Escolha as funcionalidades experimentais que pretende experimentar

Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62013CC0533

Conclusões do advogado-geral Szpunar apresentadas em 20 de Novembro de 2014.
Auto- ja Kuljetusalan Työntekijäliitto AKT ry contra Öljytuote ry e Shell Aviation Finland Oy.
Pedido de decisão prejudicial: Työtuomioistuin - Finlândia.
Reenvio prejudicial - Política social - Diretiva 2008/104/CE - Trabalho temporário - Artigo 4.º, n.º 1 - Proibições ou restrições ao recurso a trabalho temporário - Justificações - Razões de interesse geral - Obrigação de reexame - Alcance.
Processo C-533/13.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2014:2392

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 20 de novembro de 2014 ( 1 )

Processo C‑533/13

Auto‑ ja Kuljetusalan Työntekijäliitto AKT ry

contra

Öljytuote ry,

Shell Aviation Finland Oy

[pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo työtuomioistuin (Finlândia)]

«Trabalho temporário — Diretiva 2008/104/CE — Artigo 4.o, n.o 1 — Proibições ou restrições ao recurso ao trabalho temporário — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 28.o — Direito de negociação e de ação coletiva — Fiscalização da compatibilidade de uma cláusula de convenção coletiva com o direito da União — Papel do juiz nacional — Litígio horizontal»

I – Introdução

1.

O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de interpretar, pela primeira vez, a Diretiva 2008/104/CE relativa ao trabalho temporário ( 2 ).

2.

O sindicato finlandês dos trabalhadores dos transportes intentou no työtuomioistuin (Tribunal do Trabalho, Finlândia) uma ação destinada a obter a condenação de uma empresa desse setor e de uma associação patronal, por violação de uma cláusula da convenção coletiva aplicável, nomeadamente da cláusula relativa ao recurso ao trabalho temporário. O órgão jurisdicional finlandês interroga‑se sobre a questão de saber se esta cláusula constitui uma restrição injustificada do recurso ao trabalho temporário incompatível com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 e se, por conseguinte, não deve ser aplicada.

3.

Este litígio no processo principal diz respeito a determinados aspetos sistémicos do direito da União. Por um lado, implica a procura de um equilíbrio entre o direito social da União e o princípio da livre prestação de serviços. Por outro lado, o Tribunal de Justiça pode ser levado a pronunciar‑se sobre o efeito direto da Diretiva 2008/104, no quadro de um litígio horizontal que opõe uma empresa a um sindicato de trabalhadores por conta de outrem.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

1. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

4.

O artigo 28.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), intitulado «Direito de negociação e de ação coletiva», dispõe:

«Os trabalhadores e as entidades patronais, ou as respetivas organizações, têm, de acordo com o direito da União e as legislações e práticas nacionais, o direito de negociar e de celebrar convenções coletivas aos níveis apropriados, bem como de recorrer, em caso de conflito de interesses, a ações coletivas para a defesa dos seus interesses, incluindo a greve.»

2. Diretiva 2008/104

5.

O artigo 4.o da Diretiva 2008/104, intitulado «Reexame das restrições ou proibições», dispõe:

«1.   Quaisquer proibições ou restrições ao recurso ao trabalho temporário são justificáveis apenas por razões de interesse geral respeitantes, nomeadamente, à proteção dos trabalhadores temporários, as exigências em matéria de saúde e segurança no trabalho ou à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e de prevenir abusos.

2.   Até 5 de dezembro de 2011, os Estados‑Membros, após consulta aos parceiros sociais em conformidade com a legislação nacional, as convenções coletivas e as práticas nacionais, reexaminam as restrições ou proibições ao recurso a empresas de trabalho temporário com o propósito de verificar se são justificadas pelas razões indicadas no n.o 1.

3.   Se essas restrições ou proibições tiverem sido estabelecidas por convenções coletivas, o reexame referido no n.o 2 pode ser efetuado pelos parceiros sociais que tiverem negociado a referida convenção.

[…]

5.   Até 5 de dezembro de 2011, os Estados‑Membros informam a Comissão dos resultados do reexame a que se referem os n.os 2 e 3.»

B – Direito finlandês

1. Atos legislativos

6.

A Diretiva 2008/104 foi transposta para o direito finlandês pela alteração da Lei 55/2001, sobre o contrato de trabalho [työsopimuslaki (55/2001)], e da Lei 1146/1999, sobre os trabalhadores destacados [lähetetyistä työntekijöistä annettu laki (1146/1999)].

7.

