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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62022CJ0294

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 5 de outubro de 2023.
Office français de protection des réfugiés et apatrides, OFPRA contra SW.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d'État.
Reenvio prejudicial — Política comum em matéria de asilo e de proteção subsidiária — Diretiva 2011/95/UE — Artigo 12.o — Exclusão do estatuto de refugiado — Apátrida de origem palestiniana registado na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) — Condições para que essa pessoa possa invocar ipso facto a Diretiva 2011/95 — Cessação da proteção ou da assistência da UNRWA» — Falta de assistência médica — Requisitos.
Processo C-294/22.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:733

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

5 de outubro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política comum em matéria de asilo e de proteção subsidiária — Diretiva 2011/95/UE — Artigo 12.o — Exclusão do estatuto de refugiado — Apátrida de origem palestiniana registado na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) — Condições para que essa pessoa possa invocar ipso facto a Diretiva 2011/95 — Cessação da proteção ou da assistência da UNRWA» — Falta de assistência médica — Requisitos»

No processo C‑294/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), por Decisão de 22 de março de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de maio de 2022, no processo

Office français de protection des réfugiés et apatrides,

contra

SW,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, L. S. Rossi (relatora), J.‑C. Bonichot, S. Rodin e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: M. Siekierzyńska, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 26 de janeiro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação de SW, por P. Spinosi, avocat,

em representação do Governo Francês, por J.‑L. Carré e J. Illouz, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Belga, por M. Jacobs e M. Van Regemorter, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Azéma e J. Hottiaux, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 4 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe SW ao Office français de protection des réfugiés et apatrides (Gabinete Francês de Proteção dos Refugiados e Apátridas, a seguir «OFPRA») a respeito do indeferimento, por este último, do pedido de SW destinado à obtenção do estatuto de refugiado ou, na sua falta, do benefício da proteção subsidiária.

Quadro jurídico

Direito internacional

Convenção de Genebra

3

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada e alterada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, que, por sua vez, entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).

4

O artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra dispõe:

«Esta Convenção não será aplicável às pessoas que atualmente beneficiam de proteção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados [ACNUR].

Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão, sem que a situação e dessas pessoas tenha sido definitivamente resolvida, em conformidade com as resoluções respetivas aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção.»

Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA)

5

A Resolução n.o 302 (IV) da Assembleia‑Geral das Nações Unidas, de 8 de dezembro de 1949, relativa à assistência aos refugiados da Palestina, criou a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente [United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East) (UNRWA)].

6

A zona de operações da UNRWA abrange os cinco setores da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, da Jordânia, do Líbano e da Síria.

7

Nos termos da Resolução n.o 74/83 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de dezembro de 2019, relativa à ajuda aos refugiados da Palestina (a seguir «Resolução n.o 74/83»), aplicável no momento da adoção da decisão do diretor‑geral do OFPRA em causa no processo principal:

«A Assembleia Geral,

[…]

Saudando o papel indispensável da [UNRWA] que, desde a sua criação há mais de 65 anos, melhora o destino dos refugiados da Palestina, prestando para o efeito assistência educativa, sanitária e social, bem como serviços de socorro e prosseguindo a sua ação em matéria de ordenamento dos campos, de microfinanciamento, de proteção e de ajuda de emergência,

[…]

Tomando igualmente conhecimento do relatório do Comissário Geral, de 31 de maio de 2019, apresentado nos termos do ponto 57 do relatório do Secretário‑Geral, e que se manifesta preocupada com a grave crise financeira que a Agência atravessa, que compromete fortemente a sua capacidade de continuar a fornecer programas essenciais aos refugiados da Palestina em todas as zonas de operações,

[…]

Declarando‑se profundamente preocupada com a situação particularmente difícil dos refugiados da Palestina que vivem em regime de ocupação, nomeadamente no que diz respeito à sua segurança, bem‑estar e condições de existência no plano socioeconómico,

[…]

