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Document 62020CJ0205

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 8 de março de 2022.
NE contra Bezirkshauptmannschaft Hartberg-Fürstenfeld.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark.
Reenvio prejudicial — Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores — Diretiva 2014/67/UE — Artigo 20.o — Sanções — Proporcionalidade — Efeito direto — Princípio do primado do direito da União.
Processo C-205/20.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:168

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de março de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores — Diretiva 2014/67/UE — Artigo 20.o — Sanções — Proporcionalidade — Efeito direto — Princípio do primado do direito da União»

No processo C‑205/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria, Áustria), por Decisão de 27 de abril de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de maio de 2020, no processo

NE

contra

Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld,

sendo interveniente:

Finanzpolizei Team 91,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente, A. Prechal, E. Regan, S. Rodin, I. Jarukaitis, N. Jääskinen e I. Ziemele, presidentes de secção, J.‑C. Bonichot, T. von Danwitz, M. Safjan, N. Piçarra, L. S. Rossi, A. Kumin e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e C. Leeb, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e J. Pavliš, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de setembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 20.o da Diretiva 2014/67/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, respeitante à execução da Diretiva 96/71/CE relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços e que altera o Regulamento (UE) n.o 1024/2012 relativo à cooperação administrativa através do Sistema de Informação do Mercado Interno («Regulamento IMI») (JO 2014, L 159, p. 11).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe NE à Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Autoridade Administrativa do Distrito de Hartberg‑Fürstenfeld, Áustria) a respeito da coima que esta última lhe aplicou por diversas violações de disposições austríacas em matéria de direito do trabalho.

Quadro jurídico

Diretiva 2014/67

3

O artigo 20.o da Diretiva 2014/67 prevê:

«Os Estados‑Membros definem regras relativas às sanções aplicáveis em caso de violação das disposições nacionais adotadas nos termos da presente diretiva e tomam as medidas necessárias para garantir a sua aplicação e cumprimento efetivos. As sanções impostas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas. Os Estados‑Membros notificam as referidas disposições à Comissão até 18 de junho de 2016. Os Estados‑Membros notificam sem demora quaisquer alterações que lhes sejam feitas subsequentemente.»

Direito austríaco

4

O § 52, n.os 1 e 2, da Verwaltungsgerichtsverfahrensgesetz (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, BGBl. I, 33/2013), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, tem a seguinte redação:

«1.   Em qualquer sentença de confirmação de uma sanção administrativa, o tribunal administrativo fixará uma contribuição para as despesas processuais que deverá ser paga pelo autor da infração.

2.   Em caso de recurso, essa contribuição é fixada em 20 % da sanção aplicada, e tem o valor mínimo de dez euros; quando a sanção consiste numa pena privativa de liberdade, um dia de pena privativa da liberdade equivale, para efeito do cálculo das despesas, a 100 euros. […]»

5

O § 26, n.o 1, da Lohn‑ und Sozialdumping‑Bekämpfungsgesetz (Lei de Combate ao Dumping Salarial e Social, BGBl. I, 44/2016), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «LSD‑BG»), enuncia:

«Quem, na qualidade de empregador ou de empresa de disponibilização de mão de obra na aceção do § 19, n.o 1:

1.

não proceda à declaração exigida, designadamente das alterações posteriores de dados (declaração de alteração) em violação do § 19, ou que não o faça em tempo útil ou de forma completa, ou

[…]

3.

não disponha dos documentos exigidos, em violação do § 21, n.o 1 ou n.o 2, ou não os ponha à disposição das autoridades fiscais no local […] em formato eletrónico,

comete uma infração administrativa passível de coima aplicada pela autoridade administrativa distrital num montante de 1000 a 10000 euros por cada trabalhador em questão e, em caso de reincidência, de 2000 a 20000 euros.»

