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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62019CJ0107

Acórdão do Tribunal de Justiça (Décima Secção) de 9 de setembro de 2021.
XR contra Dopravní podnik hl. m. Prahy, a.s.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Obvodní soud pro Prahu 9.
Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2003/88/CE — Organização do tempo de trabalho — Conceitos de “tempo de trabalho” e de “período de descanso” — Período de pausa durante a qual o trabalhador deve estar disponível para sair devido a uma chamada de emergência no espaço de dois minutos — Primado do direito da União.
Processo C-107/19.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2021:722

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

9 de setembro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2003/88/CE — Organização do tempo de trabalho — Conceitos de “tempo de trabalho” e de “período de descanso” — Período de pausa durante a qual o trabalhador deve estar disponível para sair devido a uma chamada de emergência no espaço de dois minutos — Primado do direito da União»

No processo C‑107/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Obvodní soud pro Prahu 9 (Tribunal de Primeira Instância de Praga 9, República Checa), por Decisão de 3 de janeiro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de fevereiro de 2019, no processo

XR

contra

Dopravní podnik hl. m. Prahy, akciová společnost,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: E. Juhász, exercendo funções de presidente de secção, C. Lycourgos (relator) e I. Jarukaitis, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Dopravní podnik hl. m. Prahy, akciová společnost, por L. Novotná,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e J. Pavliš, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. van Beek e K. Walkerová, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de fevereiro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe XR à Dopravní podnik hl. m. Prahy, akciová společnost (a seguir «DPP»), relativo ao facto de esta recusar pagar a XR o montante de 95335 coroas checas (CZK) (cerca de 3600 euros) acrescido de juros de mora, a título da remuneração dos períodos de pausa gozados durante a sua atividade profissional enquanto bombeiro entre os meses de novembro de 2005 e dezembro de 2008.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 4 e 5 da Diretiva 2003/88 enunciam:

«(4)

A melhoria da segurança, da higiene e de saúde dos trabalhadores no trabalho constitui um objetivo que não se pode subordinar a considerações de ordem puramente económica.

(5)

Todos os trabalhadores devem beneficiar de períodos de descanso suficientes. O conceito de “descanso” deve ser expresso em unidades de tempo, ou seja, em dias, horas e/ou suas frações. Os trabalhadores da [União Europeia] devem beneficiar de períodos mínimos de descanso — diários, semanais e anuais — e de períodos de pausa adequados. […]»

4

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«1.   A presente diretiva estabelece prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho.

2.   A presente diretiva aplica‑se:

a)

Aos períodos mínimos de descanso diário, semanal e anual, bem como aos períodos de pausa e à duração máxima do trabalho semanal; e

b)

A certos aspetos do trabalho noturno, do trabalho por turnos e do ritmo de trabalho.

[…]»

5

O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

1.

Tempo de trabalho: qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua atividade ou das suas funções, de acordo com a legislação e/ou a prática nacional.

2.

Período de descanso: qualquer período que não seja tempo de trabalho.

[…]

5.

Trabalho por turnos: qualquer modo de organização do trabalho em equipa em que os trabalhadores ocupem sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o ritmo rotativo, e que pode ser de tipo contínuo ou descontínuo, o que implica que os trabalhadores executem o trabalho a horas diferentes no decurso de um dado período de dias ou semanas;

[…]»

6

Nos termos do artigo 4.o da Diretiva 2003/88, sob a epígrafe «Pausas»:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que, no caso de o período de trabalho diário ser superior a seis horas, todos os trabalhadores beneficiem de pausas, cujas modalidades, nomeadamente duração e condições de concessão, serão fixadas por convenções coletivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais ou, na sua falta, pela legislação nacional.»

Direito checo

7

O artigo 83.o da zákon č. 65/1965 Sb., zákoník práce (Lei n.o 65/1965 Relativa ao Código do Trabalho), aplicável até 31 de dezembro de 2006, previa:

«(1)   O tempo de trabalho é o período durante o qual o trabalhador deve exercer uma atividade para o empregador.

(2)   O período de descanso é o período que não é tempo de trabalho.

[…]

(5)   O serviço de prevenção é o período durante o qual o trabalhador, por força do seu contrato de trabalho, está disponível para uma eventual missão que, em caso de necessidade imperiosa, deverá ser executada fora do horário da sua equipa de trabalho.

