo dado as instruções apropriadas às autoridades competentes e que não tinha adoptado outras disposições, atendendo a que o despacho «adquiriu força de lei na Irlanda a contar da data de produção de efeitos nele indicada e teve como efeito a suspensão, nos termos do que aí se estabelece, das duas Sea Fisheries Orders a partir daquela data».

26

De acordo com as explicações prestadas, esta consequência decorre das disposições da Constituição irlandesa bem como do European Communities Act 1972, o qual atribui à ordem jurídica das Comunidades — aí se incluindo os acórdãos e os despachos do Tribunal de Justiça — prevalência sobre o direito interno da Irlanda.

27

Esta posição, comunicada em devido tempo à Comissão, não suscitou objecções por parte desta.

Quanto ao enquadramento jurídico

28

As pescas relevam do Tratado CEE, à semelhança de quaisquer outras actividades económicas, e foram, mais em particular, assimiladas à agricultura por força do artigo 38.o do Tratado, sendo por este englobadas na previsão de uma política comum.

29

Uma primeira regulamentação relativa aos problemas da pesca foi estabelecida no âmbito de dois regulamentos do Conselho, a saber, o Regulamento n.o 2141/70, de 20 de Outubro de 1970, que estabelece uma política comum de estruturas no sector da pesca, baseado nos artigos 7.o, 42.o, 43.o e 235.o do Tratado (JO L 236, p. 1) e o Regulamento n.o 2142/70, da mesma data, que institui uma organização comum de mercado no sector dos produtos da pesca, baseado nos artigos 42.o e 43. o (JO L 236, p. 5).

30

O acto de adesão completou o regime assim definido através dos seus artigos 98.o a 103.o, os quais constituem o capítulo III do título II, relativo à agricultura.

31

Entre destas disposições, há que dar particular relevo ao artigo 102.o, nos termos do qual «o mais tardar a partir do sexto ano após a adesão, o Conselho, deliberando sob proposta da Comissão, determinará as condições de exercício da pesca, a fim de garantir a protecção dos fundos marinhos e a conservação dos recursos biológicos do mar».

32

Após o alargamento da Comunidade, as disposições relativas às pescas foram revistas através de dois regulamentos do Conselho, os quais para além do acto de adesão, tinham as mesmas bases jurídicas dos precedentes, a saber, o Regulamento n.o 100/76, de 19 de Janeiro de 1976, que institui uma organização comum de mercado no sector dos produtos da pesca (JO L 20, p. 1), e o Regulamento n.o 101/76, da mesma data, que estabelece uma política comum de estruturas no sector da pesca (JO L 20, p. 19; EE 04 F1 p. 16).

33

Nos termos do artigo 1.o deste último regulamento,

«É estabelecido um regime comum para o exercício da pesca nas águas marítimas a fim de promover o desenvolvimento harmonioso e equilibrado do sector da pesca, dentro das actividades económicas generalizadas, e de favorecer a exploração racional dos recursos biológicos do mar e das águas interiores. São, ainda, estabelecidas medidas específicas, tendo em vista acções adequadas e de coordenação das políticas de estrutura dos Estados-membros neste sector.»

34

De acordo com o n.o 1 do artigo 2.o,

«O regime aplicado por cada Estado-membro para o exercício da pesca, nas águas marítimas sob a sua jurisdição ou soberania, não pode provocar diferenças de tratamento para os restantes Estados-membros.

Os Estados-membros asseguram, especialmente, a igualdade de condições de acesso e de exploração dos fundos, situados nas águas referidas no parágrafo anterior, a todos os navios de pesca com bandeira de um dos Estados-membros e matriculados no território comunitário.»

35

Por fim, o artigo 4o do mesmo regulamento dispõe que

«Quando o exercício da pesca nas águas marítimas dos Estados-membros, referidas no artigo 2.o, põe em perigo os seus recursos, por exploração intensiva, o Conselho, deliberando sob proposta da Comissão, conforme o n.o 2 do artigo 43.o do Tratado, pode adoptar as medidas necessárias para a sua conservação.