Como informa o órgão jurisdicional de reenvio, resulta da exposição dos fundamentos do projeto de lei de alteração que o Governo finlandês considerou a obrigação de reexame a que se refere o artigo 4.o da Diretiva 2008/104 como uma exigência administrativa pontual de reexaminar as restrições e as proibições de recurso ao trabalho temporário e de informar a Comissão do resultado desse reexame. Como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, de acordo com esse projeto, o referido artigo 4.o não impõe aos Estados‑Membros que alterem a sua legislação, mesmo no caso de não ser possível justificar uma restrição ao recurso ao trabalho temporário por razões de interesse geral.

8.

Em 29 de novembro de 2011, o Governo finlandês comunicou à Comissão os resultados do reexame previsto no artigo 4.o, n.os 2 e 3, da Diretiva 2008/104.

2. Convenções coletivas

9.

A Convenção Coletiva Geral celebrada em 1997 entre as organizações centrais que representam respetivamente os empregadores e os sindicatos ( 3 ) (a seguir «convenção geral de 1997») estipula, no seu artigo 8.o, n.o 3:

«As empresas devem limitar o recurso ao trabalho temporário às situações em que devam fazer face a picos de trabalho ou a outras tarefas, limitadas no tempo ou pela sua natureza, que, por razões de urgência, de duração limitada, de competências profissionais, de utilização de instrumentos especializados ou por outras razões similares, não possam realizar recorrendo ao seu próprio pessoal.

A contratação de mão de obra temporária constitui uma prática desleal se os trabalhadores forem utilizados pelas empresas que recorrem a mão de obra exterior efetuarem durante longos períodos o trabalho normal da empresa, a par dos seus trabalhadores permanentes e forem colocados sob a mesma direção.

[…]»

10.

A Convenção Coletiva do Setor dos Camiões‑Cisterna e dos Produtos Petrolíferos (a seguir «convenção sectorial») contém uma disposição análoga na sua cláusula 29.a, n.o 1.

III – Litígio no processo principal

11.

O Auto‑ ja Kuljetusalan Työntekijäliitto AKT ry (a seguir «AKT») é o sindicato que representa, entre outros, os trabalhadores do setor dos camiões‑cisterna e dos produtos petrolíferos.

12.

A Shell Aviation Finland Oy (a seguir «Shell») fornece combustível em 18 aeroportos na Finlândia. É membro da associação dos empregadores do setor dos combustíveis, a Öljytuote ry (a seguir «Öljytuote»).

13.

O AKT submeteu ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido com vista a obter a condenação da Öljytuote e da Shell no pagamento da penalidade financeira prevista no artigo 7.o da Lei 36/1946 sobre as convenções coletivas [työoehtosopimuslaki (36/1946)], com fundamento na violação da cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial. Na sua ação, o AKT alega que a Shell utiliza regularmente, desde 2008, pessoal temporário, numa escala considerável, para efetuar tarefas idênticas às desempenhadas pelos seus próprios trabalhadores. Esta utilização de mão de obra temporária constitui uma prática desleal na aceção da disposição da convenção em causa.

14.

As demandadas contrapõem que o recurso a trabalhadores temporários era justificado por motivos legítimos, uma vez que visava, no essencial, assegurar a substituição de trabalhadores durante os períodos de férias anuais e de baixa por doença. Além disso, alegam que a cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial contém uma restrição que não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104. Segundo as demandadas, o órgão jurisdicional nacional está obrigado a afastar a aplicação das disposições da convenção contrárias à Diretiva 2008/104.

15.

O órgão jurisdicional de reenvio informa que, embora o alcance da obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 4.o da Diretiva 2008/104 suscite dúvidas, esta disposição pode ser interpretada no sentido de que impõe aos referidos Estados‑Membros uma obrigação de garantir que as respetivas ordens jurídicas não comportem restrições ou proibições injustificadas em matéria de trabalho temporário. Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial segue uma abordagem diferente da prevista na Diretiva 2008/104, na medida em que proíbe a utilização de trabalhadores temporários, salvo em determinados casos específicos, com o objetivo de proteger os trabalhadores permanentes das empresas.

16.

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre as consequências que deverão ser retiradas da eventual incompatibilidade de uma disposição nacional com a Diretiva 2008/104 num caso como o do processo principal, que respeita a um litígio entre particulares.

IV – Questões prejudiciais e processo no Tribunal de Justiça

17.

Foi neste contexto que o työtuomioistuin decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [2008/104] ser interpretado no sentido de que impõe às autoridades nacionais, incluindo aos órgãos jurisdicionais, a obrigação de se certificarem permanentemente, através dos meios à sua disposição, de que não existem disposições legais ou cláusulas de convenções coletivas nacionais que sejam contrárias às regras estabelecidas pela [referida] diretiva, ou, no caso de existirem, que as mesmas não são aplicadas?