6

O § 27, n.o 1, da LSD‑BG dispõe:

«Quem não transmita os documentos necessários, em violação do § 12, n.os 1 e 3, comete uma infração administrativa passível de uma coima aplicada pela autoridade administrativa distrital num montante de 500 euros a 5000 euros por cada trabalhador em questão e, em caso de reincidência, de 1000 a 10000 euros. […]»

7

O § 28 da LSD‑BG tem a seguinte redação:

«Quem, enquanto

1.

empregador, não mantiver à disposição os documentos salariais, em violação do § 22, n.o 1 ou n.o 1, alínea a), […]

[…]

comete uma infração administrativa passível de uma coima aplicada pela autoridade administrativa distrital num montante de 1000 euros a 10000 euros por cada trabalhador em causa e, em caso de reincidência, de 2000 a 20000 euros e, se estiverem em causa mais de três trabalhadores, num montante de 2000 a 20000 euros por cada trabalhador em questão, e, em caso de reincidência, de 4000 a 50000 euros.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8

A CONVOI s. r. o., sociedade com sede na Eslováquia, destacou trabalhadores assalariados para a sociedade Niedec Global Appliance Austria GmbH, com sede em Fürstenfeld (Áustria).

9

Com base em constatações feitas no decurso de um controlo efetuado em 24 de janeiro de 2018, a autoridade administrativa do distrito de Hartberg‑Fürstenfeld, por Decisão de 14 de junho de 2018, aplicou uma coima no montante de 54000 euros a NE, na sua qualidade de representante da CONVOI, em razão da inobservância de várias obrigações previstas pela LSD‑BG, relativas, nomeadamente, à declaração de destacamento junto da autoridade nacional competente e à conservação da documentação salarial.

10

NE interpôs recurso desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, o Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria, Áustria).

11

Por Decisão de 9 de outubro de 2018, este órgão jurisdicional submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial tendo por objeto a conformidade com o direito da União e, em especial, com o princípio da proporcionalidade de sanções como as previstas pela regulamentação nacional em causa no processo principal.

12

No Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 20.o da Diretiva 2014/67 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, em caso de inobservância das obrigações em matéria de direito do trabalho relativas à declaração dos trabalhadores e à conservação de documentos salariais, a aplicação de coimas de um montante elevado:

que não podem ser inferiores a um montante predefinido;

que são aplicadas cumulativamente por cada trabalhador em causa e sem limite máximo, e

às quais acresce uma contribuição para as despesas processuais que ascende a 20 % do seu montante em caso de improcedência do recurso interposto da decisão que as imponha.

13

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, na sequência deste despacho, o legislador nacional não alterou a regulamentação em causa no processo principal e, tendo em conta, nomeadamente, as considerações expostas no Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N (C‑384/17, EU:C:2018:810), bem como a existência de divergências entre os órgãos jurisdicionais austríacos quanto ao modo como a jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria deve ser aplicada, interroga‑se sobre a questão de saber se e, se for caso disso, em que medida esta regulamentação pode ser afastada.

14

Em especial, considera que as consequências que devia retirar do referido despacho poderiam conduzi‑lo quer a afastar os elementos da referida regulamentação que obstam à aplicação de sanções proporcionadas, quer a abster‑se de aplicar, no seu conjunto, o regime de sanções previsto pela mesma regulamentação.

15

Neste contexto, o Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O requisito da proporcionalidade das sanções, previsto no artigo 20.o da Diretiva [2014/67] e interpretado pelos [Despachos de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), e de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑140/19, C‑141/19 e C‑492/19 a C‑494/19, não publicado, EU:C:2019:1103)], é uma disposição diretamente aplicável de uma diretiva?

2)

Em caso de resposta negativa à primeira questão:

A interpretação do direito nacional em conformidade com o direito da União permite e exige que, não tendo sido adotada nova legislação nacional, os tribunais e as autoridades administrativas do Estado‑Membro completem as disposições penais nacionais aplicáveis no presente caso com os critérios de proporcionalidade, definidos [pelo Tribunal de Justiça da União Europeia nos Despachos] [de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), e de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑140/19, C‑141/19 e C‑492/19 a C‑494/19, não publicado, EU:C:2019:1103)]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

16

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o da Diretiva 2014/67, na medida em que exige que as sanções que prevê sejam proporcionadas, é dotado de efeito direto e pode, assim, ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que dele fez uma transposição incorreta.

