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Document 62002TJ0022
Sumário do acórdão
Sumário do acórdão
1. Concorrência – Procedimento administrativo – Poderes da Comissão – Declaração de uma infracção que já cessou – Condição – Interesse legítimo
(Regulamento n.° 17 do Conselho)
2. Direito comunitário – Interpretação – Textos plurilingues – Interpretação uniforme – Divergências entre as diferentes versões linguísticas – Economia geral e finalidade de regulamentação em causa como base de referência
3. Concorrência – Procedimento administrativo – Prescrição em matéria de procedimentos – Conceito de «sanção» na acepção do Regulamento n.° 2988/74 – Sanções pecuniárias – Inclusão – Decisão em que se declara uma infracção – Exclusão
(Regulamento n.° 2988/74 do Conselho, artigo1.°, n.° 1)
4. Concorrência – Procedimento administrativo – Poderes da Comissão – Autonomia do poder de declarar uma infracção em relação ao poder de ordenar a cessação da infracção e de aplicar uma coima – Incidência da prescrição do poder de impor uma coima sobre o poder de declarar uma infracção – Inexistência
(Regulamentos do Conselho n. os 17 e 2988/74, artigo 1.°, n.° 1)
5. Direito comunitário – Princípios gerais do direito – Segurança jurídica – Inexistência de regra que imponha a prescrição relativamente ao exercício das competências da Comissão – Violação do princípio da segurança jurídica pelo legislador comunitário – Inexistência
6. Recurso de anulação – Decisão da Comissão numa matéria caracterizada pela inexistência de regra que fixa a prescrição relativamente ao exercício das suas competências – Respeito das exigências da segurança jurídica – Fiscalização jurisdicional – Limites
(Artigo 230.° CE)
7. Direito comunitário – Princípios gerais – Reconhecimento – Regra existente na ordem jurídica de todos os Estados‑Membros – Natureza insuficiente para um reconhecimento
8. Direito comunitário – Interpretação – Princípios – Interpretação autónoma – Limites – Remissão, em determinados casos, para o direito dos Estados‑Membros
9. Direito comunitário – Princípios – Direitos fundamentais – Presunção de inocência – Processo em matéria de concorrência – Aplicabilidade – Declaração, no termo de um processo regular, da responsabilidade do autor de uma infracção ao qual não pode ser aplicada multa devido a prescrição – Violação – Inexistência
(Artigo 6.° UE)
10. Concorrência – Procedimento administrativo – Poderes da Comissão – Declaração de uma infracção que já cessou – Modalidades de exercício – Demonstração, pelas circunstâncias próprias do caso, do seu interesse legítimo
(Regulamento n.° 17 do Conselho)
1. O Regulamento n.° 17 conferiu à Comissão poderes para obrigar as empresas a porem termo à infracção declarada bem como para lhes aplicar multas e sanções pecuniárias compulsórias em caso de infracção às regras da concorrência. O poder de adoptar decisões com este efeito implica necessariamente o de declarar a infracção em causa.
A cessação de uma infracção antes da adopção de uma decisão pela Comissão não constitui enquanto tal uma circunstância que obste ao exercício dos poderes da Comissão de declarar e de aplicar sanções a uma infracção às regras da concorrência. A este propósito, por um lado, o poder da Comissão de aplicar sanções não é minimamente afectado pela circunstância de terem cessado o comportamento constitutivo da infracção e a possibilidade dos seus efeitos prejudiciais; por outro lado, a Comissão pode tomar uma decisão declarando uma infracção à qual a empresa em causa já pôs termo, desde que a instituição tenha interesse legítimo em fazê‑lo.
(cf. n. os 36, 37, 130)
2. No âmbito de uma interpretação literal de uma disposição de direito comunitário, importa ter em conta que os textos do direito comunitário são redigidos em várias línguas e que as diversas versões linguísticas fazem igualmente fé; a interpretação de tal disposição implica, assim, uma comparação das versões linguísticas.
