Escolha as funcionalidades experimentais que pretende experimentar

Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62022CJ0638

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 16 de fevereiro de 2023.
T.C. e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie.
Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Rapto internacional de crianças — Convenção da Haia de 1980 — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 11.o — Pedido de regresso de uma criança — Decisão transitada em julgado que ordena o regresso de uma criança — Legislação de um Estado‑Membro que prevê a suspensão, por força da lei, da execução desta decisão quando o pedido seja apresentado por determinadas autoridades nacionais.
Processo C-638/22 PPU.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:103

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

16 de fevereiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Rapto internacional de crianças — Convenção da Haia de 1980 — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 11.o — Pedido de regresso de uma criança — Decisão transitada em julgado que ordena o regresso de uma criança — Legislação de um Estado‑Membro que prevê a suspensão, por força da lei, da execução desta decisão quando o pedido seja apresentado por determinadas autoridades nacionais»

No processo C‑638/22 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Polónia), por Decisão de 12 de outubro de 2022, entrado no Tribunal de Justiça em 13 de outubro de 2022, no processo

T.C.,

Rzecznik Praw Dziecka,

Prokurator Generalny

sendo intervenientes:

M.C.,

Prokurator Prokuratury Okręgowej we Wrocławiu,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de secção, M. Safjan, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretária: M. Siekierzyńska, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de dezembro de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação de T.C., por I. Antkowiak, adwokat, Bieszczad, radca prawny, e D. Kosobucki, adwokat,

em representação de M.C., por A. Śliwicka, adwokat,

em representação do Prokurator Generalny, por S. Bańko, R. Hernand e E. Tkacz,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

em representação do Governo belga, por M. Jacobs, C. Pochet e Van Regemorter, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por A. Daniel e E. Timmermans, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por C. S. Schillemans, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por J. Hottiaux e S. Noë, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de janeiro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1), bem como dos artigos 22.o e 24.o, do artigo 27.o, n.o 6, e do artigo 28.o, n.os 1 e 2, do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças (JO 2019, L 178, p. 1, e retificação no JO 2020, L 347, p. 52), lidos à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir, «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo instaurado por T.C., que é pai de duas crianças, tendo em vista a execução de uma decisão de regresso à Irlanda dos seus filhos, transferidos para a Polónia por M.C., a mãe das crianças.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980 (a seguir «Convenção da Haia de 1980») tem por objetivo, como resulta do seu preâmbulo, nomeadamente, proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual. Esta Convenção, que entrou em vigor em 1 de dezembro de 1983, foi ratificada por todos os Estados‑Membros da União Europeia.

4

Nos termos do artigo 1.o, alínea a), desta Convenção, a mesma tem por objeto, nomeadamente, assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente.

5

O artigo 2.o da referida Convenção enuncia:

«Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respetivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência.»

6

O artigo 3.o da mesma Convenção dispõe:

«A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:

a)

Tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e

b)

Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

[…]»

7

O artigo 11.o, primeiro parágrafo, da Convenção da Haia de 1980 prevê:

«As autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança.»

8

O artigo 12.o, primeiro e segundo parágrafos, desta Convenção tem a seguinte redação:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.o e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

A autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.»

9

Nos termos do artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), da referida Convenção:

«Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

[…]

b)

Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, […] ficar numa situação intolerável.»

Direito da União

Regulamento n.o 2201/2003

10

Os considerandos 17 e 33 do Regulamento n.o 2201/2003 enunciavam:

«(17)

Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a Convenção [da] Haia de […] 1980, completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.o Os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efetuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança raptada.

[…]

(33)

O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na [Carta]; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o da [Carta].»

11

O artigo 11.o, n.os 1 e 3, deste Regulamento dispunha:

«1.   Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na [Convenção da Haia de 1980], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

[…]

3.   O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança, nos termos do disposto no n.o 1, deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional.

Sem prejuízo do disposto no primeiro parágrafo, o tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.»

Regulamento 2019/1111

12

O artigo 22.o do Regulamento 2019/1111 dispõe:

«Os artigos 23.o a 29.o e o capítulo VI do presente regulamento são aplicáveis e complementam a Convenção da Haia de 1980 quando uma pessoa, instituição ou outro organismo que alegue a violação do direito de guarda pedir, diretamente ou com a assistência de uma autoridade central, a um tribunal de um Estado‑Membro que profira uma decisão, baseada na Convenção da Haia de 1980, que ordene o regresso de uma criança com menos de 16 anos que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.»

13

O artigo 24.o deste regulamento prevê:

«1.   O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança a que se refere o artigo 22.o[] deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto no direito nacional.

2.   Sem prejuízo do n.o 1, um tribunal de primeira instância deve proferir a sua decisão o mais tardar seis semanas após a instauração do processo, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.

3.   Exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem, um tribunal de instância superior deve proferir a sua decisão o mais tardar seis semanas após terem sido efetuadas todas as diligências processuais e o tribunal estiver em condições de examinar o recurso, através de uma audição ou de outro meio.»

