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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62022CJ0755

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 11 de janeiro de 2024.
    Nárokuj s.r.o. contra EC Financial Services, a.s.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Okresní soud Praha-západ.
    Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 2008/48/CE — Contratos de crédito aos consumidores — Artigo 8.o — Obrigação de o mutuante verificar a solvabilidade do consumidor — Violação sanada mediante o cumprimento integral do contrato de crédito — Artigo 23.o — Sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas — Nulidade do contrato de crédito e perda do direito do mutuante ao pagamento dos juros convencionados — Inexistência de consequências desfavoráveis para o consumidor — Responsabilização dos mutuantes e prevenção de práticas irresponsáveis na concessão de crédito aos consumidores.
    Processo C-755/22.

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2024:10

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

    11 de janeiro de 2024 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 2008/48/CE — Contratos de crédito aos consumidores — Artigo 8.o — Obrigação de o mutuante verificar a solvabilidade do consumidor — Violação sanada mediante o cumprimento integral do contrato de crédito — Artigo 23.o — Sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas — Nulidade do contrato de crédito e perda do direito do mutuante ao pagamento dos juros convencionados — Inexistência de consequências desfavoráveis para o consumidor — Responsabilização dos mutuantes e prevenção de práticas irresponsáveis na concessão de crédito aos consumidores»

    No processo C‑755/22,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Okresní soud Praha‑západ (Tribunal de Primeira Instância de Praga‑Oeste, República Checa), por Decisão de 1 de agosto de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de dezembro de 2022, no processo

    Nárokuj s.r.o.

    contra

    EC Financial Services, a.s.,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, N. Piçarra, M. Safjan (relator), N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

    advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Nárokuj s.r.o., por R. Pukl, advokát,

    em representação da EC Financial Services, a.s., por F. Petráš, advokát,

    em representação do Governo Checo, por M. Smolek, S. Šindelková e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por P. Ondrůšek e I. Rubene, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Nárokuj s.r.o. à EC Financial Services, a.s., a respeito do reembolso de quantias relacionadas com um crédito concedido por esta última a um consumidor.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    Os considerandos 7, 9 e 26 da Diretiva 2008/48 têm a seguinte redação:

    «(7)

    A fim de facilitar a emergência de um mercado interno do crédito aos consumidores que funcione corretamente, é necessário prever um quadro comunitário harmonizado em determinados domínios essenciais. […]

    […]

    (9)

    A harmonização plena é necessária para garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para instituir um verdadeiro mercado interno. […]

    […]

    (26)

    Os Estados‑Membros deverão tomar as medidas adequadas para incentivar práticas responsáveis em todas as fases da relação de crédito, tendo em conta as especificidades do seu mercado de crédito. Essas medidas podem incluir, por exemplo, a informação e a educação dos consumidores, designadamente advertências quanto aos riscos que advêm da falta de pagamento e do sobre‑endividamento. Num mercado de crédito em expansão, é especialmente importante que os mutuantes não concedam empréstimos de modo irresponsável ou não concedam crédito sem uma prévia verificação da solvabilidade e que os Estados‑Membros efetuem a supervisão necessária para evitar tal comportamento e determinem as sanções necessárias para punir os mutuantes que adotem tal comportamento. […] [O]s mutuantes deverão ser responsáveis por verificar, individualmente, a solvabilidade do consumidor. Para o efeito, deverão ser autorizados a utilizar informações prestadas pelo consumidor não só durante a preparação do contrato de crédito em causa, mas também durante uma relação comercial de longa data. As autoridades dos Estados‑Membros poderão também dar instruções e orientações adequadas aos mutuantes. Também os consumidores deverão agir com prudência e respeitar as suas obrigações contratuais.»

    4

    O artigo 8.o da diretiva, sob a epígrafe «Obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor», dispõe:

    «1.   Os Estados‑Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados‑Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição.

