Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex
Documento 62023CJ0233
Judgment of the Court (Grand Chamber) of 25 February 2025.#Alphabet Inc. and Others v Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM).#Request for a preliminary ruling from the Consiglio di Stato.#Reference for a preliminary ruling – Competition – Dominant position – Article 102 TFEU – Digital markets – Digital platform – Refusal of an undertaking in a dominant position which has developed a digital platform to allow access to that platform by a third-party undertaking which has developed an app, by ensuring that platform is interoperable with that app – Assessment of whether access to a digital platform is indispensable – Effects of the conduct at issue – Objective justification – Need for the undertaking in a dominant position to develop a template for a category of apps in order to allow access – Definition of the relevant downstream market.#Case C-233/23.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 25 de fevereiro de 2025.
Alphabet Inc. e o. contra Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM).
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato.
Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Artigo 102.o TFUE — Mercados digitais — Plataforma digital — Recusa por parte de uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital de permitir o acesso a essa plataforma a uma empresa terceira que tenha desenvolvido uma aplicação, assegurando a interoperabilidade da referida plataforma e dessa aplicação — Apreciação do caráter indispensável do acesso a uma plataforma digital — Efeitos do comportamento imputado — Justificação objetiva — Necessidade de a empresa em posição dominante desenvolver um modelo para uma categoria de aplicações para permitir o acesso — Definição do mercado relevante a jusante.
Processo C-233/23.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 25 de fevereiro de 2025.
Alphabet Inc. e o. contra Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM).
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato.
Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Artigo 102.o TFUE — Mercados digitais — Plataforma digital — Recusa por parte de uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital de permitir o acesso a essa plataforma a uma empresa terceira que tenha desenvolvido uma aplicação, assegurando a interoperabilidade da referida plataforma e dessa aplicação — Apreciação do caráter indispensável do acesso a uma plataforma digital — Efeitos do comportamento imputado — Justificação objetiva — Necessidade de a empresa em posição dominante desenvolver um modelo para uma categoria de aplicações para permitir o acesso — Definição do mercado relevante a jusante.
Processo C-233/23.
Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»
Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2025:110
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
25 de fevereiro de 2025 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Artigo 102.o TFUE — Mercados digitais — Plataforma digital — Recusa por parte de uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital de permitir o acesso a essa plataforma a uma empresa terceira que tenha desenvolvido uma aplicação, assegurando a interoperabilidade da referida plataforma e dessa aplicação — Apreciação do caráter indispensável do acesso a uma plataforma digital — Efeitos do comportamento imputado — Justificação objetiva — Necessidade de a empresa em posição dominante desenvolver um modelo para uma categoria de aplicações para permitir o acesso — Definição do mercado relevante a jusante»
No processo C‑233/23,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 7 de abril de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de abril de 2023, no processo
Alphabet Inc.,
Google LLC,
Google Italy Srl
contra
Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato,
sendo intervenientes:
Enel X Italia Srl,
Enel X Way Srl,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),
composto por: K. Lenaerts, presidente, F. Biltgen, K. Jürimäe, C. Lycourgos, I. Jarukaitis, M. L. Arastey Sahún, S. Rodin, A. Kumin, N. Jääskinen e D. Gratsias, presidentes de secção, E. Regan, I. Ziemele e O. Spineanu‑Matei (relatora), juízes,
advogado‑geral: L. Medina,
secretário: C. Di Bella, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 23 de abril de 2024,
vistas as observações apresentadas:
– |
em representação da Alphabet Inc., da Google LLC e da Google Italy Srl, por N. Latronico, M. Siragusa e M. Zotta, avvocati, e A. Lamadrid de Pablo, abogado, |
– |
em representação da Enel X Italia Srl e da Enel X Way Srl, por F. Cintioli e G. Lo Pinto, avvocati, |
– |
em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por L. Fiandaca e F. Sclafani, avvocati dello Stato, |
– |
em representação do Governo Helénico, por V. Baroutas e K. Boskovits, na qualidade de agentes, |
– |
em representação da Comissão Europeia, por G. Conte e C. Sjödin, na qualidade de agentes, |
– |
em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por C. Simpson e M. Sánchez Rydelski, na qualidade de agentes, |
ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 5 de setembro de 2024,
profere o presente
Acórdão
1 |
O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 102.o TFUE. |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Alphabet Inc., a Google LLC e a Google Italy Srl à Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (Autoridade Reguladora da Concorrência e do Mercado, Itália) (a seguir «AGCM») a respeito da decisão desta autoridade de punir essas sociedades por violação do artigo 102.o TFUE, devido à recusa de permitir a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira para prestar serviços relacionados com o carregamento de veículos elétricos com a plataforma digital Android Auto (a seguir «Android Auto») proposta pelas referidas sociedades. |
Quadro jurídico
3 |
O artigo 102.o TFUE dispõe: «É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja suscetível de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em:
|
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
4 |
A Google é uma filial da Alphabet Inc., que controla a Google Italy, com sede em Itália. |
5 |
A Google desenvolveu o Android OS, um sistema operativo para dispositivos móveis proveniente de diferentes fabricantes. Este sistema, disponibilizado sob licença de código aberto (open source), pode, em princípio, ser utilizado gratuitamente e alterado, sem necessidade de autorização. |
6 |
A Android Auto, lançada em 2015 pela Google, foi desenvolvida para os dispositivos móveis que funcionam com o sistema operativo Android OS para permitir aos seus utilizadores aceder, diretamente no ecrã do sistema de informação e entretenimento de um veículo automóvel, a aplicações presentes nesses dispositivos. |
7 |