14

O artigo 27.o, n.o 6, do referido regulamento enuncia:

«Uma decisão que ordene o regresso da criança pode ser declarada executória a título provisório, não obstante qualquer recurso, se o regresso da criança antes da decisão sobre o recurso for exigido pelo superior interesse da criança.»

15

O artigo 28.o do mesmo Regulamento tem a seguinte redação:

«1.   A autoridade competente em matéria de execução à qual seja apresentado um pedido de execução de uma decisão que ordena o regresso de uma criança para outro Estado‑Membro deve acelerar a tramitação do pedido.

2.   Caso a decisão a que se refere o n.o 1 não tenha sido executada no prazo de seis semanas a contar da data do início do processo de execução, a parte que requer a execução ou a autoridade central do Estado‑Membro de execução tem o direito de solicitar uma justificação da demora por parte da autoridade competente em matéria de execução.»

16

Nos termos do artigo 100.o do Regulamento 2019/1111:

«1.   O presente regulamento é aplicável apenas às ações judiciais intentadas, aos atos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 1 de agosto de 2022 ou numa data posterior.

2.   O [Regulamento 2201/2003] continua a ser aplicável às decisões proferidas em ações judiciais intentadas, aos atos autênticos exarados e aos acordos que se tornaram aplicáveis no Estado‑Membro em que foram celebrados antes de 1 de agosto de 2022 e que sejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.»

Direito polaco

17

O artigo 388.o, n.o 1, do Kodeks postępowania cywilnego (Código de Processo Civil) prevê:

«Quando a execução da decisão for suscetível de causar um prejuízo irreparável a uma das partes, o tribunal de segunda instância pode, a pedido de uma delas, suspender a execução da decisão impugnada até que o processo de recurso esteja concluído. Se for negado provimento ao recurso, o tribunal de segunda instância também pode suspender a execução da decisão do tribunal de primeira instância.»

18

O artigo 5182, n.o 1, deste Código dispõe:

«O tribunal de segunda instância nos processos relativos à retirada de uma pessoa sujeita à responsabilidade parental ou que esteja ao cuidado de outrem, instaurados com base na Convenção da Haia de 1980, é o Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Polónia).»

19

Nos termos do artigo 5191, n.os 21 e 22, do referido Código:

«21.   Também é possível interpor recurso de cassação em processos relativos à retirada de uma pessoa sujeita à autoridade parental ou que esteja ao cuidado de outrem, instaurados com base na Convenção da Haia de 1980.

22.   Nos processos referidos no n.o 21, o Prokurator Generalny [(Procurador‑Geral)], o Rzecznik Praw Dziecka [(Provedor da Criança)] e o Rzecznik Praw Obywatelskich [(Provedor de Justiça)] também podem interpor recurso no prazo de quatro meses a contar da data em que o despacho transitou em julgado.»

20

A ustawa o zmianie ustawy Kodeks postępowania cywilnego (Lei que altera o Código de Processo Civil), de 7 de abril de 2022 (Dz. U. de 2022, posição 1098), que entrou em vigor em 24 de junho de 2022 (a seguir, «Lei de 2022») alterou o Código de Processo Civil, introduzindo diversas disposições relativas à suspensão das decisões proferidas com base na Convenção da Haia de 1980.

21

Assim, o artigo 3881 deste Código, aditado ao mesmo pela Lei de 2022, tem a seguinte redação:

«1.   Em processos relativos à retirada de uma pessoa sujeita a autoridade parental ou ao cuidado de outrem conduzidos com base na [Convenção da Haia de 1980], a pedido de uma das entidades referidas no artigo 5191, n.o 22, apresentado ao órgão jurisdicional a que se refere o artigo 5182, n.o 1, no prazo máximo de duas semanas a contar da data em que o despacho relativo à retirada de uma pessoa sujeita a autoridade parental ou ao cuidado de outrem transitou em julgado, a execução desse despacho suspende‑se por força da lei.

2.   A suspensão da execução do despacho referido no n.o 1 cessa se a entidade referida no artigo 5191, n.o 22, não interpuser recurso de cassação no prazo de dois meses a contar da data em que o despacho transitou em julgado.

3.   Caso a entidade referida no artigo 5191, n.o 22, interponha recurso de cassação no prazo de dois meses a contar da data em que o despacho referido no n.o 1 transitou em julgado, a suspensão da execução desse despacho é prorrogada por força da lei até ao termo do processo de cassação.

4.   Uma entidade que tenha apresentado um pedido de suspensão da execução do despacho referido no n.o 1 pode revogá‑lo no prazo de dois meses a contar da data em que o despacho transitou em julgado, a menos que a entidade referida no artigo 5191, n.o 22 tenha interposto recurso de cassação.

5.   Em resultado da desistência do pedido de suspensão da execução do despacho referido no n.o 1, esse despacho torna‑se executório.»

