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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62022CJ0211

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 29 de junho de 2023.
Super Bock Bebidas, S. A., e o. contra Autoridade da Concorrência.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Reenvio prejudicial — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Artigo 101.° TFUE — Acordos verticais — Preços mínimos de revenda fixados por um fornecedor aos seus distribuidores — Conceito de “restrição da concorrência por objeto” — Conceito de “acordo” — Prova da concordância de vontades entre o fornecedor e os seus distribuidores — Prática que abrange quase todo o território de um Estado‑Membro — Afetação do comércio entre Estados‑Membros — Regulamento (CE) n.° 2790/1999 e Regulamento (UE) n.° 330/2010 — Restrição grave.
Processo C-211/22.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:529

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

29 de junho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Artigo 101.o TFUE — Acordos verticais — Preços mínimos de revenda fixados por um fornecedor aos seus distribuidores — Conceito de “restrição da concorrência por objeto” — Conceito de “acordo” — Prova da concordância de vontades entre o fornecedor e os seus distribuidores — Prática que abrange quase todo o território de um Estado‑Membro — Afetação do comércio entre Estados‑Membros — Regulamento (CE) n.o 2790/1999 e Regulamento (UE) n.o 330/2010 — Restrição grave»

No processo C‑211/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Portugal), por Decisão de 24 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de março de 2022, no processo

Super Bock Bebidas, S.A.,

AN,

BQ

contra

Autoridade da Concorrência,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de secção, M. Safjan, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Super Bock Bebidas, S.A., de AN e de BQ, por J. Caimoto Duarte, R. da Silva, F. Espregueira Mendes, R. Mesquita Guimarães, A. Navarro de Noronha, R. Sarabando Pereira, A. Veloso Pedrosa e J. Whyte, advogados,

em representação da Autoridade da Concorrência, por S. Assis Ferreira e A. Cruz Nogueira, advogadas,

em representação do Governo português, por C. Alves e P. Barros da Costa, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por K. Boskovits, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agente,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch e G. Eberhard, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por S. Baches Opi, P. Berghe e P. Caro de Sousa, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE e do artigo 4.o, alínea a), do Regulamento (UE) n.o 330/2010 da Comissão, de 20 de abril de 2010, relativo à aplicação do artigo 101.o, n.o 3, do [TFUE] a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas (JO 2010, L 130, p. 1), bem como das Orientações relativas às Restrições Verticais (JO 2010, C 130, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Super Bock Bebidas, S.A. (a seguir «Super Bock»), AN e BQ à Autoridade da Concorrência (Portugal) a propósito da legalidade da decisão desta no sentido de declarar que a Super Bock, AN e BQ cometeram uma infração às regras da concorrência e de lhes aplicar coimas a esse título.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O Regulamento n.o 330/2010 sucedeu, com efeitos a partir de 1 de junho de 2010, ao Regulamento (CE) n.o 2790/1999 da Comissão, de 22 de dezembro de 1999, relativo à aplicação do n.o 3 do artigo 81.o do[CE] a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas (JO 1999, L 336, p. 21). Em conformidade com o seu artigo 10.o, segundo parágrafo, o Regulamento n.o 330/2010 caducou em 31 de maio de 2022.

4

Os considerandos 5 e 10 do Regulamento n.o 330/2010, aos quais correspondem, em substância, os considerandos 5 e 10 do Regulamento n.o 2790/1999, tinham a seguinte redação:

«(5)

O benefício da isenção por categoria estabelecido pelo presente regulamento deve ser reservado aos acordos verticais em relação aos quais se pode considerar com suficiente segurança que preenchem as condições estabelecidas no artigo 101.o, n.o 3, [TFUE].

[...]

(10)

O presente regulamento não deve isentar acordos verticais que contenham restrições suscetíveis de restringir a concorrência e de prejudicar os consumidores e que não sejam indispensáveis à obtenção dos efeitos de aumento de eficiência; em especial, os acordos verticais que contenham determinados tipos de restrições graves da concorrência, como preços de revenda mínimos e fixos, bem como certos tipos de proteção territorial, devem ser excluídos do benefício da isenção por categoria estabelecida pelo presente regulamento, independentemente da quota de mercado das empresas em causa.»

5

O artigo 1.o, n.o 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.o 330/2010 continha as seguintes definições:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

a)

“Acordo vertical”, um acordo ou prática concertada entre duas ou mais empresas, exercendo cada uma delas as suas atividades, para efeitos do acordo ou da prática concertada, a um nível diferente da cadeia de produção ou distribuição e que digam respeito às condições em que as partes podem adquirir, vender ou revender certos bens ou serviços;

b)

“Restrição vertical”, uma restrição da concorrência num acordo vertical abrangida pelo n.o 1 do artigo 101.o [TFUE]».