    2.   Os Estados‑Membros devem assegurar que, se as partes decidirem alterar o montante total do crédito após a celebração do contrato, o mutuante atualize a informação financeira de que dispõe relativamente ao consumidor e avalie a solvabilidade deste antes de qualquer aumento significativo do montante total do crédito.»

    5

    Nos termos do artigo 23.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Sanções»:

    «Os Estados‑Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

    Direito checo

    6

    O § 86 da zákon č. 257/2016 Sb., o spotřebitelském úvěru (Lei n.o 257/2016, relativa ao Crédito ao Consumo), conforme alterada pela zákon č. 96/2022 Sb. (Lei n.o 96/2022) (a seguir «Lei n.o 257/2016 relativa ao Crédito ao Consumo»), prevê:

    «(1)   Antes da celebração de um contrato de crédito ao consumo ou da alteração de uma obrigação resultante desse contrato que consista num aumento substancial do montante total do crédito ao consumo, o mutuante avalia a solvabilidade do consumidor com base em informações necessárias, fiáveis, suficientes e adequadas fornecidas pelo consumidor e, se necessário, consultando uma base de dados que permita avaliar a solvabilidade do consumidor, ou outras fontes. O mutuante só concede o crédito ao consumo quando resultar da avaliação da solvabilidade do consumidor que não há dúvidas fundamentadas quanto à capacidade do consumidor para reembolsar o crédito.

    (2)   No âmbito da avaliação da solvabilidade do consumidor, o mutuante avalia, nomeadamente, a capacidade do consumidor para reembolsar as prestações periódicas do crédito ao consumo acordadas, com base numa comparação entre os rendimentos e as despesas do consumidor e com base no cumprimento das suas dívidas existentes. O mutuante tem em conta o valor do património quando resulta do contrato de crédito ao consumo que o crédito ao consumo deve ser reembolsado na totalidade ou em parte pelo lucro da alienação do património do consumidor, e não mediante reembolsos periódicos, ou se a situação financeira do consumidor demonstrar que este poderá reembolsar o crédito ao consumo, independentemente dos seus rendimentos.»

    7

    O § 87, n.o 1, desta lei tem a seguinte redação:

    «Se o mutuante conceder ao consumidor um crédito ao consumo em violação do § 86, n.o 1, segundo período, o contrato é nulo. O tribunal examina oficiosamente a nulidade. O consumidor é obrigado a reembolsar o montante do capital do crédito ao consumo num prazo adequado às suas possibilidades.»

    Litígio no processo principal e questão prejudicial

    8

    Um consumidor subscreveu um crédito ao consumo no montante de 50000 coroas checas (a seguir «CZK») (cerca de 2000 euros) junto da sociedade JET Money s.r.o., à qual sucedeu a sociedade EC Financial Services. Antes da celebração do contrato, o consumidor forneceu algumas informações relativas à sua situação pessoal e económica. Posteriormente, reembolsou o crédito, pagando um montante total de 85000 CZK (cerca de 3500 euros), que incluía as despesas acessórias do referido crédito. Não suscitou objeções em relação ao referido contrato durante o período de reembolso do crédito.

    9

    A Nárokuj, a recorrente no processo principal, é uma sociedade comercial à qual o consumidor cedeu os créditos que poderia ter reclamado junto do mutuante ao abrigo do contrato de crédito ao consumo. Esta sociedade argui a nulidade do contrato em questão perante o Okresní soud Praha‑západ (Tribunal de Primeira Instância de Praga‑Oeste, República Checa), que é o órgão jurisdicional de reenvio, alegando, para o efeito, que o mutuante não cumpriu a sua obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor. No âmbito da sua ação fundada em enriquecimento sem causa, requer o pagamento de um montante de 35000 CZK, que corresponde à diferença entre o montante principal do referido crédito e o montante reembolsado pelo consumidor, acrescido de juros de mora legais.