22

O artigo 3883 do mesmo Código, aditado a este último pela Lei de 2022, estabelece o seguinte:

«A interposição de um recurso extraordinário nos termos do artigo 89.o, da ustawa o Sądzie Najwyższym [(Lei relativa ao Supremo Tribunal), de 8 de dezembro de 2017 (Dz. U. de 2021, posição 1904, e de 2022, posição 480)], num processo relativo à retirada de uma pessoa sujeita a autoridade parental ou ao cuidado de outrem, instaurado com base na Convenção da Haia de 1980, suspende, por força da lei, a execução da decisão de retirada da pessoa sujeita a autoridade parental ou ao cuidado de outrem até à conclusão do referido processo de recurso.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

23

T.C. e M.C., ambos cidadãos polacos, são os progenitores das crianças N.C. e M.C.(1) (a seguir, conjuntamente, «crianças»), nascidas na Irlanda, respetivamente, em 2011 e em 2017. Esta família reside há vários anos neste Estado‑Membro, no qual T.C. e M.C. têm um emprego estável. Esta última está atualmente de baixa médica por um período longo.

24

No verão de 2021, M.C., com o acordo de T.C., foi de férias para a Polónia com as crianças. Em setembro de 2021, M.C. informou T.C. de que iria permanecer permanentemente neste Estado‑Membro com as crianças. T.C. nunca consentiu nessa deslocação permanente das mesmas.

25

Em 18 de novembro de 2021, T.C. intentou no Sąd Okręgowy we Wrocławiu (Tribunal Regional de Breslávia, Polónia), uma ação mediante a qual pede que seja ordenado a M.C. que assegure o regresso à Irlanda das crianças, com base na Convenção da Haia de 1980. Por Despacho de 15 de junho de 2022, este órgão jurisdicional ordenou a M.C. que assegurasse esse regresso no prazo de sete dias a contar da data em que o referido despacho transitasse em julgado.

26

M.C. recorreu desse despacho para o Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia), o órgão jurisdicional de reenvio, que, por Despacho de 21 de setembro de 2022, negou provimento ao recurso, considerando que M.C. não podia invocar nenhum motivo de recusa do regresso das crianças à Irlanda. Este último despacho adquiriu força executória em 28 de setembro de 2022, sem que M.C. tivesse cumprido a ordem de assegurar o regresso destas crianças à Irlanda.

27

Em 29 de setembro de 2022, T.C. requereu ao órgão jurisdicional de reenvio uma cópia desse Despacho de 21 de setembro de 2022, acompanhada de uma menção relativa à sua força executiva.

28

Em 30 de setembro de 2022 e em 5 de outubro de 2022, respetivamente, o Provedor da Criança e o Procurador‑Geral apresentaram pedidos de suspensão da execução dos Despachos de 15 de junho e de 21 de setembro de 2022, transitados em julgado, ao abrigo do artigo 3881, n.o 1, do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022.

29

Em 21 de novembro de 2022, o Provedor da Criança e o Procurador‑Geral interpuseram recursos de cassação do Despacho de 21 de setembro de 2022 para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia).

30

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, regra geral, as decisões de mérito proferidas por um órgão jurisdicional de segunda instância transitam em julgado e têm força executiva, mesmo que sejam objeto de recurso de cassação para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal). Antes da entrada em vigor da Lei de 2022, a única exceção a esta regra era a prevista no artigo 388.o do Código de Processo Civil. Este artigo permite ao órgão jurisdicional de segunda instância suspender a força executiva de uma decisão transitada em julgado até à conclusão do processo perante o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal), se a execução desta decisão for suscetível de causar um prejuízo irreparável a uma parte.

31

Ora, nos termos do artigo 3881 do Código de Processo Civil, aditado a este último pela Lei de 2022, o Procurador‑Geral, o Provedor da Criança e o Provedor de Justiça (a seguir, conjuntamente, as «autoridades competentes») dispõem agora do poder de obter a suspensão da execução de uma decisão que ordena o regresso de uma criança nos termos da Convenção da Haia de 1980, mediante a apresentação de um requerimento nesse sentido ao Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia), no prazo máximo de duas semanas a contar da data em que esta decisão transitou em julgado. Resulta das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que as autoridades competentes não são obrigadas a fundamentar o seu requerimento. Este requerimento implica uma suspensão, por força da lei, por um período de, pelo menos, dois meses.

32

Com efeito, se estas autoridades não interpuserem um recurso de cassação de uma decisão de regresso para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) dentro desse prazo, a suspensão da execução da mesma cessa. Em contrapartida, se tal recurso for interposto dentro do referido prazo, esta suspensão, nos termos do artigo 3881, n.o 3, do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022, é prorrogada por força da lei até à conclusão do processo perante o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal).

33

Por outro lado, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, mesmo que o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) negasse provimento a este recurso de cassação, as referidas autoridades poderiam obter novamente a mencionada suspensão nos termos do artigo 3883 do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022, interpondo um recurso extraordinário ao abrigo deste artigo.

34

Em face destas considerações, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a compatibilidade do artigo 3881 do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022, com a exigência da celeridade subjacente ao Regulamento n.o 2201/2003 e, nomeadamente, com o artigo 11.o, n.o 3, deste regulamento.