6

No artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2790/1999, figuravam, em substância, definições idênticas.

7

Os artigos 2.° dos Regulamentos n.os 2790/1999 e 330/2010 enunciavam uma regra de isenção. De acordo com o artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 330/2010, que corresponde, em substância, ao artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2790/1999:

«Nos termos do artigo 101.o, n.o 3, [TFUE] e sem prejuízo do disposto no presente regulamento, o artigo 101.o, n.o 1, [TFUE], é declarado inaplicável aos acordos verticais.

Esta isenção é aplicável na medida em que estes acordos contenham restrições verticais.»

8

Os artigos 4.° dos Regulamentos n.os 2790/1999 e 330/2010 incidiam sobre as «restrições graves» que não podiam beneficiar da isenção por categoria. O artigo 4.o do Regulamento n.o 330/2010, que corresponde, em substância, ao artigo 4.o do Regulamento n.o 2790/1999, dispunha:

«A isenção prevista no artigo 2.o não é aplicável aos acordos verticais que, direta ou indiretamente, isoladamente ou em combinação com outros fatores que sejam controlados pelas partes, tenham por objeto:

a)

A restrição da capacidade de o comprador estabelecer o seu preço de venda, sem prejuízo da possibilidade de o fornecedor impor um preço de venda máximo ou de recomendar um preço de venda, desde que estes não correspondam a um preço de venda fixo ou mínimo, em resultado de pressões ou de incentivos oferecidos por qualquer uma das partes;

[...]»

Direito português

9

O artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da Lei n.o 19/2012, que aprova o Novo Regime Jurídico da Concorrência, revogando as Leis n.os 18/2003, de 11 de junho, e 39/2006, de 25 de agosto, e procede à segunda alteração à Lei n.o 2/99, de 13 de janeiro (Diário da República n.o 89/2012, Série I, de 8 de maio de 2012; a seguir «NRJC»), prevê:

«São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em:

a)

Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação [...]».

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10

A Super Bock é uma sociedade com sede em Portugal, que produz e comercializa cervejas, águas engarrafadas, refrigerantes, chá fresco, vinhos, sangrias e sidras. A sua atividade principal assenta nos mercados das cervejas e das águas engarrafadas.

11

AN e BQ são, respetivamente, membro do conselho de administração da Super Bock e diretor do seu departamento comercial para as vendas no canal de distribuição «HORECA», também dito canal «on‑trade».

12

Este canal, no contexto do qual ocorreu o comportamento em causa no processo principal, corresponde à compra de bebidas em hotéis, restaurantes e cafés, a saber, para consumo fora de casa. Para efeitos da distribuição de bebidas através do referido canal em Portugal, a Super Bock celebrou acordos de distribuição exclusiva com distribuidores independentes. Estes revendem as bebidas adquiridas à Super Bock na quase globalidade do território português. Apenas algumas áreas são abastecidas mediante vendas diretas efetuadas pela Super Bock. Trata‑se de Lisboa, Porto, Madeira, Coimbra (até 2013) e, a partir de 2014, das ilhas do Pico e do Faial.

13

Segundo os factos dados como provados pelo órgão jurisdicional de reenvio, a Super Bock, pelo menos durante o período compreendido entre 15 de maio de 2006 e 23 de janeiro de 2017, fixou e impôs de forma regular, generalizada e sem quaisquer alterações, a todos esses distribuidores, as condições comerciais que estes tinham de cumprir na revenda dos produtos que a mesma lhes vendia. Em especial, a Super Bock fixou preços mínimos de revenda com o objetivo de garantir a manutenção de um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional.

14

Concretamente, a direção de vendas da Super Bock aprovava, regra geral mensalmente, uma tabela de preços mínimos de revenda, que encaminhava aos distribuidores. Os gestores de rede ou de mercado da Super Bock transmitiam os preços de revenda aos distribuidores, de forma oral ou por escrito (via mensagens de correio eletrónico). Esses preços eram, regra geral, aplicados pelos distribuidores. Por seu turno, estes últimos, no âmbito de um sistema de controlo e monitorização estabelecido pela Super Bock, tinham a obrigação de lhe reportar informação relativa à revenda, por exemplo, em termos de quantidades e valores. Em caso de incumprimento dos preços, os distribuidores sujeitavam‑se, em conformidade com as condições comerciais fixadas pela Super Bock, a diversas formas de «retaliação», como o corte dos incentivos financeiros, constituídos por descontos comerciais na compra dos produtos e reembolso de descontos por eles praticados na revenda, bem como o corte no fornecimento e reposição de stocks. Assim, arriscavam‑se a perder a garantia de margens de distribuição positivas que lhes era dada nas referidas condições comerciais.