17

Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, sempre que as disposições de uma diretiva se afigurem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar nos tribunais nacionais contra o Estado, quer quando este não as tenha transposto para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva, quer quando delas tenha feito uma transposição incorreta (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Max‑Planck‑Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften, C‑684/16, EU:C:2018:874, n.o 63 e jurisprudência referida).

18

O Tribunal de Justiça precisou que uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem está subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, é suficientemente precisa para ser invocada por um litigante e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, RTS infra e Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel, C‑387/19, EU:C:2021:13, n.o 46 e jurisprudência referida).

19

O Tribunal de Justiça declarou, além disso, que, ainda que uma diretiva confira aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades da sua aplicação, pode considerar‑se que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela enunciada (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, RTS infra e Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel, C‑387/19, EU:C:2021:13, n.o 47 e jurisprudência referida).

20

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio considera, por referência ao Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), que, ao adotar a regulamentação nacional aplicável ao litígio no processo principal, o legislador austríaco não transpôs corretamente a exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67.

21

Esta disposição prevê que os Estados‑Membros definam o regime de sanções aplicável em caso de violação das disposições nacionais adotadas ao abrigo desta diretiva e precisa que as sanções assim aplicadas devem ser, designadamente, proporcionadas.

22

Importa salientar, em primeiro lugar, que a exigência da proporcionalidade das sanções prevista na referida disposição tem caráter incondicional.

23

Com efeito, por um lado, a redação do artigo 20.o da Diretiva 2014/67 enuncia essa exigência em termos absolutos.

24

Por outro lado, a proibição de adotar sanções desproporcionadas, que é consequência da referida exigência, não necessita da intervenção de nenhum ato das instituições da União e esta disposição não confere, de modo nenhum, aos Estados‑Membros a faculdade de condicionarem ou de restringirem o alcance desta proibição (v., por analogia, Acórdão de 15 de abril de 2008, Impact, C‑268/06, EU:C:2008:223, n.o 62).

25

A circunstância de que o artigo 20.o desta diretiva deve ser objeto de transposição não é suscetível de pôr em causa o caráter incondicional da exigência de proporcionalidade das sanções previsto neste artigo.

26

Há ainda que acrescentar, a este respeito, que uma interpretação segundo a qual a necessidade de transposição da exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da referida diretiva é suscetível de lhe retirar o seu caráter incondicional equivaleria a impedir os particulares em causa de invocarem, se for caso disso, a proibição de adotar sanções desproporcionadas imposta por essa exigência. Ora, seria incompatível com o caráter vinculativo que o artigo 288.o TFUE reconhece à diretiva excluir, por princípio, que tal proibição possa ser invocada pelas pessoas em causa (v., neste sentido, Acórdão de 26 de junho de 2019, Craeynest e o., C‑723/17, EU:C:2019:533, n.o 32 e jurisprudência referida).

27

No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se o artigo 20.o da Diretiva 2014/67 apresenta um caráter suficientemente preciso, na medida em que prevê a exigência de proporcionalidade das sanções, há que observar que, embora esta disposição confira aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação para definirem o regime de sanções aplicável em caso de violação das disposições nacionais adotadas por força desta diretiva, essa margem de apreciação tem os seus limites na proibição, enunciada de maneira geral e em termos inequívocos, pela referida disposição de prever sanções desproporcionadas.