[…]»

8

O artigo 89.o desta lei, relativo às «pausas», estabelecia:

«(1)   O empregador deve conceder aos seus trabalhadores, após um período máximo de seis horas de trabalho contínuo, uma pausa para alimentação e repouso de pelo menos 30 minutos; essa pausa deve ser concedida aos menores de 18 anos após um período máximo de quatro horas e meia de trabalho contínuo. Se o trabalho em causa não puder ser interrompido, deve ser garantido ao trabalhador um período adequado de repouso e alimentação, embora sem interrupção do serviço ou do trabalho; aos menores de 18 anos deve ser sempre concedida uma pausa para alimentação e repouso em conformidade com o disposto na primeira frase.

(2)   O empregador pode fixar de forma adequada a duração da pausa para alimentação, após consulta do organismo sindical competente.

(3)   O empregador determina o início e o fim destas pausas, após consulta do organismo sindical competente.

(4)   As pausas de alimentação e repouso não são concedidas no início ou no fim do tempo de trabalho.

(5)   As pausas de alimentação e repouso concedidas não são incluídas na contabilização do tempo de trabalho.»

9

Estas disposições foram revogadas e substituídas pela zákon č. 262/2006 Sb., zákoník práce (Lei n.o 262/2006 Relativa ao Código do Trabalho), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2007. Nos termos do artigo 78.o desta lei:

«(1)   Para efeitos das disposições que regulam o tempo de trabalho e o período de descanso, entende‑se por:

a)

“tempo de trabalho”, o período durante o qual o trabalhador deve exercer uma atividade para o empregador e o período durante o qual o trabalhador está disponível, no local de trabalho, para efetuar uma missão segundo as instruções do empregador;

[…]

h)

“serviço de prevenção” é o período durante o qual o trabalhador, por força do seu contrato de trabalho, está disponível para uma eventual missão que, em caso de necessidade imperiosa, deverá ser executada fora do horário da sua equipa de trabalho. O serviço de prevenção só pode ser prestado noutro local acordado com o trabalhador que seja diferente do local de trabalho do empregador;

[…]»

10

No que respeita ao período de pausa e à pausa de segurança, o artigo 88.o da referida lei precisa:

«(1)   O empregador deve conceder aos seus trabalhadores, após um período máximo de 6 horas de trabalho contínuo, uma pausa para alimentação e repouso de pelo menos 30 minutos; essa pausa deve ser concedida aos trabalhadores menores de 18 anos após um período máximo de quatro horas e meia de trabalho contínuo. Se o trabalho em causa não puder ser interrompido, deve ser garantido ao trabalhador um período adequado de repouso e alimentação, embora sem interrupção do serviço ou do trabalho; este período é incluído no cálculo do tempo de trabalho. Aos trabalhadores menores de 18 anos deve ser sempre concedida uma pausa para alimentação e repouso em conformidade com o disposto na primeira frase.

(2)   Se for necessário dividir a pausa para alimentação e repouso, parte da mesma deverá durar pelo menos 15 minutos. […]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

No período compreendido entre novembro de 2005 e dezembro de 2008, XR trabalhou por conta da DPP como bombeiro de empresa.

12

XR estava sujeito a um regime de trabalho por turnos em equipas sucessivas, que incluía um turno diurno, abrangendo a faixa horária das 6h45 às 19h00, e um turno noturno, abrangendo a faixa horária das 18h45 às 7h00. Os seus horários de trabalho diários incluíam duas pausas para alimentação e repouso com uma duração de 30 minutos cada.

13

Entre as 6h30 e as 13h30, XR podia ir à cantina da fábrica, situada a 200 metros do seu posto de trabalho, desde que fosse equipado com um transmissor que, caso fosse necessário, o avisava que o veículo de intervenção vinha buscá‑lo, dentro de dois minutos, à frente da cantina da fábrica. Além disso, nas instalações em que XR trabalhava existia um espaço equipado para a preparação de refeições fora do horário de funcionamento da cantina da fábrica.

14

Os períodos de pausa apenas eram tidos em conta no cálculo do tempo de trabalho de XR se fossem interrompidos por uma saída devido a uma chamada de emergência. Por conseguinte, os períodos de pausa não interrompidos não eram remunerados.