15

A Autoridade da Concorrência considerou que esta prática de fixação, por meios diretos e indiretos, dos preços e outras condições aplicáveis à revenda de produtos por uma rede de distribuidores independentes no canal de distribuição HORECA em quase todo o território português constituía uma infração às regras da concorrência, na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), do NRJC e do artigo 101.o, n.o 1, alínea a), TFUE. Por conseguinte, aplicou coimas à Super Bock, a AN e a BQ.

16

Estes últimos impugnaram a decisão da Autoridade da Concorrência no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (Portugal), que manteve a decisão.

17

Foi da sentença deste tribunal que a Super Bock, AN e BQ interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (Portugal), que é o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

18

Atentos os argumentos que lhe foram apresentados e as questões prejudiciais propostas pelas partes no litígio que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário obter esclarecimentos sobre a interpretação do artigo 101.o TFUE. Em substância, interroga‑se, primeiro, sobre a questão de saber se o conceito de «restrição da concorrência por objeto» é suscetível de abranger, e eventualmente em que condições, um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda. Segundo, as suas interrogações incidem sobre o conceito de «acordo» quando um fornecedor impõe preços mínimos de revenda aos seus distribuidores. Terceiro, interroga‑se sobre se o conceito de «afetação do comércio entre Estados‑Membros» pode visar as consequências de um acordo de distribuição que apenas é aplicável na quase globalidade do território de um Estado‑Membro.

19

Nestas circunstâncias, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A fixação vertical de preços mínimos é, per se, uma infração por objeto, que não implica uma análise prévia do grau suficiente de nocividade do acordo?

2)

A demonstração do elemento do tipo “acordo”, da infração por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores, implica a concreta demonstração de que os distribuidores seguiram, na prática, os preços fixados, designadamente, através de prova direta?

3)

O (i.) envio de tabelas com indicação de preços mínimos e de margens de distribuição (ii.) a solicitação de preços de venda pelos distribuidores (iii.) a apresentação de queixas pelos distribuidores — quando consideravam que os preços de revenda que lhes eram impostos não eram competitivos ou quando verificavam que distribuidores concorrentes estavam desalinhados — (iv.) a existência de mecanismos de monitorização de preços (médios mínimos) e (v.) de medidas de retaliação (sem demonstração da sua concreta aplicação), são elementos suficientes para considerar que existiu uma infração por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores?

4)

À luz da alínea a) do n.o 1 do artigo 101.o [TFUE], da alínea a) do artigo 4.o do Regulamento n.o 330/2010 e das Orientações da Comissão Europeia relativas às restrições verticais e da jurisprudência da União [Europeia], presume‑se que o acordo entre fornecedor e distribuidores, de fixação (vertical) de preços mínimos e de outras condições comerciais aplicáveis à revenda representa um grau suficiente de nocividade para a concorrência, sem prejuízo da análise de eventuais efeitos económicos positivos decorrentes da dita prática, nos termos do n.o 3 do artigo 101.o [TFUE]?

5)

É compatível com a alínea a) do n.o 1 do artigo 101.o [TFUE] e com a jurisprudência da União […] a decisão judicial que considera verificada a existência do elemento do tipo objetivo “acordo” entre fornecedor e distribuidores com base:

i)

na fixação e imposição, pelo primeiro aos segundos, de forma regular, generalizada e sem quaisquer alterações durante o período da prática, das condições comerciais que aqueles têm que cumprir na revenda dos produtos que adquirem ao fornecedor, designadamente os preços que cobram aos seus clientes, principalmente em termos de preços mínimos ou de preços mínimos médios;

ii)

na transmissão dos preços de revenda impostos de forma oral ou escrita (através de mensagens de correio eletrónico);

iii)

na falta de capacidade dos distribuidores para a autodeterminação na fixação dos seus preços de revenda;

iv)

na prática habitual e generalizada (em conversa telefónica ou presencial) de os colaboradores do fornecedor solicitarem aos distribuidores o respeito pelos preços indicados;

v)

no cumprimento generalizado, pelos distribuidores, dos preços de revenda fixados pelo fornecedor (com exceção de dissídios pontuais) e na verificação de que o comportamento dos distribuidores no mercado correspondia, generalizadamente, aos termos delineados pelo fornecedor;

vi)

na circunstância de, para não se encontrarem em situações de incumprimento, muitas vezes serem os próprios distribuidores a solicitar a indicação dos preços de revenda ao fornecedor;

vii)

na verificação de que frequentemente os distribuidores se queixam dos preços a praticar ao fornecedor, ao invés de praticarem simplesmente outros preços;

viii)

na fixação, pelo fornecedor, de margens de distribuição (reduzidas) e na assunção, pelos distribuidores, [de] que essas margens correspondem ao nível de remuneração dos seus negócios;

ix)

na constatação de que, pela imposição de margens diminutas, o fornecedor impunha um preço mínimo de revenda sob pena de as margens dos distribuidores serem negativas;

