Escolha as funcionalidades experimentais que pretende experimentar

Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62020CJ0497

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 21 de dezembro de 2021.
    Randstad Italia SpA contra Umana SpA e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Corte suprema di cassazione.
    Reenvio prejudicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Obrigação de os Estados‑Membros preverem vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União — Concursos públicos — Diretiva 89/665/CEE — Artigo 1.o, n.os 1 e 3 — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Acórdão do supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos de um Estado‑Membro que, em violação da jurisprudência do Tribunal de Justiça, julga inadmissível o recurso interposto por um proponente que foi excluído de um procedimento de concurso público — Inexistência de uma via para interpor recurso desse acórdão no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais deste Estado‑Membro — Princípios da efetividade e da equivalência.
    Processo C-497/20.

    Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2021:1037

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

    21 de dezembro de 2021 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Obrigação de os Estados‑Membros preverem vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União — Concursos públicos — Diretiva 89/665/CEE — Artigo 1.o, n.os 1 e 3 — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Acórdão do supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos de um Estado‑Membro que, em violação da jurisprudência do Tribunal de Justiça, julga inadmissível o recurso interposto por um proponente que foi excluído de um procedimento de concurso público — Inexistência de uma via para interpor recurso desse acórdão no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais deste Estado‑Membro — Princípios da efetividade e da equivalência»

    No processo C‑497/20,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), por Decisão de 7 de julho de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de setembro de 2020, no processo

    Randstad Italia SpA

    contra

    Umana SpA,

    Azienda USL Valle d’Aosta,

    IN. VA SpA,

    Synergie Italia agenzia per il Lavoro SpA,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, C. Lycourgos (relator), E. Regan, I. Jarukaitis, N. Jääskinen, I. Ziemele e J. Passer, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, T. von Danwitz, M. Safjan, A. Kumin e N. Wahl, juízes,

    advogado‑geral: G. Hogan,

    secretário: C. Di Bella, administrador,

    vistos os autos e após a audiência de 6 de julho de 2021,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Randstad Italia SpA, por M. Brugnoletti e S. D. Tomaselli, avvocati,

    em representação da Umana SpA, por F. Bertoldi, avvocato,

    em representação da Azienda USL Valle d’Aosta, por F. Dal Piaz e P. Borioni, avvocati,

    em representação da Synergie Italia agenzia per il Lavoro SpA, por A. M. Balestreri, avvocato,

    em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Fiorentino e P. Gentili, avvocati dello Stato,

    em representação da Comissão Europeia, por F. Erlbacher, P. Stancanelli, P. J. O. Van Nuffel e G. Gattinara, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de setembro de 2021,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 3, e do artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como do artigo 2.o, n.os 1 e 2, e do artigo 267.o TFUE, lidos à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como do artigo 1.o, n.os 1 e 3, e do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO 1989, L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014 (JO 2014, L 94, p. 1) (a seguir «Diretiva 89/665»).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Randstad Italia SpA (a seguir «Randstad») à Umana SpA, à Azienda USL Valle d’Aosta (Delegação de Saúde Local da Região do Vale de Aosta, Itália) (a seguir «USL»), à IN. VA SpA e à Synergie Italia agenzia per il Lavoro SpA (a seguir «Synergie»), que tem por objeto, por um lado, a exclusão da Randstad de um concurso público e, por outro, a regularidade deste procedimento.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    O artigo 1.o da Diretiva 89/665, intitulado «Âmbito de aplicação e acesso ao recurso», dispõe:

    «1.   A presente diretiva é aplicável aos contratos a que se refere a Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho[, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65)], salvo se esses contratos se encontrarem excluídos nos termos dos artigos 7.o, 8.o, 9.o, 10.o, 11.o, 12.o, 15.o, 16.o, 17.o e 37.o dessa diretiva.

    A presente diretiva aplica‑se ainda às concessões adjudicadas por autoridades adjudicantes, referidas na Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho[, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO 2014, L 94, p. 1)], salvo se essas concessões se encontr[ar]em excluídas nos termos [d]os artigos 10.o, 11.o, 12.o, 17.o e 25.o dessa diretiva.

    Os contratos na aceção da presente diretiva incluem os contratos públicos, os acordos‑quadro, as concessões de obras e de serviços e os sistemas de aquisição dinâmicos.

    Os Estados‑Membros adotam as medidas necessárias para assegurar que, no que se refere aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva [2014/24] ou da Diretiva [2014/23], as decisões das autoridades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes, e, sobretudo, tão céleres quanto possível, nos termos dos artigos 2.o a 2.o‑F da presente diretiva, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito da União em matéria de contratos públicos ou das normas nacionais de transposição desse direito.

    […]

    3.   Os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

    […]»

    4

    O artigo 2.o desta diretiva, intitulado «Requisitos do recurso», prevê, no seu n.o 1:

    «Os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.o prevejam poderes para:

    a)

    Decretar, no mais curto prazo, mediante processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados novos danos aos interesses em causa, designadamente medidas destinadas a suspender ou a mandar suspender o procedimento de adjudicação do contrato público em causa ou a execução de quaisquer decisões tomadas pela entidade adjudicante;

    b)

    Anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa;

    c)

    Conceder indemnizações aos lesados por uma violação.»

    5

    Nos termos do artigo 2.o‑A da referida diretiva, intitulado «Prazo suspensivo»:

    «1.   Os Estados‑Membros devem garantir que as pessoas a que se refere o n.o 3 do artigo 1.o disponham de um prazo suficiente para assegurar o recurso eficaz das decisões de adjudicação de contratos tomadas por entidades adjudicantes, mediante a aprovação das disposições necessárias que respeitem as condições mínimas estabelecidas no n.o 2 do presente artigo e no artigo 2.o‑C.