Para garantir a interoperabilidade de cada aplicação com a Android Auto, evitando realizar para esse efeito testes morosos e dispendiosos, a Google fornece soluções para todas as categorias de aplicação sob a forma de «templates» (modelos) para cada solução de interoperabilidade (a seguir «modelo»). Estes modelos permitem a terceiros criar versões das suas próprias aplicações que são interoperáveis com a Android Auto. No final de 2018, os modelos estavam disponíveis para as aplicações multimédia e de mensagens. Para satisfazer as necessidades dos utilizadores de aplicações de navegação, a Google também desenvolveu ou adquiriu aplicações de cartografia e navegação, a saber, Google Maps e Waze, que são interoperáveis com a Android Auto. Além disso, a Google permitiu, em determinados casos, a programadores terceiros desenvolverem aplicações personalizadas na falta de um modelo pré‑definido. |
8 |
A ENEL X Italia Srl faz parte do grupo Enel, que gere mais de 60 % das estações de carregamento disponíveis para os veículos elétricos em Itália, e presta serviços para esse carregamento. |
9 |
Em maio de 2018, a Enel X Italia lançou a aplicação JuicePass, disponível para os utilizadores de dispositivos móveis que funcionam com o sistema operativo Android OS e descarregável a partir da Google Play. Esta aplicação proporcionaria uma série de funcionalidades para o carregamento de veículos elétricos. Em especial, permitiria aos seus utilizadores pesquisar e reservar estações de carregamento num mapa, transferir a pesquisa para a aplicação Google Maps para permitir a navegação até à estação de carregamento selecionada, e iniciar, interromper e monitorizar a sessão de carregamento e o respetivo pagamento. |
10 |
Em setembro de 2018, a Enel X Italia pediu à Google que adotasse as ações necessárias para assegurar a interoperabilidade da JuicePass com a Android Auto, o que a Google recusou, com o fundamento de que as aplicações de multimédia e de mensagens eram as únicas aplicações de empresas terceiras interoperáveis com a Android Auto. Na sequência de um novo pedido da Enel X Italia, efetuado em dezembro de 2018, a Google recusou novamente, em janeiro de 2019, levar a cabo essas ações por razões de segurança e devido à necessidade de afetar, de modo racional, os recursos necessários para a criação de um novo modelo. |
11 |
Em 12 de fevereiro de 2019, a Enel X Italia recorreu para a AGCM, alegando que o comportamento da Google, que consistia em recusar de forma injustificada permitir que a aplicação JuicePass fosse utilizada através da Android Auto, constituía uma violação do artigo 102.o TFUE. |
12 |
Em outubro de 2020, a Google publicou um modelo para a conceção de versões experimentais de aplicações de carregamento de veículos elétricos interoperáveis com a Android Auto. |
13 |
Com a Decisão de 27 de abril de 2021, a AGCM considerou que o comportamento adotado pela Google, que consistia em dificultar e atrasar a disponibilidade da aplicação JuicePass na Android Auto, constituía um abuso de posição dominante nos termos do artigo 102.o TFUE. Esta autoridade ordenou à Google, nomeadamente, que publicasse a versão definitiva do modelo para o desenvolvimento de aplicações para o carregamento de veículos elétricos e que desenvolvesse as eventuais funcionalidades indicadas como essenciais pela Enel X Italia que faltavam nessa versão. A referida autoridade aplicou também uma coima de 102084433,91 euros à Alphabet, à Google e à Google Italy, a título solidário. |
14 |
Estas sociedades interpuseram recurso da decisão da AGCM no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália), que lhe negou provimento na íntegra. |
15 |
As referidas sociedades interpuseram recurso dessa sentença para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), que é o órgão jurisdicional de reenvio. |
16 |
Esta indica que a AGCM considerou que, em resposta ao pedido da Enel X Italia, a Google não tinha fornecido as soluções informáticas adequadas e tinha assim entravado e atrasado de forma injustificada a disponibilidade da aplicação JuicePass na Android Auto. Esse órgão jurisdicional precisa que a AGCM considerou que o comportamento da Google, devido à sua posição dominante, revestia importância no que respeita à proteção da concorrência e à dinâmica do mercado, uma vez que a Google desempenha um papel central para, mais especificamente, permitir aos utilizadores profissionais, neste caso os programadores, aceder ao público composto pelos utilizadores finais de aplicações. Em especial, os tipos e as características específicas das aplicações que podem ser publicadas na Android Auto, bem como o momento da definição e do fornecimento das ferramentas de programação necessárias dependem exclusivamente da Google. |
17 |
O órgão jurisdicional de reenvio salienta também que, segundo a AGCM, existe uma concorrência real entre as aplicações Google Maps e JuicePass, uma vez que estas duas aplicações oferecem serviços de pesquisa e de navegação relativos às estações de carregamento de veículos elétricos. Segundo a AGCM, existia também uma concorrência potencial entre as referidas aplicações, uma vez que a JuicePass oferecia funcionalidades novas, mas que podiam no futuro ser integradas na Google Maps. Este órgão jurisdicional acrescenta que a AGCM considerou que, tendo em conta a sobreposição parcial entre as mesmas aplicações e a integração da aplicação Google Maps na Android Auto, apesar de a aplicação JuicePass ter sido excluída, a recusa da Google devia ser recolocada no contexto de uma recusa de interoperabilidade, equivalente a uma recusa de contratar, que implicou uma violação do princípio da igualdade das condições de concorrência, resultante do fornecimento de uma vantagem desleal a favor da aplicação da Google, em detrimento da aplicação de um dos seus concorrente. |
18 |
Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a Alphabet, a Google e a Google Italy alegam, nomeadamente, que a AGCM não examinou corretamente as condições que permitem apreciar se uma recusa de fornecimento é abusiva e acusam esta autoridade, em substância, de não ter procedido a uma análise do caráter indispensável, para a aplicação JuicePass, do acesso à Android Auto. Alegam também que o comportamento da Google era justificado por considerações objetivas e legítimas. |
19 |
Além disso, estas sociedades sustentam que, uma vez que o comportamento que lhes é imputado diz respeito ao acesso à Android Auto, era necessário, para constatar um abuso de posição dominante, definir o mercado relevante em que a Android Auto opera e constatar que essa aplicação era dominante nesse mercado. Além disso, consideram que a AGCM não identificou o mercado relevante a jusante nem a posição dominante da Google no mesmo, tendo‑se limitado a identificar um «ambiente concorrencial» no qual as aplicações de navegação estariam em concorrência com as aplicações de carregamento de veículos elétricos, sem efetuar a análise necessária para concluir que esse «ambiente concorrencial» constituía um mercado relevante à luz do direito da concorrência. Por último, alegam que não é possível afirmar que existe uma relação de concorrência entre a Google Maps e a JuicePass. |
20 |
O órgão jurisdicional de reenvio indica que, tendo em conta os efeitos que o comportamento da Google pode ter no setor económico específico em que se insere, esse comportamento é suscetível de constituir uma recusa abusiva de fornecimento e de violar o artigo 102.o TFUE. |