28

Assim, tal exigência de proporcionalidade das sanções deve, de qualquer modo, ser aplicada pelos Estados‑Membros por força do artigo 20.o da referida diretiva e a circunstância de estes disporem, neste contexto, de uma margem de apreciação, não exclui, em si, que uma fiscalização jurisdicional possa ser efetuada a fim de verificar se o Estado‑Membro em causa ultrapassou os limites fixados a essa margem de apreciação quando transpôs esta disposição (v., por analogia, Acórdãos de 24 de outubro de 1996, Kraaijeveld e o., C‑72/95, EU:C:1996:404, n.o 59, e de 26 de junho de 2019, Craeynest e o., C‑723/17, EU:C:2019:533, n.o 45).

29

Resulta destas considerações que, contrariamente ao declarado no n.o 56 do Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N (C‑384/17, EU:C:2018:810), a exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da mesma diretiva é incondicional e suficientemente precisa para poder ser invocada por um particular e aplicada pelas autoridades administrativas e pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

30

Em especial, quando um Estado‑Membro ultrapassa o seu poder de apreciação ao adotar uma regulamentação nacional que prevê sanções desproporcionadas em caso de infração às disposições nacionais adotadas por força da Diretiva 2014/67, a pessoa em causa deve poder invocar diretamente a exigência de proporcionalidade das sanções enunciada no artigo 20.o desta diretiva contra essa regulamentação (v., por analogia, Acórdãos de 28 de junho de 2007, JP Morgan Fleming Claverhouse Investment Trust e The Association of Investment Trust Companies, C‑363/05, EU:C:2007:391, n.o 61, e de 28 de novembro de 2013, MDDP, C‑319/12, EU:C:2013:778, n.o 51).

31

Além disso, há que recordar que o respeito do princípio da proporcionalidade, que constitui um princípio geral do direito da União se impõe aos Estados‑Membros quando estes aplicam esse direito, incluindo na falta de harmonização da legislação da União no domínio das sanções aplicáveis [v., neste sentido, Acórdãos de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15, EU:C:2017:302, n.o 59, e de 27 de janeiro de 2022, Comissão/Espanha (Obrigação de informação em matéria fiscal), C‑788/19, EU:C:2022:55, n.o 48]. Quando, no âmbito dessa aplicação, os Estados‑Membros adotam sanções mais especificamente de natureza penal, devem respeitar o artigo 49.o, n.o 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), nos termos do qual as penas não devem ser desproporcionadas comparativamente à infração. Ora, este princípio da proporcionalidade, que o artigo 20.o da Diretiva 2014/67 se limita a recordar, reveste caráter imperativo.

32

Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à primeira questão que o artigo 20.o da Diretiva 2014/67, na medida em que exige que as sanções que prevê sejam proporcionadas, tem efeito direto e pode, assim, ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que dele fez uma transposição incorreta.

Quanto à segunda questão

33

A título preliminar, há que salientar que, embora a segunda questão seja formalmente submetida em caso de resposta negativa à primeira questão, resulta da decisão de reenvio que, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, de maneira geral, se, na hipótese de lhe ser impossível proceder a uma interpretação da regulamentação nacional em causa no processo principal em conformidade com a exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67, caber‑lhe‑ia não aplicar essa regulamentação no seu conjunto ou se a poderia completar de modo a impor sanções proporcionadas.

34

Por conseguinte, há que considerar que, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que impõe às autoridades nacionais a obrigação de afastar a aplicação, no seu conjunto, de uma regulamentação nacional contrária à exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 ou se implica que essas autoridades nacionais afastem a aplicação dessa regulamentação unicamente na medida do necessário para permitir a aplicação de sanções proporcionadas.

35

A este respeito, há que recordar que, para garantir a efetividade de todas as disposições do direito da União, o princípio do primado impõe, nomeadamente, aos órgãos jurisdicionais nacionais que interpretem, na medida do possível, o seu direito interno em conformidade com o direito da União (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 57).

36

A obrigação de interpretação conforme do direito nacional conhece, todavia, certos limites e não pode, designadamente, servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.o 72 e jurisprudência referida).