    2.   A celebração de um contrato na sequência da decisão de adjudicação de um contrato abrangido pela Diretiva [2014/24] o ou pela Diretiva [2014/23] não pode ter lugar antes do termo de um prazo mínimo de 10 dias consecutivos, a contar do dia seguinte à data em que a decisão de adjudicação do contrato tiver sido enviada aos proponentes e candidatos interessados, em caso de utilização de telecópia ou de meios eletrónicos, ou, em caso de utilização de outros meios de comunicação, antes do termo de um prazo mínimo, alternativamente, de 15 dias consecutivos a contar do dia seguinte à data em que a decisão de adjudicação do contrato tiver sido comunicada aos proponentes e candidatos interessados ou de pelo menos 10 dias consecutivos a contar do dia seguinte à data de receção da decisão de adjudicação do contrato.

    Considera‑se que os proponentes estão interessados se ainda não tiverem sido definitivamente excluídos. Uma exclusão é definitiva se tiver sido notificada aos proponentes interessados e se tiver sido considerada legal por uma instância de recurso independente ou já não puder ser objeto de recurso.

    Considera‑se que os candidatos estão interessados se a entidade adjudicante não tiver facultado informações sobre a rejeição das suas candidaturas antes da notificação da decisão de adjudicação do contrato aos proponentes interessados.

    A comunicação da decisão de adjudicação a cada um dos proponentes e candidatos interessados é acompanhada:

    de uma exposição sintética dos motivos relevantes […], e

    da indicação exata do prazo suspensivo aplicável […]»

    Direito italiano

    6

    O artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Costituzione (Constituição italiana, a seguir «Constituição») dispõe:

    «Das decisões do Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)] e da Corte dei conti [(Tribunal de Contas, Itália)] só é admitido ricorso in Cassazione [(recurso de cassação)] por fundamentos relativos à competência jurisdicional.»

    7

    O artigo 360.o, primeiro parágrafo, do codice di procedura civile (Código de Processo Civil, a seguir «Código de Processo Civil») prevê:

    «As decisões proferidas em sede de recurso ou por uma instância única podem ser objeto de ricorso per cassazione [(recurso de cassação)]: 1) por fundamentos relativos à competência jurisdicional; […]»

    8

    Nos termos do artigo 362.o, parágrafos 1 e 2, do Código de Processo Civil:

    «Podem ser objeto de ricorso per cassazione [(recurso de cassação)] […] as decisões proferidas por um tribunal especial em sede de recurso ou em sede de instância única, por motivos relativos à competência desse mesmo órgão jurisdicional.

    Podem ser objeto de ricorso per cassazione [(recurso de cassação)] a qualquer momento: 1) os conflitos positivos ou negativos de competência entre juízes especiais ou entre estes e juízes dos tribunais comuns; 2) os conflitos negativos de atribuição entre a administração pública e juízes dos tribunais comuns.»

    9

    O artigo 6.o, n.o 1, do codice del processo amministrativo (Código de Processo Administrativo, a seguir «Código de Processo Administrativo») dispõe:

    «O Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] é o órgão de última instância da justiça administrativa.»

    10

    O artigo 110.o do Código de Processo Administrativo dispõe:

    «Só é admitida a interposição de ricorso per cassazione [(recurso de cassação)] das decisões proferidas pelo Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] por fundamentos relativos à competência jurisdicional.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    11

    Em 13 de dezembro de 2017, a USL lançou um procedimento de contratação pública com um valor de cerca de 12 milhões de euros com vista à respetiva adjudicação com base na proposta economicamente mais vantajosa, a fim de escolher uma agência de emprego para a contratação temporária de pessoal.

    12

    O referido concurso fixou para as propostas técnicas um «limite mínimo» de 48 pontos, abaixo do qual os concorrentes seriam excluídos.

    13

    Participaram no procedimento oito concorrentes, entre os quais a Randstad, a GI Group Spa e um agrupamento temporário de empresas formado pela Synergie e pela Umana (a seguir «agrupamento Synergie‑Umana»).

    14

    Em 3 de outubro de 2018, a comissão de adjudicação, depois de ter avaliado as propostas técnicas, admitiu a GI Group e o agrupamento Synergie‑Umana à fase seguinte, relativa à avaliação económica das propostas. A Randstad, classificada em terceiro lugar no termo da avaliação das propostas técnicas, foi excluída por a sua proposta técnica ter obtido uma nota inferior à fixada como limite mínimo.

    15

    Em 6 de novembro de 2018, o contrato foi adjudicado ao agrupamento Synergie‑Umana.

    16

    A Randstad interpôs no Tribunale Amministrativo Regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta, Itália) um recurso através do qual contestou, por um lado, a sua exclusão do procedimento e, por outro lado, a regularidade deste procedimento. O seu recurso tinha assim por objeto não apenas a referida exclusão mas também a adjudicação do contrato ao agrupamento Synergie‑Umana.

    17

    Em apoio do seu recurso, a Randstad alegou nomeadamente a não divisão do concurso em lotes, a imprecisão dos critérios de avaliação e a ilegalidade da nomeação da comissão de adjudicação. A USL e o agrupamento Synergie‑Umana pediram que fossem julgados inadmissíveis os fundamentos através dos quais a Randstad contestou a regularidade do procedimento. Uma vez que foi excluída do procedimento, a Randstad não tem legitimidade processual para formular tais pedidos.

    18

    Por Decisão de 15 de março de 2019, o Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) julgou esta exceção de inadmissibilidade improcedente. Uma vez que a Randstad participou de modo legítimo no procedimento e que deste foi excluída com o fundamento de que a sua proposta técnica recebeu uma avaliação negativa, esta empresa tinha, segundo este último órgão jurisdicional, legitimidade processual para impugnar o resultado do procedimento em todos os seus aspetos. Quanto ao mérito, no entanto, o referido órgão jurisdicional julgou improcedentes todos os fundamentos invocados pela Randstad e, por conseguinte, negou provimento ao recurso na sua totalidade.