    10

    A EC Financial Services, que é a recorrida no processo principal, considera, por sua vez, que a solvabilidade do consumidor foi devidamente avaliada e que, de qualquer modo, as regras relativas à proteção dos consumidores não são aplicáveis, porque o titular do crédito em causa no processo principal já não é um consumidor, mas antes uma sociedade comercial.

    11

    Tendo em conta estes argumentos, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, à luz da Diretiva 2008/48, um mutuante pode ser sancionado nos casos em que a violação da obrigação de avaliar a solvabilidade de um consumidor antes da celebração de um contrato de crédito não tem consequências desfavoráveis para o consumidor. Refere, a este respeito, que, embora alguns tribunais nacionais tenham respondido afirmativamente a esta questão, incluindo nos casos em que o crédito é reembolsado integralmente e sem objeções pelo consumidor, parece admissível uma interpretação contrária, baseada numa ponderação dos interesses de ambas as partes contratantes e tendo em conta o facto de o consumidor também ser responsável pelo seu comportamento.

    12

    Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio assinala que o artigo 8.o da Diretiva 2008/48 tem por objetivo evitar que o consumidor depare com dificuldades financeiras quando procede ao reembolso do crédito, de modo que é possível concluir que a obrigação de o mutuante avaliar a solvabilidade do consumidor não constitui o objetivo principal desta diretiva, sendo antes um meio que permite alcançar este objetivo.

    13

    Por outro lado, este órgão jurisdicional considera que a solvabilidade de um consumidor não pode ser avaliada isoladamente, apenas com base nos elementos que o mutuante lhe solicita, devendo também ser avaliada em função do modo como a relação contratual se desenrolou, à luz do objetivo de proteção dos consumidores prosseguido pela Diretiva 2008/48.

    14

    Por último, há que ter em conta, designadamente, os princípios da segurança jurídica e da boa‑fé, considerando que um mutuante que tenha concedido um crédito a um consumidor, que por sua vez o reembolsou posteriormente, deve poder confiar que o consumidor cumpriu a sua obrigação contratual através dos seus pagamentos. Se o consumidor não sofreu consequências desfavoráveis, não é necessário aplicar uma sanção com um objetivo meramente preventivo.

    15

    Nestas condições, o Okresní soud Praha‑západ (Tribunal de Primeira Instância de Praga‑Oeste) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «A Diretiva [2008/48] tem por objetivo aplicar sanções ao mutuante pela falta de uma avaliação completa da solvabilidade do consumidor mesmo no caso de o consumidor ter reembolsado o crédito na totalidade e não ter suscitado objeções em relação ao contrato durante o reembolso do crédito?»

    Quanto à questão prejudicial

    Quanto à admissibilidade

    16

    A Comissão Europeia considera que a questão prejudicial é hipotética, porque se baseia numa premissa errada, isto é, que a avaliação da solvabilidade do consumidor em causa não foi efetuada em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48, nem com as disposições nacionais que transpõem esta disposição. Com efeito, a decisão de reenvio não contém elementos que permitam concluir que a avaliação foi efetivamente insuficiente.

    17

    A este título, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdãos de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 56 e jurisprudência referida, e de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 50 e jurisprudência referida).

    18

    Resulta do exposto que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional, nomeadamente, se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou se o problema for hipotético (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 57 e jurisprudência referida, e de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 51 e jurisprudência referida).

    19

    Porém, não é o caso no presente processo.

    20

    Com efeito, resulta da decisão de reenvio que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio assentam na premissa, defendida pela Nárokuj e contestada pela EC Financial Services, de que esta última não cumpriu a sua obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor prevista no § 86 da Lei n.o 257/2016 relativa ao Crédito ao Consumo, nomeadamente porque não verificou de modo fiável o montante efetivo das despesas do consumidor em causa.

    21

    A este respeito, importa recordar que a Diretiva 2008/48 não enuncia de maneira exaustiva as informações com base nas quais o mutuante deve avaliar a solvabilidade do consumidor (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 36).