37

Há igualmente que recordar que o princípio do primado impõe ao juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União, a obrigação, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com os requisitos do direito da União, de assegurar o pleno efeito das exigências deste direito no litígio que é chamado a decidir, afastando, se necessário, a aplicação, por sua própria iniciativa, de qualquer regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, que seja contrária a uma disposição do direito da União que tenha efeito direto, sem que tenha de pedir ou de esperar pela supressão prévia desta regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 58 e 61, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 252).

38

Como decorre do exame da primeira questão, a exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 preenche os requisitos requeridos para produzir efeito direto.

39

Por conseguinte, na hipótese de essa exigência ser invocada por um particular perante um juiz nacional contra um Estado‑Membro que dela fez uma transposição incorreta, cabe a esse juiz assegurar a sua plena eficácia e, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com essa exigência, afastar, por autoridade própria, as disposições nacionais que com ela se afigurem incompatíveis.

40

No caso em apreço, resulta dos n.os 32 a 41 do Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), que uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, embora seja adequada para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos, ultrapassa os limites do que é necessário para a realização desses objetivos em razão da combinação das suas diferentes características, em especial o cúmulo sem limiar de coimas que não podem ser inferiores a um montante predefinido.

41

Importa, porém, recordar que, consideradas isoladamente, tais características não violam necessariamente essa exigência. Assim, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 35 desse despacho, que uma regulamentação que prevê sanções pecuniárias cujo montante varia em função do número de trabalhadores abrangidos pelo não cumprimento de certas obrigações em matéria de direito do trabalho não se afigura, em si mesma, desproporcionada.

42

Para assegurar a plena eficácia da exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67, cabe, por conseguinte, ao juiz nacional chamado a pronunciar se sobre um recurso de uma sanção adotada com fundamento no regime nacional aplicável em caso de infração às disposições nacionais adotadas ao abrigo desta diretiva, afastar a parte da regulamentação nacional da qual decorre o caráter desproporcionado das sanções, de modo a conduzir à aplicação de sanções proporcionadas, que se mantêm, ao mesmo tempo, efetivas e dissuasivas.

43

Com efeito, e como foi recordado no n.o 40 do presente acórdão, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que certas modalidades de fixação do montante das coimas da LSD‑BG não eram compatíveis com o artigo 20.o da Diretiva 2014/67, não pôs, no entanto, em causa o princípio previsto por essa mesma disposição, segundo o qual as infrações às disposições nacionais adotadas ao abrigo desta diretiva deviam ser sancionadas, sublinhando, no n.o 32 do Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108), que a regulamentação nacional em causa era adequada à realização dos objetivos prosseguidos pela referida diretiva.

44

Assim, em tal configuração, para que seja assegurada a plena aplicação da exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da mesma diretiva, basta afastar as disposições nacionais apenas na medida em que estas constituam um obstáculo à aplicação de sanções proporcionadas, a fim de assegurar que as sanções impostas à pessoa em causa sejam conformes com essa exigência.

45

Importa ainda precisar, tendo em conta as preocupações expressas pelos governos checo e polaco, que tal interpretação não é posta em causa pelos princípios da segurança jurídica, da legalidade dos delitos e das penas, bem como da igualdade de tratamento.

46

Em primeiro lugar, no que respeita ao princípio da segurança jurídica, este exige, nomeadamente, que uma regulamentação seja clara e precisa, para que os litigantes possam conhecer sem ambiguidade os seus direitos e obrigações e agir em conformidade (Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 161 e jurisprudência referida).

47

O princípio da legalidade dos delitos e das penas, consagrado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta e que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, é uma expressão específica do princípio geral da segurança jurídica, exige, nomeadamente, que a lei defina claramente as infrações e as penas que as reprimem (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 162 e jurisprudência referida).

48

Além disso, embora o princípio da não retroatividade da lei penal, que é inerente ao princípio da legalidade dos delitos e das penas, se oponha, designadamente a que um juiz possa, no decurso de um processo penal, agravar o regime de responsabilidade penal daqueles que são objeto desse processo (v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2017, M.A.S. e M.B., C‑42/17, EU:C:2017:936, n.o 57 e jurisprudência referida), não se opõe, em contrapartida, à aplicação a estes últimos de penas mais leves.

