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Document 61975CC0036

Conclusões do advogado-geral Mayras apresentadas em 14 de Outubro de 1975.
Roland Rutili contra Ministro do Interior.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal administratif de Paris - França.
Processo 36-75.

Edição especial inglesa 1975 00415

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1975:124

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL HENRI MAYRAS

apresentadas em 14 de Outubro de 1975 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

O presente processo situa-se na linha de jurisprudência inaugurada por dois recentes acórdãos deste Tribunal proferidos em 4 de Dezembro de 1974, Van Duyn (processo 41/74, Colect. 1974, p. 567), e 26 de Fevereiro de 1975, Bonsignore (processo 67/74, Colect. 1975, p. 125).

Apresenta-se assim uma melhor ocasião para limar as arestas do conceito de ordem pública consignado no artigo 48.o, n.o 8, do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia.

O Tribunal Administrativo de Paris submeteu a este Tribunal duas questões prejudiciais cuja análise levará ao esclarecimento da interpretação desta excepção do princípio da livre circulação dos trabalhadores na Comunidade.

Pela primeira questão pretende-se saber se a expressão «sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública» respeita apenas às decisões regulamentares que cada Estado-membro tenha decidido adoptar para limitar no seu território a livre circulação e permanência de nacionais de outros Estados-membros.

A segunda, mais importante, tem a ver com o próprio conteúdo do conceito de ordem pública; com efeito, o juiz francês pergunta qual o sentido preciso que deve atribuir-se à palavra «justificadas».

Antes de abordar a análise destas questões, é necessário recordar os factos que estão na origem do processo principal.

Roland Rutili, nascido em França de pai italiano, casado com uma francesa que lhe deu três filhos, não tendo deixado, ao que parece, de residir em território francês desde que nasceu, manteve todavia a sua nacionalidade de origem jure sanguinis.

Domiciliado com a sua família em Audun-le-Tiche, no departamento de Meurthe-et-Moselle, aí tinha um emprego como assalariado. É titular de um cartão de identidade de residente privilegiado.

Algumas semanas após os acontecimentos que em França assinalaram o mês de Maio de 1968, foi objecto de uma ordem de expulsão. Esta decisão não foi evidentemente executada uma vez que, dentro de muito pouco tempo, foi substituída por uma medida de fixação de residência num departamento do centro de França, medida que foi também adiada em Novembro de 1968.

Os elementos do processo não permitem saber de que tipo de autorização de residência dispôs o interessado a partir daquela data.

O que se passou é que a sua situação foi finalmente regularizada em 23 de Outubro de 1970 pela atribuição de uma licença de residência do tipo previsto no decreto francês, de 5 de Janeiro de 1970, para estrangeiros nacionais dos Estados-membros da Comunidade. Este diploma legislativo foi adoptado para dar aplicação às decisões comunitárias relativas à supressão das restrições à deslocação e residência daqueles nacionais e, designadamente, à Directiva 68/360 do Conselho, que respeita aos trabalhadores e suas famílias.

Nos termos do artigo 6.o do decreto, as re-feridas licenças de residência «são válidas para todo o território francês, excepto no caso de decisão individual adoptada pelo ministro do Interior por razões de ordem pública».

Esta excepção atribui ao ministro o poder de limitar a validade territorial da licença de nacional de um Estado-membro, excluindo o direito de residir em determinadas circunscrições administrativas.

Foi precisamente uma restrição desta natureza que foi imposta ao senhor Rutili. A licença que lhe foi concedida proíbe-lhe a residência nos departamentos da Lorena: Moselle, Meurthe-et-Moselle, Meuse e Vosges.

Este, através de um recurso por «excesso de poder», impugnou a decisão ministerial junto do Tribunal Administrativo de Paris. Foi apenas através dos memorandos apresentados em nome do ministro durante o processo escrito que o recorrente no processo principal teve conhecimento das razões da medida restritiva que lhe foi aplicada. Foram invocados pela administração três factos:

o Senhor Rutili teria intervindo na campanha eleitoral para as eleições legislativas de 1967;

teria participado nas acções subversivas desencadeadas por ocasião dos acontecimentos de Maio de 1968;

finalmente, teria tomado parte activa numa manifestação política aquando da celebração da festa nacional do 14 de Julho de 1968 em Audun-le-Tiche.