x)

na política de descontos concedidos pelo fornecedor aos distribuidores com base no preço de revenda que praticassem efetivamente — sendo o preço mínimo previamente fixado pelo fornecedor o patamar das reposições que este fazia em sell out;

xi)

na necessidade de os distribuidores — atenta, em muitos casos, a margem de distribuição negativa — cumprirem os níveis de preço de revenda impostos pelo fornecedor; a prática de preços de revenda inferiores só se verificava em situações muito pontuais e mediante pedido dos distribuidores ao fornecedor de um novo desconto em sell out;

xii)

na fixação, pelo fornecedor, e observância, pelos distribuidores, de descontos máximos a aplicar aos respetivos clientes, conduzindo a um preço mínimo de revenda, sob pena de a margem de distribuição ser negativa;

xiii)

na abordagem direta do fornecedor juntos dos clientes dos distribuidores e na fixação das condições de revenda posteriormente impostas a estes;

xiv)

na intervenção do fornecedor, mediante iniciativa dos distribuidores, no sentido de ser aquele a decidir pela aplicação de determinado desconto comercial ou a renegociar as condições comerciais de revenda; e

xv)

na solicitação pelos distribuidores de autorização, junto do fornecedor, para realização de certo negócio com determinadas condições a fim de assegurar a sua margem de distribuição?

6)

Um acordo de fixação de preços mínimos de revenda, com as características apontadas e com abrangência em quase todo o território nacional, é suscetível de afetar o comércio entre os Estados‑Membros?»

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

20

Sem suscitar a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial nem pôr formalmente em causa a admissibilidade de determinadas questões, a Super Bock e a Comissão Europeia manifestaram dúvidas, respetivamente, sobre a inteligibilidade da quinta questão e a necessidade da segunda questão para efeitos do litígio no processo principal.

21

Importa recordar que o reenvio prejudicial, que é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, assenta num diálogo de juiz a juiz. Sendo da competência desse órgão jurisdicional determinar se a interpretação de uma regra de direito da União é necessária para lhe permitir decidir o litígio que lhe é submetido, tendo em conta o mecanismo do processo previsto no artigo 267.o TFUE, incumbe também ao referido órgão jurisdicional decidir de que forma essas questões devem ser formuladas. Embora o mesmo órgão jurisdicional possa convidar as partes no litígio que lhe foi submetido a sugerirem formulações suscetíveis de serem aceites para o enunciado das questões prejudiciais, só a ele incumbe, porém, decidir em última análise tanto da forma como do conteúdo das questões (v., neste sentido, Acórdão de 21 de julho de 2011, Kelly, C‑104/10, EU:C:2011:506, n.os 63 a 65).

22

As questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 23 de janeiro de 2018, F. Hoffmann‑La Roche e o., C‑179/16, EU:C:2018:25, n.o 45 e jurisprudência referida).

23

Quanto a este último aspeto, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, que passou a estar refletida no artigo 94.o, alíneas a) e b), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam. Estas exigências são particularmente válidas no domínio da concorrência, que se caracteriza por situações de facto e de direito complexas (v., neste sentido, Acórdão de 26 de janeiro de 1993, Telemarsicabruzzo e o., C‑320/90 a C‑322/90, EU:C:1993:26, n.os 6 e 7, e de 19 de janeiro de 2023, Unilever Italia Mkt. Operations, C‑680/20, EU:C:2023:33, n.o 18 e jurisprudência referida).

24

Além disso, é indispensável, como enuncia o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo, que o pedido de decisão prejudicial exponha as razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação ou a validade de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que esse órgão estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal.

25

No caso em apreço, no espírito de cooperação inerente ao diálogo de juiz a juiz e para permitir ao Tribunal de Justiça proferir uma decisão o mais útil possível, teria sido desejável que o órgão jurisdicional de reenvio expusesse, de forma mais sintética e clara, a sua própria compreensão do litígio que lhe foi submetido, bem como das questões de direito subjacentes ao seu pedido de decisão prejudicial, em vez de reproduzir, de forma excessivamente longa, inúmeros excertos das peças dos autos que lhe foram submetidos. Do mesmo modo, embora seja certo que o órgão jurisdicional de reenvio expôs as razões que o conduziram a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, teria sido do interesse de uma cooperação útil que procedesse igualmente a uma reformulação das questões que lhe foram sugeridas pelas partes no processo principal, a fim de evitar sobreposições inúteis entre essas questões. Teria sido igualmente útil clarificar as premissas jurídicas e factuais em que essas questões assentam, de forma que permitisse ao Tribunal de Justiça dar respostas mais precisas e direcionadas.

26

Nestas condições, embora o presente reenvio prejudicial seja admissível porque preenche os requisitos do artigo 94.o do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça só está em condições de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio indicações mínimas e genéricas, para o orientar na aplicação do artigo 101.o TFUE nas circunstâncias do litígio no processo principal.