15

XR contestou essa forma de cálculo da sua remuneração. Considerando que os períodos de pausa, mesmo não sendo interrompidos, constituíam tempo de trabalho, exigiu o montante de 95335 CZK acrescido dos juros de mora a título da remuneração que, em seu entender, lhe era devida tendo em conta as duas pausas diárias que não tinham sido tomadas em conta no cálculo da sua remuneração para o período em causa no processo principal.

16

Chamado a pronunciar‑se em primeira instância, o Obvodní soud pro Prahu 9 (Tribunal de Primeira Instância de Praga 9, República Checa), que é o órgão jurisdicional de reenvio, julgou procedente o pedido de XR por Sentença de 14 de setembro de 2016, que foi confirmada em sede de recurso por Acórdão de 22 de março de 2017.

17

A DPP interpôs recurso dessas decisões judiciais para o Nejvyšší soud (Supremo Tribunal, República Checa), que as anulou por Acórdão de 12 de junho de 2018. Esse órgão jurisdicional considerou, com base nas disposições nacionais pertinentes, que, embora na verdade não fosse de excluir que as pausas tivessem sido interrompidas por causa de uma saída devido a uma chamada de emergência, essas interrupções só ocorriam de forma aleatória e imprevisível, pelo que não podiam ser consideradas parte da execução ordinária das obrigações profissionais. Assim, segundo este órgão jurisdicional, os períodos de pausa não podiam ser considerados, em princípio, tempo de trabalho.

18

Por conseguinte, o Nejvyšší soud (Supremo Tribunal) remeteu o processo ao órgão jurisdicional de reenvio para que este se pronuncie quanto ao mérito. Este salienta que, nos termos das regras processuais nacionais, está vinculado pela apreciação jurídica do Nejvyšší soud (Supremo Tribunal).

19

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio estima que as circunstâncias em que XR devia fazer as suas pausas poderiam levar a qualificá‑las de «tempo de trabalho», na aceção do artigo 2.o da Diretiva 2003/88.

20

Neste contexto, o Obvodní soud pro Prahu 9 (Tribunal de Primeira Instância de Praga 9) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve considerar‑se o período de pausa durante o qual o trabalhador deve estar à disposição do empregador no espaço de dois minutos no caso de receber uma chamada de emergência “tempo de trabalho”, na aceção do artigo 2.o da Diretiva [2003/88]?

2)

Tem influência na apreciação da [primeira] questão […] o facto de essa interrupção [da pausa], no caso de chamada de emergência, ocorrer apenas de forma aleatória e imprevisível [e], conforme o caso, a frequência com que essa interrupção ocorre?

3)

Pode um órgão jurisdicional de primeira instância, depois de a sua decisão ter sido anulada por um tribunal superior e depois de este lhe remeter o processo para [que decida quanto ao mérito], não respeitar [a apreciação] jurídic[a] do tribunal superior, que é vinculativ[a] para o órgão jurisdicional de primeira instância, se ess[a apreciação] for contrári[a] ao direito da União?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira e segunda questões

21

Com a primeira e segunda questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que o período de pausa concedido a um trabalhador durante o seu tempo de trabalho diário, e durante o qual este deve estar em condições de sair devido a uma chamada de emergência num prazo de dois minutos em caso de necessidade, deve ser qualificado de «tempo de trabalho» ou de «período de descanso», na aceção desta disposição, e se o caráter ocasional e imprevisível, bem como a frequência das saídas devido a uma chamada de emergência, durante esse tempo de pausa, têm alguma influência nessa qualificação.

22

A título preliminar, importa constatar que o litígio no processo principal é relativo à remuneração a que um trabalhador alega ter direito a título dos períodos de pausa de que beneficia durante o seu dia de trabalho.

23

Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, com exceção da hipótese particular relativa às férias anuais remuneradas, referida no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2003/88, esta diretiva se limita a regular determinados aspetos da organização do tempo de trabalho para garantir a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores, pelo que, em princípio, não é aplicável à remuneração dos trabalhadores [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 57 e jurisprudência referida).

24

Dito isto, uma vez que, como indica o órgão jurisdicional de reenvio, no âmbito do litígio no processo principal, a questão da remuneração dos períodos de pausa depende da qualificação desses períodos como «tempo de trabalho» ou «período de descanso», na aceção da Diretiva 2003/88, há que responder às questões submetidas, relativas à referida qualificação.

25

A este respeito, importa recordar que o artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2003/88 define o conceito de «tempo de trabalho» como «qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua atividade ou das suas funções». No artigo 2.o, ponto 2, desta diretiva, o conceito de «período de descanso» é definido negativamente como qualquer período que não seja tempo de trabalho.