35

Além disso, este órgão jurisdicional de reenvio salienta que a legislação polaca em vigor prevê, no essencial, que as entidades que não sejam órgãos jurisdicionais têm a faculdade de provocar a suspensão da execução de uma decisão judicial transitada em julgado, sem que o exercício de tal faculdade esteja sujeito a qualquer fiscalização jurisdicional. No entender do órgão jurisdicional de reenvio, esta circunstância suscita questões sobre se tal legislação está em conformidade com o artigo 47.o da Carta, uma vez que priva as partes num procedimento de regresso de uma tutela jurisdicional efetiva.

36

Por outro lado, tendo em conta o facto de a entrada em vigor da Lei de 2022 ocorrer apenas poucos dias antes da data da entrada em vigor do Regulamento 2019/1111, que reforça a obrigação de celeridade subjacente ao Regulamento n.o 2201/2003, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a compatibilidade com o princípio da cooperação leal das disposições aditadas ao Código de Processo Civil por esta lei.

37

Por último, caso o Tribunal de Justiça confirme que o regulamento se opõe à referida lei, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se deverá considerar a mesma inaplicável, em conformidade com o princípio do primado do direito da União.

38

Nestas circunstâncias, o Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia) decidiu suspender o processo e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 11.o, n.o 3, do [Regulamento n.o 2201/2003] e [os artigos 22.o e 24.o], 27.o, n.o 6, e 28.o, n.os 1 e 2, do [Regulamento 2019/1111], em conjugação com o artigo 47.o da [Carta], opõem‑se à aplicação de uma disposição do direito nacional segundo a qual, em processos relativos à retirada de uma pessoa sujeita a responsabilidade parental, ou que esteja ao cuidado de outrem, conduzidos com base na [Convenção da Haia de 1980] se suspende por força da lei a execução do despacho relativo à retirada de uma pessoa sujeita a responsabilidade parental ou que esteja ao cuidado de outrem, mediante pedido do Procurador‑Geral, do Provedor da Criança ou do Provedor de Justiça, apresentado ao Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia) no prazo máximo de duas semanas a contar da data em que o referido despacho transitou em julgado?»

Quanto ao pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente

39

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

40

Como fundamento do seu pedido, este órgão jurisdicional invocou razões relacionadas com o superior interesse das crianças. Particularmente, a relação entre o progenitor e os filhos, assim como o bem‑estar destas crianças, poderiam sofrer um prejuízo irreparável devido à situação de afastamento das referidas crianças do pai, aumentado pelo exercício, por parte do Provedor da Criança e do Procurador‑Geral, da sua faculdade de obter a suspensão da execução da decisão de regresso à Irlanda.

41

Em primeiro lugar, importa constatar que o presente pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação, nomeadamente, das disposições do Regulamento n.o 2201/2003 que foi adotado, designadamente, com base no artigo 61.o, alínea c), CE, atual artigo 67.o TFUE, e das disposições do Regulamento 2019/1111, que foi adotado com fundamento no artigo 81.o, n.o 3, TFUE. Estes atos inserem‑se, pois, no título V da terceira parte do TFUE, relativo ao Espaço de liberdade, segurança e justiça. Por conseguinte, este pedido pode ser sujeito à tramitação prejudicial urgente.

42

Em segundo lugar, no que respeita ao requisito relativo à urgência, resulta da decisão de reenvio que as crianças estão separadas do seu pai há mais de um ano e que o prolongamento desta situação poderá prejudicar seriamente a relação futura destas crianças com o pai.

43

Nestas circunstâncias, a terceira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 26 de outubro de 2022, mediante proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido de tramitação urgente do presente reenvio prejudicial, apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

44

O Procurador‑Geral e, em substância, M.C., contestam a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

45

Primeiro, segundo o Procurador‑Geral, a questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tem caráter hipotético e não é necessária para efeitos da resolução do litígio no processo principal. O mesmo afirma que, com efeito, o litígio já está decidido com trânsito em julgado e este órgão jurisdicional não tem qualquer competência no que diz respeito à suspensão da execução dos despachos de regresso transitados em julgado, proferidos em primeira e segunda instância, uma vez que esta suspensão opera por força da lei.

46

Segundo, o Procurador‑Geral alega que esta questão é inadmissível, porquanto o referido órgão jurisdicional pede a interpretação do Regulamento 2019/1111, embora este Regulamento não seja aplicável ratione temporis ao caso em apreço.

47

Em primeiro lugar, importa recordar que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 24 de novembro de 2022, Varhoven administrativen sad (Revogação da disposição impugnada), C‑289/21, EU:C:2022:920, n.o 24 e jurisprudência referida].

48

Assim, a rejeição pelo Tribunal de Justiça de um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 24 de novembro de 2022, Varhoven administrativen sad (Revogação da disposição impugnada), C‑289/21, EU:C:2022:920, n.o 25 e jurisprudência referida].

49

Além disso, importa recordar que os termos «julgamento da causa», na aceção do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, abrangem todo o processo que leva à decisão do órgão jurisdicional de reenvio. Esses termos devem ser objeto de uma interpretação lata, a fim de evitar que numerosas questões processuais sejam consideradas inadmissíveis e não possam ser objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça e que este último não possa conhecer da interpretação de todas as disposições do direito da União que o órgão jurisdicional de reenvio é obrigado a aplicar (Acórdão de 21 de novembro de 2019, Procureur‑Generaal bij de Hoge Raad der Nederlanden, C‑678/18, EU:C:2019:998, n.o 25 e jurisprudência referida).