Quanto à primeira e quarta questões, relativas ao conceito de «restrição da concorrência por objeto», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE

27

Com a primeira e quarta questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que a constatação de que um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda constitui uma «restrição da concorrência por objeto» pode ser feita sem analisar previamente se esse acordo revela um grau suficiente de nocividade para a concorrência ou se se pode presumir que esse acordo possui, per se, tal grau de nocividade.

28

A título preliminar, deve recordar‑se que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, que é baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, o papel deste último se limita à interpretação das disposições do direito da União sobre as quais é questionado, no caso em apreço sobre o artigo 101.o, n.o 1, TFUE. Assim, não cabe ao Tribunal de Justiça mas ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, em última análise, se, tendo em conta todos os elementos pertinentes que caracterizam a situação no processo principal e o contexto económico e jurídico em que esta se insere, o acordo em causa tem por objeto restringir a concorrência (Acórdão de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 51 e jurisprudência referida).

29

Todavia, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode, com base nos elementos do processo que lhe foram submetidos, prestar esclarecimentos destinados a orientar o órgão jurisdicional de reenvio na sua interpretação, para que este possa decidir o litígio (Acórdão de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise,C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 51 e jurisprudência referida).

30

A título principal, cabe recordar que, nos termos do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, são incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre Estados‑Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno.

31

Para ser abrangido pela proibição enunciada nesta disposição, um acordo tem de ter «por objetivo ou efeito» impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça desde o Acórdão de 30 de junho de 1966, LTM (56/65, EU:C:1966:38), o caráter alternativo deste requisito, indicado pela conjunção «ou», conduz, antes de mais, à necessidade de considerar o próprio objeto do acordo (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C‑345/14, EU:C:2015:784, n.o 16 e jurisprudência referida, e de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.os 54 e 55 jurisprudência referida). Deste modo, quando o objeto anticoncorrencial de um acordo esteja provado, não há que verificar os seus efeitos na concorrência (Acórdão de 20 de janeiro de 2016, Toshiba Corporation/Comissão, C‑373/14 P, EU:C:2016:26, n.o 25 e jurisprudência referida).

32

Além disso, o conceito de «restrição da concorrência por objeto» deve ser interpretado restritivamente. Assim, este conceito só pode ser aplicado a certos tipos de coordenação entre empresas que revelem um grau suficiente de nocividade para a concorrência para que se possa considerar que não é necessário examinar os seus efeitos (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C‑345/14, EU:C:2015:784, n.o 18 e jurisprudência referida, e de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 60 e jurisprudência referida).

33

Dito isto, o facto de um acordo constituir um acordo vertical não exclui a possibilidade de o mesmo comportar uma «restrição da concorrência por objeto». Com efeito, embora sejam, por natureza, frequentemente menos prejudiciais para a concorrência do que os acordos horizontais, os acordos verticais também podem, em determinadas circunstâncias, ter um potencial restritivo particularmente elevado (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de março de 2013, Allianz Hungária Biztosító e o., C‑32/11, EU:C:2013:160, n.o 43, e de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 61).

34

O critério jurídico essencial para determinar se um acordo, quer horizontal quer vertical, comporta uma «restrição da concorrência por objeto» reside assim na constatação de que tal acordo apresenta, em si mesmo, um grau suficiente de nocividade para a concorrência (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C‑67/13 P, EU:C:2014:2204, n.o 57, e de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 59 e jurisprudência referida).

35

Para apreciar se este critério está preenchido, deve atender‑se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que se insere. No âmbito da apreciação deste contexto, há também que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (Acórdão de 14 de março de 2013, Allianz Hungária Biztosító e o., C‑32/11, EU:C:2013:160, n.o 36 e jurisprudência referida).

36

Além disso, quando as partes no acordo invocam os efeitos pró‑concorrenciais que lhe estão associados, esses elementos devem ser tidos em conta enquanto elementos de contexto desse acordo. Com efeito, desde que sejam comprovados, relevantes, específicos do acordo em causa e suficientemente significativos, esses efeitos podem permitir suscitar dúvidas razoáveis quanto ao caráter suficientemente nocivo para a concorrência do acordo [v., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.os 103, 105 e 107].

37

Decorre desta jurisprudência que, para apreciar se um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda comporta uma «restrição da concorrência por objeto», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se esse acordo representa um grau suficiente de nocividade para a concorrência, à luz dos critérios recordados nos n.os 35 e 36 do presente acórdão.

38

No âmbito desta apreciação que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, este também deverá ter em conta a circunstância, que o próprio salientou, de um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda ser suscetível de integrar a categoria das «restrições graves», na aceção do artigo 4.o, alínea a), dos Regulamentos n.os 2790/1999 e 330/2010, enquanto elemento do contexto jurídico.