26

O segundo capítulo da Diretiva 2003/88 é consagrado, entre outros, aos «períodos mínimos de descanso». Além dos descansos diário e semanal, este capítulo visa, no artigo 4.o desta diretiva, as «pausas» de que todos os trabalhadores devem beneficiar no caso de o período de trabalho diário ser superior a seis horas e cujas modalidades, nomeadamente duração e condições de concessão, serão fixadas por convenções coletivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais ou, na sua falta, pela legislação nacional.

27

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, durante os seus períodos de pausa, XR não era substituído no seu posto de trabalho e estava equipado com um recetor que lhe permitia ser avisado no caso de dever interromper a sua pausa para uma saída repentina devido a uma chamada de emergência. Daqui decorre que o recorrente no processo principal estava sujeito, durante as suas pausas, a um regime de prevenção, termo que se refere, genericamente, a todos os períodos durante os quais o trabalhador está à disposição da sua entidade patronal a fim de poder assegurar uma prestação de trabalho a pedido desta última [v., neste sentido, Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 2].

28

Há que recordar, a este respeito, que os conceitos de «tempo de trabalho» e de «período de descanso» se excluem mutuamente. O período de prevenção de um trabalhador deve, portanto, ser qualificado de «tempo de trabalho» ou de «período de descanso» para efeitos da aplicação da Diretiva 2003/88, uma vez que esta última não prevê uma categoria intermédia [v., neste sentido, Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 29 e jurisprudência referida].

29

Além disso, os conceitos de «tempo de trabalho» e de «período de descanso» constituem conceitos de direito da União que há que definir segundo características objetivas, por referência ao sistema e à finalidade da Diretiva 2003/88. Com efeito, só essa interpretação autónoma é suscetível de assegurar a essa diretiva a sua plena eficácia, bem como uma aplicação uniforme desses conceitos em todos os Estados‑Membros [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, n.o 30 e jurisprudência referida].

30

No que respeita mais precisamente aos períodos de prevenção, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um período durante o qual não é efetivamente exercida nenhuma atividade pelo trabalhador em benefício da sua entidade patronal não constitui necessariamente um «período de descanso» para efeitos da aplicação da Diretiva 2003/88 [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 32].

31

Assim, por um lado, o Tribunal de Justiça declarou, a propósito de períodos de prevenção efetuados em locais de trabalho que não se confundiam com o domicílio do trabalhador, que o fator determinante para considerar que os elementos característicos do conceito de «tempo de trabalho», na aceção da Diretiva 2003/88, se verificam é o facto de o trabalhador ser obrigado a estar fisicamente presente no local determinado pela entidade patronal e de aí estar à sua disposição para poder prestar de imediato os seus serviços em caso de necessidade [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 33 e jurisprudência referida)].

32

O Tribunal de Justiça considerou que, durante esse período de prevenção, o trabalhador, obrigado a permanecer no seu local de trabalho à disposição imediata da sua entidade patronal, tem de ficar afastado do seu ambiente social e familiar e beneficia de uma reduzida margem para gerir o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados. Por conseguinte, a totalidade deste período deve ser qualificada de «tempo de trabalho» na aceção da Diretiva 2003/88, independentemente das prestações de trabalho efetivamente efetuadas pelo trabalhador durante o referido período [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 35 e jurisprudência referida].

33

Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou que um período de prevenção em regime de disponibilidade contínua, ou seja, um período durante o qual o trabalhador está à disposição da sua entidade patronal a fim de poder assegurar uma prestação de trabalho a pedido desta última, sem ser obrigado a permanecer no seu local de trabalho, deve igualmente ser qualificado, na sua totalidade, de «tempo de trabalho» na aceção da Diretiva 2003/88, quando, tendo em consideração o impacto objetivo e muito significativo das limitações impostas ao trabalhador sobre as possibilidades de este último se dedicar aos seus interesses pessoais e sociais, se distingue de um período durante o qual o trabalhador só tem de estar à disposição da sua entidade patronal a fim de ser contactado [v., neste sentido, Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 36 e jurisprudência referida).