21 |
O órgão jurisdicional de reenvio salienta que existe uma situação de domínio do mercado pela Google através do sistema operativo Android OS e da Google Play, sendo a Android Auto apenas um desenvolvimento desse sistema operativo para o sistema de informação e entretenimento de um veículo automóvel. O acesso à Android Auto parece ser «indispensável» para permitir à Enel X Italia oferecer aos utilizadores finais aplicações utilizáveis facilmente e com toda a segurança quando esses utilizadores conduzem esse veículo. A este respeito, importa não negligenciar o caráter rápido da evolução no setor digital, o que pode levar a que se considere «necessários» produtos ou serviços inicialmente concebidos apenas para facilitar a utilização de bens já existentes. |
22 |
Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o comportamento da Google parece ser potencialmente suscetível de eliminar a concorrência no mercado. Com efeito, tendo em conta as características dos mercados digitais, pode sustentar‑se que, se o acesso à Android Auto não tivesse sido tornado possível para a aplicação JuicePass, esta teria perdido o seu interesse para os consumidores e que tal comportamento poderia ter levado a impedir os utilizadores de gozarem de um melhor produto para o qual existe uma procura potencial. Além disso, não parece estar excluído que uma aplicação genérica existente, a saber, a Google Maps, possa integrar as funções específicas da JuicePass. Por outro lado, a recusa oposta pela Google à Enel X Italia não parece apoiar‑se em justificações objetivas reais. |
23 |
Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário, para se pronunciar sobre o litígio que lhe foi submetido, ser esclarecido sobre a interpretação do artigo 102.o TFUE, e principalmente sobre a jurisprudência resultante do Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), relativa a recusas de acesso a uma infraestrutura de uma empresa em posição dominante. A este respeito, esse órgão jurisdicional considera que esta jurisprudência não parece ser diretamente aplicável no caso em apreço e interroga‑se sobre se as características específicas do funcionamento dos mercados digitais justificam que se afaste dos requisitos enunciados nesse acórdão numa situação como a que lhe foi submetida ou, pelo menos, que as interprete de forma flexível. O referido órgão jurisdicional tem também dúvidas quanto à forma como as autoridades da concorrência devem definir os mercados em causa num caso de recusa de acesso como aquele que lhe foi submetido. |
24 |
Nestas circunstâncias, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
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Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial
25 |
A ENEL X Italia considera que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível pelo facto de uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas não ser necessária para a solução do litígio no processo principal. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio já formou uma opinião sobre a orientação que pretende seguir e não pede ao Tribunal de Justiça que dissipe uma dúvida sobre a interpretação do artigo 102.o TFUE, mas que adote uma decisão que confirme essa opinião e seja suscetível de servir de referência em futuros processos que suscitem questões idênticas às submetidas no processo principal. |
26 |
Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe unicamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o processo e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 4 de outubro de 2024, Bezirkshauptmannschaft Landeck (Tentativa de acesso aos dados pessoais armazenados num telemóvel), C‑548/21, EU:C:2024:830, n.o 46 e jurisprudência referida]. |
27 |
Daí resulta que uma questão prejudicial relativa ao direito da União goza de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre essa questão quando for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil à questão que lhe é submetida [Acórdão de 4 de outubro de 2024, Bezirkshauptmannschaft Landeck (Tentativa de acesso aos dados pessoais armazenados num telemóvel), C‑548/21, EU:C:2024:830, n.o 47 e jurisprudência referida]. |
28 |
No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, por um lado, o litígio no processo principal tem por objeto a aplicação do artigo 102.o TFUE devido à recusa da Google de responder favoravelmente a um pedido que lhe foi dirigido por uma empresa terceira para permitir a interoperabilidade de uma aplicação que esta empresa tinha desenvolvido com uma plataforma digital desenvolvida pela Google e, por outro, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação do artigo 102.o TFUE no caso de tal recusa. As questões desse órgão jurisdicional incidem mais especificamente, em substância, antes de mais, sobre o conceito de «caráter indispensável» do acesso ao produto ou ao serviço que é objeto de uma recusa de fornecimento, em seguida, sobre a questão dos efeitos do comportamento imputado à empresa que tem uma posição dominante, depois sobre o conceito de «justificação objetiva» e as eventuais obrigações que impendem sobre essa empresa, bem como, por último, sobre a definição do mercado no qual se poderiam produzir efeitos anticoncorrenciais. |
29 |
Por outro lado, a decisão de reenvio indica as razões precisas que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação do artigo 102.o TFUE e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. |
30 |
Nestas circunstâncias, não se afigura manifesto que a interpretação solicitada do artigo 102.o TFUE não tenha relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou que o problema suscitado seja hipotético. |
31 |
Por outro lado, importa salientar que, como recordado, em substância, no ponto 18 das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO C, C/2024/6008), redigido, a este respeito, em termos idênticos aos do ponto 18 das recomendações publicadas em 2019 (JO 2019, C 380, p. 1), a formulação, pelo órgão jurisdicional de reenvio, de certas considerações quanto às respostas a dar às questões submetidas não põe em causa a admissibilidade destas questões. |
32 |
Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível. |
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à primeira questão
33 |
Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos de direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio [Acórdão de 30 de abril de 2024, M.N. (EncroChat), C‑670/22, EU:C:2024:372, n.o 78 e jurisprudência referida]. |
34 |
No caso em apreço, como resulta do pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que a Android Auto é uma infraestrutura no setor digital e que, à data em que foi adotado o comportamento que é imputado às recorrentes no processo principal, que consiste em recusar permitir a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira com a Android Auto, a Google detinha uma posição dominante no mercado em que a Android Auto se insere. A este respeito, importa recordar que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional é o único competente para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal [Acórdão de 18 de abril de 2024, Heureka Group (Comparadores de preços em linha), C‑605/21, EU:C:2024:324, n.o 66 e jurisprudência referida]. |