39

Em contrapartida, esta circunstância não dispensa o órgão jurisdicional de reenvio de proceder à apreciação referida no n.o 37 do presente acórdão.

40

Com efeito, o artigo 4.o, alínea a), do Regulamento n.o 2790/1999, lido à luz do seu considerando 10, bem como o artigo 4.o, alínea a), do Regulamento n.o 330/2010, lido à luz do seu considerando 10, têm por único objeto excluir certas restrições verticais do âmbito da isenção por categoria. Essa isenção, enunciada no artigo 2.o de ambos os regulamentos, lido à luz dos respetivos considerandos 5, aproveita a acordos verticais presumivelmente não nocivos para a concorrência.

41

Em contrapartida, as referidas disposições dos Regulamentos n.os 2790/1999 e 330/2010 não contêm indicações sobre a qualificação das referidas restrições como restrição «por objeto» ou «por efeito». Além disso, como a Comissão observou nas suas observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça, os conceitos de «restrição grave» e de «restrição por objeto» não são conceptualmente permutáveis e não coincidem necessariamente. Por conseguinte, há que proceder a um exame casuístico das restrições excluídas da referida isenção, à luz do artigo 101.o, n.o 1, TFUE.

42

Daqui resulta que o órgão jurisdicional de reenvio não pode prescindir da apreciação referida no n.o 37 do presente acórdão, pelo facto de um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda constituir, em todos os casos, ou constituir presumivelmente, uma restrição por objeto.

43

À luz de todas as considerações anteriores, há que responder à primeira e quarta questões que o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que a constatação de que um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda comporta uma «restrição da concorrência por objeto» só pode ser feita depois de ter sido determinado que esse acordo revela um grau suficiente de nocividade para a concorrência, tendo em conta o teor das suas disposições, os objetivos que visa alcançar, bem como todos os elementos que caracterizam o contexto económico e jurídico em que o mesmo se insere.

Quanto à terceira e quinta questões, relativas ao conceito de «acordo», na aceção do artigo 101.o TFUE

44

Com a terceira e quinta questões, que importa examinar em segundo lugar e em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que existe um «acordo», na aceção deste artigo, quando um fornecedor impõe aos seus distribuidores preços mínimos de revenda dos produtos que comercializa.

45

O órgão jurisdicional de reenvio procura, assim, ser esclarecido sobre o conceito de «acordo», na aceção da referida disposição, para poder determinar se, nas circunstâncias do litígio no processo principal, existe um acordo dessa natureza entre a Super Bock e os seus distribuidores. Uma vez que a sua interrogação se baseia em inúmeras hipóteses factuais enumeradas na terceira e quinta questões submetidas, parcialmente divergentes e algumas das quais são contestadas pela Super Bock, importa recordar que, em conformidade com a separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, recordada no n.o 28 do presente acórdão, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre os factos do litígio no processo principal.

46

Não obstante, à leitura dos factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio, pode considerar‑se que estas questões se inscrevem num contexto em que a Super Bock envia, de forma regular, aos seus distribuidores tabelas de preços mínimos de revenda e de margens de distribuição. Resulta desses factos apurados que os preços de revenda assim indicados são, na prática, seguidos pelos distribuidores, que, por vezes, solicitam essa indicação e não hesitam em queixar‑se à Super Bock dos preços enviados, ao invés de praticarem outros preços. Por último, segundo os referidos factos, a indicação dos preços mínimos de revenda é acompanhada de mecanismos de monitorização dos preços e o incumprimento desses preços pode dar lugar a medidas de retaliação e conduzir à aplicação de margens de distribuição negativas.

47

Feita esta precisão preliminar, importa recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para que haja «acordo», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, basta que as empresas em causa tenham manifestado a sua vontade comum de se comportarem no mercado de uma forma determinada (Acórdão de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.o 94 e jurisprudência referida).

48

Um acordo não pode, assim, basear‑se na expressão de uma política puramente unilateral de uma parte num contrato de distribuição (v., neste sentido, Acórdão de 6 de janeiro de 2004, BAI e Comissão/Bayer, C‑2/01 P e C‑3/01 P, EU:C:2004:2, n.os 101 e 102).

49

Todavia, um ato ou um comportamento aparentemente unilaterais constituem um acordo, na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, se forem a expressão da vontade concordante de, pelo menos, duas partes, não sendo a forma como se manifesta essa concordância, per se, determinante (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2006, Comissão/Volkswagen, C‑74/04 P, EU:C:2006:460, n.o 37).