1) Lamenta que nem o repatriamento nem a indemnização dos refugiados, previstos no n.o 11 da sua Resolução 194 (III), tenham ainda ocorrido, pelo que a situação dos refugiados da Palestina continua a ser motivo de grave preocupação e que estes continuam a necessitar de ajuda para suprir as suas necessidades básicas em matéria de saúde, educação e subsistência;

[…]

3) Sublinha a necessidade de prosseguir a obra da [UNRWA], bem como a importância das suas operações, que devem ser levadas a cabo sem entraves, e dos seus serviços, incluindo o auxílio urgente, para o bem‑estar e o desenvolvimento humano dos refugiados da Palestina e a estabilidade da região, na expectativa da resolução equitativa da questão dos refugiados da Palestina.

[…]

7. Decide prorrogar o mandato do Instituto até 30 de junho de 2023, sem prejuízo do disposto no n.o 11 da sua Resolução 194 (III).»

8

Através da Resolução n.o 77/123 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 12 de dezembro de 2022, o mandato da UNRWA foi prorrogado até 30 de junho de 2026.

Direito da União

9

Os considerandos 15 e 35 da Diretiva 2011/95 enunciam:

«(15)

Os nacionais de países terceiros ou os apátridas autorizados a permanecer em território dos Estados‑Membros, não por motivo de necessidade de proteção internacional mas, discricionariamente, por compaixão ou por motivos humanitários, não ficam abrangidos pela presente diretiva.

[…]

(35)

Os riscos aos quais uma população ou um grupo da população de um país estão geralmente expostos não suscitam em geral, por si mesmos, uma ameaça individual que se possa qualificar como uma ofensa grave.»

10

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

d)

“Refugiado”, o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.o;

[…]»

11

Nos termos do artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Normas mais favoráveis»:

«Os Estados‑Membros podem aprovar ou manter normas mais favoráveis relativas à determinação das pessoas que preenchem as condições para beneficiar do estatuto de refugiado ou que sejam elegíveis para proteção subsidiária, bem como à determinação do conteúdo da proteção internacional, desde que essas normas sejam compatíveis com a presente diretiva.»

12

O artigo 4.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Apreciação dos factos e circunstâncias», dispõe, no seu n.o 3:

«A apreciação do pedido de proteção internacional deve ser efetuada a título individual e ter em conta:

a)

Todos os factos pertinentes respeitantes ao país de origem à data da decisão sobre o pedido, incluindo a respetiva legislação e regulamentação e a forma como estas são aplicadas;

b)

As declarações e a documentação pertinentes apresentadas pelo requerente, incluindo informações sobre se o requerente sofreu ou pode sofrer perseguição ou ofensa grave;

c)

A situação e as circunstâncias pessoais do requerente, incluindo fatores como a sua história pessoal, sexo e idade, por forma a apreciar, com base na situação pessoal do requerente, se os atos a que foi ou possa vir a ser exposto podem ser considerados perseguição ou ofensa grave;

d)

Se as atividades empreendidas pelo requerente desde que deixou o seu país de origem tinham por fito único ou principal criar as condições necessárias para requerer proteção internacional, por forma a apreciar se essas atividades exporiam o interessado a perseguição ou ofensa grave se regressasse a esse país;

e)

Se era razoável prever que o requerente podia valer‑se da proteção de outro país do qual pudesse reivindicar a cidadania.»

13

O artigo 6.o da Diretiva 2011/95, sob a epígrafe «Agentes da perseguição ou ofensa grave», prevê:

«Podem ser agentes da perseguição ou ofensa grave:

a)

O Estado;

b)

As partes ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território;

c)

Os agentes não estatais, se puder ser provado que os agentes mencionados nas alíneas a) e b), incluindo organizações internacionais, são incapazes de ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição ou ofensa grave na aceção do artigo 7.o»

14

O artigo 12.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Exclusão», dispõe, no seu n.o 1:

«O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se:

a)