    19

    A Randstad interpôs recurso desta decisão no Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), reiterando os argumentos apresentados em primeira instância. A Synergie e a Umana interpuseram recursos subordinados, censurando o Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) por ter julgado admissíveis os fundamentos através dos quais a Randstad contestou a regularidade do procedimento e, por conseguinte, a adjudicação a que o procedimento tinha conduzido.

    20

    Por Acórdão de 7 de agosto de 2019 (a seguir «Acórdão do Conselho de Estado, em formação jurisdicional»), o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) julgou improcedente o fundamento do recurso por meio do qual a Randstad contestou a nota atribuída à sua proposta técnica. Além disso, julgando procedentes os recursos subordinados interpostos pela Synergie e pela Umana, este órgão jurisdicional, através deste acórdão, reformou a decisão recorrida na parte em que o Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) os tinha julgado admissíveis e tinha apreciado o mérito dos fundamentos invocados pela Randstad para contestar a regularidade do procedimento.

    21

    Em apoio da sua decisão, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) declarou, nomeadamente, que a Randstad, «que foi excluída do procedimento por não sido aprovada na “prova de resistência” do limite mínimo que a nota atribuída à proposta técnica através da comparação por pares devia alcançar, e que não conseguiu demonstrar a ilegalidade do procedimento no que respeita à atribuição da referida nota, não só […] não tem direito de participar neste procedimento, como também não tem legitimidade processual para contestar os resultados deste em relação a outros aspetos, uma vez que tem um mero interesse de facto, análogo ao de qualquer operador económico do setor que não tenha participado no procedimento».

    22

    A Randstad interpôs recurso no órgão jurisdicional de reenvio, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), do Acórdão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional). Sustenta que este último órgão jurisdicional violou o seu direito a um recurso efetivo, consagrado nomeadamente no artigo 1.o da Diretiva 89/665. A este respeito, a Randstad refere‑se aos Acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de julho de 2013, Fastweb (C‑100/12, EU:C:2013:448), de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199), e de 5 de setembro de 2019, Lombardi (C‑333/18, EU:C:2019:675).

    23

    Segundo a Randstad, o fundamento relativo à violação do direito a um recurso efetivo figura de entre os fundamentos relativos à «competência jurisdicional» em relação aos quais o artigo 111.o oitavo parágrafo, da Constituição prevê que pode ser interposto ricorso per cassazione (recurso de cassação) das decisões do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional).

    24

    As outras partes no processo principal alegam que este ricorso per cassazione (recurso de cassação) não só é desprovido de fundamento, como é inadmissível. Este recurso refere‑se à legalidade da apreciação levada a cabo pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) e não diz assim respeito à questão da competência jurisdicional dos tribunais administrativos.

    25

    Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a recusa do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) em apreciar, numa situação como a do processo principal, os fundamentos relativos à irregularidade do procedimento violam o direito a um recurso efetivo, na aceção do direito da União.

    26

    Segundo este órgão jurisdicional, é necessário, para salvaguardar a uniformidade e a efetividade do direito da União, que se possa interpor ricorso per cassazione (recurso de cassação) de tal acórdão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), ao abrigo do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição. Com efeito, tal recurso constitui a última via de recurso para evitar que uma decisão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) contrária ao direito da União adquira força de caso julgado.

    27

    A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, quando o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) procede a uma aplicação ou a uma interpretação de disposições nacionais incompatível com as disposições do direito da União, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça, está a exercer um poder jurisdicional que não possui. Na realidade, exerceria nesse caso um poder de criar direito que nem sequer é da competência do legislador nacional. Tal equivaleria a uma falta de competência jurisdicional de que se deve poder interpor recurso.

    28

    No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que resulta do Acórdão n.o 6/2018 da Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), de 18 de janeiro de 2018, relativo à interpretação do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição (ECLI:IT:COST:2018:6; a seguir «Acórdão n.o 6/2018»), que, no estado atual do direito constitucional italiano, não se pode equiparar um fundamento relativo a uma violação do direito da União a um fundamento relativo à «competência jurisdicional», na aceção deste artigo 111.o, oitavo parágrafo.

    29

    Com efeito, em aplicação deste acórdão, o excesso de poder jurisdicional, que pode ser objeto de recurso a interpor na Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) com base em fundamentos respeitantes à competência jurisdicional, refere‑se exclusivamente a dois tipos de situações. Por um lado, tal recurso pode ser interposto em caso de total falta de competência, ou seja, quando o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ou a Corte dei conti (Tribunal de Contas) se declara competente numa área reservada ao legislador ou à administração, ou, pelo contrário, se declara incompetente com base na errada premissa de que a matéria em apreço não pode, de modo nenhum, ser objeto da sua fiscalização jurisdicional. Por outro lado, pode ser interposto recurso em caso de excesso de competência jurisdicional quando o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ou a Corte dei conti (Tribunal de Contas) se declarar competente para se pronunciar sobre uma matéria cuja competência atribuída a outra jurisdição ou, pelo contrário, se declarar erradamente incompetente para conhecer dessa matéria por considerar que outros órgãos jurisdicionais é que são competentes.

    30

    O órgão jurisdicional de reenvio considera que, se estiver obrigada a respeitar esta interpretação do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, lhe cabe julgar que o recurso de cassação interposto pela Randstad é inadmissível. Parece‑lhe, no entanto, que a referida interpretação é incompatível com o direito a um recurso efetivo, na aceção do direito da União. Se assim for, haverá que afastar as conclusões decorrentes do Acórdão n.o 6/2018 e apreciar o mérito do recurso de cassação da Randstad.

    31

    Este órgão jurisdicional indica que, segundo jurisprudência constante das suas Sezioni Unite anterior à prolação do Acórdão n.o 6/2018, em caso de interposição de recurso de acórdãos do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), a fiscalização dos limites externos da «competência jurisdicional», na aceção do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, abrange os casos de uma desvirtuação fundamental do direito suscetíveis de constituir uma denegação da justiça, como seja a aplicação de uma regra processual de direito nacional de uma forma que seja incompatível com o direito a um recurso efetivo conferido pelo direito da União.