35 |
Resulta também deste pedido que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a questão de saber se, tendo em conta as características específicas do funcionamento dos mercados digitais afetados por uma situação como a que está em causa no processo principal e tendo em conta a função de uma plataforma digital como a Android Auto, não se justifica afastar ou, pelo menos, interpretar de forma flexível os requisitos enunciados, nomeadamente, no Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), com vista a aplicar o artigo 102.o TFUE a um comportamento que consiste numa recusa, por uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital, de permitir, a pedido de uma empresa terceira, o acesso a essa plataforma assegurando a sua interoperabilidade com uma aplicação desenvolvida por essa empresa terceira, a saber, em substância, uma recusa de assegurar a interoperabilidade da referida plataforma com essa aplicação. |
36 |
Assim, há que considerar que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a recusa, por uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital, de assegurar, a pedido de uma empresa terceira, a interoperabilidade dessa plataforma com uma aplicação desenvolvida por essa empresa terceira é suscetível de constituir um abuso de posição dominante, mesmo que a referida plataforma não seja indispensável para a exploração comercial da referida aplicação num mercado a jusante, mas seja suscetível de tornar a mesma aplicação mais atrativa para os consumidores. |
37 |
A este respeito, há que recordar que o artigo 102.o TFUE proíbe, na medida em que tal seja suscetível de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Este artigo visa evitar que a concorrência seja impedida em detrimento do interesse geral, das empresas individuais e dos consumidores, reprimindo os comportamentos de empresas em posição dominante que restrinjam a concorrência pelo mérito e sejam, assim, suscetíveis de causar um prejuízo direto a estes últimos, ou que impeçam ou falseiem essa concorrência e sejam, assim, suscetíveis de lhes causar indiretamente um prejuízo [Acórdão de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 87 e jurisprudência referida]. |
38 |
Constituem tais comportamentos aqueles que, num mercado em que o grau de concorrência já está enfraquecido, na sequência precisamente da presença de uma ou mais empresas em posição dominante, obstam, recorrendo a meios diferentes dos que regem a concorrência pelo mérito entre empresas, à manutenção do grau de concorrência existente no mercado ou ao desenvolvimento dessa concorrência [Acórdão de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 88 e jurisprudência referida]. |
39 |
No que respeita a práticas que consistem numa recusa de dar acesso a uma infraestrutura desenvolvida por uma empresa dominante para os fins da sua própria atividade e por ela detida, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que essa recusa é suscetível de constituir um abuso de posição dominante, desde que essa recusa seja suscetível de eliminar toda a concorrência no mercado em causa por parte do requerente do acesso e não possa ser objetivamente justificada, mas também que a infraestrutura em si mesma seja indispensável ao exercício da atividade deste, no sentido de que não existe nenhum substituto real ou potencial para essa infraestrutura [v., neste sentido, Acórdãos de 26 de novembro de 1998, Bronner, C‑7/97, EU:C:1998:569, n.o 41, e de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 89 e jurisprudência referida]. |
40 |
A este respeito, importa recordar que a imposição destes pressupostos, no n.o 41 do Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), era justificada pelas circunstâncias próprias desse processo, que consistiam numa recusa por parte de uma empresa dominante de dar acesso a um concorrente a uma infraestrutura que essa empresa tinha desenvolvido para os fins da sua própria atividade, excluindo qualquer outro comportamento [Acórdãos de25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 45, e de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 90 e jurisprudência referida]. |
41 |
Com efeito, a constatação de que uma empresa dominante abusou da sua posição devido a uma recusa de contratar com um concorrente tem como consequência essa empresa ser forçada a contratar com esse concorrente. Ora, tal obrigação é particularmente lesiva da liberdade de contratar e do direito de propriedade da empresa dominante, uma vez que uma empresa, mesmo dominante, continua, em princípio, a poder recusar livremente contratar e explorar a infraestrutura que desenvolveu para as suas próprias necessidades [Acórdãos de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 46, e de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 91]. |
42 |
Além disso, embora, a curto prazo, a condenação de uma empresa por ter abusado da sua posição dominante em razão de uma recusa de contratar com um concorrente tenha por consequência favorecer a concorrência, em contrapartida, a longo prazo, é geralmente favorável ao desenvolvimento da concorrência e do interesse dos consumidores permitir a uma sociedade reservar para o seu próprio uso as infraestruturas que desenvolveu para as necessidades da sua atividade. Com efeito, se o acesso a uma instalação de produção, de compra ou de distribuição fosse facilmente acordado, os concorrentes não seriam incitados a criar instalações concorrentes. Acresce que uma empresa dominante estaria menos pronta a investir em infraestruturas eficazes se fosse forçada, mediante simples pedido dos seus concorrentes, a partilhar com eles os lucros obtidos com os seus próprios investimentos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 47, e de 25 de março de 2021, Slovak Telekom/Comissão, C‑165/19 P, EU:C:2021:239, n.o 47). |
43 |
Por conseguinte, é, em especial, a necessidade de continuar a incentivar as empresas em posição dominante a investir no desenvolvimento de produtos ou de serviços de qualidade, no interesse dos consumidores, que, como sublinhou, em substância, a advogada‑geral no n.o 30 das suas conclusões, justifica a aplicação dos requisitos recordados no n.o 39 do presente acórdão na hipótese de uma empresa em posição dominante ter desenvolvido uma infraestrutura para as necessidades das suas próprias atividades e por ela detida. |
44 |
Em contrapartida, como a advogada‑geral salientou no n.o 35 das suas conclusões, quando uma empresa dominante desenvolveu uma infraestrutura não apenas para as necessidades das suas atividades próprias, mas na perspetiva de permitir uma utilização dessa infraestrutura por empresas terceiras, o requisito enunciado pelo Tribunal de Justiça no n.o 41 do Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), relativo ao caráter indispensável da referida infraestrutura para o exercício da atividade do requerente de acesso, no sentido de que não existe nenhum substituto real ou potencial da mesma infraestrutura, não se aplica. |
45 |