Perante o tribunal administrativo, o recorrente no processo principal não invocou apenas argumentos baseados na ilegalidade da decisão impugnada relativamente ao direito interno, mas também quanto ao processo seguido pelas autoridades administrativas, bem como no que respeita à verdade material dos factos que lhe são imputados e a sua qualificação jurídica. Além disso, também invocou os direitos subjectivos que lhe conferem as disposições do Tratado de Roma e os actos adoptados para a sua aplicação, que garantem a livre circulação e o direito de residência dos trabalhadores na Comunidade.

Quais são essas disposições?

A sede da matéria localiza-se no artigo 48.o do Tratado, que estabelece o princípio da livre circulação dos trabalhadores e se destina a assegurar a sua aplicação a partir do termo do período de transição. Este artigo impõe aos Estados-membros uma obrigação precisa e incondicional, cuja execução não requer a intervenção de qualquer acto de aplicação, comunitário ou nacional. É directamente aplicável, não obstante a reserva relativa às limitações justificadas por razões de ordem pública inscritas no seu n.o 3.

É o que declara expressamente o acórdão van Duyn, que confirma neste aspecto o acórdão Comissão/França, de 4 de Abril de 1974 (Colect. 1974, p. 187).

Se, com efeito, qualquer Estado-membro pode invocar a excepção de ordem pública, a legalidade da sua aplicação encontra-se submetida a controlo jurisdicional. Assim sendo, a existência desta excepção, limitada e de interpretação estrita, não constitui obstáculo a que os particulares possam invocar judicialmente os direitos que lhe são conferidos pelo artigo 48.o do Tratado e que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger.

A isto acresce que o princípio de liberdade de circulação foi explicitado e precisado por directivas do Conselho, algumas das quais devem encontrar aplicação no presente processo.

Tendo em conta as indicações fornecidas ao Tribunal pelo representante da Comissão, convém salientar, entre aquelas decisões:

Em primeiro lugar, a Directiva 64/221, de 25 de Fevereiro de 1964, relativa à coordenação das medidas especiais para estrangeiros em matéria de circulação e residência, justificadas por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública.

Trata-se de um texto que é bem conhecido deste Tribunal, uma vez que já teve ensejo de se debruçar sobre a sua interpretação a propósito da análise dos processos Van Duyn e Bonsignore. O seu âmbito de aplicação abrange também os trabalhadores assalariados referidos nos artigos 48.o, como os industriais, comerciantes, agricultores ou membros de profissões liberais referidos no artigo 52.o, relativo à liberdade de estabelecimento. Será o primeiro parágrafo do seu artigo 3.o que merecerá especialmente a nossa atenção. Determina que «as medidas de ordem pública ou de segurança pública devem assentar exclusivamente no comportamento pessoal do indivíduo que delas é objecto». Esta disposição, à qual o Tribunal reconheceu um efeito directo, limita o poder discricionário que os legisladores nacionais atribuem geralmente às autoridades competentes em matéria de polícia de estrangeiros; obriga-os a só tomar em consideração razões extraídas do comportamento individual.

Esta disposição é, em si mesma, determinante para a solução da primeira questão suscitada pelo Tribunal Administrativo de Paris.

Os artigos 6.o, 8.o e 9.o da mesma directiva deverão igualmente ser considerados na medida em que o processo administrativo segundo o qual podem ser adoptadas num Estado-membro medidas restritivas da liberdade de deslocação e estada não é irrelevante quanto à legalidade dessas medidas perante o direito comunitário.

Com efeito, o artigo 6.o impõe às autoridades nacionais a obrigação de dar conhecimento ao interessado das razões de ordem pública que se encontram na base da decisão que lhe diz respeito, a menos que a isso se oponham motivos relativos à segurança do Estado.