50

Essa vontade concordante das partes pode resultar quer das cláusulas do contrato de distribuição em causa, quando contém uma instrução expressa para observar os preços mínimos de revenda ou, pelo menos, autoriza o fornecedor a impor esses preços, quer do comportamento das partes e, nomeadamente, da eventual existência de uma aceitação, expressa ou tácita, por parte dos distribuidores, de um convite a observar preços mínimos de revenda (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de janeiro de 2004, BAI e Comissão/Bayer, C‑2/01 P e C‑3/01 P, EU:C:2004:2, n.os 100 e 102, e de 13 de julho de 2006, Comissão/Volkswagen, C‑74/04 P, EU:C:2006:460, n.os 39, 40 e 46).

51

Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar as circunstâncias do litígio no processo principal à luz desta jurisprudência.

52

Neste contexto, o facto de um fornecedor enviar de forma regular aos distribuidores tabelas com indicação de preços mínimos por si determinados e as margens de distribuição, bem como o facto de lhes pedir que as cumpram, sob a sua monitorização, sob pena de medidas de retaliação e com o risco, em caso de incumprimento dessas medidas, de aplicação de margens de distribuição negativas, são outros tantos elementos suscetíveis de levar à conclusão de que esse fornecedor procura impor aos seus distribuidores preços mínimos de revenda. Embora, per se, esses factos pareçam refletir um comportamento aparentemente unilateral do referido fornecedor, o mesmo não acontece se os distribuidores tiverem respeitado esses preços. A este título, a circunstância de os preços mínimos de revenda serem, na prática, seguidos pelos distribuidores ou de a sua indicação ser solicitada por estes últimos, os quais, embora se queixem ao fornecedor dos preços indicados, não praticam outros preços por iniciativa própria, podem ser suscetíveis de refletir a aceitação por parte dos distribuidores da fixação, pelo fornecedor, de preços mínimos de revenda.

53

À luz de todas as considerações anteriores, há que responder à terceira e quinta questões que o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que existe um «acordo», na aceção deste artigo, quando um fornecedor impõe aos seus distribuidores preços mínimos de revenda dos produtos que comercializa, na medida em que a imposição desses preços pelo fornecedor e o seu respeito pelos distribuidores reflitam a expressão da vontade concordante dessas partes. Essa vontade concordante pode resultar quer das cláusulas do contrato de distribuição em causa, quando este contiver uma instrução expressa para respeitar preços mínimos de revenda ou, pelo menos, autorizar o fornecedor a impor esses preços, quer do comportamento das partes e, nomeadamente, da eventual existência de uma aceitação, expressa ou tácita, por parte dos distribuidores, de uma instrução para respeitar preços mínimos de revenda.

Quanto à segunda questão, relativa à prova da existência de um «acordo», na aceção do artigo 101.o TFUE

54

Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 101.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a existência de um «acordo», na aceção deste artigo, entre um fornecedor e os seus distribuidores só pode ser demonstrada através de prova direta.

55

Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, na falta de regras da União relativas aos princípios que regulam a apreciação das provas e o nível de prova exigido no âmbito de um processo nacional de aplicação do artigo 101.o TFUE, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro estabelecê‑las, por força do princípio da autonomia processual, desde que, no entanto, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2016, Eturas e o., C‑74/14, EU:C:2016:42, n.os 30 a 32 e jurisprudência referida).

56

Ora, também resulta desta jurisprudência que o princípio da efetividade exige que a prova de uma violação do direito da concorrência da União possa ser feita não apenas através de provas diretas mas também através de indícios, desde que estes sejam objetivos e concordantes. Com efeito, a existência de uma prática concertada ou de um acordo deve, na maior parte dos casos, ser inferida de um determinado número de coincidências e de indícios que, considerados no seu todo, podem constituir, na falta de outra explicação coerente, a prova de uma violação das regras de concorrência (Acórdão de 21 de janeiro de 2016, Eturas e o., C‑74/14, EU:C:2016:42, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida).

57

Daqui resulta que a existência de um «acordo», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, sobre preços mínimos de revenda pode ser demonstrada não só através de provas diretas mas também com base em coincidências e indícios concordantes, na medida em que deles se possa inferir que um fornecedor convidou os seus distribuidores para seguirem esses preços e, na prática, estes respeitaram os preços indicados pelo fornecedor.

58

À luz de todas as considerações anteriores, há que responder à segunda questão que o artigo 101.o TFUE, lido em conjugação com o princípio da efetividade, deve ser interpretado no sentido de que a existência de um «acordo», na aceção deste artigo, entre um fornecedor e os seus distribuidores pode ser demonstrada não só através de provas diretas mas também através de indícios objetivos e concordantes, dos quais se possa inferir a existência desse acordo.

Quanto à sexta questão, relativa ao conceito de «afetação do comércio entre Estados‑Membros», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE

59

Com a sexta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda abranger quase a globalidade, mas não a totalidade, do território de um Estado‑Membro impede que esse acordo possa afetar o comércio entre Estados‑Membros.