49

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o regime nacional de sanções em causa no processo principal define, em matéria de direito do trabalho, infrações relativas ao desrespeito de obrigações ligadas à declaração de trabalhadores e à conservação de documentos salariais e prevê sanções para essas infrações.

50

Neste contexto, o respeito da exigência de proporcionalidade enunciada no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 tem apenas por efeito levar esse órgão jurisdicional a atenuar a severidade das sanções que possam ser aplicadas.

51

Ora, a circunstância de, num caso como o que está em causa no processo principal, a sanção imposta ser menos pesada do que a sanção prevista pela regulamentação nacional aplicável, em razão de não aplicação parcial desta com fundamento nessa exigência, não pode ser considerada uma violação dos princípios da segurança jurídica, da legalidade dos delitos e das penas e da não retroatividade da lei penal.

52

De qualquer modo, embora, para assegurar o respeito da exigência de proporcionalidade das sanções aplicáveis em caso de infração às disposições nacionais adotadas ao abrigo da Diretiva 2014/67, uma autoridade nacional possa ser levada, quando impõe essa sanção, a afastar certos elementos da regulamentação nacional relativa a essas sanções, não deixa de ser verdade que a sanção assim adotada continuará a ser imposta em aplicação da referida regulamentação.

53

Por conseguinte, mesmo admitindo a circunstância de que uma autoridade nacional deve afastar uma parte da mesma regulamentação nacional seja suscetível de criar uma certa ambiguidade quanto às normas jurídicas aplicáveis a essas infrações, esta circunstância não põe em causa os princípios da segurança jurídica e da legalidade dos delitos e das penas.

54

Em segundo lugar, como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a igualdade perante a lei, enunciada no artigo 20.o da Carta, é um princípio geral do direito da União que exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a menos que uma diferenciação seja objetivamente justificada [Acórdão de 2 de setembro de 2021, Estado belga (Direito de residência em caso de violência doméstica), C‑930/19, EU:C:2021:657, n.o 57 e jurisprudência referida].

55

A exigência relativa ao caráter comparável das situações, para determinar a existência de uma violação do princípio da igualdade de tratamento, deve ser apreciada atendendo a todos os elementos que as caracterizam [Acórdão de 2 de setembro de 2021, Estado belga (Direito de residência em caso de violência doméstica), C‑930/19, EU:C:2021:657, n.o 58 e jurisprudência referida].

56

Ora, uma vez que a exigência de proporcionalidade prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 implica uma limitação das sanções, que deve ser respeitada por todas as autoridades nacionais encarregadas de aplicar esta exigência no âmbito das suas competências, ao mesmo tempo que permite a essas autoridades impor sanções diferentes em função da gravidade da infração com fundamento na regulamentação nacional aplicável, não se pode considerar que tal exigência ponha em causa o princípio da igualdade de tratamento.

57

Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que responder à segunda questão que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que impõe às autoridades nacionais a obrigação de não aplicar uma regulamentação nacional da qual uma parte é contrária à exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 apenas na medida do necessário para permitir a aplicação de sanções proporcionadas.

Quanto às despesas

58

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 20.o da Diretiva 2014/67/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, respeitante à execução da Diretiva 96/71/CE relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços e que altera o Regulamento (UE) n.o 1024/2012 relativo à cooperação administrativa através do Sistema de Informação do Mercado Interno («Regulamento IMI»), na medida em que exige que as sanções que prevê sejam proporcionadas, tem efeito direto e pode, assim, ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que dele fez uma transposição incorreta.

 

2)

O princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que impõe às autoridades nacionais a obrigação de não aplicar uma regulamentação nacional da qual uma parte é contrária à exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.o da Diretiva 2014/67 apenas na medida do necessário para permitir a aplicação de sanções proporcionadas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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