Com efeito, nesse caso, nem a preservação da liberdade de contratar e do direito de propriedade da empresa em posição dominante, nem a necessidade de continuar a incentivá‑la a investir no desenvolvimento de produtos ou de serviços de qualidade justificam que se limite a qualificação de uma recusa de dar acesso a uma empresa terceira à infraestrutura em causa como abusiva, na aceção do artigo 102.o TFUE, aos casos em que essa recusa impossibilita esta última empresa de exercer a sua atividade, desenvolvendo uma oferta viável num mercado vizinho. |
46 |
A este respeito, basta salientar que, embora o custo induzido pelo desenvolvimento dessa infraestrutura tenha sido assumido pela empresa em posição dominante não apenas para as necessidades das suas atividades próprias, mas na perspetiva de que essa infraestrutura possa ser utilizada por empresas terceiras, o facto de exigir que a empresa em posição dominante dê acesso a uma empresa terceira à referida infraestrutura não altera fundamentalmente o modelo económico que presidiu ao seu desenvolvimento. |
47 |
Daqui resulta que, para determinar se os requisitos enunciados pelo Tribunal de Justiça no n.o 41 do Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), se aplicam a um processo relativo a uma recusa de acesso a uma infraestrutura, é necessário determinar se essa infraestrutura foi desenvolvida pela empresa em posição dominante unicamente para as necessidades da sua própria atividade e é por ela detida ou se, pelo contrário, a referida infraestrutura foi desenvolvida para permitir uma utilização desta por empresas terceiras, o que é comprovado pela circunstância de essa empresa em posição dominante já ter concedido tal acesso a essas empresas. |
48 |
No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o acesso de empresas terceiras à Android Auto foi concedido pela Google, que tornou esta plataforma digital compatível para categorias de aplicações, ou mesmo para aplicações específicas que essas empresas terceiras tinham desenvolvido. Ora, não se pode considerar que uma plataforma digital destinada a permitir a utilização, no sistema de informação e entretenimento de veículos automóveis, de aplicações desenvolvidas nomeadamente por terceiros e descarregadas nos dispositivos móveis dos utilizadores foi criada unicamente para as necessidades dessa empresa em posição dominante. |
49 |
Assim, sob reserva de verificação a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, afigura‑se que a Android Auto não foi desenvolvida pela Google unicamente para as necessidades da sua própria atividade, uma vez que o acesso a esta plataforma digital está aberto a empresas terceiras, pelo que o requisito enunciado pelo Tribunal de Justiça no n.o 41 do Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), relativo ao caráter indispensável ao exercício da atividade do requerente de acesso, não é aplicável com vista a examinar se a recusa, por uma empresa que desenvolveu uma plataforma digital, de permitir o acesso de uma empresa terceira que tenha desenvolvido uma aplicação a essa plataforma, assegurando a interoperabilidade desta última com essa aplicação, constitui um abuso de posição dominante na aceção do artigo 102.o TFUE. |
50 |
Daqui resulta que esta recusa é suscetível de constituir um abuso de posição dominante quando a referida plataforma digital não é indispensável para a exploração comercial da aplicação em causa num mercado a jusante, no sentido de que não existe nenhum substituto real ou potencial para a utilização desta através da mesma plataforma. |
51 |
Com efeito, nessa hipótese, como a advogada‑geral salientou, em substância, nos n.os 46 e 48 das suas conclusões, há que determinar, à luz da jurisprudência recordada nos n.os 38 e 39 do mesmo acórdão, se a recusa pela empresa em posição dominante, titular da plataforma digital em causa, de permitir o acesso a essa plataforma a uma empresa terceira que tenha desenvolvido uma aplicação, assegurando a interoperabilidade da referida plataforma com essa aplicação, tem por efeito atual ou potencial excluir, obstruir ou atrasar o desenvolvimento no mercado de um produto ou serviço que está, pelo menos potencialmente, em concorrência com um produto ou um serviço fornecido ou suscetível de ser fornecido pela empresa em posição dominante e constitui um comportamento que restringe a concorrência pelo mérito, sendo assim suscetível de causar um prejuízo aos consumidores. |
52 |
Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a recusa, por uma empresa em posição dominante que desenvolveu uma plataforma digital, de assegurar, a pedido de uma empresa terceira, a interoperabilidade dessa plataforma com uma aplicação desenvolvida por essa empresa terceira é suscetível de constituir um abuso de posição dominante, mesmo que a referida plataforma não seja indispensável para a exploração comercial da referida aplicação num mercado a jusante, mas seja suscetível de tornar a mesma aplicação mais atrativa para os consumidores, quando a mesma plataforma não tenha sido desenvolvida pela empresa em posição dominante unicamente para necessidades da sua própria atividade. |
Quanto à segunda questão
53 |
Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que o facto de, tanto a empresa que desenvolveu uma aplicação e pediu a uma empresa em posição dominante que assegurasse a interoperabilidade desta com uma plataforma digital, de que esta última empresa é titular, como concorrentes da primeira empresa terem continuado ativos no mercado a que essa aplicação pertence e terem desenvolvido a sua posição neste mercado, embora não beneficiassem de tal interoperabilidade, é suscetível de indicar, por si só, que a recusa da empresa em posição dominante de dar seguimento a esse pedido não era suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais. |
54 |
A este respeito, para se poder considerar, num determinado caso, que um comportamento deve ser qualificado de «exploração abusiva de uma posição dominante» na aceção do artigo 102.o TFUE, é necessário, regra geral, demonstrar que, recorrendo a meios diferentes dos que regem a concorrência pela mérito entre empresas, esse comportamento tem por efeito atual ou potencial restringir esta concorrência ao excluir empresas concorrentes igualmente eficazes do ou dos mercados em causa, ou ao impedir o seu desenvolvimento nesses mercados, observando‑se que podem ser tanto os mercados em que a posição dominante é detida como os mercados, conexos ou vizinhos, em que o referido comportamento se destina a produzir os seus efeitos atuais ou potenciais [Acórdão de 10 de setembro de 2024, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping), C‑48/22 P, EU:C:2024:726, n.o 165 e jurisprudência referida]. |
55 |
A qualificação de um comportamento de uma empresa em posição dominante de abusivo não exige que se demonstre, no caso de um comportamento dessa empresa que vise excluir os seus concorrentes do mercado em questão, que o seu resultado foi alcançado e, por conseguinte, a demonstração de um efeito de exclusão concreto no mercado. Com efeito, o artigo 102.o TFUE visa sancionar o facto de uma ou várias empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste, independentemente de saber se tal exploração se revelou ou não frutífera (v., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 2022, Servizio Elettrico Nazionale e o., C‑377/20, EU:C:2022:379, n.o 53 e jurisprudência referida). |