Em segundo lugar, nos termos dos artigos 8.o e 9.o da directiva, as garantias jurisdicionais de que aquelas medidas devem ser acompanhadas constituem um elemento essencial para apreciação da utilização justificada ou não que as autoridades nacionais são chamadas a fazer da excepção de ordem pública. Com efeito, para invocar utilmente os direitos subjectivos que lhe são atribuídos pelo artigo 48.o do Tratado, os interessados devem ser postos em condições de utilizar utilmente os seus meios de defesa, antes que a autoridade administrativa tenha adoptado a seu respeito uma decisão restritiva.

Finalmente, foram adoptadas directivas que se referem especificamente apenas à deslocação e residência dos trabalhadores dos Estados-membros e das suas famílias dentro da Comunidade. Tendo em conta a evolução que assinalou a supressão gradual das restrições à liberdade de circulação e ao direito de residir no território dos Estado-membros, era natural que o Conselho procedesse por fases sucessivas, em conformidade com as previsões do artigo 49.o do Tratado. Uma primeira directiva, de 16 de Agosto de 1961, foi, nestes termos, substituída pela de 25 de Março de 1964 (64/240), a que se sucedeu a Directiva 68/360, de 15 de Outubro de 1968, aplicável na época em que ao senhor Rutili foi concedido um cartão de residência de nacional de um Estado-membro; aliás, ela continua em vigor. De entre as diversas disposições desta directiva, uma apresenta um interesse muito especial em termos de permitir uma resposta à segunda questão do juiz nacional. Trata-se do seu artigo n.o 1, alínea a), nos termos da qual o cartão de residente (de nacional de um Estado-membro da Comunidade) «deve ser válido para todo o território do Estado-membro que o emitiu».

Na medida em que esta disposição não faz qualquer alusão à faculdade de as autoridades nacionais restringirem a validade territorial do cartão de residente, não deverá ela ser interpretada como acarretando a proibição de as autoridades dos Estados-membros de aprovarem uma restrição daquela natureza? Ou seja, não será que o artigo 48.o, em si mesmo, se destina a assegurar aos trabalhadores comunitários a liberdade de deslocação no território de qualquer Estado-membro nas mesmas condições que os nacionais?

Meus Senhores, estas são as disposições cuja interpretação permitirá responder com utilidade ao órgão jurisdicional a quo.

I — Quanto à primeira questão

Com o objectivo de alcançar a realização efectiva dos dois princípios essenciais do artigo 48.o, a saber:

livre circulação dos trabalhadores na Comunidade;

eliminação de qualquer discriminação assente na nacionalidade entre trabalhadores dos Estados-membros no que respeita ao emprego, remuneração e outras condições de trabalho.

Os autores do Tratado autorizam o Conselho a utilizar duas vias diferentes: directivas e regulamentos.

As condições de acesso ao emprego e as condições de trabalho, quer em matéria de remuneração, despedimento, reintegração profissional, bem como todas as que respeitam a benefícios de vantagens sociais e fiscais, com base na igualdade de tratamento com os nacionais, foram estabelecidas por via regulamentar. São actualmente fixadas pelo Regulamento n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, cujas disposições são, em conformidade com o artigo 189.o do Tratado, obrigatórias e imediatamente aplicáveis em todos os Estados-membros sem interposição de qualquer texto legislativo ou regulamentar de direito interno.

Em contrapartida, no que respeita à supressão progressiva das restrições à deslocação e permanência de trabalhadores assim como a coordenação das medidas especiais para estrangeiros fundadas em razões de ordem pública, o Conselho actuou através de directiva.

Esta opção é passível de uma justificação; com efeito, tratava-se de harmonizar e coordenar as legislações dos Estados-membros num domínio em que estes conservaram, em razão mesmo da excepção de ordem pública, uma certa liberdade de apreciação, embora limitada por regras comunitárias.

Mas o recurso a este procedimento não exclui de todo, como já foi visto, a aplicabilidade directa de certas disposições, na medida em que estas imponham aos Estados-membros obrigações suficientemente precisas, perfeitas e incondicionais.

Todavia, as autoridades nacionais consideraram dever adaptar o seu direito interno e, com vista à aplicação daquelas directivas, adoptaram actos legislativos ou regulamentares.