    32

    Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio deseja que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a questão de saber se o direito a um recurso efetivo, conforme consagrado, nomeadamente, no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e no artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, se opõe à impossibilidade, decorrente nomeadamente do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, conforme interpretado pelo Acórdão n.o 6/2018, de invocar, no âmbito de um ricorso per cassazione (recurso de cassação) que tem por objeto um acórdão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), fundamentos relativos à violação do direito da União.

    33

    Por outro lado, uma vez que o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), no âmbito do processo principal, não questionou o Tribunal de Justiça sobre a pertinência, para o caso em apreço, dos Acórdãos de 4 de julho de 2013, Fastweb (C‑100/12, EU:C:2013:448), de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199), e de 5 de setembro de 2019, Lombardi (C‑333/18, EU:C:2019:675), invocados pela Randstad, importa que o órgão jurisdicional de reenvio possa, no âmbito do ricorso per cassazione (recurso de cassação) interposto por esta empresa, submeter esta questão ao Tribunal de Justiça.

    34

    Nestas condições, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Os artigos 4.o, n.o 3, TUE e 19.o, n.o 1, TUE e os artigos 2.o, n.os 1 e 2, TFUE e 267.o TFUE, interpretados igualmente à luz do artigo 47.o da [Carta], opõem‑se a uma prática interpretativa como a relativa ao artigo 111.o, oitavo parágrafo, da [Constituição], aos artigos 360.o, primeiro parágrafo […], 362.o, primeiro parágrafo, do [Código de Processo Civil], e ao artigo 110.o do [Código de Processo Administrativo] — na parte em que estas disposições admitem o ricorso per cassazione [recurso de cassação] contra os acórdãos do Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] por “fundamentos relativos à competência jurisdicional” — conforme decorre do Acórdão n.o 6 de 2018 da Corte costituzionale (Tribunal Constitucional italiano) e da jurisprudência nacional subsequente que, alterando a orientação anterior, considerou que o ricorso per cassazione [(recurso de cassação)], na perspetiva da chamada “falta de poder jurisdicional”, não pode ser utilizado para impugnar acórdãos do Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] que apliquem práticas interpretativas elaboradas a nível nacional contrárias aos acórdãos do Tribunal de Justiça, em domínios regulados pelo direito da União Europeia (no caso vertente, em matéria de adjudicação de contratos públicos) nos quais os Estados‑Membros renunciaram ao exercício dos seus poderes soberanos em sentido incompatível com aquele direito, com a consequência de implicar a consolidação de violações do direito da União que poderiam ser corrigidas por via do referido recurso e de prejudicar a aplicação uniforme do direito da União e a efetividade da proteção jurisdicional das situações jurídicas subjetivas de relevância comunitária, contrariando a exigência de que este direito seja aplicado de forma plena e rigorosa por qualquer órgão jurisdicional, de modo obrigatoriamente conforme à sua correta interpretação pelo Tribunal de Justiça, tendo em conta os limites da “autonomia processual” dos Estados‑Membros na configuração dos institutos processuais?

    2)

    Os artigos 4.o, n.o 3, TUE e 19.o, n.o 1, TUE, e o artigo 267.o TFUE, igualmente à luz do artigo 47.o da [Carta], opõem‑se à interpretação e aplicação do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da [Constituição], dos artigos 360.o primeiro parágrafo […], […] 362.o, primeiro parágrafo, do [Código de Processo Civil] e do artigo 110.o do [Código de Processo Administrativo], da qual decorre a prática jurisprudencial nacional segundo a qual o ricorso per cassazione [(recurso de cassação)] nas Sezioni Unite por “fundamentos relativos à competência jurisdicional”, na perspetiva da chamada “falta de poder jurisdicional”, não pode ser interposto como meio de impugnação dos acórdãos do Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] que, ao dirimir litígios sobre questões relativas à aplicação do direito da União, não procedem injustificadamente ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, sem que estejam reunidas as condições, objeto de interpretação estrita, taxativamente indicadas pelo Tribunal de Justiça (a partir do Acórdão de 6 de outubro de 1982, Cilfit,C‑238/81, EU:C:1982:335), que dispensam o órgão jurisdicional nacional da obrigação referida, contrariando o princípio segundo o qual são incompatíveis com o direito da União as regulamentações ou práticas processuais nacionais, ainda que de fonte legislativa ou constitucional, que preveem uma privação, ainda que temporária, da liberdade do órgão jurisdicional nacional (de última instância ou não) de proceder ao reenvio prejudicial, com a consequência de usurpar a competência exclusiva do Tribunal de Justiça para a interpretação correta e vinculativa do direito da União, de tornar irremediável (e favorecer a sua consolidação) a eventual incompatibilidade interpretativa entre o direito aplicado pelo órgão jurisdicional nacional e o direito da União e de prejudicar a aplicação uniforme e a efetividade da proteção jurisdicional das situações jurídicas subjetivas decorrentes do direito da União?

    3)