Estiver abrangido pelo âmbito do ponto D do artigo 1.o da Convenção de Genebra, relativo à proteção ou assistência de órgãos ou agências das Nações Unidas, com exceção do Alto‑Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva;

b)

As autoridades competentes do país em que tiver estabelecido a sua residência considerarem que tem os direitos e os deveres de quem possui a nacionalidade desse país, ou direitos e deveres equivalentes.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15

SW, apátrida de origem palestiniana, nasceu em 1976 no Líbano, onde viveu até deixar este país em fevereiro de 2019, tendo chegado a França em 11 de agosto de 2019. Resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que SW sofre desde o nascimento de uma doença genética grave que necessita de cuidados que a UNRWA, por falta de meios financeiros, não lhe pôde prestar.

16

Por Decisão de 11 de outubro de 2019, o diretor‑geral do OFPRA indeferiu o pedido de SW de obtenção do estatuto de refugiado ou, na sua falta, do benefício da proteção subsidiária.

17

Por Decisão de 9 de dezembro de 2020, a Cour nationale du droit d’asile (Tribunal Nacional em Matéria de Direito de Asilo, França) anulou essa decisão e reconheceu a SW a qualidade de refugiado.

18

O OFPRA interpôs recurso de cassação dessa decisão para o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França).

19

O OFPRA sustenta que a Cour nationale du droit d’asile (Tribunal Nacional em Matéria de Direito de Asilo) cometeu vários erros de direito. Antes de mais, não averiguou se SW tinha sido obrigado a abandonar a zona de operações da UNRWA devido a ameaças à sua segurança. Em seguida, declarou erradamente que a impossibilidade de a UNRWA financiar os cuidados de saúde terciários adaptados ao estado de saúde de um apátrida de origem palestiniana constitui um motivo de cessação da proteção efetiva desse organismo que permite ao referido apátrida reivindicar o benefício da Convenção de Genebra. Por último, declarou erradamente que se devia considerar que a UNRWA não podia assumir a sua missão de assistência quando a assunção dos cuidados terciários não faz parte delas e que não foi demonstrado que SW não podia beneficiar de um tratamento adequado no Líbano.

20

O órgão jurisdicional de reenvio recorda que, segundo os termos da Resolução n.o 74/83, as operações da UNRWA são realizadas «tendo em conta o bem‑estar, a proteção e o desenvolvimento humano dos refugiados da Palestina» e visam «suprir as suas necessidades básicas em matéria de saúde, de educação e de subsistência». Assim, em aplicação do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra, esta não é aplicável a um apátrida de origem palestiniana enquanto beneficiar efetivamente da assistência ou da proteção da UNRWA assim definida.

21

No seu Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12), cujo conteúdo foi reproduzido no artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, deve ser interpretado no sentido de que a cessação da proteção ou da assistência por parte de um organismo ou de uma instituição das Nações Unidas diferente do ACNUR «por qualquer razão» visa igualmente a situação de uma pessoa que, depois de ter efetivamente recorrido a essa proteção ou a essa assistência, deixa beneficiar da mesma por uma razão que escapa ao seu próprio controlo e independente da sua vontade. Incumbe às autoridades nacionais competentes do Estado‑Membro responsável pela apreciação do pedido de asilo apresentado por essa pessoa, verificar, com base numa avaliação individual do pedido, se ela foi obrigada a deixar a zona de operações deste organismo ou desta instituição, o que acontece quando essa pessoa se encontrava num estado pessoal de insegurança grave e quando o organismo ou a instituição em causa estava impossibilitado de lhe garantir, nessa zona, condições de vida conformes à missão que incumbe ao referido organismo ou à referida instituição.