Estas medidas podem, entre outras, determinar restrições de capturas de certas espécies, de zonas, de período de pesca, métodos e de artes a utilizar.»

36

O problema específico da conservação dos recursos foi retomado pelo Conselho, por iniciativa da Comissão, no âmbito da já referida Resolução de Haia, a qual foi adoptada tendo em vista o alargamento concertado às 200 milhas marítimas das zonas de pesca ao largo das costas do Mar do Norte e do Atlântico Norte.

37

Resulta do anexo VI desta Resolução que, nesta ocasião, o Conselho deu o seu acordo a uma declaração da Comissão com a seguinte redacção:

«Enquanto não forem aplicadas medidas comunitárias em matéria de conservação dos recursos, actualmente em elaboração, os Estados-membros abstêm-se de adoptar medidas unilaterais de conservação dos recursos.

Contudo, se não se verificar um acordo no âmbito das comissões internacionais da pesca em relação ao ano de 1977 e se, na sequência, não for possível adoptar, de imediato, medidas comunitárias autónomas, os Estados-membros poderão adoptar, a título provisório e de maneira não discriminatória, as medidas adequadas para assegurar a protecção dos recursos localizados nas zonas de pesca ao largo das suas costas.

Antes de adoptar estas medidas, o Estado-membro em questão procurará obter a aprovação da Comissão, a qual deve ser consultada em todas as fases destes procedimentos.

Estas eventuais medidas não obstam às orientações a adoptar com vista à aplicação de disposições de natureza comunitária em matéria de conservação dos recursos.»

38

O Governo irlandês contestou o domínio de aplicação geográfica do Regulamento n.o 101/76.

39

Com efeito, invocando o texto do n.o 3 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76, assim redigido: «As águas marítimas, referidas no presente artigo, são as águas fixadas pelas leis em vigor em cada Estado-membro», o Governo irlandês alega que o regulamento em questão apenas se aplica às águas marítimas irlandesas tal como eram definidas ao tempo da entrada em vigor deste regulamento, anteriormente ao alargamento das zonas de pesca em 1 de Janeiro de 1977.

40

Daqui resultaria que as disposições deste regulamento não seriam aplicáveis à zona marítima à qual dizem respeito as medidas em litígio e que apenas uma adequada alteração do Regulamento n.o 101/76 poderia estender o seu âmbito à zona marítima em questão.

41

A Comissão qualifica de «surpreendente» esta constatação, que considera contrária à interpretação que convém atribuir ao texto, quer dos artigos 100.o a 103.o do acto de adesão, quer das próprias disposições do Regulamento n.o 101/76, e incompatível com a atitude adoptada pelo Governo irlandês quando da elaboração, no âmbito do Conselho, da Resolução de Haia, e de um certo número de regulamentos relativos a esta matéria.

42

A Comissão chama ainda a atenção para o facto da interpretação conferida pelo Governo irlandês ao reenvio contido no n.o 3 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76 teria por efeito a limitação do domínio de aplicação da política comum de estruturas no sector da pesca a uma pequena fracção dos mares sob a jurisdição dos Estados-membros e impedir, deste modo, o Conselho de instituir medidas de conservação aplicáveis para além do antigo limite das 12 milhas marítimas.

43

O Governo dos Países Baixos alega, nesta matéria, que o domínio de aplicação geográfica das regras de direito comunitário é definido pela soma dos territórios europeus dos Estados-membros e que, deste modo, qualquer ajustamento realizado por um Estado-membro em relação ao alcance da sua jurisdição constituiria ao mesmo tempo um ajustamento dos limites do mercado comum.

44

Esta é a directriz do n.o 3 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76, o qual diz respeito às águas marítimas designadas pela lei de um Estado-membro sujeitas à sua jurisdição, independentemente da sua data de entrada em vigor.

45

Com vista a determinar o domínio de aplicação geográfica do Regulamento n.o 101/76, convém interpretar as suas disposições tomando em consideração o seu enquadramento jurídico, bem como o seu objecto e a sua finalidade.

46

Os regulamentos, enquanto actos institucionais adoptados com base no Tratado, têm, em princípio, o mesmo âmbito de aplicação geográfica que o próprio Tratado.