56 |
Por conseguinte, uma autoridade da concorrência pode declarar que houve uma violação do artigo 102.o TFUE através da demonstração de que o comportamento em causa teve, durante o período em que foi executado e nas circunstâncias do caso em apreço, a capacidade de restringir a concorrência pelo mérito apesar de não produzir efeitos (Acórdão de 19 de janeiro de 2023, Unilever Italia Mkt.Operations, C‑680/20, EU:C:2023:33, n.o 41). |
57 |
Contudo, esta demonstração deve, em princípio, basear‑se em elementos de prova tangíveis, que demonstrem, indo além da simples hipótese, a capacidade efetiva da prática em causa para produzir tais efeitos, devendo a existência de dúvidas a este respeito beneficiar a empresa que recorreu a tal prática (Acórdão de 19 de janeiro de 2023, Unilever Italia Mkt.Operations, C‑680/20, EU:C:2023:33, n.o 42 e jurisprudência referida). |
58 |
Com efeito, a manutenção do mesmo grau de concorrência no mercado em causa, ou mesmo o desenvolvimento da concorrência nesse mercado, não significa necessariamente que o comportamento em causa não seja suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais, uma vez que essa inexistência de efeitos pode resultar de outras causas e ser devida, nomeadamente, a alterações que se verificaram no mercado relevante desde que o referido comportamento teve início ou à incapacidade da empresa em posição dominante para levar a bom termo a estratégia na origem desse comportamento (Acórdão de 12 de maio de 2022, Servizio Elettrico Nazionale e o., C‑377/20, EU:C:2022:379, n.o 54). Em especial, por um lado, o caráter abusivo do comportamento em causa não pode depender da capacidade que os concorrentes teriam no mercado em causa de atenuar esses efeitos e, por outro, não se pode excluir que, na falta do referido comportamento, a concorrência nesse mercado se poderia ter desenvolvido ainda mais. |
59 |
No caso em apreço, a circunstância invocada pela Google de a Enel X Italia e os concorrentes desta última terem mantido a sua presença no mercado a que pertence a aplicação JuicePass, ou mesmo aumentá‑la, não significa, por si só, que a recusa de acesso à Android Auto pela Google não tenha sido suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais. Esta circunstância, sob reserva de ser efetivamente demonstrada, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, pode, no entanto, constituir um indício de que o comportamento da Google em causa no processo principal não era suscetível de produzir os efeitos de exclusão alegados. |
60 |
A este respeito, tratando‑se de uma aplicação ligada aos serviços de carregamento de veículos automóveis, como a que está em causa no processo principal, podem ser pertinentes, nomeadamente, eventuais elementos apresentados para demonstrar o interesse que podia ter, para os utilizadores de veículos elétricos, uma aplicação como a JuicePass, que inclui, em especial, as funcionalidades descritas no n.o 9 do presente acórdão, apesar de essa aplicação não poder ser utilizada no sistema de informação e entretenimento desses veículos através da Android Auto. |
61 |
Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que o facto de tanto a empresa que desenvolveu uma aplicação e pediu a uma empresa em posição dominante que assegurasse a interoperabilidade desta com uma plataforma digital, de que esta última empresa é titular, como concorrentes da primeira empresa terem continuado ativos no mercado a que essa aplicação pertence e terem desenvolvido a sua posição neste mercado, embora não beneficiassem de tal interoperabilidade, não indica, por si só, que a recusa da empresa em posição dominante de dar seguimento a esse pedido não era suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais. Há que apreciar se esse comportamento da empresa em posição dominante era suscetível de obstruir a manutenção ou o desenvolvimento da concorrência no mercado em causa, tendo em conta todas as circunstâncias factuais pertinentes. |
Quanto à terceira e quarta questões
62 |
A título preliminar, primeiro, resulta do pedido de decisão prejudicial que a Google recebeu um pedido da Enel X Italia para que uma aplicação que esta última tinha desenvolvido pudesse ser utilizada através da Android Auto, o que pressupunha o desenvolvimento por parte da Google de um modelo que permitisse assegurar a interoperabilidade das aplicações ligadas aos serviços de carregamento de veículos elétricos com essa plataforma. É certo que, como expôs o órgão jurisdicional de reenvio, a Google desenvolveu posteriormente um modelo para a conceção de versões experimentais de aplicações de carregamento de veículos elétricos para utilização na Android Auto, após o recurso à AGCM, mas antes da adoção da decisão desta autoridade. No entanto, à data do pedido apresentado à Google, não existia um modelo para a categoria de aplicações ligadas aos serviços de carregamento desses veículos. |
63 |
Por conseguinte, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio que o levaram a submeter a terceira e quarta questões dizem respeito à incidência, para efeitos da qualificação do comportamento em causa de abuso de posição dominante, na aceção do artigo 102.o TFUE, da inexistência do modelo para a categoria de aplicações ligadas aos serviços de carregamento de veículos elétricos que permitem assegurar a interoperabilidade dessas aplicações com a Android Auto, à data do pedido desse acesso, e à eventual obrigação de desenvolver esse modelo. |
64 |
Segundo, há que salientar que, com a última parte da quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de uma empresa em posição dominante ser obrigada a desenvolver um modelo para uma categoria de aplicações para permitir o acesso a uma plataforma digital de que é titular, pedido por uma empresa terceira, assegurando a interoperabilidade entre as aplicações em causa e essa plataforma, e tendo em conta a responsabilidade particular que essa empresa em posição dominante tem no mercado, esta última deve, face a múltiplos pedidos de acesso provenientes de empresas terceiras, estabelecer critérios objetivos para examinar esses pedidos e para os classificar por ordem de prioridade. |
65 |
Todavia, não resulta nem do pedido de decisão prejudicial nem dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que tenham sido dirigidos à Google pedidos provenientes de empresas terceiras, além disso de forma simultânea, com vista a desenvolver modelos que permitam assegurar a interoperabilidade da Android Auto com aplicações desenvolvidas por essas empresas. |
66 |
Ora, embora as questões prejudiciais relativas ao direito da União gozem de uma presunção de pertinência, a justificação do reenvio prejudicial não consiste na formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas decorre da necessidade inerente à resolução efetiva de um litígio (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, The International Protection Appeals Tribunal e o., C‑322/19 e C‑385/19, EU:C:2021:11, n.o 53 e jurisprudência referida). |