Foi assim que surgiu em França o decreto, de 5 de Janeiro de 1970, que regulamenta as condições de entrada e de permanência, no território francês, de nacionais dos Estados-membros da Comunidade Económica Europeia, beneficiários da livre circulação de pessoas e serviços.

Mas estes nacionais, designadamente os trabalhadores, não deixam de poder invocar perante os tribunais nacionais os direitos subjectivos que as disposições das directivas comunitárias, com efeito directo, lhes atribuíram.

Desta situação resultam duas consequências:

1.

Na hipótese de os actos legislativos ou regulamentares, portanto de alcance geral e indeterminado, adoptados pelos Estados-membros se revelarem não conformes com as obrigações impostas pelas directivas, competirá aos órgãos jurisdicionais nacionais fazer prevalecer, eventualmente após reenvio prejudicial, as normas comunitárias directamente aplicáveis sobre as disposições do direito interno.

Neste sentido, não há dúvida de que a expressão «sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública», esclarecida pelas disposições de aplicação sob a forma de directivas, respeita aos actos legislativos ou regulamentares que cada Estado tenha adoptado para limitar, no seu território, a livre circulação e permanência de trabalhadores migrantes.

2.

Mas esta expressão diz respeito também a qualquer decisão individual susceptível de ofender os direitos subjectivos de um daqueles trabalhadores, quer se trate de uma recusa de acesso ao território do Estado-membro, de uma medida de expulsão ou de uma restrição à sua liberdade de circulação e escolha do seu local de residência naquele território.

Esta solução é sem qualquer dúvida imposta pelo artigo 3.o, n.o 1, da Directiva 64/221, que implica não apenas que as autoridades nacionais devem proceder, caso a caso, a uma análise especial do comportamento pessoal do trabalhador em causa, como também exige que os motivos de ordem pública invocados para justificar uma decisão sejam exclusivamente fundamentados naquele comportamento, com exclusão de qualquer outra consideração, quer económica (artigo 2.o, n.o 2, da directiva), quer da prevenção geral, tal como o tribunal declarou no acórdão Bonsignore.

Impõe-se, portanto, dar resposta afirmativa à primeira questão.

II — Quanto à segunda questão

Para abordar a análise da segunda questão, é conveniente recordar o raciocínio desenvolvido por este tribunal no processo Van Duyn, a fim de situar o conceito de ordem pública no contexto comunitário.

Inserida no artigo 48o do Tratado enquanto justificação de uma excepção ao princípio fundamental da livre circulação dos trabalhadores, este conceito deve ser entendido em sentido restrito, foi então dito. O seu alcance não poderá, portanto, ser unilateralmente determinado por cada um dos Estados-membros sem controlo das instituições da Comunidade.

Esta afirmação corresponde à necessidade de uma aplicação uniforme do direito comunitário e implica uma tentativa de definição daquele conceito em função daquela exigência.

Mas não é menos verdade que, para retomar os termos daquele mesmo acórdão, «as circunstâncias específicas que poderiam justificar um recurso à noção de ordem pública podem variar de um país para outro e de uma época para outra e que é assim necessário reconhecer às autoridades nacionais uma margem de apreciação dentro dos limites impostos pelo Tratado».

Por outras palavras, trata-se de apenas uma conciliação entre dois imperativos divergentes:

o da Comunidade, que consiste em fazer prevalecer a liberdade de circulação dos trabalhadores;

o dos Estados-membros, que se associa à preservação da ordem pública no seu território.

Na impossibilidade, segundo cremos, de definir um conteúdo exclusivamente comunitário do conceito de ordem pública, que permaneceria contingente sob diversos aspectos, parece-nos mais realista procurar averiguar quais os limites que o Tratado e as directivas adoptadas para a sua aplicação indicam aos poderes das autoridades nacionais.

Alguns desses limites têm a ver com os re-quisitos de forma e de processo a que aqueles poderes devem obedecer.

Outros respeitam ao fundo do problema: sempre que as autoridades nacionais autorizarem um trabalhador a residir no território nacional, poderão ainda limitar o seu direito de se deslocar livremente? Para introduzir limitações àquela liberdade, não terão aquelas autoridades que respeitar o princípio da igualdade de tratamento com os nacionais?