47

O n.o 3 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76 deve, pois, ser entendido como fazendo referência à delimitação da esfera de aplicação do direito comunitário, no seu conjunto, em cada momento.

48

Em consequência, o reenvio desta disposição para as «leis em vigor» nos diferentes Estados-membros, quanto à delimitação das águas marítimas que relevam da sua soberania ou jurisdição, deve ser interpretado como visando as leis aplicáveis, em cada momento, no decurso do período de validade do regulamento em causa.

49

Esta interpretação é a única compatível com o objecto e o fim deste regulamento, que é o de estabelecer um regime comum para o exercício da pesca no conjunto das águas marítimas dos Estados-membros.

50

Daqui resulta que qualquer extensão das zonas marítimas em questão implica automaticamente uma extensão idêntica do domínio de aplicação do regulamento.

51

Assim sendo, a interpretação dada ao n.o 3 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76 pelo Governo irlandês não deve ser acolhida.

Quanto ao mérito da causa

52

Todas as partes nos dois processos reconhecem que a instituição de medidas de conservação dos recursos da pesca era necessária, e mesmo urgente, nas águas que relevam da jurisdição irlandesa, na época das medidas objecto do litígio.

53

Também não é contestado que esta necessidade subsistia apesar de uma sensível redução das capturas por parte de certos Estados terceiros na região marítima considerada, na sequência do alargamento das zonas de pesca em 1 de Janeiro de 1977 e das disposições adoptadas pela Comunidade.

54

O litígio reduz-se, assim, a quatro ordens de fundamentos apresentados com diferente ênfase pelas partes que participam em cada um dos dois processos, e que dizem respeito

à competência da Irlanda,

ao procedimento utilizado na ocasião pelo Governo irlandês,

à questão de saber se as medidas irlandesas podem ser consideradas como genuínas medidas de conservação,

à questão de saber se, pela instituição destas medidas, a Irlanda violou a regra da não discriminação consagrada no artigo 7.o do Tratado e no Regulamento n.o 101/76.

55

Convém apreciar em primeiro lugar a questão da competência, a qual condiciona o conjunto dos restantes fundamentos e, entre estes, a questão de uma eventual violação da regra da não discriminação.

Quanto à competência do Estado irlandês

56

Os arguidos na acção principal do processo 88/77 contestam a competência do Estado irlandês para adoptar, num âmbito nacional, medidas de conservação pois, na sua opinião, a instituição de tais medidas relevaria doravante de uma competência assumida pela Comunidade.

57

Invocam, nomeadamente, em apoio desta tese, o artigo 102.o do acto de adesão, o qual reserva às instituições comunitárias o poder de fixar as condições de exercício da pesca tendo em vista garantir a protecção dos fundos e a conservação dos recursos biológicos .o mar, os Regulamentos n.os 100/76 e 101/76, que têm por objecto organizar com bases comuns o mercado dos produtos da pesca e a política de estruturas na matéria, bem como a Resolução de Haia, na parte que prevê o alargamento das zonas de pesca «através de uma acção concertada».

58

o acórdão de 14 de Julho de 1976, Kramer (3/76, 4/76 e 6/76, Colect., p. 515), não afastou a concepção por eles defendida, pelo facto de apenas ter reconhecido uma competência na matéria aos Estados-membros, por força dos compromissos internacionais assumidos anteriormente.

59

Pela sua parte, o Governo francês, no memorando que apresentou no processo 88/77, sublinha o facto de a política da pesca ser dotada de uma natureza comunitária, a qual decorre quer do n.o 1 do artigo 38.o do Tratado CEE, quer dos sucessivos regulamentos, e de este estádio do direito ter sido confirmado, no que respeita mais especificamente às medidas de conservação, pelo artigo 102.o do acto de adesão e pela Resolução da Haia.

60

Esta concepção foi também consagrada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo Kramer.

61

A competência para estabelecer um regime permanente do exercício das actividades da pesca pertence, pois, à Comunidade enquanto tal, e, nos termos da jurisprudência constante do Tribunal, tal como é expressa, nomeadamente, no acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, Colect., p. 69, n.o 31), esta competência tem uma natureza exclusiva.