67 |
Por conseguinte, na medida em que a última parte da quarta questão visa, na realidade, obter uma opinião consultiva do Tribunal de Justiça, é inadmissível. |
68 |
Terceiro, há que observar que, no que respeita aos seus outros aspetos, a terceira e quarta questões têm por objeto as justificações objetivas que uma empresa em posição dominante pode invocar relativamente a um comportamento, que consiste na recusa de fornecer ou de desenvolver um modelo para aplicações desenvolvidas por empresas terceiras que permite utilizá‑las através de uma plataforma digital de que essa empresa em posição dominante é titular, suscetível de ser abrangido pela proibição enunciada no artigo 102.o TFUE, bem como o ónus da prova que incumbe, respetivamente, à referida empresa e à autoridade da concorrência competente. |
69 |
Nestas condições, há que considerar que, com a terceira e quarta questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, quando um comportamento que consiste em uma empresa em posição dominante recusar a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular é suscetível de ser qualificado de abuso, na aceção desta disposição, esta última empresa pode utilmente invocar como justificação objetiva da sua recusa a inexistência de um modelo que permita assegurar essa interoperabilidade na data em que a empresa terceira pediu esse acesso, ou se a empresa em posição dominante pode ser obrigada a desenvolver esse modelo. Além disso, esse órgão jurisdicional pergunta se, nesta segunda hipótese, o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a empresa em posição dominante é obrigada, por um lado, a tomar em consideração as necessidades gerais do mercado ou as necessidades da empresa que pede o mesmo acesso e, por outro, a informá‑la do tempo necessário para o desenvolvimento do referido modelo ou se a autoridade da concorrência é obrigada a proceder à verificação, com base em elementos objetivos, do tempo necessário para a empresa em posição dominante desenvolver esse modelo. |
70 |
Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 102.o TFUE que uma empresa que detenha uma posição dominante pode justificar comportamentos suscetíveis de ser abrangidos pela proibição enunciada nesse artigo (Acórdãos de 27 de março de 2012, Post Danmark, C‑209/10, EU:C:2012:172, n.o 40, e de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company, C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.o 201 e jurisprudência referida). |
71 |
Em especial, essa empresa pode demonstrar, para tal, ou que o seu comportamento é objetivamente necessário ou que o efeito de exclusão que produz pode ser compensado, ou inclusivamente superado, por ganhos de eficácia que aproveitem igualmente aos consumidores (Acórdãos de 27 de março de 2012, Post Danmark, C‑209/10, EU:C:2012:172, n.o 41, e de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company, C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.o 202 e jurisprudência referida). |
72 |
Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma empresa em posição dominante que recusa o acesso de uma empresa terceira a uma plataforma digital, e desde que essa recusa seja suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais, pode utilmente invocar como justificação objetiva da sua recusa a inexistência de um modelo para uma categoria de aplicações que permita assegurar a interoperabilidade entre essas aplicações e essa plataforma na data em que esse acesso foi pedido ou se a referida empresa pode ser obrigada a desenvolver esse modelo para permitir a essa empresa terceira obter o referido acesso. |
73 |
Como a advogada‑geral salientou, em substância, nos n.os 64 e 65 das suas conclusões, a recusa em assegurar a interoperabilidade de uma aplicação com uma plataforma digital, por parte da empresa em posição dominante devido à inexistência de um modelo para a categoria de aplicações em causa, pode ser objetivamente justificada quando a concessão dessa interoperabilidade através desse modelo comprometa, em si mesma e tendo em conta as propriedades da aplicação para a qual a interoperabilidade é pedida, a integridade da plataforma em causa ou a segurança da sua utilização, ou ainda quando fosse impossível, por outras razões técnicas, assegurar essa interoperabilidade desenvolvendo o referido modelo. |
74 |
Em contrapartida, fora dessas situações, a inexistência do modelo para a categoria de aplicações em causa ou as dificuldades ligadas ao seu desenvolvimento com que se pode confrontar a empresa em posição dominante não podem constituir, em si mesmas, uma justificação objetiva para a recusa de acesso por parte dessa empresa. No entanto, tomando em consideração todas as circunstâncias pertinentes a este respeito, a necessidade de consagrar um período de tempo razoável a esse desenvolvimento, e, portanto, de não poder implementar imediatamente a interoperabilidade que é pedida, pode ser considerada objetivamente necessária e proporcionada, tendo em conta simultaneamente as necessidades da empresa que pede o acesso à plataforma da empresa em posição dominante e as dificuldades encontradas por esta última empresa para desenvolver esse modelo. |
75 |
A este respeito, são nomeadamente pertinentes o grau de dificuldade técnica para desenvolver o modelo para a categoria de aplicações em causa, que permite o acesso pedido, limitações ligadas à impossibilidade de se dotar, a curto prazo, de alguns dos recursos, em especial humanos, necessários para desenvolver esse modelo à luz das necessidades da empresa que pede esse acesso, ou ainda limitações externas à empresa em posição dominante com impacto na sua capacidade de desenvolver o mesmo modelo, como, por exemplo, as relativas ao quadro regulamentar aplicável. |
76 |
No entanto, como a advogada‑geral salientou, em substância, nos n.os 74 e 75 das suas conclusões, o desenvolvimento de tal modelo que assegure a interoperabilidade pedida é suscetível de representar um custo para a empresa em posição dominante. Todavia, o artigo 102.o TFUE não se opõe a que essa empresa exija à empresa que pediu a interoperabilidade uma contrapartida financeira adequada. Essa contrapartida deve ser justa e proporcionada, permitindo à empresa em posição dominante, tendo em conta o custo real desse desenvolvimento, retirar daí um benefício adequado. A fixação do montante dessa contrapartida não prejudica a sua tomada em consideração aquando da eventual aplicação de outras regras do direito da União que regulem, se for caso disso, a remuneração da empresa em posição dominante pela aquisição, pela empresa que pediu a interoperabilidade, de utilizadores finais para a sua aplicação. |
77 |
Por último, a falta de resposta da empresa em posição dominante ao pedido de uma empresa terceira no sentido de que essa empresa em posição dominante assegure a interoperabilidade da plataforma digital de que é titular com uma aplicação desenvolvida por essa empresa terceira pode constituir um indício de que a recusa de assegurar essa interoperabilidade não é objetivamente justificada. |
