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Document 62019TJ0502
Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção alargada) de 12 de outubro de 2022.
Francesca Corneli contra Banco Central Europeu (BCE).
União económica e monetária — União bancária — Recuperação e resolução de instituições de crédito — Medidas de intervenção precoce — Decisão do BCE de colocar a Banca Carige sob administração temporária — Recurso de anulação — Recurso interposto por um acionista — Legitimidade — Interesse distinto do interesse do banco — Admissibilidade — Erro de direito na determinação da base jurídica — Interpretação conforme do direito nacional pelo juiz da União — Limite — Proibição de interpretar o direito nacional contra legem.
Processo T-502/19.
Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção alargada) de 12 de outubro de 2022.
Francesca Corneli contra Banco Central Europeu (BCE).
União económica e monetária — União bancária — Recuperação e resolução de instituições de crédito — Medidas de intervenção precoce — Decisão do BCE de colocar a Banca Carige sob administração temporária — Recurso de anulação — Recurso interposto por um acionista — Legitimidade — Interesse distinto do interesse do banco — Admissibilidade — Erro de direito na determinação da base jurídica — Interpretação conforme do direito nacional pelo juiz da União — Limite — Proibição de interpretar o direito nacional contra legem.
Processo T-502/19.
ECLI identifier: ECLI:EU:T:2022:627
Processo T‑502/19
Francesca Corneli
contra
Banco Central Europeu
Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção Alargada) de 12 de outubro de 2022
«União económica e monetária — União bancária — Recuperação e resolução de instituições de crédito — Medidas de intervenção precoce — Decisão do BCE de colocar a Banca Carige sob administração temporária — Recurso de anulação — Recurso interposto por um acionista — Legitimidade — Interesse distinto do interesse do banco — Admissibilidade — Erro de direito na determinação da base jurídica — Interpretação conforme do direito nacional pelo juiz da União — Limite — Proibição de interpretar o direito nacional contra legem»
Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Afetação direta — Critérios — Decisão de colocação de uma instituição de crédito sob administração temporária — Determinação do caráter direto dos efeitos dessa decisão na situação jurídica dos acionistas dessa instituição — Afetação dos direitos dos acionistas de participar na gestão da referida instituição — Afetação direta da recorrente
(Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE)
(cf. n.os 33‑35, 37, 38, 40, 41, 43, 45, 47‑54)
Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Afetação individual — Critérios — Decisão de colocação de uma instituição de crédito sob administração temporária — Determinação do caráter individual dos efeitos dessa decisão na situação jurídica dos acionistas dessa instituição — Pertença a um grupo de pessoas identificáveis — Direitos adquiridos — Afetação individual da recorrente
(Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE)
(cf. n.os 56, 58‑64, 70, 74‑76)
Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Interesse em agir — Recurso de decisão de colocação de uma instituição de crédito sob administração temporária — Alteração, de forma caracterizada, da situação jurídica — Direitos individuais dos acionistas — Admissibilidade
(Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE)
(cf. n.os 78‑83)
Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo de supervisão único — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Decisão do Banco Central Europeu (BCE) de colocação de uma instituição de crédito sob administração temporária — Condições que justificam a colocação sob administração temporária — Deterioração significativa da situação da instituição — Exclusão
(Diretiva 2014/59 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 28.° e 29.°)
(cf. n.os 95, 98, 100)
Atos das instituições — Diretivas — Execução pelos Estados‑Membros — Necessidade de garantir a eficácia das diretivas — Obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais — Obrigação de interpretação conforme — Limites — Respeito dos princípios gerais do direito — Interpretação contra legem do direito nacional
(Artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE; Diretiva 2014/59 do Parlamento Europeu e do Conselho)
(cf. n.os 103‑108)
Resumo
A recorrente, Francesca Corneli, é acionista minoritária da Banca Carige SpA (a seguir «banco»). Enfrentando este último dificuldades financeiras, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu, em 1 de janeiro de 2019, colocá‑lo sob administração temporária. Esta decisão foi prorrogada três vezes, a última vez até 31 de janeiro de 2020.