60

Segundo jurisprudência constante, para que se cumpra o requisito de que os acordos, na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, devem ser suscetíveis de afetar o comércio entre Estados‑Membros, é necessário que os acordos permitam prever com um grau suficiente de probabilidade, com base num conjunto de elementos de facto e de direito, a sua influência, direta ou indireta, atual ou potencial, sobre as correntes comerciais entre Estados‑Membros, de modo que se possa temer que entravem a realização de um mercado único entre Estados‑Membros. É, além disso, necessário que esta influência não seja insignificante (Acórdãos de 11 de julho de 2013, Ziegler/Comissão, C‑439/11 P, EU:C:2013:513, n.o 92 e jurisprudência referida, e de 16 de julho de 2015, ING Pensii, C‑172/14, EU:C:2015:484, n.o 48 e jurisprudência referida).

61

A repercussão nas trocas entre Estados‑Membros resulta em geral da reunião de diversos fatores que, isoladamente considerados, não são necessariamente determinantes. Para verificar se um acordo, decisão ou prática concertada afeta sensivelmente o comércio entre Estados‑Membros, é necessário examiná‑lo no seu contexto económico e jurídico (Acórdão de 11 de julho de 2013, Ziegler/Comissão, C‑439/11 P, EU:C:2013:513, n.o 93 e jurisprudência referida).

62

A este respeito, o facto de um acordo, decisão ou prática concertada ter apenas por objeto a comercialização de produtos num único Estado‑Membro não é suficiente para excluir a possibilidade de o comércio entre Estados‑Membros ser afetado. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que um acordo, decisão ou prática concertada que abranja todo o território de um Estado‑Membro tem, pela sua própria natureza, por efeito consolidar barreiras de caráter nacional, entravando assim a interpenetração económica pretendida pelo Tratado FUE (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de novembro de 1975, Groupement des fabricants de papiers peints de Belgique e o./Comissão, 73/74, EU:C:1975:160, n.os 25 e 26, e de 16 de julho de 2015, ING Pensii, C‑172/14, EU:C:2015:484, n.o 49 e jurisprudência referida).

63

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça declarou que um acordo, decisão ou prática concertada que abranja apenas uma parte do território de um Estado‑Membro pode, em determinadas circunstâncias, ser suscetível de afetar o comércio entre Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 3 de dezembro de 1987, Aubert, 136/86, EU:C:1987:524, n.o 18).

64

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, tendo em conta o contexto económico e jurídico do acordo em causa no processo principal, este é suscetível de afetar sensivelmente o comércio entre Estados‑Membros.

65

À luz de todas as considerações anteriores, há que responder à sexta questão que o artigo 101.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda abranger quase a globalidade, mas não a totalidade, do território de um Estado‑Membro não impede que esse acordo possa afetar o comércio entre Estados‑Membros.

Quanto às despesas

66

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 101.o, n.o 1, TFUE

deve ser interpretado no sentido de que:

a constatação de que um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda comporta uma «restrição da concorrência por objeto» só pode ser feita depois de ter sido determinado que esse acordo revela um grau suficiente de nocividade para a concorrência, tendo em conta o teor das suas disposições, os objetivos que visa alcançar, bem como todos os elementos que caracterizam o contexto económico e jurídico em que o mesmo se insere.

 

2)

O artigo 101.o, n.o 1, TFUE

deve ser interpretado no sentido de que:

existe um «acordo», na aceção deste artigo, quando um fornecedor impõe aos seus distribuidores preços mínimos de revenda dos produtos que comercializa, na medida em que a imposição desses preços pelo fornecedor e o seu respeito pelos distribuidores reflitam a expressão da vontade concordante dessas partes. Essa vontade concordante pode resultar quer das cláusulas do contrato de distribuição em causa, quando este contiver uma instrução expressa para respeitar preços mínimos de revenda ou, pelo menos, autorizar o fornecedor a impor esses preços, quer do comportamento das partes e, nomeadamente, da eventual existência de uma aceitação, expressa ou tácita, por parte dos distribuidores, de uma instrução para respeitar preços mínimos de revenda.

 

3)

O artigo 101.o TFUE, lido em conjugação com o princípio da efetividade,

deve ser interpretado no sentido de que:

a existência de um «acordo», na aceção deste artigo, entre um fornecedor e os seus distribuidores pode ser demonstrada não só através de provas diretas mas também através de indícios objetivos e concordantes, dos quais se possa inferir a existência desse acordo.

 

4)

O artigo 101.o, n.o 1, TFUE

deve ser interpretado no sentido de que:

a circunstância de um acordo de fixação vertical de preços mínimos de revenda abranger quase a globalidade, mas não a totalidade, do território de um Estado‑Membro não impede que esse acordo possa afetar o comércio entre Estados‑Membros.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: português.

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