34

Daqui resulta que o conceito de «tempo de trabalho» abrange, na aceção da Diretiva 2003/88, todos os períodos de prevenção, incluindo os períodos em regime de disponibilidade contínua, durante os quais as restrições impostas ao trabalhador são de tal natureza que afetam objetivamente e muito significativamente a sua faculdade de gerir livremente, durante esses períodos, o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados e consagrar esse tempo aos seus próprios interesses [v., neste sentido, Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 37].

35

Mais precisamente, o Tribunal de Justiça salientou que um período de prevenção durante o qual um trabalhador pode, tendo em conta o prazo razoável que lhe é concedido para retomar as suas atividades profissionais, planear as suas ocupações pessoais e sociais não constitui, a priori, «tempo de trabalho» na aceção da Diretiva 2003/88. Em contrapartida, um período de prevenção durante o qual o prazo imposto ao trabalhador para se apresentar ao trabalho está limitado a alguns minutos deve, em princípio, ser considerado, na sua totalidade, «tempo de trabalho» na aceção desta diretiva, uma vez que o trabalhador, neste último caso, fica, na prática, fortemente dissuadido de planear qualquer atividade de recreio, mesmo de curta duração [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 48].

36

Não obstante, como o Tribunal de Justiça sublinhou, o impacto desse prazo de reação deve ser avaliado no termo de uma apreciação concreta, que tenha em conta, se for caso disso, as outras limitações impostas ao trabalhador, bem como as facilidades que lhe são concedidas, no decurso do seu período de prevenção [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 49).

37

No caso em apreço, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz de todas as circunstâncias pertinentes, se a limitação a que estava sujeito XR durante o seu período de pausa, resultante da necessidade de estar disponível no espaço de dois minutos para sair devido a uma chamada de emergência, era suscetível de limitar de forma objetiva e muito significativa as possibilidades que esse trabalhador tinha de gerir livremente o seu tempo para se dedicar às atividades da sua escolha.

38

A este respeito, considerando as objeções formuladas pela DPP e pela Comissão Europeia nas suas observações escritas, importa ainda salientar, em primeiro lugar, que a margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros nos termos do artigo 4.o da Diretiva 2003/88, a fim de determinar as modalidades da pausa, e nomeadamente a duração e condições de concessão desta, não é relevante para efeitos da qualificação dos períodos em causa no processo principal de «tempo de trabalho» ou de «período de descanso», na aceção do artigo 2.o da Diretiva 2003/88, na medida em que esses dois conceitos constituem conceitos autónomos do direito da União, como recordado no n.o 29 do presente acórdão.

39

Dito isto, uma vez que, como resulta da decisão de reenvio, os períodos de pausa de que XR beneficiava eram de curta duração, ou seja, trinta minutos cada, o órgão jurisdicional de reenvio, no âmbito do seu exame destinado a determinar se os constrangimentos que pesavam sobre XR durante esses períodos eram suscetíveis de limitar de forma objetiva e muito significativa as possibilidades que esse trabalhador tinha de realizar atividades de tempo livre e de se dedicar às atividades da sua escolha, não deverá ter em conta as restrições dessas possibilidades que de qualquer modo se teriam verificado, pelo facto de as mesmas decorrerem inevitavelmente da duração de trinta minutos de cada pausa, uma vez que essas restrições são independentes dos constrangimentos associados à obrigação de estar disponível no espaço de dois minutos para uma saída devido a uma chamada de emergência.

40

Em segundo lugar, quanto ao facto de as interrupções dos períodos de pausa serem ocasionais e imprevisíveis, o Tribunal de Justiça já declarou que a circunstância de, em média, o trabalhador só raramente ser chamado a intervir durante os seus períodos de prevenção não pode levar a que estes últimos sejam considerados «períodos de descanso» na aceção do artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2003/88, quando o impacto do prazo imposto ao trabalhador para retomar as suas atividades profissionais é tal que basta para restringir, de forma objetiva e muito significativa, a faculdade que este tem de gerir livremente, durante esses períodos, o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados [Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 54].

41

A este respeito, importa acrescentar que o caráter imprevisível das possíveis interrupções do período de pausa é suscetível de ter um efeito restritivo suplementar quanto à possibilidade de o trabalhador gerir livremente esse tempo. Com efeito, a incerteza que daí resulta é suscetível de colocar esse trabalhador em situação de alerta permanente.