    22

    Por conseguinte, a questão de saber se, nas circunstâncias do processo principal, o mutuante cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do artigo 8.o da Diretiva 2008/48 é, essencialmente, uma questão de apreciação dos requisitos previstos para o efeito pelo direito nacional.

    23

    Ora, não compete ao Tribunal de Justiça, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, pronunciar‑se sobre a interpretação do direito nacional e decidir se a interpretação que lhe é dada pelo órgão jurisdicional de reenvio é correta, uma vez que, no âmbito deste processo, baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos e do direito nacional é da competência exclusiva do juiz nacional [v., neste sentido, Acórdãos de 16 de março de 2023, Caixabank (Comissão de abertura do empréstimo), C‑565/21, EU:C:2023:212, n.o 37 e jurisprudência referida, e de 4 de maio de 2023, Bundesrepublik Deutschland (Caixa de correio eletrónico dos tribunais), C‑60/22, EU:C:2023:373, n.o 40 e jurisprudência referida].

    24

    Nestas circunstâncias, não é manifesto que a interpretação solicitada da Diretiva 2008/48 não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou ainda que o problema suscitado é hipotético, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 18 do presente acórdão.

    25

    Resulto do exposto que a questão prejudicial é admissível, cabendo ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, no contexto do processo principal, o mutuante não cumpriu efetivamente a obrigação que lhe incumbe por força do artigo 8.o da Diretiva 2008/48.

    Quanto ao mérito

    26

    Por meio da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 8.o e 23.o da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que, nos casos em que o mutuante não tenha cumprido a sua obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor, seja sancionado, ao abrigo do direito nacional, com a nulidade do contrato de crédito ao consumo e com a perda do seu direito ao pagamento dos juros convencionados, ainda que o contrato tenha sido cumprido integralmente pelas partes e o consumidor não tenha sofrido consequências desfavoráveis em resultado deste incumprimento.

    27

    A título preliminar, há que observar que a circunstância de os litígios no processo principal oporem unicamente profissionais não obsta à aplicação da Diretiva 2008/48. Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o âmbito de aplicação desta diretiva não depende da identidade das partes no litígio em causa, mas da qualidade das partes no contrato de crédito (Acórdão de 11 de setembro de 2019, Lexitor, C‑383/18, EU:C:2019:702, n.o 20).

    28

    Ora, resulta da decisão de reenvio que o crédito objeto do litígio no processo principal tem por base uma obrigação de restituição que resultou da resolução do contrato de crédito ao consumo celebrado entre um consumidor e a JET Money, à qual sucedeu a EC Financial Services, e que este crédito foi cedido pelo consumidor à Nárokuj após o reembolso do mesmo.

    29

    Feito este esclarecimento, cumpre salientar que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio podem ser interpretadas no sentido de que incidem tanto sobre a possibilidade de uma pretensa violação do artigo 8.o da Diretiva 2008/48 ser sanada mediante o cumprimento integral do contrato de crédito, como sobre a conformidade das medidas previstas pelo direito checo para sancionar esta violação com o artigo 23.o da diretiva. É necessário abordar sucessivamente estes dois aspetos para dar uma resposta útil à questão prejudicial.

    30

    No que respeita, em primeiro lugar, à possibilidade de sanar uma violação do artigo 8.o da Diretiva 2008/48 mediante o cumprimento integral do contrato de crédito, importa recordar que, para interpretar uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e, especialmente, os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte [v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2023, YYY. (Conceito de consumidor), C‑570/21, EU:C:2023:456, n.o 28 e jurisprudência referida].

    31

    Resulta da redação do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 que o mutuante deve avaliar a solvabilidade do consumidor antes da celebração do contrato de crédito. O Tribunal de Justiça já assinalou que esta obrigação é de natureza pré‑contratual (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 45).