    Os princípios enunciados pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 5 de setembro de 2019, Lombardi,C‑333/18, EU:C:2019:675, de 5 de abril de 2016, Puligienica, C‑689/13, ECLI:EU:C:2016:199, e de 4 de julho de 2013, Fastweb, C‑100/12, EU:C:2013:448, em relação aos artigos 1.o, n.os 1 e 3, e 2.o, n.o 1, da Diretiva [89/665], alterada pela Diretiva [2007/66], são aplicáveis aos factos que constituem o objeto do processo principal, no qual, na medida em que a empresa concorrente impugna a sua exclusão de um procedimento de concurso e a adjudicação a outra empresa, o Consiglio di Stato [(Conselho de Estado, em formação jurisdicional)] analisou quanto ao mérito o único fundamento de recurso com o qual a empresa excluída contestava a pontuação inferior ao “limite mínimo” atribuída à sua proposta técnica e, examinando prioritariamente os recursos subordinados da entidade adjudicante e da empresa adjudicatária, lhes deu provimento, declarando inadmissíveis (e não os analisando quanto ao mérito) os outros fundamentos do recurso principal que contestavam o resultado do concurso por outras razões (indeterminação dos critérios de avaliação das propostas na regulamentação do concurso, falta de fundamentação das classificações atribuídas, nomeação ilegal e composição do júri do concurso), em aplicação de uma prática jurisprudencial nacional segundo a qual a empresa que tenha sido excluída de um concurso público não pode apresentar alegações destinadas a impugnar a adjudicação à empresa concorrente, mesmo por meio da anulação do procedimento de concurso, devendo apreciar‑se se é compatível com o direito da União a consequência de privar a empresa do direito de submeter à apreciação do órgão jurisdicional qualquer fundamento de impugnação do resultado do concurso, numa situação em que a sua exclusão não foi declarada com caráter definitivo e em que cada concorrente pode invocar um interesse legítimo análogo na exclusão da proposta dos outros, que pode conduzir à declaração da impossibilidade de a entidade adjudicante proceder à escolha de uma proposta regular e à abertura de um novo processo de concurso no qual poderiam participar todos os proponentes?»

    Pedido de tramitação acelerada e tramitação processual no Tribunal de Justiça

    35

    No seu pedido de decisão prejudicial, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação acelerada nos termos do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, em substância, porque o litígio no processo principal suscita graves incertezas relativamente a questões fundamentais de natureza constitucional no direito nacional, porque em Itália se encontram pendentes numerosos litígios semelhantes e porque o litígio no processo principal se insere no domínio da contratação pública, cuja importância no direito da União o órgão jurisdicional de reenvio sublinha.

    36

    O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode decidir, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos.

    37

    A este respeito, importa recordar que tal tramitação acelerada constitui um instrumento processual destinado a responder a uma situação de urgência extraordinária [Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 32 e jurisprudência referida].

    38

    No caso em apreço, em 21 de outubro de 2020, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, indeferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio referido no n.o 35 do presente acórdão.

    39

    Com efeito, a circunstância de o processo dizer respeito a um aspeto importante da organização judiciária do Estado‑Membro em causa não constitui, por si só, uma razão que determine uma urgência extraordinária, necessária para justificar que o processo seja submetido a tramitação acelerada. Sucede o mesmo com a circunstância de um número importante de pessoas ou de situações jurídicas serem potencialmente afetadas pelas questões colocadas (v., neste sentido, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 18 de setembro de 2018, Tedeschi e Consorzio Stabile Istant Service, C‑402/18, não publicado, EU:C:2018:762, n.o 15) ou ainda de o litígio no processo principal dizer respeito ao domínio da contratação pública (v., neste sentido, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2014, Star Storage, C‑439/14, não publicado, EU:C:2014:2479, n.os 10 a 15).

    40

    No entanto, atendendo à natureza e à importância das questões colocadas, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu submeter o presente processo a tratamento prioritário, em conformidade com o disposto no artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

    41

    Por outro lado, o Governo italiano requereu, ao abrigo do disposto no artigo 16.o, terceiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Tribunal de Justiça reunisse em Grande Secção.

    Questões prejudiciais

    Primeira questão

    42

    A título preliminar, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 61 e jurisprudência referida).

    43

    A primeira questão diz respeito à tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos pelo direito da União. Tem essencialmente por objeto a questão de saber se esta tutela é violada quando o supremo tribunal da hierarquia da ordem judiciária de um Estado‑Membro não é competente para anular um acórdão proferido em violação do direito da União pelo supremo tribunal da hierarquia da ordem administrativa deste Estado‑Membro.

    44

    Ora, como o advogado‑geral salientou no n.o 59 das suas conclusões, o artigo 2.o, n.os 1 e 2, e o artigo 267.o TFUE, mencionados na primeira questão, não revestem nenhuma pertinência para este efeito.

    45

    A este respeito, há que observar, por um lado, que o artigo 2.o TFUE diz respeito à repartição, entre a União e os seus Estados‑Membros, da competência para legislar e adotar atos juridicamente vinculativos. As regras que se encontram enunciadas, a este respeito, nos n.os 1 e 2 deste artigo são alheias à questão da competência jurisdicional suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

    46

    No que respeita, por outro lado, ao artigo 267.o TFUE, há que recordar que este faz parte de um sistema destinado a garantir a fiscalização jurisdicional do respeito pelo direito da União, sendo esta fiscalização assegurada, como resulta do artigo 19.o, n.o 1, TUE, não apenas pelo Tribunal de Justiça mas também pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de março de 2018, European Union Copper Task Force/Comissão, C‑384/16 P, EU:C:2018:176, n.o 112, e de 25 de fevereiro de 2021, VodafoneZiggo Group/Comissão, C‑689/19 P, EU:C:2021:142, n.o 143). No âmbito deste sistema, o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir (Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 16 e jurisprudência referida). Ora, a problemática suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio a título da sua primeira questão, que, como resulta do n.o 43 do presente acórdão, consiste em saber em que medida, para efeitos de assegurar a tutela jurisdicional efetiva exigida pelo direito da União, deve ser conferida competência ao supremo tribunal nacional da hierarquia dos tribunais judiciais para exercer uma fiscalização jurisdicional sobre os acórdãos proferidos pelo supremo tribunal da hierarquia administrativa nacional, não tem, em si mesma, nenhuma relação com este mecanismo de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituído pelo artigo 267.o TFUE.

    47

    Por conseguinte, a primeira questão deve ser reformulada, devendo afastar‑se do seu objeto o artigo 2.o, n.os 1 e 2, e o artigo 267.o TFUE.

    48

    Atendendo a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere, por outro lado, na sua primeira questão, ao direito à ação enunciado no artigo 47.o da Carta, há que recordar que, por força do artigo 51.o, n.o 1, desta última, esta tem por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União.