50

A este respeito, em primeiro lugar, resulta da decisão de reenvio e das observações apresentadas pelas partes na audiência que, por um lado, T.C. apresentou no órgão jurisdicional de reenvio um pedido para a execução do Despacho de 21 de setembro de 2022, no qual este órgão jurisdicional ordenou o regresso das crianças à Irlanda. Por outro lado, em aplicação do artigo 3881 do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022, o referido órgão jurisdicional deveria deferir os pedidos de suspensão desta execução apresentados pelo Procurador‑Geral e pelo Provedor da Criança.

51

Nestas circunstâncias, tal como salienta o advogado‑geral no n.o 46 das Conclusões, aparentemente foram apresentados pedidos contraditórios ao órgão jurisdicional de reenvio, por um lado, por T.C. e, por outro, pelo Procurador‑Geral e pelo Provedor da Criança. Estes pedidos refletem a existência de uma «controvérsia» entre estas partes, relativa à execução do Despacho de regresso de 21 de setembro de 2022 e sobre a qual o órgão jurisdicional de reenvio tem de pronunciar‑se, no quadro dos referidos pedidos, na aceção do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE.

52

Em segundo lugar, no que diz respeito à relação entre a questão prejudicial colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio e a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, resulta claramente da decisão de reenvio que esta questão se destina a permitir ao órgão jurisdicional determinar se as disposições dos Regulamentos n.o 2201/2003 e 2019/1111 devem ser interpretadas no sentido de que se opõem ao artigo 3881 do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022 e se o mesmo é obrigado, se for o caso, a não aplicar este artigo. Deste modo, o referido órgão jurisdicional demonstra suficientemente que a resposta do Tribunal de Justiça à referida questão é «necessária», na aceção do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, para que o mesmo possa proferir uma decisão sobre a eventual suspensão da execução de decisão de regresso em causa.

53

Acresce que a admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial não é suscetível de ser posta em causa pelo argumento do Procurador‑Geral de que o Regulamento 2019/1111 não é aplicável ratione temporis ao presente processo. Com efeito, quando não resulte de forma manifesta que a interpretação de um ato de direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, a objeção relativa à inaplicabilidade desse ato ao processo principal não se refere à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, mas enquadra‑se na apreciação de mérito das questões que são submetidas (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 30, bem como de 19 de dezembro de 2019, Dobersberger, C‑16/18, EU:C:2019:1110, n.o 21).

54

Em face do exposto, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto à questão prejudicial

55

A título preliminar, importa salientar que, embora a questão submetida tenha por objeto a interpretação tanto das disposições do Regulamento n.o 2201/2003 como das do Regulamento 2019/1111, só o primeiro destes regulamentos é aplicável, ratione temporis, ao litígio no processo principal. Com efeito, resulta do artigo 100.o, n.o 2, do Regulamento 2019/1111 que o Regulamento n.o 2201/2003 continua a ser aplicável, após a entrada em vigor do Regulamento 2019/1111, às ações intentadas antes de 1 de agosto de 2022. No presente caso, tal como já foi referido no n.o 25 do presente Acórdão, T.C. interpôs o seu recurso para o Sąd Okręgowy we Wrocławiu (Tribunal Regional de Breslávia) em 18 de novembro de 2021.

56

A este respeito, embora o pedido de T.C., com vista a obter a execução do Despacho de regresso de 21 de setembro de 2022 tenha sido apresentado após 1 de agosto de 2022, a verdade é que resulta das informações de que o Tribunal de Justiça dispõe que este pedido não consubstancia um processo independente, mas uma etapa do processo de regresso que teve origem no recurso apresentado por T.C. em 18 de novembro de 2021, para que fosse ordenado o regresso das crianças à Irlanda.

57

Nestas circunstâncias, deve considerar‑se que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, em conjugação com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que confere às autoridades que não sejam órgãos jurisdicionais a faculdade de obter a suspensão por força da lei, por um período de, pelo menos, dois meses, da execução de uma decisão de regresso proferida com base na Convenção da Haia de 1980, sem terem de fundamentar o seu pedido de suspensão.

58

A este respeito, há que recordar que o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 prevê que o tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional. O tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.

59

Em primeiro lugar, segundo jurisprudência constante, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 67].

60

Antes de mais, resulta da redação do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 e, nomeadamente, da utilização dos termos «acelerar» e «mais expedito», que, quando uma criança tenha sido deslocada ou retida ilicitamente num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro em que a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação ou da sua retenção ilícitas, os órgãos jurisdicionais competentes dos Estados‑Membros devem adotar uma decisão de regresso da criança em causa num prazo particularmente breve e estrito. Tal decisão deve, em princípio, ser adotada o mais tardar seis semanas após a instauração de um processo perante estes órgãos jurisdicionais, com recurso aos procedimentos mais expeditos previstos pelo direito nacional. Esta regra só pode ser derrogada em «circunstâncias excecionais».