42

Por último, importa recordar, tendo em conta a jurisprudência referida no n.o 23 do presente acórdão, que o modo de remuneração dos trabalhadores para os períodos de prevenção não está abrangido pela Diretiva 2003/88, mas pelas disposições pertinentes do direito nacional. Consequentemente, esta diretiva não se opõe à aplicação de uma regulamentação de um Estado‑Membro, de uma convenção coletiva de trabalho ou de uma decisão de uma entidade patronal que, para efeitos da remuneração de um serviço de prevenção, tenha em conta de forma diferente os períodos durante os quais são realmente efetuadas prestações de trabalho e aqueles durante os quais nenhum trabalho efetivo é prestado, mesmo quando esses períodos devam ser considerados, na sua totalidade, «tempo de trabalho» para efeitos da aplicação da referida diretiva (Acórdão de 9 de março de 2021, Radiotelevizija Slovenija (Período de disponibilidade contínua num local remoto), C‑344/19, EU:C:2021:182, n.o 58).

43

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 2.o da Diretiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que constitui «tempo de trabalho», na aceção desta disposição, o período de pausa concedido a um trabalhador durante o seu tempo de trabalho diário, durante o qual este deve estar em condições de sair devido a uma chamada de emergência num prazo de dois minutos em caso de necessidade, uma vez que decorre de uma apreciação global de todas as circunstâncias pertinentes que os constrangimentos impostos a esse trabalhador durante o referido período de pausa são de tal natureza que afetam objetivamente e muito significativamente a faculdade de este último gerir livremente o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados e consagrar esse tempo aos seus próprios interesses.

Quanto à terceira questão

44

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um órgão jurisdicional nacional, decidindo na sequência da anulação da sua decisão por um órgão jurisdicional superior, esteja vinculado, em conformidade com o direito processual nacional, pelas apreciações jurídicas efetuadas por esse órgão jurisdicional superior, quando essas apreciações não são compatíveis com o direito da União.

45

Há que recordar que, por força do princípio do primado do direito da União, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União tem a obrigação de garantir o pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário e por sua própria iniciativa, qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo que posterior, sem ter de pedir ou de esperar pela sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 58 e jurisprudência referida).

46

A este respeito, o juiz nacional, tendo exercido a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, está vinculado, para a resolução do litígio no processo principal, pela interpretação das disposições em causa feita pelo Tribunal de Justiça e deve, se for esse o caso, afastar as apreciações do tribunal superior se considerar, à luz dessa interpretação, que estas não são conformes com o direito da União (Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 30).

47

Nestas circunstâncias, a exigência de garantir a plena eficácia do direito da União inclui a obrigação de os órgãos jurisdicionais nacionais alterarem, sendo caso disso, uma jurisprudência assente, caso esta se baseie numa interpretação do direito interno incompatível com o direito da União (Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 35 e jurisprudência referida).

48

Daqui resulta que, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio tem a obrigação de assegurar a plena eficácia do artigo 267.o TFUE, não aplicando, se necessário e por sua própria iniciativa, as disposições processuais nacionais que lhe impõem aplicar o direito nacional conforme interpretado pelo Nejvyšší soud (Supremo Tribunal), uma vez que essa interpretação não é compatível com o direito da União.

49

Em face do exposto, há que responder à terceira questão que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um órgão jurisdicional nacional, decidindo na sequência da anulação da sua decisão por um órgão jurisdicional superior, esteja vinculado, em conformidade com o direito processual nacional, pelas apreciações jurídicas efetuadas por esse órgão jurisdicional superior, quando essas apreciações não sejam compatíveis com o direito da União.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, deve ser interpretado no sentido de que constitui «tempo de trabalho», na aceção desta disposição, o período de pausa concedido a um trabalhador durante o seu tempo de trabalho diário, durante o qual este deve estar em condições de sair devido a uma chamada de emergência num prazo de dois minutos em caso de necessidade, uma vez que decorre de uma apreciação global de todas as circunstâncias pertinentes que os constrangimentos impostos a esse trabalhador durante o referido período de pausa são de tal natureza que afetam objetivamente e muito significativamente a faculdade de este último gerir livremente o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados e consagrar esse tempo aos seus próprios interesses.

 

2)

O princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um órgão jurisdicional nacional, decidindo na sequência da anulação da sua decisão por um órgão jurisdicional superior, esteja vinculado, em conformidade com o direito processual nacional, pelas apreciações jurídicas efetuadas por esse órgão jurisdicional superior, quando essas apreciações não sejam compatíveis com o direito da União.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: checo.

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