Quanto às garantias que devem acompanhar qualquer decisão restritiva da liberdade de circulação ou do direito de residência, a Directiva 64/221 integra, como já foi visto, uma primeira disposição que limita indirecta mas seguramente os poderes das autoridades nacionais, na medida em que as obriga a dar conhecimento ao interessado das razões de ordem pública que se encontram na base da decisão, a menos que a segurança do Estado a isso se oponha.

Com esta única excepção, qualquer decisão daquela natureza, mesmo que limitada a uma proibição de residência numa parte do território nacional, deve portanto conter a indicação precisa dos motivos invocados pela administração. Certamente, não será suficiente que esta fundamentação se reduza a uma simples referência de carácter geral a razões de ordem pública. É necessário que os factos imputados ao trabalhador e relativos ao seu comportamento pessoal sejam claramente explicitados. É necessário ainda que ao interessado seja dada a possibilidade de conhecer esses factos antes de a decisão ser executada, isto é, o mais tardar aquando da sua notificação.

A isto acresce que, se bem que os artigos 7.o, 8.o e 9.o da directiva se refiram apenas quer à recusa da emissão ou renovação da autorização de residência, quer às decisões de afastamento do território, quer dizer, à expulsão, parece-nos que, pelo menos na hipótese em que uma medida de limitação territorial pudesse ser legalmente adoptada contra um trabalhador, a exigência de indicação dos factos em que aquela medida se fundamenta não deixa de ser necessária, com o objectivo de permitir ao interessado apresentar em tempo útil a sua defesa.

Esta exigência encontra justificação tanto no caso de ser necessário o parecer de um organismo consultivo, independente da autoridade competente para tomar a decisão, nas condições previstas no artigo 9.o da directiva, antes da adopção de uma decisão restritiva do direito de entrada ou de residência, como, a fortiori, no caso de o interessado ter apresentado um recurso jurisdicional, quer aos trabalhadores nacionais quer aos comunitários.

A administração não poderá deixar o requerente na ignorância das razões da decisão contra ele adoptada para só as revelar no decurso de um processo intentado em tribunal.

Estas diferentes disposições, cujo efeito directo não nos parece susceptível de contestação, destinam-se a assegurar garantias não negligenciáveis aos trabalhadores comunitários.

Mas é preciso ir mais longe na análise dos textos e averiguar se, tendo em conta os objectivos do artigo 48.o do Tratado, os Estados-membros podem validamente proibir, por razões de ordem pública, o direito de residência de um nacional comunitário numa parte do seu território.

Na esteira da exposição do representante da Comissão, o Conselho considerou o direito de residência como devendo abranger a totalidade do território de cada Estado-membro. Se se passarem em revista as directivas sucessivamente adoptadas, verifica-se que só a de 25 de Fevereiro de 1964 (64/220), primeiro texto relativo à deslocação e residência de não assalariados em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços, tinha previsto, no seu artigo 4.o, a faculdade de as autoridades nacionais derrogarem, por decisão individual, o princípio segundo o qual a autorização de residência é válida para todo o território do Estado-membro que o emitiu.

Esta disposição não foi retomada na Decisão n.o 73/148, que substituiu o texto original.

Em vão a procuraremos nas duas directivas 74/240 e 68/360 — a segunda ainda em vigor —, relativas à supressão das restrições à deslocação e residência dos trabalhadores.

Finalmente, a directiva para a coordenação das medidas especiais para estrangeiros, justificadas por razões de ordem pública, só se refere à recusa da emissão ou renovação de autorizações de residência, bem como às expulsões.

Do confronto destes textos, deverá extrair-se a conclusão de que já não poderá introduzir-se qualquer restrição de validade territorial das autorizações de residência emitidas em favor de nacionais dos Estados da Comunidade?

Teremos dúvidas em o afirmar em virtude da existência em todos aqueles textos de uma fórmula geral em virtude da qual os Estados-membros só podem derrogar as disposições das directivas por razões de ordem pública, fórmula que pode entender-se como cobrindo qualquer restrição, independentemente do seu alcance ou conteúdo, desde que legalmente fundada no conceito de ordem pública.

