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Document 62022CJ0352

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 18 de junho de 2024.
Generalstaatsanwaltschaft Hamm contra A.
Reenvio prejudicial – Espaço de liberdade, segurança e justiça – Diretiva 2011/95/UE – Artigo 21.°, n.° 1 — Diretiva 2013/32/UE — Artigo 9.°, n.os 2 e 3 — Concessão definitiva do estatuto de refugiado por um Estado‑Membro — Refugiado residente, após essa concessão, noutro Estado‑Membro — Pedido de extradição do Estado terceiro de origem desse refugiado dirigido ao Estado‑Membro de residência — Efeito da decisão de concessão do estatuto de refugiado no procedimento de extradição em causa — Artigo 18.° e artigo 19.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Proteção do referido refugiado contra a extradição pedida.
Processo C-352/22.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:521

Processo C‑352/22

A.

(Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Hamm)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 18 de junho de 2024

«Reenvio prejudicial – Espaço de liberdade, segurança e justiça – Diretiva 2011/95/UE – Artigo 21.o, n.o 1 – Diretiva 2013/32/UE – Artigo 9.o, n.os 2 e 3 – Concessão definitiva do estatuto de refugiado por um Estado‑Membro – Refugiado residente, após essa concessão, noutro Estado‑Membro – Pedido de extradição do Estado terceiro de origem desse refugiado dirigido ao Estado‑Membro de residência – Efeito da decisão de concessão do estatuto de refugiado no procedimento de extradição em causa – Artigo 18.o e artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Proteção do referido refugiado contra a extradição pedida»

Controlo nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Estatuto de refugiado ou estatuto de proteção subsidiária – Diretiva 2011/95 – Proteção contra a repulsão – Âmbito de aplicação – Nacional de um país terceiro que obteve o estatuto de refugiado num Estado‑Membro e residente noutro Estado‑Membro – Pedido de extradição proveniente do seu país de origem dirigido ao seu Estado‑Membro de residência – Condições de autorização da extradição – Troca de informações entre o Estado‑Membro requerido e a autoridade do outro Estado‑Membro que concedeu o estatuto de refugiado – Revogação do referido estatuto por essa autoridade

[Artigo 4.o, n.o 3, primeiro parágrafo, TUE; artigo 78.o, n.o 2, alínea a), TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 4.° e 18.°, artigo 19.o, n.o 2, e artigo 51.o, n.o 1; Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2011/95, considerandos 12 e 21, artigo 2.o, alíneas b), d) e e), artigos 11.° a 14.°, artigo 21.o, n.o 1, e artigo 36.o, e 2013/32, artigos 1.°, 9.°, 44.°, 45.° e 49.°]

(cf. n.os 39‑45, 49, 51‑55, 58, 61‑72 e disp.)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial pelo Oberlandesgericht Hamm (Tribunal Regional Superior de Hamm, Alemanha), o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, esclarece o alcance do princípio da não repulsão no contexto de um pedido de extradição emitido pelo país terceiro de origem de um refugiado junto do seu Estado‑Membro de residência, numa situação em que este estatuto lhe foi concedido noutro Estado‑Membro.

Em 2010, as autoridades italianas concederam a A., um nacional turco de origem curda, o estatuto de refugiado, válido até 2030, devido ao risco de o mesmo ser perseguido politicamente pelas autoridades turcas por apoiar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). A. reside na Alemanha desde julho de 2019.

Com base num mandado de detenção emitido em junho de 2020, por um órgão jurisdicional turco, A. foi referido num alerta da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) a fim de ser detido com vista à sua extradição para a Turquia para efeitos de procedimento penal por homicídio voluntário. Após a sua detenção na Alemanha, em 18 de novembro de 2020, A. foi colocado em prisão preventiva e, seguidamente, em detenção para fins de extradição até 14 de abril de 2022.

Por Despacho adotado em novembro de 2021, o Tribunal Regional Superior de Hamm, que é o órgão jurisdicional de reenvio, declarou admissível a extradição de A. para a Turquia, não se considerando vinculado pela decisão de concessão do estatuto de refugiado tomada pelas autoridades italianas. Na sequência de um recurso constitucional interposto por A., este despacho foi, porém, anulado pelo Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal, Alemanha), tendo este órgão jurisdicional considerado que o órgão jurisdicional de reenvio não submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial sobre esta questão.

Neste contexto, depois de o processo lhe ter sido devolvido, o órgão jurisdicional de reenvio, de novo chamado a pronunciar‑se sobre o pedido de extradição relativo a A., decidiu interrogar o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a decisão de concessão do estatuto de refugiado tomada por um Estado‑Membro produz, por força do direito da União, efeitos vinculativos no âmbito de um procedimento de extradição conduzido noutro Estado‑Membro.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Através do seu acórdão, o Tribunal de Justiça constata, desde logo, que, atendendo a que a decisão de um Estado‑Membro de dar seguimento ao pedido de extradição emitido pelo Estado de origem contra um nacional de um país terceiro que obteve o estatuto de refugiado noutro Estado‑Membro teria por efeito privar esse nacional dos direitos e benefícios previstos na Diretiva 2011/95 ( 1 ), o procedimento de extradição conduzido no primeiro Estado‑Membro deve ser considerado abrangido pela aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Por conseguinte, a autoridade competente do Estado‑Membro requerido não pode autorizar a extradição de um nacional de um país terceiro a quem foi reconhecido o estatuto de refugiado por outro Estado‑Membro para esse país terceiro, quando essa extradição viole o princípio da não repulsão, consagrado no artigo 21.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, lido em conjugação com o artigo 18.o e com o artigo 19.o, n.o 2, da Carta ( 2 ).