61

Em seguida, tal interpretação é apoiada pelo contexto no qual o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 se insere e, nomeadamente, pelas disposições pertinentes da Convenção da Haia de 1980.

62

Com efeito, o Regulamento n.o 2201/2003 completa e precisa, nomeadamente no seu artigo 11.o, as regras da Convenção da Haia de 1980 que regem o procedimento de regresso das crianças ilicitamente deslocadas. Assim, os artigos 8.o a 11.o desta Convenção e o artigo 11.o deste Regulamento constituem um conjunto normativo indivisível, aplicável aos procedimentos de regresso de crianças ilicitamente deslocadas dentro da União [v., neste sentido, Parecer 1/13 (Adesão de Estados terceiros à Convenção da Haia), de 14 de outubro de 2014, EU:C:2014:2303, n.os 77 e 78].

63

Devido à sobreposição e à relação estreita existente entre as disposições do referido Regulamento e as daquela Convenção, as disposições desta última são suscetíveis de ter incidência no sentido, no alcance e na eficácia das regras do mesmo Regulamento [v., neste sentido, Parecer 1/13 (Adesão de Estados terceiros à Convenção da Haia), de 14 de outubro de 2014, EU:C:2014:2303, n.o 85].

64

Assim, em primeiro lugar, em conformidade com o preâmbulo e com o artigo 1.o, alínea a), da Convenção da Haia de 1980, esta última tem como objetivo o regresso imediato da criança em causa ao seu local de residência habitual. Em segundo lugar, o artigo 2.o, segundo período, desta Convenção obriga as autoridades dos Estados Contratantes a recorrerem aos seus procedimentos de urgência para tratarem um pedido de regresso. Em terceiro lugar, nos termos do artigo 11.o, primeiro parágrafo, da referida Convenção, as autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança. Em quarto lugar, o artigo 13.o da mesma Convenção enuncia de modo restritivo as situações em que a autoridade judicial do Estado Contratante requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança. Particularmente, nos termos do artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), da Convenção da Haia de 1980, esta autoridade não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

65

Resulta de todas estas disposições que, de acordo com a Convenção da Haia de 1980, quando uma criança tenha sido retirada ilicitamente no seu local de residência habitual, essa criança deve regressar imediatamente ao abrigo dos procedimentos de urgência previstos pelo direto nacional. Por outro lado, só em circunstâncias excecionais e, especialmente, em caso de risco grave para a referida criança, é que este regresso pode não ser ordenado.

66

Por último, as finalidades do Regulamento n.o 2201/2003 e, nomeadamente, do seu artigo 11.o, n.o 3, vêm igualmente em apoio das constatações expressas nos n.os 60 e 65 do presente Acórdão.

67

Assim, em primeiro lugar, importa ter em mente que o Regulamento n.o 2201/2003 perfilha a conceção segundo a qual deve prevalecer o superior interesse da criança. O referido Regulamento visa dissuadir particularmente a deslocação ou retenção ilícitas de crianças entre Estados‑Membros e, se isso acontecer, obter o regresso da criança sem demora (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, EU:C:2008:406, n.os 51 e 52).

68

Em segundo lugar, como enuncia o considerando 17, do Regulamento n.o 2201/2003, em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso. Além disso, os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso unicamente em casos específicos devidamente justificados.

69

Em terceiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um dos objetivos do artigo 11.o desse regulamento é o restabelecimento do statu quo ante, ou seja, da situação que existia anteriormente à deslocação ou retenção ilícitas da criança (v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 61).

70

Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça já declarou que um processo de regresso é, por natureza, um processo célere, uma vez que visa garantir, como previsto no preâmbulo da Convenção da Haia de 1980 e no considerando 17 do Regulamento n.o 2201/2003, o regresso imediato da criança (Acórdão de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 57).

71

Assim, resulta de uma interpretação literal, contextual e teleológica do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 que esta disposição, por um lado, exige que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que seja chamado a decidir o pedido de regresso de uma criança ilicitamente retirada do local da sua residência habitual decida tal pedido, em princípio, o mais tardar no prazo de seis semanas após a instauração do processo, utilizando os meios mais expeditos previstos pelo direito nacional. Por outro lado, só em casos precisos e excecionais, devidamente justificados, é que o regresso de uma criança ilicitamente retirada pode não ser ordenado.

72

É certo que as obrigações resultantes deste artigo 11.o, n.o 3, dizem respeito ao processo de adoção de uma decisão de regresso. No entanto, deve considerar‑se, como o advogado‑geral refere no n.o 59 das Conclusões, que o imperativo de eficiência e da celeridade que rege a adoção de uma decisão de regresso também é aplicável às autoridades nacionais no quadro da execução de tal decisão. Com efeito, o referido artigo 11.o, n.o 3, ficaria privado de efeito útil se o direito nacional permitisse a suspensão da execução de uma decisão transitada em julgado que ordenasse o regresso de uma criança.

73

Ora, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a aplicação das normas nacionais de direito material e processual não deve prejudicar o efeito útil do Regulamento n.o 2201/2003 (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, EU:C:2008:406, n.o 82).