22

Ora, no caso em apreço, resulta da Decisão de 9 de dezembro de 2020 do Tribunal Nacional em Matéria de Direito de Asilo que, para declarar que a proteção ou a assistência da UNRWA em relação a SW tinha cessado e que, por conseguinte, esta podia invocar de pleno direito a qualidade de refugiado, em conformidade com o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, esse órgão jurisdicional considerou que estava demonstrado que a UNRWA estava impossibilitada de prestar a SW um acesso suficiente aos cuidados de saúde de que depende a sua sobrevivência e, assim, assegurar a SW condições de vida conformes com a sua missão de assistência, até ao ponto de o colocar num estado pessoal de grave insegurança suscetível de o obrigar a abandonar o Líbano.

23

Nestas circunstâncias, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Independentemente das disposições de direito nacional que, sob certas condições, autorizam a permanência de um estrangeiro devido ao seu estado de saúde e que, se necessário, o protegem de uma medida de afastamento, devem as disposições do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da [Diretiva 2011/95] ser interpretadas no sentido de que se pode considerar que um refugiado palestiniano doente que, depois de ter efetivamente recorrido à proteção ou assistência da UNRWA, deixa o Estado ou território situado na área de atuação desse organismo, no qual tinha a sua residência habitual, com o fundamento de que nesse local não pode ter acesso suficiente aos cuidados e tratamentos que o seu estado de saúde exige e de que essa falta de cuidados implica um risco real para a sua vida ou integridade física, se encontra num estado pessoal de insegurança grave e numa situação em que a UNRWA não tem a possibilidade de lhe assegurar condições de vida conformes à sua missão?

2)

Em caso de resposta afirmativa, que critérios — relacionados, por exemplo, com a gravidade da doença ou a natureza dos cuidados necessários — permitem identificar tal situação?»

Quanto às questões prejudiciais

24

Com as suas questões prejudiciais, que importa tratar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se e, sendo caso disso, em que condições o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a proteção ou a assistência da UNRWA cessou quando esse organismo não estiver em condições de assegurar a um apátrida de origem palestiniana abrangido por essa proteção ou assistência o acesso aos cuidados e aos tratamentos médicos que o seu estado de saúde exige.

25

Para responder a essas questões, importa recordar que, nos termos do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), primeiro período, da Diretiva 2011/95, o nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se «[e]stiver abrangido pelo âmbito do ponto D do artigo 1.o da Convenção de Genebra, relativo à proteção ou assistência por parte de órgãos ou agências das Nações Unidas, com exceção do Alto‑Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados».

26

O artigo 1.o, ponto D, primeiro parágrafo, da Convenção de Genebra estipula que esta não é aplicável às pessoas que «atualmente beneficiam» de proteção ou assistência «da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados».

27

A UNRWA é um organismo das Nações Unidas que foi criado para proteger e assistir os palestinianos na sua qualidade de «refugiados da Palestina». O seu mandato abrange uma zona de operações composta por cinco setores, concretamente, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental), a Jordânia, o Líbano e a Síria.

28

Tendo em conta a missão que lhe é atribuída, a UNRWA deve ser considerada um organismo das Nações Unidas, diferente do ACNUR, que oferece proteção ou assistência, na aceção do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra.

29

Concretamente, qualquer pessoa, como SW, que esteja registada na UNRWA, pode beneficiar da proteção e da assistência desse organismo com o objetivo de servir o seu bem‑estar como refugiada [Acórdão de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑349/20, EU:C:2022:151, n.o 47 e jurisprudência referida].

30

Devido a este estatuto específico de refugiado instituído nos referidos territórios do Próximo Oriente para os palestinianos, as pessoas registadas na UNRWA estão, em princípio, ao abrigo do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), primeiro período, da Diretiva 2011/95, que corresponde ao artigo 1.o, ponto D, primeiro parágrafo, da Convenção de Genebra, excluídas do estatuto de refugiado na União [Acórdão de 13 de janeiro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑507/19, EU:C:2021:3, n.o 49 e jurisprudência referida].

31

Todavia, decorre do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, que corresponde ao artigo 1.o, ponto D, segundo parágrafo, da Convenção de Genebra, que, se a proteção ou a assistência da UNRWA cessar por qualquer razão, sem que a situação das referidas pessoas tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções pertinentes da Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas terão direito ipso facto a beneficiar do disposto na Diretiva 2011/95 [v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑349/20, EU:C:2022:151, n.o 49 e jurisprudência referida].