78 |
Em segundo lugar, importa sublinhar que, embora do ónus da prova da existência das circunstâncias que constituem uma violação do artigo 102.o TFUE incumba às autoridades da concorrência, tanto a nível da União Europeia como nacional, todavia, como foi recordado nos n.os 70 e 71 do presente acórdão, cabe à empresa dominante em causa invocar qualquer justificação objetiva e invocar, a este respeito, argumentos e elementos de prova. |
79 |
Uma vez satisfeita esta exigência pela empresa em posição dominante, cabe então à autoridade da concorrência em causa, quando se propõe concluir pela existência de um abuso de uma posição dominante, demonstrar que os argumentos e os elementos de prova apresentados por essa empresa não podem prevalecer e, por conseguinte, que a justificação apresentada não pode ser aceite. |
80 |
A este respeito, numa situação como a que está em causa no processo principal, incumbe à autoridade da concorrência competente, tendo em conta, nomeadamente, os motivos apresentados pela empresa em posição dominante à empresa terceira para justificar a recusa de assegurar a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por esta última com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular, oposta a esta empresa terceira, e tomando em consideração todas as circunstâncias pertinentes, verificar o caráter objetivamente necessário da recusa, por essa empresa em posição dominante, de desenvolver um modelo para a categoria de aplicações em causa, que permite essa interoperabilidade, e apreciar o caráter proporcionado dessa recusa. |
81 |
Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à terceira e quarta questões que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, quando um comportamento que consiste em uma empresa em posição dominante recusar assegurar a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular seja suscetível de ser qualificado de abuso, na aceção desta disposição, esta última empresa pode utilmente invocar como justificação objetiva da sua recusa a inexistência de um modelo que permita assegurar essa interoperabilidade na data em que a empresa terceira pediu esse acesso, quando a concessão dessa interoperabilidade através desse modelo comprometa, em si mesma e tendo em conta as propriedades da aplicação para a qual a interoperabilidade é pedida, a integridade da plataforma em causa ou a segurança da sua utilização, ou ainda quando por outras razões técnicas fosse impossível assegurar essa interoperabilidade desenvolvendo o referido modelo. Se assim não for, a empresa em posição dominante está obrigada a desenvolver esse modelo, num prazo razoável necessário para esse efeito e mediante, sendo caso disso, uma contrapartida financeira adequada, tomando em consideração as necessidades da empresa terceira que pediu esse desenvolvimento, o custo real deste e o direito da empresa em posição dominante de daí retirar um benefício adequado. |
Quanto à quinta questão
82 |
Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para apreciar a existência de um abuso que consiste na recusa, por uma empresa em posição dominante, de assegurar a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular, uma autoridade da concorrência é obrigada a definir o mercado a jusante em que essa recusa é suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais, mesmo que esse mercado seja apenas potencial. |
83 |
Há que recordar que a determinação do mercado relevante, no âmbito da aplicação do artigo 102.o TFUE, constitui, em princípio, uma condição prévia à apreciação da eventual existência de uma posição dominante da empresa em causa (v., neste sentido, Acórdão de 21 de fevereiro de 1973, Europemballage e Continental Can/Comissão, 6/72, EU:C:1973:22, n.o 32), que tem por objeto definir o perímetro dentro do qual deve ser apreciada a questão de saber se uma empresa se pode comportar, de forma significativa, independentemente dos seus concorrentes, dos seus clientes e dos consumidores (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de novembro de 1983, Nederlandsche Banden‑Industrie‑Michelin/Comissão, 322/81, EU:C:1983:313, n.o 37, e de 27 de junho de 2024, Comissão/Servier e o., C‑176/19 P, EU:C:2024:549, n.o 381). |
84 |
Para apreciar o caráter abusivo de uma recusa conforme descrito no n.o 82 do presente acórdão, há que distinguir dois mercados, a saber, por um lado, o mercado a que pertence a plataforma digital e no qual a empresa titular desta detém uma posição dominante, constituindo esse mercado geralmente o mercado a montante, e, por outro, o mercado em que a aplicação é utilizada para a produção de outro produto ou para a prestação de outro serviço pela empresa que pede a interoperabilidade dessa aplicação com essa plataforma e no qual podem produzir os efeitos anticoncorrenciais do comportamento da empresa em posição dominante, constituindo esse mercado um mercado vizinho, nomeadamente a jusante. |
85 |
No âmbito da aplicação do artigo 102.o TFUE, a identificação do mercado a jusante não exige necessariamente uma definição precisa do mercado de produtos e do mercado geográfico. Em determinadas circunstâncias, basta que um mercado potencial, ou mesmo hipotético, possa ser identificado (Acórdão de 29 de abril de 2004, IMS Health, C‑418/01, EU:C:2004:257, n.o 44). Com efeito, quando o mercado a jusante em causa ainda está em desenvolvimento ou evolui rapidamente e, por conseguinte, a sua extensão não está completamente definida na data em que a empresa em posição dominante adota o comportamento alegadamente abusivo, basta que a autoridade da concorrência identifique esse mercado, mesmo que seja apenas potencial. Essa autoridade deve, em seguida, tendo em conta as características e a dimensão potencial do referido mercado, demonstrar que esse comportamento é suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais no mesmo mercado, mesmo que apenas exista neste mercado uma concorrência potencial entre os produtos ou os serviços da empresa em posição dominante e, em caso de comportamento desta em recusar a interoperabilidade pedida por uma empresa terceira com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular, os produtos ou os serviços da empresa que pede essa interoperabilidade. |
86 |
Tendo em conta as considerações precedentes, o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para apreciar a existência de um abuso que consiste na recusa, por uma empresa em posição dominante, de assegurar a interoperabilidade de uma aplicação desenvolvida por uma empresa terceira com uma plataforma digital de que a empresa em posição dominante é titular, uma autoridade da concorrência pode limitar‑se a identificar o mercado a jusante em que essa recusa é suscetível de produzir efeitos anticoncorrenciais, mesmo que esse mercado a jusante seja apenas potencial, não exigindo necessariamente essa identificação uma definição precisa do mercado de produtos e do mercado geográfico em causa. |
Quanto às despesas
87 |
Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara: |
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Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: italiano.