    49

    A este respeito, importa salientar que, no domínio da contratação pública, em causa no processo principal, o artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665 enuncia a obrigação de os Estados‑Membros preverem recursos eficazes. Daqui decorre, como o advogado‑geral salientou no n.o 67 das suas conclusões, que, neste domínio, o direito à ação e a um tribunal imparcial, consagrado no artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta, é pertinente, em especial, quando os Estados‑Membros fixam, em conformidade com esta obrigação, as modalidades processuais dos recursos judiciais que asseguram a proteção dos direitos conferidos pelo direito da União aos candidatos e aos proponentes lesados por decisões das entidades adjudicantes (v., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2021, Klaipėdos regiono atliekų tvarkymo centras, C‑927/19, EU:C:2021:700, n.o 128 e jurisprudência referida).

    50

    Por conseguinte, deve igualmente reformular‑se a primeira questão e incluir‑se no seu objeto o artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665, que deve ser lido à luz do artigo 47.o da Carta.

    51

    Resulta das considerações precedentes que a primeira questão deve ser entendida no sentido de que visa saber se o artigo 4.o, n.o 3, e o artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como o artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665, lido à luz do artigo 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição do direito interno de um Estado‑Membro que, segundo a jurisprudência nacional, tem por efeito que os particulares, como os proponentes que participaram num procedimento de contratação pública, não podem contestar a conformidade com o direito da União de um acórdão do supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos desse Estado‑Membro no âmbito de um recurso interposto no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais desse Estado‑Membro.

    52

    A este respeito, há que começar por recordar que, ao abrigo do princípio do primado do direito da União, não se pode admitir que regras de direito nacional, ainda que de ordem constitucional, ponham em causa a unidade e a eficácia do direito da União [Acórdão de 22 de junho de 2021, Latvijas Republikas Saeima (Pontos de penalização), C‑439/19, EU:C:2021:504, n.o 135 e jurisprudência referida].

    53

    Os efeitos decorrentes deste princípio impõem‑se a todos os órgãos de um Estado‑Membro, sem que, nomeadamente, as disposições internas relativas à repartição das competências jurisdicionais, incluindo de ordem constitucional, se lhes possam opor (Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 245 e jurisprudência referida).

    54

    Por conseguinte, em caso de violação comprovada de uma disposição do direito da União que impõe aos Estados‑Membros uma obrigação de resultado clara e precisa, os órgãos jurisdicionais nacionais devem, se necessário, não aplicar as disposições de direito interno que conduzem a essa violação, ainda que estas disposições sejam de natureza constitucional (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 250 e 251 e jurisprudência referida). Quando a incompatibilidade de uma disposição de direito interno com o direito da União tem a sua origem, mais especificamente, na interpretação dessa disposição efetuada por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro em causa, há que afastar essa jurisprudência (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, EU:C:2016:199, n.o 38 e jurisprudência referida).

    55

    Importa assim examinar se uma limitação da possibilidade de interpor recurso de cassação dos acórdãos do supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos de um Estado‑Membro, como ocorre no caso em apreço, de acordo com a interpretação resultante do Acórdão n.o 6/2018, do artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, colide com as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva impostas pelo direito da União e, consequentemente, com a unidade e a eficácia deste direito.

    56

    Relativamente a estas exigências, há que recordar que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE obriga os Estados‑Membros a estabelecerem as vias judiciais necessárias para assegurar aos particulares, nos domínios abrangidos pelo direito da União, o respeito do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz et Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 32 e jurisprudência referida).

    57

    O princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, a que esta disposição se refere, constitui um princípio geral do direito da União que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, que foi consagrado nos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, e que se encontra atualmente afirmado no artigo 47.o da Carta [v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 52 e jurisprudência referida].

    58

    No entanto, sem prejuízo da existência de regras da União na matéria, cabe, ao abrigo do princípio da autonomia processual, à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das vias judiciais referidas no n.o 56 do presente acórdão, desde que, no entanto, estas modalidades não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União, menos favoráveis do que aquelas que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2021, Konsul Rzeczypospolitej Polskiej w N., C‑949/19, EU:C:2021:186, n.o 43 e jurisprudência referida).

    59

    Assim, o direito da União, em princípio, não se opõe a que os Estados‑Membros limitem ou submetam a condições os fundamentos suscetíveis de serem invocados em sede de recursos de cassação, sem prejuízo do respeito pelos princípios da efetividade e da equivalência. (Acórdão de 17 de março de 2016, Bensada Benallal, C‑161/15, EU:C:2016:175, n.o 27).

    60

    No que se refere ao respeito pelo princípio da equivalência, afigura‑se, à luz das informações fornecidas no despacho de reenvio e na audiência no Tribunal de Justiça, que o artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, conforme interpretado no Acórdão n.o 6/2018, limita, de acordo com as mesmas modalidades, a competência da Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) para conhecer de recursos interpostos de acórdãos do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), independentemente de terem por fundamento disposições de direito nacional ou disposições de direito da União.

    61

    Nestas condições, deve considerar‑se que tal regra do direito interno não viola o princípio da equivalência.

    62

    No que se refere ao princípio da efetividade, importa recordar que o direito da União não tem por efeito obrigar os Estados‑Membros a instituírem vias processuais diferentes das previstas no direito interno, a menos, no entanto, que resulte da sistemática da ordem jurídica nacional em causa que não existe nenhuma via processual que permita, ainda que a título incidental, assegurar o respeito pelos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, ou que a única via de acesso aos tribunais signifique que os litigantes estão obrigados a violar a lei (v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság Dél‑alföldi Regionális Igazgatóság, C‑924/19 PPU e C‑925/19 PPU, EU:C:2020:367, n.o 143 e jurisprudência referida).

    63

    No caso em apreço, embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se existe, em princípio, na ordem jurídica italiana, semelhante via processual no domínio da contratação pública, nenhum elemento mencionado no pedido de decisão prejudicial ou nas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça permite a priori pensar que o direito processual italiano tem, em si mesmo, por efeito tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício, neste domínio do direito administrativo, dos direitos conferidos pelo direito da União.