32

Ora, é facto assente que a situação dos beneficiários da assistência prestada pela UNRWA não foi definitivamente resolvida até hoje, como resulta, nomeadamente, das sucessivas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas.

33

No que respeita ao conceito de cessação da proteção ou da assistência da UNRWA, na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, importa precisar que esta última disposição corresponde, em substância, ao artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83, pelo que a jurisprudência relativa a esta segunda disposição é pertinente para interpretar a primeira [Acórdão de 13 de janeiro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑507/19, EU:C:2021:3, n.o 37].

34

A este respeito, na vigência da Diretiva 2004/83, é certo que o Tribunal de Justiça especificou que a mera partida da pessoa em causa da zona de operações da UNRWA, independentemente do motivo dessa partida, não pode pôr termo à exclusão do estatuto de refugiado prevista no artigo 12.o, n.o 1, alínea a), primeiro período, desta diretiva e que, por conseguinte, a simples ausência dessa zona ou a decisão voluntária de a abandonar não pode ser qualificada de cessação da assistência da UNRWA (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o., C‑364/11, EU:C:2012:826, n.os 55 e 59).

35

Todavia, o Tribunal de Justiça declarou que, ao contrário da posição defendida pelo Governo Belga no âmbito do presente reenvio prejudicial, a cessação da proteção ou da assistência fornecida por um organismo ou por uma instituição, como a UNRWA, pode resultar não apenas da própria supressão desse organismo ou dessa instituição, mas também da impossibilidade de o referido organismo ou instituição cumprir a sua missão (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o., C‑364/11, EU:C:2012:826, n.o 56).

36

Em contrapartida, quando a decisão de deixar a zona de operações da UNRWA é motivada por contingências independentes da vontade da pessoa em causa, tal situação pode levar a concluir que a assistência de que essa pessoa beneficiava cessou no sentido do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95 [v., por analogia, Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826, n.o 59)].

37

Esta interpretação é conforme com o objetivo do referido artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, que visa nomeadamente assegurar a continuidade da proteção dos refugiados da Palestina, enquanto tais, através de uma proteção ou de uma assistência efetiva e não apenas garantindo a existência de um organismo ou de uma instituição encarregada de prestar essa assistência ou proteção, até que a sua situação tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções pertinentes da Assembleia Geral das Nações Unidas [v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826, n.os 60 e 62)].

38

Neste contexto, importa salientar que, ao contrário do que os Governos Belga e Francês observaram, para determinar se a proteção ou a assistência da UNRWA cessou, na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95, devido à circunstância de uma pessoa que pediu para beneficiar de proteção internacional ter sido obrigada a deixar a zona de operações desse organismo, não é necessário demonstrar que a UNRWA ou o Estado em cujo território opera teve a intenção de causar um dano a essa pessoa ou de a privar de assistência, por ação ou por omissão. Basta demonstrar que a assistência ou a proteção da UNRWA cessou efetivamente por qualquer razão, pelo que este organismo deixou de estar em condições, por razões objetivas ou relacionadas com a situação individual da referida pessoa, de garantir a este último condições de vida conformes com a missão que lhe foi atribuída [v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑349/20, EU:C:2022:151, n.o 72].

39

A este respeito, resulta nomeadamente da Resolução n.o 74/83 que a UNRWA presta assistência sanitária aos refugiados da Palestina, uma vez que estes, cujo destino ainda não está definitivamente resolvido como foi salientado no n.o 32 do presente acórdão, continuam a ter necessidade de ajuda para suprir as suas necessidades básicas em matéria de saúde.

40

A assistência sanitária aos refugiados da Palestina no que respeita às suas necessidades essenciais faz parte da missão da UNRWA, pelo que a impossibilidade de esta última, por qualquer razão, assegurar essa assistência sanitária implica a cessação da assistência da UNRWA na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95.