    32

    No entanto, esta mera circunstância não permite determinar se e, se for o caso, em que condições o cumprimento integral do contrato de crédito pode sanar a existência de uma violação da obrigação de o mutuante avaliar a solvabilidade do consumidor, tendo presente que a Diretiva 2008/48 não determina a forma como o mutuante deve cumprir esta obrigação (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 36), nem as obrigações que lhe incumbem em função do resultado da avaliação (v., neste sentido, Acórdão de 6 de junho de 2019, Schyns, C‑58/18, EU:C:2019:467, n.os 42 e 43).

    33

    Em relação à análise dos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2008/48, resulta de jurisprudência constante que a obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor prevista no artigo 8.o da diretiva, na medida em que visa proteger os consumidores contra os riscos de sobre‑endividamento e de insolvência, contribui para a realização do objetivo da referida diretiva, que, como resulta dos seus considerandos 7 e 9, consiste em prever, em matéria de crédito aos consumidores, uma harmonização plena e imperativa em determinados domínios essenciais, a qual é considerada necessária para garantir a todos os consumidores da União um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para facilitar a emergência de um mercado interno de crédito ao consumo que funcione corretamente (Acórdãos de 27 de março de 2014, LCL Le Crédit Lyonnais, C‑565/12, EU:C:2014:190, n.o 42, e de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 21).

    34

    Além disso, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que, tendo em conta o considerando 26 da Diretiva 2008/48, esta obrigação visa também responsabilizar os mutuantes e evitar a concessão de empréstimos a consumidores não solventes [v., neste sentido, Acórdãos de 18 dezembro de 2014, CA Consumer Finance, C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 35; de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 20, e de 10 de junho de 2021, Ultimo Portfolio Investment (Luxembourg), C‑303/20, EU:C:2021:479, n.o 28].

    35

    Resulta do exposto, por um lado, que a obrigação de o mutuante avaliar a solvabilidade do consumidor se destina a prevenir o mero risco de sobre‑endividamento ou de insolvência que decorre de uma verificação insuficiente da capacidade e da propensão do consumidor para reembolsar o crédito. Ora, estas consequências financeiras da celebração de um contrato de crédito na situação do consumidor também podem ocorrer após o reembolso do crédito.

    36

    Por outro lado, a responsabilização dos mutuantes e a prevenção de práticas irresponsáveis na concessão de créditos aos consumidores são essenciais para o bom funcionamento do mercado do crédito ao consumo. Dado que estes objetivos são independentes da situação ou do comportamento de um consumidor particular, não são alcançados só pelo facto de o contrato de crédito celebrado pelo consumidor ser cumprido integralmente. Qualquer interpretação contrária conduziria a que se favorecesse a inobservância, por parte do mutuante, da obrigação que lhe incumbe por força do artigo 8.o da Diretiva 2008/48 e seria suscetível de tornar esta disposição inaplicável.

    37

    Resulta do exposto que é possível concluir, com base numa análise dos objetivos do artigo 8.o da Diretiva 2008/48, que uma violação da obrigação, que incumbe ao mutuante, de verificar a solvabilidade do consumidor, prevista nesta disposição, não pode ser sanada mediante o simples cumprimento integral do contrato de crédito. O facto de o consumidor não ter suscitado objeções em relação ao contrato durante o período de reembolso não é relevante.

    38

    Importa ainda esclarecer que as conclusões que figuram no número anterior não são postas em causa pelo n.o 279 do Acórdão de 21 de dezembro de 2023, BMW Bank e o. (C‑38/21, C‑47/21 e C‑232/21, EU:C:2023:1014), no qual o Tribunal de Justiça declarou que, na falta de disposições específicas a este respeito, um consumidor deixa de poder invocar o direito de retratação que lhe é reconhecido pelo artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 quando o contrato de crédito tenha sido cumprido integralmente pelas partes e as obrigações mútuas decorrentes do contrato se tenham, por conseguinte, extinguido, uma vez que o cumprimento de um contrato constitui o mecanismo natural de extinção das obrigações contratuais.