    64

    Numa situação caracterizada pela existência de tal via de recurso jurisdicional que permite assegurar o respeito pelos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, conforme decorre da jurisprudência recordada no n.o 62 do presente acórdão, o Estado‑Membro em causa pode perfeitamente, à luz do direito da União, atribuir competência ao supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos para decidir em última instância, quanto aos factos e quanto ao direito, sobre o litígio em causa e impedir, consequentemente, que este possa voltar a ser apreciado quanto ao mérito no âmbito de um recurso de cassação no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais.

    65

    Daqui resulta que, desde que seja provado que existe uma via de recurso jurisdicional como a que foi descrita no número anterior, uma regra de direito interno como o artigo 111.o, oitavo parágrafo, da Constituição, na interpretação decorrente do Acórdão n.o 6/2018, também não viola o princípio da efetividade nem revela nenhum elemento do qual resulte a violação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

    66

    Esta conclusão não pode ser posta em causa à luz do artigo 4.o, n.o 3, TUE, que obriga os Estados‑Membros a tomarem todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União. Com efeito, no que respeita ao sistema das vias judiciais necessárias para assegurar, nos domínios abrangidos pelo direito da União, uma fiscalização jurisdicional efetiva, o artigo 4.o, n.o 3, TUE não pode ser interpretado no sentido de que exige que os Estados‑Membros estabeleçam novas vias judiciais, que, contudo, não lhes são impostas ao abrigo do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

    67

    No domínio específico da contratação pública, o artigo 1.o da Diretiva 89/665, lido à luz do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, também não se opõe à referida conclusão.

    68

    Resulta do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 89/665 que, nas condições enunciadas nos seus artigos 2.o a 2.o‑F, a decisão tomada pela entidade adjudicante num procedimento de contratação pública abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24 ou da Diretiva 2014/23 deve poder ser objeto de recursos eficazes e tão céleres quanto possível com vista a contestar a conformidade dessa decisão com o direito da União em matéria de contratação pública ou com as regras nacionais que transpuseram esse direito. O referido artigo 1.o precisa, por outro lado, no seu n.o 3, que os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

    69

    Se os particulares tiverem acesso, no domínio em causa, a um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei, na aceção do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, o que parece ser o caso, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, na ordem jurídica italiana, uma regra de direito nacional que impede que as apreciações quanto ao mérito efetuadas pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos possam voltar a ser apreciadas pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais não pode ser considerada uma restrição, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, ao direito de aceder a um tribunal imparcial consagrado no artigo 47.o desta.

    70

    No entanto, há que recordar que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a admissibilidade dos recursos referidos no artigo 1.o da Diretiva 89/665 não pode ser submetida à condição de o recorrente fazer prova de que a entidade adjudicante será, no caso de o recurso ser julgado procedente, obrigada a repetir o procedimento de contratação pública. Deve considerar‑se que a existência de tal possibilidade é a este respeito suficiente (v., neste sentido, Acórdão de 5 de setembro de 2019, Lombardi, C‑333/18, EU:C:2019:675, n.o 29).

    71

    Daqui resulta que, num caso, como o do processo principal, em que a Randstad, enquanto proponente excluído de um procedimento de contratação pública, interpôs no órgão jurisdicional administrativo de primeira instância um recurso que se baseia em fundamentos destinados a demonstrar a irregularidade desse procedimento, este recurso deve ser apreciado quanto ao mérito.

    72

    No que se refere aos proponentes excluídos do procedimento de contratação pública, o artigo 2.o‑A da Diretiva 89/665 especifica que estes já não se consideram interessados e, por conseguinte, não lhes deve ser facultada a comunicação da decisão de adjudicação se tiverem sido definitivamente excluídos. Em contrapartida, quando estes proponentes ainda não tiverem sido definitivamente excluídos, a decisão de adjudicação, acompanhada de uma exposição sintética dos motivos relevantes e da indicação do prazo suspensivo para a celebração do contrato que se segue a essa decisão, deve ser‑lhes comunicada. Resulta de uma leitura conjugada dos n.os1 e 2 deste artigo que o respeito por estas condições mínimas visa permitir‑lhes interpor um recurso eficaz que tenha por objeto a referida decisão.

    73

    Nos termos do artigo 2.o‑A, n.o 2, da Diretiva 89/665, a exclusão de um proponente é definitiva se lhe tiver sido notificada e se tiver sido «considerada legal» por uma «instância de recurso independente» ou já não puder ser objeto de recurso. Esta diretiva, que visa assegurar o respeito pleno pelo direito a um recurso efetivo e de acesso a um tribunal imparcial (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Star Storage e o., C‑439/14 e C‑488/14, EU:C:2016:688, n.o 45), deve ser interpretada à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta. Nestas condições, a expressão «instância de recurso independente», na aceção deste artigo 2.o‑A, deve, para efeitos de determinar se a exclusão de um proponente se tornou definitiva, ser entendida no sentido de que visa um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei, na aceção do artigo 47.o da Carta.

    74

    O caráter ainda não definitivo da decisão de exclusão determina assim, para estes proponentes, a legitimidade para agir contra a decisão de adjudicação, não podendo esta legitimidade ser posta em causa por outros elementos, não pertinentes, como a classificação da proposta do proponente excluído ou o número de participantes no procedimento de contratação pública (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.os 57 e 58, e de 5 de setembro de 2019, Lombardi, C‑333/18, EU:C:2019:675, n.os 29 a 32).

    75

    No caso em apreço, ao ter decidido que a instância de recurso independente chamada a pronunciar‑se em primeira instância, a saber, o Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta), devia ter julgado inadmissíveis os fundamentos que visavam pôr em causa a decisão de adjudicação, pelo facto de a Randstad ter sido excluída do procedimento, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) violou a referida regra, fixada pelo legislador da União e recordada na jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual só a exclusão definitiva, na aceção do artigo 2.o‑A, n.o 2, da Diretiva 89/665, pode ter por efeito privar um proponente da sua legitimidade para agir contra a decisão de adjudicação.