Chamado a conhecer de um recurso de anulação, nomeadamente, da decisão do BCE de colocação do banco sob administração temporária e das diferentes decisões de prorrogação, o Tribunal Geral, decidindo em secção alargada, pronuncia‑se sobre o interesse em agir contra estas decisões e sobre a legitimidade dos acionistas desta instituição de crédito para o fazer. A este título, julga admissível o recurso da recorrente no que respeita à decisão de colocação sob administração temporária e à primeira decisão de prorrogação (a seguir «decisões impugnadas»). Além disso, o Tribunal procede, pela primeira vez, à interpretação dos artigos 28.° e 29.° da Diretiva 2014/5 ( 1 ), conforme implementados nos termos das normas de direito nacional que os transpõem ( 2 ), e pede a anulação das decisões impugnadas.
Apreciação do Tribunal Geral
Num primeiro momento, o Tribunal Geral examina e conclui pela admissibilidade do recurso da recorrente, uma vez que esta dispõe quer da legitimidade quer do interesse em agir contra as decisões impugnadas.
Quanto à sua legitimidade, em primeiro lugar, o Tribunal constata que essas decisões dizem diretamente respeito à recorrente. Com efeito, por um lado, salienta que a situação jurídica da recorrente é afetada, no caso em apreço, sem intervenção de um ato intermédio, pelas decisões impugnadas, porque estas últimas alteram por si mesmas os direitos de que dispunha para participar, na qualidade de acionista, na gestão do banco em conformidade com as regras aplicáveis.
Por outro lado, rejeita os argumentos do BCE e da Comissão, relativos, respetivamente, ao caráter temporário da referida afetação, à não afetação dos direitos mais essenciais dos acionistas pelas decisões impugnadas e ao facto de os direitos alegadamente afetados pertencerem à assembleia geral do banco e não aos acionistas considerados na sua individualidade. A este respeito, o Tribunal salienta que o direito de voto permite a cada acionista participar, individualmente, na eleição dos membros chamados a fazer parte dos órgãos de direção e de supervisão, e que a colocação sob administração os priva de exercer esse direito. Do mesmo modo, rejeita o argumento segundo o qual o acórdão Trasta ( 3 ) confirma a inadmissibilidade do recurso da recorrente, pelo facto de esse acórdão dizer respeito a uma situação diferente. Com efeito, nesse processo a decisão de revogação da autorização da instituição em causa tomada pelo BCE não afetava diretamente a situação jurídica dos acionistas, mas a da própria instituição. Só a decisão de liquidação pelo órgão jurisdicional nacional que se seguiu, e que não está prevista pelo direito da União em caso de revogação da aprovação, afetava a situação jurídica destes últimos.
O Tribunal Geral concluiu que, no caso em apreço, a relação jurídica entre o banco e os seus acionistas, entre os quais a recorrente, foi alterada, sem intervenção de qualquer ato intermédio, pelas decisões impugnadas, que lhe dizem, portanto, diretamente respeito.
Em segundo lugar, o Tribunal Geral considera que as decisões impugnadas dizem individualmente respeito à recorrente, uma vez que fazia parte de um grupo cujos membros estavam identificados ou eram identificáveis no dia da adoção das decisões impugnadas, já que figuravam na lista, fechada nessa data, dos acionistas que podiam ser afetados. Por outro lado, observa que os atos impugnados alteram certos direitos adquiridos pela recorrente antes da adoção desses atos, a saber, os inerentes às ações que detinha no capital do banco.
Quanto ao interesse em agir da recorrente, o Tribunal Geral salienta que esta destaca o impacto das decisões impugnadas nos direitos que detinha, pessoalmente, na sua qualidade de acionista do banco. Considera que invoca, assim, um interesse distinto em pedir a anulação dessas decisões, que não se confunde com o do referido banco. Com efeito, se as decisões impugnadas fossem anuladas, o efeito na situação dos acionistas não seria idêntico ao que produziria uma anulação na situação do banco.