62

O Governo francês deduz destas tomadas de posição que quaisquer medidas unilaterais dos Estados-membros na matéria serão contrárias ao direito comunitário a partir do momento em que a Comunidade assuma plenamente a sua competência ou que o período transitório, prevista no artigo 102.o do acto de adesão, atinja o seu termo.

63

Tal como o Tribunal já afirmou no acórdão Kramer, de 14 de Julho de 1976, a Comunidade é competente para adoptar medidas de conservação, quer de maneira autónoma, quer sob a forma de compromissos contratuais com Estados terceiros, ou no âmbito de organizações internacionais.

64

Na medida em que esta competência tenha sido exercida pela Comunidade, as disposições adoptadas excluem quaisquer disposições divergentes dos Estados-membros.

65

Em contrapartida, enquanto decorrer o período transitório fixado no artigo 102.o do acto de adesão e a Comunidade não tiver plenamente exercido a sua competência na matéria, é lícita a adopção pelos Estados-membros, num âmbito nacional, das medidas de conservação adequadas, sem prejuízo, contudo, das obrigações de cooperação que lhes incumbem por força do Tratado, nomeadamente do seu artigo 5o

66

Foi, pois, a justo título que, no anexo VI da Resolução de Haia, após recordar que, em princípio, os Estados-membros não tomariam medidas unilaterais de conservação enquanto não fossem aplicadas as medidas comunitárias, o Conselho reconheceu que aquelas poderiam ser adoptadas a título provisório, caso as medidas comunitárias não tivessem sido estabelecidas em tempo útil.

67

Decorre daqui que, atendendo à omissão do Conselho e à impossibilidade de aí alcançar uma solução de conjunto, a Irlanda tinha o direito de adoptar, em relação às zonas marítimas que relevam da sua responsabilidade, medidas de conservação, na condição de estas serem, no entanto, conformes às exigências do direito comunitário.

68

A contestação apresentada no processo 88/77 quanto à competência do Estado irlandês, no período considerado, não deve portanto ser acolhida.

Quanto à natureza discriminatória das medidas irlandesas

69

A Comissão alega que as medidas irlandesas, ainda que baseadas em critérios aparentemente neutros, como os da dimensão e potência das embarcações, são na realidade discriminatórias a duplo título.

70

Constata-se que a frota de pesca irlandesa não tem embarcações que ultrapassem as especificações fixadas nos diplomas em litígio, com duas excepções, uma das quais, com toda a certeza, nunca pescou na zona proibida, enquanto que a medida tem uma forte incidência sobre a frota de certos Estados-membros, em particular a da França e a dos Países Baixos.

71

Para além disso, estas medidas estabeleceriam diferenças de tratamento entre os diversos Estados-membros, dado que a frota de pesca neerlandesa, constituída principalmente por grandes embarcações, seria quase totalmente afastada das águas em questão, a francesa seria também prejudicada, ainda que em menor escala, enquanto a britânica, tendo em conta as suas características, seria totalmente poupada.

72

Desta maneira, através destas medidas, a Irlanda violou quer a regra geral da não discriminação do artigo 1o do Tratado CEE, quer as disposições do n.o 1 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76, retomadas no anexo VI da Resolução de Haia.

73

Estas alegações foram sustentadas pelos Governos francês e neerlandês, os quais consideram que, desta maneira, foi violado um dos fundamentos essenciais da política comum em matéria de pesca.

74

Os arguidos na acção principal no processo 88/77 avançam as mesmas alegações, sublinhando que, optando por um critério baseado na dimensão e na potência das embarcações, as medidas irlandesas discriminariam embarcações importantes, eliminando deste modo as vantagens ligadas às economias de escala que decorrem da modernização da frota de pesca neerlandesa.

75

O Governo irlandês, pela sua parte, chama a atenção para o facto das medidas contestadas se basearem em critérios de natureza técnica, totalmente alheios a qualquer consideração ligada à nacionalidade das embarcações.