A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta, por um lado, que, enquanto a pessoa procurada preencher as condições para possuir a qualidade de refugiado, o artigo 18.o da Carta opõe‑se à sua extradição para o país terceiro de onde fugiu e onde corre o risco de ser perseguido. Por outro lado, quando a pessoa visada num pedido de extradição invoca um risco sério de trato desumano ou degradante em caso de extradição, o Estado‑Membro requerido deve verificar, antes de proceder a uma eventual extradição, se esta última não viola os direitos referidos no artigo 19.o, n.o 2, da Carta.

Ora, para apreciar o risco de violação do artigo 21.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, bem como do artigo 18.o e do artigo 19.o, n.o 2, da Carta, a circunstância de outro Estado‑Membro ter concedido à pessoa procurada o estatuto de refugiado constitui um elemento particularmente sério que a autoridade competente do Estado‑Membro requerido deve ter em conta. Assim, a decisão de concessão do estatuto de refugiado deve, desde que esse estatuto não tenha sido revogado ou retirado pelo Estado‑Membro que o concedeu, levar essa autoridade a recusar a extradição, em aplicação destas disposições. Com efeito, o sistema europeu comum de asilo baseia‑se no princípio da confiança mútua, segundo o qual se deve presumir, salvo em circunstâncias excecionais, que o tratamento dado aos requerentes de proteção internacional em cada Estado‑Membro é conforme com as exigências do direito da União, da Convenção de Genebra ( 3 ) e da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais ( 4 ).

Além disso, as disposições das Diretivas 2011/95 e 2013/32 ( 5 ) relativas à revogação e à retirada do estatuto de refugiado e o procedimento nelas previsto seriam contornados se o Estado‑Membro requerido pudesse extraditar um nacional de um país terceiro, ao qual outro Estado‑Membro reconheceu o estatuto de refugiado para o seu país de origem. Essa extradição equivaleria, de facto, a pôr termo a esse estatuto e ao interessado ficar privado do gozo efetivo da proteção que lhe confere o artigo 18.o da Carta, dos direitos e benefícios previstos, no que diz respeito ao conteúdo da proteção internacional, no capítulo VII da Diretiva 2011/95, bem como das garantias processuais enunciadas no artigo 45.o da Diretiva 2013/32.

Por conseguinte, com base no princípio da cooperação leal ( 6 ), a autoridade competente em matéria de extradição do Estado‑Membro requerido deve encetar, o mais rapidamente possível, uma troca de informações com a autoridade do outro Estado‑Membro que concedeu à pessoa procurada o estatuto de refugiado. A este título, compete‑lhe informar esta última autoridade do pedido de extradição relativo a essa pessoa, transmitir‑lhe a sua opinião sobre esse pedido e solicitar‑lhe a transmissão, num prazo razoável, tanto das informações na sua posse que levaram à concessão desse estatuto como da sua decisão sobre a questão de saber se há ou não que revogar ou retirar o estatuto de refugiado à referida pessoa.

Por um lado, esta troca de informações destina‑se a permitir à autoridade competente em matéria de extradição do Estado‑Membro requerido proceder de forma plenamente esclarecida às verificações que lhe incumbem por força do artigo 18.o e do artigo 19.o, n.o 2, da Carta.

Por outro lado, a troca de informações permite que a autoridade competente do outro Estado‑Membro revogue ou retire, se for caso disso, o estatuto de refugiado com fundamento no artigo 14.o da Diretiva 2011/95, no pleno respeito pelas garantias enunciadas no artigo 45.o da Diretiva 2013/32.

Atendendo ao exposto, o Tribunal de Justiça observa que só no caso de a autoridade competente do Estado‑Membro que concedeu à pessoa procurada o estatuto de refugiado decidir revogar ou retirar esse estatuto com fundamento no artigo 14.o da Diretiva 2011/95, e desde que a autoridade competente em matéria de extradição do Estado‑Membro requerido conclua que essa pessoa não tem ou deixou de ter a qualidade de refugiado e que não existe um risco sério de, em caso de extradição da referida pessoa para o Estado terceiro requerente, a mesma pessoa ficar aí sujeita a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes, é que o direito da União não se opõe à extradição.

Por conseguinte, em aplicação do artigo 21.o, n.o 1, da Diretiva 2011/95, lido em conjugação com o artigo 18.o e com o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, quando um nacional de um país terceiro que obteve o estatuto de refugiado num Estado‑Membro seja visado, noutro Estado‑Membro, em cujo território reside, por um pedido de extradição proveniente do seu país de origem, o Estado‑Membro requerido não pode, sem ter encetado uma troca de informações com a autoridade que concedeu esse estatuto à pessoa procurada e não tendo essa autoridade revogado o referido estatuto, autorizar a extradição.


( 1 ) Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).

( 2 ) Enquanto o artigo 18.o da Carta consagra o direito de asilo, o artigo 19.o, n.o 2, da Carta prevê o princípio da não repulsão.

( 3 ) Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951.

( 4 ) Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950.

( 5 ) Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60).

( 6 ) O Tribunal de Justiça esclarece que este princípio, consagrado no artigo 4.o, n.o 3, primeiro parágrafo, TUE, nos termos do qual a União e os Estados‑Membros se respeitam e assistem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados, tem expressão concreta no artigo 36.o da Diretiva 2011/95, bem como no artigo 49.o da Diretiva 2013/32.

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