Ora, uma vez que as autoridades nacionais têm o direito de invocar a excepção de ordem pública para recusar o acesso do seu território de determinados trabalhadores comunitários ou para expulsar os que foram autorizados a lá permanecer, mas cujo comportamento pessoal justificaria o seu afastamento, não seria então absurdo negar aos Estados-membros o direito de adoptar, relativamente àqueles trabalhadores, medidas menos graves, limitadas a uma proibição de residência numa parcela do seu território?

Não é portanto o argumento extraído da redacção sucessiva das directivas que vai reter a nossa atenção, mas sim as considerações, bastante mais importantes, que pensamos poder destacar da economia do artigo 48.o e das finalidades do princípio da livre circulação.

Parece-nos, com efeito, que o direito de re-sidência dos trabalhadores, uma vez admitidos a penetrar no território de um Estado-membro, se encontra indissociavel-mente ligado ao de aí ocupar um emprego e que o exercício deste direito implica necessariamente o de fixar a sua residência em qualquer local do território do Estado de acolhimento, nas mesmas condições que os nacionais.

O princípio de igualdade de tratamento, fundamento do Regulamento n.o 1612/68, no que respeita quer ao acesso ao emprego quer às condições de trabalho, é, em nosso entender, aplicável em matéria de direito de residência.

Se a expulsão de um trabalhador comunitário não pode ser excluída, como «ultima ratio», sempre que o seu comportamento pessoal acarrete ou ameaçe causar um problema suficientemente grave à ordem pública, e se é certo que a regra da não discriminação em razão da nacionalidade é, neste caso, inaplicável, não podendo os Estados, em virtude de um princípio geral do direito internacional, privar os seus próprios nacionais de viver no seu território, o mesmo não acontece com a proibição de residência.

Entendemos deste modo que, na construção do artigo 48.o, a excepção de ordem pública inserida à cabeça do n.o 3 deste artigo funciona como uma justificação das excepções tanto ao direito de os trabalhadores «respon-derem a empregos efectivamente oferecidos» como ao direito de se deslocarem livremente no território dos Estados-membros e de aí permanecerem para ocupar um emprego. Mas, o exercício destes direitos indissociáveis exclui, nos termos do n.o 2, qualquer discriminação fundada na nacionalidade.

Do exposto deduzimos que, num qualquer Estado-membro, só poderá ser adoptada con tra um trabalhador nacional de um Estado-membro uma medida de proibição de residência numa parcela do território nas mesmas condições em que uma tal decisão pudesse atingir um nacional.

Ora, em resposta às questões postas pelo Tribunal, o Governo francês informou que, nos termos do artigo 44.o do Código Penal, a proibição de residência é uma pena acessória que só pode ser decretada pelo órgão jurisdicional que proferiu a condenação principal. Pondo de lado o caso muito excepcional do estado de urgência previsto na lei de 3 de Abril de 1955, uma medida daquele teor não pode ser decidida pela autoridade administrativa.

A regra de igualdade de tratamento com os nacionais deveria portanto levar a reconhecer que os trabalhadores comunitários autorizados a residir no território francês não podem ser afectados pela proibição de re-sidir em certas localidades ou departamentos acessoriamente a uma condenação penal ou no âmbito do regime do estado de urgência.

Concluímos propondo que o Tribunal declare que:

1)

a expressão «limitações justificadas por razões de ordem pública», utilizada no artigo 48.o, n.o 3, do Tratado da Comunidade Económica Europeia, respeita tanto às decisões individuais restritivas da liberdade de deslocação e de residência dos trabalhadores nacionais dos Estados-membros como a actos de natureza regulamentar adoptados neste domínio pelas autoridades nacionais;

2)

uma decisão que tem por objecto proibir a um determinado trabalhador residir numa parcela do território do Estado de acolhimento só encontra justificação, perante os objectivos do artigo 48.o do Tratado, e designadamente do princípio de não discriminação em razão da nacionalidade, se for adoptada no respeito dos requisitos de fundo e de processo, de modo a justificar uma medida de proibição de residência contra um nacional desse Estado.


( *1 ) Língua original: francês.

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