76

A incidência desigual destas medidas é uma consequência inevitável decorrente da constituição das diferentes frotas nacionais em causa, e não de critérios escolhidos, os quais não se podem, pois, qualificar de discriminatórios.

77

No que diz respeito às vantagens que possam derivar das medidas adoptadas para os pescadores irlandeses, o Governo irlandês considera que se justificam pelo facto da própria Comunidade ter reconhecido reiteradamente, mesmo na Resolução de Haia, a necessidade de estimular o crescimento da indústria da pesca na Irlanda.

78

Conforme o Tribunal teve ocasião de afirmar noutros contextos e, em especial, no seu acórdão de 12 de Fevereiro de 1974, Stogiu/Deutsche Bundespost (152/73, Colect., p. 91), a regra da igualdade de tratamento consagrada no direito comunitário proíbe não só as discriminações ostensivas baseadas na nacionalidade mas também todas as formas dissimuladas de discriminação que, pela aplicação de outros critérios de distinção, atinjam na prática o mesmo resultado.

79

Indubitavelmente, é este o caso dos critérios fixados nas medidas em litígio, cujo efeito é o de afastar das águas irlandesas uma boa parte das frotas de outros Estados-membros, as quais, exerciam tradicionalmente a pesca nestas regiões, enquanto, através destas mesmas medidas, nenhuma obrigação equivalente é imposta aos nacionais da Irlanda.

80

Deste modo, estas medidas são contrárias quer ao artigo 7.o do Tratado CEE, o qual proíbe as discriminações em função da nacionalidade, quer ao n.o 1 do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76, nos termos do qual o regime aplicado por cada Estado-membro para o exercício da pesca, nas águas marítimas sob a sua jurisdição ou soberania, não pode provocar diferenças de tratamento em relação aos outros Estados-membros.

Quanto aos restantes fundamentos

81

A Comissão, apoiada pelos Governos francês e neerlandês, alega ainda que não se devem considerar as medidas irlandesas como genuínas medidas de conservação.

82

Não parece ser necessário resolver esta questão, já que a natureza discriminatória das medidas irlandesas pôde ser estabelecida com base nas considerações que precedem.

83

Ao longo do processo, diversas críticas foram suscitadas relativamente à forma de actuação do Governo irlandês e aos efeitos negativos que terá implicado quer para a realização de uma política comum da pesca, quer para a defesa dos interesses da Comunidade nas negociações com Estados terceiros.

84

Este ponto foi especialmente sublinhado pela Comissão, a qual considerou o efeito das medidas irlandesas sobre as negociações externas como um motivo de impugnação autónomo.

85

Tendo em conta as conclusões já referidas, não parece ser necessário decidir sobre o conjunto destes fundamentos.

86

Basta remeter, a este respeito, para as apreciações já formuladas pelo Tribunal nos fundamentos do seu despacho de 22 de Maio de 1977.

87

Resulta do que precede que, se é verdade que não se pode contestar a competência da Irlanda para adoptar, na falta de disposições adequadas no plano comunitário, medidas de conservação provisórias em relação às águas marítimas que relevam da sua jurisdição, deve reconhecer-se que, devido à natureza discriminatória das medidas instituídas pelos diplomas do ministro das Pescas, de 16 de Fevereiro de 1977, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado e, em especial, do artigo 7.o do Tratado CEE e do artigo 2o do Regulamento n.o 101/76.

Quanto às despesas

88

Por força do disposto no n.o 2 do artigo 69.o do Regulamento Processual, a parte vencida deve ser condenada nas despesas.

89

Os fundamentos da demandada não são de acolher.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

 

1)

Ao aplicar os diplomas do ministro das Pescas, de 16 de Fevereiro de 1977, designados «Sea Fisheries (Conservatlon and Rational Exploitation) Order, 1977» e «Sea Fisheries (Conservation and Rational Exploitation) (No 2) Order, 1977», a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia.

 

2)

A Irlanda é condenada nas despesas do processo, incluindo as do processo de medidas provisórias.

 

Kutscher

Sørensen

Bosco

Donner

Pescatore

Mackenzie Stuart

O'Keeffe

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 16 de Fevereiro de 1978.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Língua do processo: inglês.

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