    39

    Com efeito, o facto de, após o cumprimento integral do contrato de crédito, as partes contratantes já não poderem invocar compromissos mútuos decorrentes do contrato não tem impacto na existência de um crédito baseado numa obrigação de restituição do indevido que resulta da aplicação de normas nacionais que sancionam, conforme prescreve o artigo 23.o da referida diretiva, o incumprimento da obrigação que consiste, para o mutuante, em verificar a solvabilidade do consumidor, previsto no artigo 8.o da referida diretiva.

    40

    No que respeita, em segundo lugar, à organização do regime das sanções aplicáveis em caso de violação das disposições nacionais aprovadas ao abrigo do artigo 8.o da Diretiva 2008/48, importa recordar que, em conformidade com o artigo 23.o da diretiva, este regime deve ser definido de modo que as sanções sejam efetivas, proporcionadas e dissuasivas [v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, Ultimo Portfolio Investment (Luxembourg), C‑303/20, EU:C:2021:479, n.o 30 e jurisprudência referida].

    41

    Para o efeito, o rigor das sanções deve ser adequado à gravidade das violações que reprimem, assegurando um efeito realmente dissuasivo sem, no entanto, ir além do necessário para alcançar os objetivos prosseguidos pelo artigo 8.o da Diretiva 2008/48 [v., neste sentido, Acórdãos de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 26, e de 14 de outubro de 2021, Landespolizeidirektion Steiermark (Máquinas de jogo), C‑231/20, EU:C:2021:845, n.o 45].

    42

    Embora caiba aos órgãos jurisdicionais de reenvio, que têm competência exclusiva para interpretar e aplicar o direito nacional, verificar se, tendo em conta todas as circunstâncias do litígio no processo principal, as sanções em causa cumprem as exigências que figuram no número anterior, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode, contudo, prestar esclarecimentos para orientar estes órgãos na sua apreciação (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.os 27 e 28).

    43

    No caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, ao abrigo do direito checo, a violação da obrigação de o mutuante avaliar a solvabilidade do consumidor, prevista no § 86 da Lei n.o 257/2016 relativa ao Crédito ao Consumo, é sancionada com a nulidade do contrato de crédito, conforme prevista no § 87, n.o 1, desta lei, que implica a perda do direito do mutuante ao pagamento dos juros convencionados.

    44

    O órgão jurisdicional de reenvio, a EC Financial Services e a Comissão consideram, em substância, que, quando o contrato de crédito é cumprido integralmente sem que o consumidor sofra consequências desfavoráveis, a aplicação de semelhante sanção é desproporcionada, posto que vai além do que é necessário para alcançar os objetivos da Diretiva 2008/48.

    45

    A este respeito, há que salientar que cabe aos Estados‑Membros ter devidamente em conta, quando instituem um regime adequado de sanções aplicáveis em caso de violação, pelo mutuante, das obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 2008/48, a importância do dano que o comportamento do mutuante causou ao consumidor (v., por analogia, Acórdão de 16 de abril de 2015, UPC Magyarország, C‑388/13, EU:C:2015:225, n.o 58). Quando for possível escolher entre várias medidas também adequadas à realização dos objetivos prosseguidos por esta diretiva, deve optar‑se pela medida menos restritiva, de acordo com o princípio da proporcionalidade, tendo presente que, de qualquer modo, os inconvenientes causados pela medida em causa não devem ser desproporcionados em relação a estes objetivos (v., neste sentido, Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, Agenzia delle dogane e dei monopoli e Ministero dell’Economia e delle Finanze, C‑452/20, EU:C:2022:111, n.os 37 e 38 e jurisprudência referida).

    46

    A este título, se um contrato de crédito celebrado por um consumidor for cumprido integralmente sem que o consumidor sofra consequências desfavoráveis durante ou na sequência do cumprimento, importa recordar que, de qualquer modo, conforme resulta dos n.os 33 e 34 do presente acórdão, a obrigação prevista no artigo 8.o da Diretiva 2008/48 visa não só proteger os consumidores contra estes riscos mas também responsabilizar os mutuantes e evitar a concessão de empréstimos a consumidores não solventes.