74

Importa ainda salientar que, ao impor obrigações com vista à adoção e, por conseguinte, à execução, com a maior brevidade possível, de uma decisão que permita o regresso rápido da criança ao local da sua residência habitual na sequência de um rapto, o Regulamento 2201/2003, tal como resulta do seu considerando 33, pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais garantidos pela Carta e, nomeadamente, dos direitos fundamentais da criança, enunciados no artigo 24.o da Carta.

75

A este respeito, o artigo 7.o da Carta consagra o direito ao respeito pela vida privada e familiar e deve ser conjugado com a obrigação de tomada em consideração do interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, desta. Há assim que ter em conta a necessidade da criança, expressa no artigo 24.o, n.o 3, da Carta, de manter regularmente relações pessoais com ambos os progenitores [v., neste sentido, Acórdão de 17 de novembro de 2022, Belgische Staat (Refugiada menor casada), C‑230/21, EU:C:2022:887, n.o 48].

76

Ora, segundo o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, uma vez que esta contém direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. O artigo 53.o da Carta acrescenta, para este efeito, que nenhuma disposição desta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar, em sede de aplicação do direito da União, os direitos reconhecidos, nomeadamente, pela CEDH [v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, CJ (Decisão de entrega diferida em razão de processos penais), C‑492/22 PPU, EU:C:2022:964, n.o 79 e jurisprudência referida].

77

No que diz respeito ao artigo 8.o CEDH, que corresponde ao artigo 7.o, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Orde van Vlaamse Balies e o., C‑694/20, EU:C:2022:963, n.o 25), o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos declarou que, nos processos relativos a decisões proferidas com base na Convenção da Haia de 1980, o caráter adequado de uma medida deve nomeadamente ser apreciado em função da celeridade na implementação da mesma. Estes processos necessitam de um tratamento urgente, uma vez que a passagem do tempo pode ter consequências irreparáveis nas relações entre as crianças e o progenitor que não habita com elas. Os atrasos no processo podem, por si só, permitir constatar que as autoridades não respeitaram as obrigações positivas que lhes incumbem por força da CEDH (v., a este respeito, TEDH, 28 de abril de 2015, Ferrari c. Roménia, CE:ECHR:2015:0428JUD000171410, § 49).

78

Em segundo lugar, é à luz da interpretação do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, acima exposta nos números anteriores do presente acórdão, que deve ser determinado se esta disposição se opõe a uma legislação nacional como a descrita no n.o 57 do presente acórdão.

79

Segundo as informações fornecidas ao Tribunal de Justiça, nos termos daquela legislação, a execução de uma decisão de regresso é suspensa por força da lei durante um período de, pelo menos, dois meses quando uma das autoridades competentes apresenta um pedido nesse sentido ao Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia) no prazo de duas semanas a contar da data em que tal decisão transitou em julgado.

80

Além disso, se, após a apresentação deste pedido, a referida autoridade interpuser um recurso de cassação para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) contra a referida decisão, a suspensão da execução desta última é prorrogada por força da lei até à conclusão do processo de recurso nesse órgão jurisdicional.

81

Assim, em primeiro lugar, a apresentação deste pedido tem por efeito suspender, durante um período de, pelo menos, dois meses, a execução da decisão de regresso de uma criança ao local da sua residência habitual, mesmo que a referida decisão tenha transitado em julgado. Este regresso pode ser suspenso por um período muito superior se as autoridades habilitadas decidirem interpor um recurso de cassação contra a referida decisão. Assim, a apresentação de tal pedido, tendo em conta as exigências de celeridade subjacentes ao artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, visto que tem por efeito suspender, por força da lei, a execução de uma tal decisão de regresso, é suscetível de privar esta disposição de efeito útil. Além disso, estas autoridades poderiam obter novamente a suspensão da execução de uma decisão de regresso com fundamento no artigo 3883 do Código de Processo Civil, aditado a este último pela Lei de 2022, interpondo um recurso extraordinário nos termos deste artigo.

82

A este respeito, é forçoso constatar que a suspensão, pelo prazo de dois meses, da execução de uma decisão de regresso transitada em julgado excede, em si mesma, o prazo no qual, em conformidade com a referida disposição do Regulamento n.o 2201/2003, esta decisão deve ser adotada.

83

Em segundo lugar, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que a execução de uma decisão de regresso se suspende, por força da lei, perante o simples pedido das autoridades competentes. Estas autoridades, que ademais não são órgãos jurisdicionais, não são obrigadas a fundamentar o seu pedido e o Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia) é obrigado a deferir este pedido sem poder exercer o seu poder de fiscalização judicial a este respeito. Por conseguinte, a legislação em causa no processo principal não parece ser suscetível de garantir que, tal como foi lembrado no n.o 71 do presente acórdão, o regresso da criança ao seu local de residência habitual não pode ser suspenso a não ser em casos específicos e excecionais e, em qualquer caso, não garante que tal suspensão seja devidamente fundamentada.