Embora a necessidade de uma interpretação uniforme dos regulamentos comunitários exclua que se considere isoladamente determinado texto, mas exige, em caso de dúvida, que o mesmo seja interpretado e aplicado à luz das versões oficiais nas outras línguas, em caso de divergência entre estas versões, há que interpretar a disposição em causa em função da economia geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento.
Aliás, de um modo mais geral, para a interpretação de uma disposição de direito comunitário, há que ter em conta não apenas os termos da mesma, mas igualmente o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra, bem como a totalidade das disposições do direito comunitário.
(cf. n. os 42, 46, 47)
3. O termo «sanções», que figura no artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2988/74, relativo à prescrição quanto a procedimentos e execução de sanções no domínio do direito dos transportes e da concorrência da Comunidade Económica Europeia, visa unicamente submeter a um único e mesmo regime de prescrição o poder da Comissão de aplicar sanções pecuniárias por infracções às disposições do direito dos transportes e da concorrência das Comunidades Europeias, independentemente da denominação adoptada para estas sanções nos textos que as instituem.
Uma decisão que declara uma infracção não constitui uma sanção na acepção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2988/74 e não é, pois, visada pela prescrição prevista nesta disposição.
(cf. n. os 60, 61)
4. Embora no quadro do regime instituído pelo Regulamento n.° 17, o poder da Comissão de declarar uma infracção se infira apenas implicitamente, isto é, na medida em que decorre necessariamente dos poderes explícitos de ordenar a cessação da infracção e de aplicar multas, não é por isso que esse poder implícito só existe em função do exercício pela instituição desses poderes explícitos. A autonomia desse poder não pode portanto ser negada, tal como não pode ser afectada pelo facto de o exercício desse poder estar subordinado à existência de um interesse legítimo por parte da instituição.
Por conseguinte, o facto de a Comissão já não ter o poder de aplicar coimas aos autores de uma infracção por ter decorrido o prazo de prescrição previsto no artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2988/74, relativo à prescrição quanto a procedimentos e execução de sanções no domínio do direito dos transportes e da concorrência da Comunidade Económica Europeia, não obsta só por si à adopção de uma decisão que declare que essa infracção passada foi cometida.
(cf. n. os 63, 131)
5. Para cumprir a sua função de garantir a segurança jurídica, um prazo de prescrição deve ser fixado previamente, sendo a sua fixação e as modalidades da sua aplicação da competência do legislador comunitário.
Com efeito, a prescrição, ao impedir que sejam indefinidamente postas em causa situações consolidadas pelo decurso do tempo, destina‑se a reforçar a segurança jurídica, mas pode igualmente permitir a consolidação de situações que eram, pelo menos inicialmente, contrárias à lei. Consequentemente, a medida na qual se recorre à prescrição resulta de uma ponderação entre as exigências da segurança jurídica e as da legalidade em função das circunstâncias históricas e sociais que prevalecem na sociedade numa dada época. Depende, por essa razão, unicamente da opção do legislador.
O legislador comunitário não pode pois ser criticado pelo juiz comunitário devido às opções que faz ao introduzir regras de prescrição e de fixação dos prazos correspondentes. O facto de não ter previsto prazo de prescrição para o exercício dos poderes que permitem à Comissão declarar as infracções ao direito comunitário não é, pois, susceptível de constituir em si mesmo uma ilegalidade à luz do respeito do princípio da segurança jurídica.
(cf. n. os 81‑83)
6. Não compete ao juiz comunitário fixar os prazos, o alcance ou as modalidades de aplicação da prescrição relativamente a um comportamento que constitua infracção, quer em termos gerais quer relativamente a um caso particular que lhe seja submetido. Contudo, a inexistência de disposição legal relativa à prescrição não exclui que a acção da Comissão, num caso concreto, possa ser criticada à luz do princípio da segurança jurídica. Com efeito, na falta de um texto que preveja um prazo de prescrição, a exigência fundamental da segurança jurídica opõe‑se a que a Comissão possa atrasar indefinidamente o exercício das suas competências.