Num segundo momento, quanto ao mérito, no âmbito da análise de um fundamento relativo a um erro de direito na determinação da base jurídica utilizada para adotar as decisões impugnadas, o Tribunal Geral procede, pela primeira vez, à interpretação dos artigos 28.° e 29.° da Diretiva 2014/59, intitulados, respetivamente, «Destituição dos membros da direção de topo e do órgão de administração» e «Administrador temporário», conforme implementados nos termos das normas de direito nacional que os transpõem ( 4 ).
No caso em apreço, o BCE tinha decidido a dissolução dos órgãos de administração e de controlo do banco, e a sua substituição por três comissários extraordinários e um comité de supervisão. Tinha, a este respeito, considerado que as condições previstas nas disposições de direito nacional que transpõem os artigos 28.° e 29.° da Diretiva 2014/59, ou seja, uma deterioração significativa da situação do banco, estavam cumpridas.
A este propósito, o Tribunal Geral declara que as medidas em causa nos artigos 28.° e 29.° da Diretiva 2014/59, conforme transpostas nos termos do direito nacional, a saber, respetivamente, a demissão dos órgãos de administração ou de controlo dos bancos e a dissolução dos referidos órgãos, não podem ser consideradas equivalentes ou alternativas. Entende, a este respeito, que a primeira medida é menos intrusiva do que a segunda e que esta última só pode ser adotada se a substituição dos órgãos de administração ou de controlo dos bancos, segundo os procedimentos do direito nacional ou do direito da União, for considerada insuficiente pela autoridade competente para sanar a situação. Por outro lado, as condições de aplicação das disposições de direito nacional que transpõem respetivamente estes dois artigos também diferem. Neste sentido, as disposições que transpõem o artigo 29.o não preveem a dissolução dos órgãos de administração ou de controlo dos bancos nem o estabelecimento de uma administração extraordinária no caso de a deterioração da situação do banco ser particularmente significativa.
Ora, o Tribunal Geral constata que, nas decisões impugnadas, o poder exercido pelo BCE, para colocar e manter o banco sob administração temporária, é abrangido pelas disposições de direito nacional que transpõem o artigo 29.o da Diretiva 2014/59.
Daqui resulta que o BCE violou estas disposições ao basear‑se, não estando esta condição nelas prevista, na «deterioração significativa da situação» do banco para dissolver os órgãos de administração ou de controlo do banco, estabelecer uma administração temporária e mantê‑la.
Esta conclusão do Tribunal Geral não pode ser ilidida à luz do argumento do BCE e da Comissão, segundo o qual as disposições de direito nacional em causa devem ser lidas e interpretadas em conformidade com o direito da União que transpõem, de modo que seria permitida uma colocação sob administração temporária, mesmo que a deterioração significativa da situação do banco não fosse expressamente visada nessas disposições. Com efeito, resulta de uma jurisprudência constante que a obrigação de interpretação conforme do direito nacional não pode servir de fundamento a uma interpretação contrária aos termos utilizados numa disposição nacional de transposição de uma diretiva.
( 1 ) Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Diretiva 82/891/CEE do Conselho, e as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/UE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.o 1093/2010 e (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2014, L 173, p. 190).
( 2 ) Artigos 69.° octiesdecies, n.o 1, alínea b), e 70.° do decreto legislativo n.o 385 — Testo unico delle leggi in materia bancaria e creditizia (Decreto Legislativo n.o 385 — Texto consolidado das leis em matéria bancária e de crédito), de 1 de setembro de 1993 (suplemento ordinário no GURI n.o 230, de 30 de setembro de 1993) (a seguir «texto consolidado bancário»).
( 3 ) Acórdão de 5 de novembro de 2019, BCE e o./Trasta Komercbanka e o. (C‑663/17 P, C‑665/17 P e C‑669/17 P, EU:C:2019:923).
( 4 ) V. nota 2.