84

Acresce que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 47.o da Carta se opõe a que uma autoridade pública possa impedir a execução de uma decisão judicial, uma vez que o direito a uma tutela jurisdicional efetiva seria ilusório se a ordem jurídica de um Estado‑Membro permitisse que uma decisão judicial transitada em julgado fosse inoperante em detrimento de uma das partes (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de junho de 2016, Toma e Biroul Executorului Judecătoresc Horaţiu‑Vasile Cruduleci, C‑205/15, EU:C:2016:499, n.o 43, bem como jurisprudência referida; de 29 de julho de 2019, Torubarov, C‑556/17, EU:C:2019:626, n.os 72 e 73, bem como de 19 de dezembro de 2019, Deutsche Umwelthilfe, C‑752/18, EU:C:2019:1114, n.o 36).

85

À luz das considerações precedentes, há que constatar que uma legislação nacional como a descrita no n.o 57 do presente Acórdão é suscetível de prejudicar o efeito útil do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003.

86

Esta conclusão não é posta em causa pelo argumento do Governo polaco segundo o qual, em substância, tal legislação é indispensável para permitir às autoridades competentes a interposição de um recurso de cassação para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) e impedir assim que as crianças em causa sofram um prejuízo irreparável em resultado do caráter executório de uma decisão de regresso transitada em julgado, se a mesma vier a ser revogada por aquele órgão jurisdicional.

87

Com efeito, como alega o órgão jurisdicional de reenvio, por um lado, antes do aditamento do artigo 3881 no Código de Processo Civil pela Lei de 2022, o artigo 388.o deste Código já previa um mecanismo que permitia ao Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia) suspender a execução de uma decisão de regresso transitada em julgado, sendo caso disso, a pedido de uma das autoridades competentes, se este órgão jurisdicional entendesse que a criança em causa poderia ser exposta a um risco grave de perigo físico ou psíquico em caso de regresso.

88

Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a proteção jurisdicional desta criança contra um tal risco já é, em princípio, assegurada pela existência de um recurso para uma instância judicial [v., neste sentido, Acórdão de 26 de setembro de 2018, Belastingdienst/Toeslagen (Efeito suspensivo do recurso), C‑175/17, EU:C:2018:776, n.o 34], mesmo que seja invocada a existência de um risco grave, na aceção do artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), da Convenção da Haia de 1980.

89

Por conseguinte, conforme exposto nos n.os 82 a 84 das Conclusões do advogado‑geral, não resulta do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, lido à luz dos artigos 24.o e 47.o da Carta, que o direito da União imponha que os Estados‑Membros prevejam uma instância judicial suplementar em contra uma decisão de regresso, se esta decisão tiver sido adotada no âmbito de um processo que já prevê dois graus de jurisdição e este processo permitir que seja tida em conta a existência de riscos em caso de regresso da criança em causa. A fortiori, este direito não permite que os Estados‑Membros associem um efeito suspensivo, por força da lei, aos recursos interpostos contra uma tal decisão, contrariamente ao que parece prever o artigo 3881, n.o 3, do Código de Processo Civil, conforme alterado pela Lei de 2022.

90

Em terceiro e último lugar, no que diz respeito às consequências da conclusão tecida no n.o 85 do presente acórdão, importa lembrar que, por força do princípio do primado do direito da União, o juiz nacional encarregado de aplicar as disposições do direito da União no âmbito da sua competência tem a obrigação de garantir o pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário, por iniciativa própria, qualquer regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, contrária ao direito da União, sem que tenha de pedir ou aguardar pela sua eliminação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional [v., neste sentido, Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um Tribunal Constitucional), C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 53].

91

A este respeito, há que recordar que, nos termos do artigo 288.o, segundo parágrafo, TFUE, o regulamento tem caráter geral e é diretamente aplicável em todos os Estados‑Membros. Portanto, devido à sua própria natureza e à sua função no sistema das fontes do direito da União, está apto a conferir aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de proteger (v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2002, Muñoz e Superior Fruiticola, C‑253/00, EU:C:2002:497, n.o 27).

92

No presente caso, importa salientar que o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 impõe aos Estados‑Membros uma obrigação clara e precisa que não está associada a nenhuma condição no que diz respeito à exigência de celeridade à qual estão sujeitos os processos que têm por objeto a adoção de uma decisão de regresso na aceção da Convenção da Haia de 1980. Assim, o órgão jurisdicional de reenvio deverá garantir, no quadro das suas competências, o pleno efeito desta disposição de direito da União não aplicando, se necessário, a legislação nacional que impede a produção do efeito útil da referida disposição.

93

Tendo em conta todos os fundamentos que precedem, há que responder à questão submetida que o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que confere às autoridades que não sejam órgãos jurisdicionais a faculdade de obterem a suspensão por força da lei, por um período de, pelo menos, dois meses, da execução de uma decisão de regresso proferida com base na Convenção da Haia de 1980, sem terem de fundamentar o seu pedido de suspensão.

Quanto às despesas

94

Revestindo o processo, quanto às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento (CE) no 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

se opõe a uma legislação nacional que confere às autoridades que não sejam órgãos jurisdicionais a faculdade de obterem a suspensão por força da lei, por um período de, pelo menos, dois meses, da execução de uma decisão de regresso proferida com base na Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980, sem terem de fundamentar o seu pedido de suspensão.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.

Início