Por conseguinte, o juiz comunitário, quando aprecia uma queixa baseada na acção tardia da Comissão, não se deve limitar a constatar que não existe qualquer prazo de prescrição, mas deve verificar se a Comissão não agiu de forma excessivamente tardia.
No entanto, o carácter excessivamente tardio da acção da Comissão deve ser apreciado unicamente em função do tempo que decorreu entre os factos que constituem o objecto da acção e a propositura desta. Pelo contrário, a acção da Comissão não pode ser qualificada de excessivamente tardia não havendo atraso ou outra negligência imputável à instituição e há que ter em conta, designadamente, o momento em que a instituição teve conhecimento da existência dos factos constitutivos da infracção e do carácter razoável da duração do procedimento administrativo.
(cf. n. os 87‑89)
7. O facto de as ordens jurídicas de todos os Estados‑Membros conterem a mesma regra de direito não baste para que o direito comunitário lhe reconheça o carácter de princípio geral do direito comunitário.
(cf. n. os 97, 99)
8. Os termos de uma disposição de direito comunitário que não contém qualquer remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros a fim de determinar o seu sentido e alcance, devem normalmente ter uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa.
Em especial, na falta de remissão expressa, a aplicação do direito comunitário pode implicar, se for caso disso, a referência ao direito dos Estados‑Membros quando o juiz comunitário não encontra no direito comunitário ou nos princípios gerais do direito comunitário elementos que lhe permitam esclarecer o respectivo conteúdo e alcance através de uma interpretação autónoma.
(cf. n. os 100, 101)
9. A presunção de inocência, tal como resulta designadamente do artigo 6.°, n.° 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, faz parte dos direitos fundamentais que, segundo o artigo 6.°, n.° 2, UE, são protegidos na ordem jurídica comunitária.
A presunção de inocência aplica‑se aos processos relativos à violação das regras de concorrência aplicáveis às empresas e que sejam susceptíveis de conduzir à aplicação de multas ou de sanções pecuniárias compulsórias.
A presunção de inocência implica que qualquer pessoa acusada se presuma inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente provada. Opõe‑se, assim, a qualquer declaração formal e mesmo a qualquer alusão que tenha por objecto a responsabilidade de uma pessoa acusada de uma dada infracção numa decisão que ponha termo à acção, sem que essa pessoa tenha podido beneficiar de todas as garantias normalmente concedidas para o exercício dos direitos de defesa no âmbito de um processo que siga o seu curso normal e que termine por uma decisão sobre a procedência da contestação.
Ao invés, a presunção de inocência não obsta a que a responsabilidade de uma pessoa acusada de determinada infracção seja provada no termo de um processo que decorreu inteiramente de acordo com as modalidades impostas e no âmbito do qual os direitos de defesa puderam, por isso, ser plenamente exercidos, e isso mesmo no caso de não poder ser aplicada ao autor da infracção qualquer sanção devido a prescrição do respectivo poder da autoridade competente.
(cf. n. os 104‑107)
10. Quanto às modalidades de exercício da sua competência para declarar, através de decisão, uma infracção passada às regras da concorrência, a Comissão comete um erro de direito que justifica a anulação dessa decisão pelo facto de não indagar, ao tomar essa decisão, se tal declaração é justificada por um interesse legítimo. A este respeito, a Comissão não se pode limitar a enunciar genericamente hipóteses como a necessidade de incentivar um comportamento exemplar das empresas, o interesse em desencorajar a reincidência, atendendo ao carácter particularmente grave da infracção em causa, e o interesse em permitir que terceiros lesados recorram às jurisdições cíveis nacionais. Incumbe‑lhe demonstrar, através de circunstâncias próprias do caso específico, que estas hipóteses se verificam e justificam por conseguinte o seu interesse legítimo em adoptar uma decisão que declare a referida infracção.
(cf. n. os 132, 136‑138)