    47

    À luz desta dupla finalidade, o Tribunal de Justiça já declarou que, tendo em conta a importância essencial desta obrigação no contexto da Diretiva 2008/48, a sua violação pode ser sancionada, ao abrigo do direito nacional, com a perda do direito do mutuante aos juros [v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, Ultimo Portfolio Investment (Luxembourg), C‑303/20, EU:C:2021:479, n.os 39 e 40].

    48

    Por outro lado, o Tribunal de Justiça já declarou, num processo que dizia respeito à mesma legislação nacional que está em causa no processo principal, que uma sanção que implica, em caso de violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor, a perda do direito do mutuante aos juros convencionados é adequada à gravidade da violação que reprime (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 30).

    49

    Ora, cumpre salientar, por um lado, que sujeitar a aplicação de uma sanção de que decorre a nulidade do contrato de crédito e a perda do direito, para o mutuante, de obter o pagamento dos juros convencionados à condição de o consumidor sofrer consequências desfavoráveis seria suscetível de favorecer a inobservância, por parte dos mutuantes, da obrigação que lhes incumbe por força do artigo 8.o da Diretiva 2008/48. Com efeito, os mutuantes poderiam deste modo ser encorajados a não proceder a uma avaliação sistemática e exaustiva da solvabilidade de todos os consumidores a que concedem créditos, o que é contrário às finalidades de responsabilização dos mutuantes e de prevenção de práticas irresponsáveis no âmbito da concessão de créditos aos consumidores. Semelhante interpretação seria, aliás, suscetível de lesar o caráter efetivamente dissuasivo da sanção prevista.

    50

    Por outro lado, embora a sanção em causa no processo principal possa, visto que implica a resolução do contrato de crédito, indubitavelmente ter consequências graves para o mutuante, esta circunstância não significa, por si só, que o mutuante sofra necessariamente desvantagens desproporcionadas em relação à dupla finalidade prosseguida pelo artigo 8.o da Diretiva 2008/48 nem, como sustenta a EC Financial Services nas suas observações escritas, que o risco de ser exposto a estas consequências, mesmo após o reembolso do crédito, constitua uma violação da liberdade de empresa.

    51

    Resulta do exposto que, sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, o princípio da proporcionalidade não se opõe a que um Estado‑Membro opte por sancionar a violação das disposições nacionais que transpõem o artigo 8.o da Diretiva 2008/48 com a nulidade do contrato de crédito e a perda do direito do mutuante ao pagamento dos juros convencionados, mesmo que o consumidor não tenha sofrido consequências desfavoráveis em resultado desta violação.

    52

    Tendo em conta os fundamentos que precedem, há que responder à questão prejudicial que os artigos 8.o e 23.o da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que, nos casos em que o mutuante não tenha cumprido a sua obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor, seja sancionado, ao abrigo do direito nacional, com a nulidade do contrato de crédito ao consumo e com a perda do seu direito ao pagamento dos juros convencionados, ainda que o contrato tenha sido cumprido integralmente pelas partes e o consumidor não tenha sofrido consequências desfavoráveis em resultado deste incumprimento.

    Quanto às despesas

    53

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

     

    Os artigos 8.o e 23.o da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho,

     

    devem ser interpretados no sentido de que:

     

    não se opõem a que, nos casos em que o mutuante não tenha cumprido a sua obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor, seja sancionado, ao abrigo do direito nacional, com a nulidade do contrato de crédito ao consumo e com a perda do seu direito ao pagamento dos juros convencionados, ainda que o contrato tenha sido cumprido integralmente pelas partes e o consumidor não tenha sofrido consequências desfavoráveis em resultado deste incumprimento.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: checo.

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