41

A este respeito, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 50, 61 e 62 das suas conclusões, a missão da UNRWA em matéria sanitária consiste na prestação de cuidados e medicamentos que respondam às necessidades básicas das pessoas que requerem a assistência da UNRWA, independentemente da qualidade dos cuidados ou dos medicamentos necessários para esse efeito. Esta missão não pode, por conseguinte, depender da sua capacidade operacional de prestar tais cuidados e medicamentos.

42

Com efeito, como observou a Comissão, a interpretação defendida pelos Governos Belga e Francês, segundo a qual, quando uma prestação de assistência específica não é fornecida pela UNRWA, se deve considerar que essa prestação não está abrangida pela missão da UNRWA, pelo que essa não prestação não pode implicar a declaração da cessação da assistência desse organismo, equivaleria a reduzir o conceito de «missão» que incumbe à UNRWA apenas às prestações efetivamente fornecidas por esta, com exclusão das que, embora abrangidas pelo mandato do referido organismo, não são dispensadas devido, nomeadamente, a restrições orçamentais. Esta interpretação exporia os interessados ao risco de não poderem, na prática, beneficiar de nenhuma proteção internacional efetiva, tendo em conta, por um lado, a falha da UNRWA e, por outro, a sua exclusão de princípio do estatuto de refugiado.

43

Contudo, a impossibilidade de prestar cuidados ou tratamentos específicos não pode, por si só, justificar a conclusão de que a proteção ou a assistência da UNRWA cessou, na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95.

44

Com efeito, segundo a jurisprudência, para se poder concluir que a proteção ou a assistência da UNRWA cessou e, por conseguinte, que a pessoa em causa é obrigada a deixar a zona de operações desse organismo, é necessário que essa pessoa se encontre num estado pessoal de insegurança grave e que o referido organismo esteja impossibilitado de lhe assegurar, nessa zona, condições de vida conformes à missão de que está incumbido (Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o., C‑364/11, EU:C:2012:826, n.o 63).

45

Resulta do exposto que, por um lado, o facto de as prestações de saúde asseguradas pela UNRWA se situarem a um nível inferior àquelas de que poderia beneficiar se o estatuto de refugiado lhe fosse concedido num Estado‑Membro não basta para considerar que foi obrigado a deixar a zona de operações da UNRWA.

46

Por outro lado, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 80 e 81 das suas conclusões, deve considerar‑se que um apátrida de origem palestiniana foi obrigado a abandonar essa zona no caso de a impossibilidade de receber os cuidados necessários ao seu estado de saúde por parte da UNRWA fazer com que esse apátrida corra um risco real de morte iminente ou um risco real de ficar exposto a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde ou a uma redução significativa da sua esperança de vida.

47

Compete ao juiz nacional verificar a existência desse risco com base numa avaliação individual de todos os elementos pertinentes. [v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), C‑349/20, EU:C:2022:151, n.o 50 e jurisprudência referida].

48

Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder às questões prejudiciais que o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a proteção ou a assistência da UNRWA cessou quando esse organismo não estiver em condições de assegurar a um apátrida de origem palestiniana abrangido por essa proteção ou assistência o acesso aos cuidados e aos tratamentos médicos sem os quais este último corre um risco real de morte iminente ou um risco real de ser exposto a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde ou a uma redução significativa da sua esperança de vida. Cabe ao juiz nacional verificar a existência desse risco.

Quanto às despesas

49

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 12.o, n.o 1, alínea a), segundo período, da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

a proteção ou a assistência da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) cessou quando esse organismo não estiver em condições de assegurar a um apátrida de origem palestiniana abrangido por essa proteção ou assistência o acesso aos cuidados e aos tratamentos médicos sem os quais este último corre um risco real de morte iminente ou um risco real de ser exposto a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde ou a uma redução significativa da sua esperança de vida. Cabe ao juiz nacional verificar a existência desse risco.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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