    76

    A este respeito, importa salientar, no que respeita aos factos em causa no processo principal, que resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que, tanto no momento em que a Randstad interpôs o seu recurso no Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) como no momento em que este se pronunciou, a decisão da comissão de adjudicação de a excluir do procedimento ainda não tinha sido declarada lícita pelo Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) ou por uma qualquer outra instância de recurso independente.

    77

    Afigura‑se, assim, que a reforma da decisão do Tribunale amministrativo regionale della Valle d’Aosta (Tribunal Administrativo Regional do Vale de Aosta) efetuada pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), que julgou inadmissível a parte do recurso da Randstad através da qual esta questionou a adjudicação ao agrupamento Synergie‑Umana, é incompatível com o direito a um recurso efetivo garantido pelo artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665, lido à luz do seu artigo 2.o‑A, n.o 2. Por conseguinte, o acórdão do Conselho de Estado, em formação jurisdicional, também não é conforme com o artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta.

    78

    Todavia, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, o direito processual nacional permite, por si só, que os interessados interponham recurso num tribunal independente e imparcial e invoquem perante este último, de forma efetiva, uma violação do direito da União e das disposições de direito nacional que transpõem este direito para a ordem jurídica interna, mas em que o supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos do Estado‑Membro em causa, decidindo em última instância, subordina indevidamente a admissibilidade desse recurso a condições que têm por efeito privar os interessados do seu direito a um recurso efetivo, o direito da União não exige que esse Estado‑Membro preveja, para sanar a violação desse direito a um recurso efetivo, a possibilidade de interpor recurso no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais dessas decisões de inadmissibilidade proferidas pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos, quando semelhante recurso não esteja previsto no seu direito nacional.

    79

    Em semelhante situação, a solução contra a violação da Diretiva 89/665 e do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta resultante da jurisprudência do órgão jurisdicional administrativo supremo reside na obrigação, que se impõe a qualquer órgão jurisdicional da hierarquia dos tribunais administrativos do Estado‑Membro em causa, incluindo ao próprio supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos, de afastar essa jurisprudência não conforme com o direito da União, e, em caso de incumprimento dessa obrigação, na possibilidade de a Comissão Europeia intentar uma ação por incumprimento contra esse Estado‑Membro.

    80

    Por outro lado, os particulares que, eventualmente, tenham sido lesados pela violação do seu direito a um recurso efetivo devido a uma decisão de um órgão jurisdicional que se pronuncie em última instância, podem responsabilizar judicialmente o referido Estado‑Membro, desde que estejam preenchidos os requisitos relativos ao caráter suficientemente caracterizado da violação e à existência de um nexo de causalidade direto entre essa violação e o dano sofrido pela pessoa lesada (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 30 de setembro de 2003, Köbler, C‑224/01, EU:C:2003:513, n.o 59; de 24 de outubro de 2018, XC e o., C‑234/17, EU:C:2018:853, n.o 58, e de 4 de março de 2020, Telecom Italia, C‑34/19, EU:C:2020:148, n.os 67 a 69).

    81

    Atendendo a todas as considerações que precedem, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o, n.o 3, e o artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como o artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665, lido à luz do artigo 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma disposição do direito interno de um Estado‑Membro que, segundo a jurisprudência nacional, tem por efeito que os particulares, como os proponentes que participaram num procedimento de contratação pública, não podem contestar a conformidade com o direito da União de um acórdão proferido pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos desse Estado‑Membro no âmbito de um recurso interposto no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais do referido Estado‑Membro.

    Quanto à segunda questão

    82

    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 3, TUE, o artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como o artigo 267.o, TFUE, lidos à luz do artigo 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição do direito interno que, segundo a jurisprudência nacional, tem por efeito que os particulares não podem contestar, no âmbito de um recurso de cassação interposto no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais desse Estado‑Membro um acórdão proferido pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos desse mesmo Estado‑Membro, a não submissão injustificada, por parte deste último órgão jurisdicional que se pronuncia em última instância, de um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, embora haja incertezas a respeito da correta interpretação do direito da União.

    83

    Ora, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que, no âmbito do seu recurso de cassação, a Randstad não apresentou fundamentos relativos ao facto de o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), em violação do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, não ter submetido um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, o que a Randstad, questionada a este respeito na audiência no Tribunal de Justiça, confirmou.

    84

    Daqui resulta que o órgão jurisdicional de reenvio não tem de se pronunciar, no âmbito do litígio que lhe foi submetido, sobre a questão de saber se, à luz das exigências decorrentes do direito da União, os Estados‑Membros são obrigados a prever a possibilidade, na sua ordem jurídica, de interpor recurso no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais quando o supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos não tenha submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, pelo que a resposta à segunda questão é desprovida de pertinência para efeitos da resolução deste litígio.

    85

    Por conseguinte, uma vez que não tem nenhuma relação com o objeto do litígio no processo principal, a segunda questão é, nos termos de jurisprudência constante, inadmissível (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Ministrstvo za obrambo, C‑742/19, EU:C:2021:597, n.o 30 e jurisprudência referida).

    Quanto à terceira questão

    86

    Atendendo à resposta dada à primeira questão, não há que responder à terceira questão.

    Quanto às despesas

    87

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

     

    O artigo 4.o, n.o 3, e o artigo 19.o, n.o 1, TUE, bem como o artigo 1.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras, conforme alterada pela Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma disposição do direito interno de um Estado‑Membro que, segundo a jurisprudência nacional, tem por efeito que os particulares, como os proponentes que participaram num procedimento de contratação pública, não podem contestar a conformidade com o direito da União de um acórdão proferido pelo supremo tribunal da hierarquia dos tribunais administrativos desse Estado‑Membro no âmbito de um recurso interposto no supremo tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais do referido Estado‑Membro.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: italiano.

    Início