2)

Deve o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [2008/104] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional segundo a qual a utilização de mão de obra temporária só é autorizada em certos casos precisos, como situações de picos de trabalho ou tarefas que uma empresa não pode cometer aos seus próprios trabalhadores? É possível qualificar de recurso ilícito ao trabalho temporário a afetação de trabalhadores temporários às atividades comuns da empresa durante um longo período, a par dos próprios trabalhadores desta?

3)

Caso a regulamentação nacional seja declarada contrária à Diretiva [2008/104], quais são os meios de que um órgão jurisdicional dispõe para dar execução aos objetivos da [referida] diretiva, quando está em causa uma convenção coletiva que deve ser respeitada nas relações entre pessoas privadas?»

18.

A decisão de reenvio, datada de 4 de outubro de 2013, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 9 de outubro de 2013. Foram apresentadas observações escritas pelo AKT, Öljytuote, Shell, pelos Governos finlandês, alemão, francês, húngaro, polaco, sueco e norueguês, bem como pela Comissão.

19.

Estas partes e interessados, com exceção dos Governos francês, húngaro e polaco, também participaram na audiência, que se realizou em 9 de setembro de 2014.

V – Análise

20.

As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenviam dizem respeito a três problemáticas relacionadas com a interpretação do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104:

em primeiro lugar, o alcance das obrigações que a referida disposição impõe aos Estados‑Membros;

em segundo lugar, a possibilidade de justificar, face a esta disposição, as restrições do recurso ao trabalho temporário previstas na convenção setorial; e

em terceiro lugar, a questão de saber se a disposição da diretiva em causa pode ser invocada num litígio entre particulares.

21.

Procederei à análise das questões pela mesma ordem.

A – Quanto ao alcance das obrigações decorrentes do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 (primeira questão)

1. Observações preliminares

22.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de suprimir as proibições ou restrições ao recurso ao trabalho temporário, quando estas não possam ser justificadas por razões de interesse geral.

23.

As partes no processo principal e os interessados dividem‑se quanto à interpretação da referida disposição.

24.

Algumas partes consideram que a disposição em causa impõe que os Estados‑Membros eliminem as restrições do recurso ao trabalho temporário que não podem ser justificadas ( 4 ).

25.

Outras partes ( 5 ) sustentam, pelo contrário, que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 não prevê nenhuma obrigação material, mas deve ser lido conjuntamente com o seu n.o 2. Este prevê a obrigação de os Estados‑Membros efetuarem um reexame das restrições aplicáveis ao trabalho temporário, antes do prazo de transposição da Diretiva 2008/104, com o propósito de verificar se são justificadas pelas «razões indicadas no n.o 1». Por conseguinte, o alcance do n.o 1 deste artigo limita‑se a circunscrever o objeto do referido reexame. O n.o 1 não impõe designadamente aos Estados‑Membros uma obrigação de resultado destinada a assegurar que as restrições existentes nas suas legislações são efetivamente justificadas por razões de interesse geral.

2. Interpretação literal e teleológica

26.

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, as proibições ou restrições ao recurso ao trabalho temporário «são justificáveis apenas por razões de interesse geral», seguindo‑se então, uma lista indicativa destas razões.

27.

Observo que estes termos corroboram a interpretação da disposição em causa, segundo a qual as restrições que não são justificadas por razões de interesse geral, de que é dada uma lista indicativa ( 6 ), são incompatíveis com o direito da União. Com efeito, se a disposição em causa não se pronunciasse de forma alguma sobre a compatibilidade das restrições com o direito da União, a frase segundo a qual tais restrições «são justificáveis apenas» por razões de interesse geral perderia o seu sentido.

28.

Estes termos exprimem claramente uma regra material que compreende a proibição de restrições injustificadas. Contrariamente ao defendido por algumas partes ( 7 ), parece‑me difícil admitir que se trata de uma disposição puramente processual, semelhante às contidas nos números seguintes do mesmo artigo 4.o

29.

Esta interpretação parece‑me corroborada pelas considerações teleológicas subjacentes ao regulamento em questão.

30.

Nenhuma das partes contesta que a Diretiva 2008/104 abrange, por um lado, as condições de trabalho dos trabalhadores temporários e, por outro, as condições aplicáveis ao recurso ao trabalho temporário.

31.

Este duplo objetivo — que está refletido no próprio título da Diretiva 2008/104 ( 8 ) — é reiterado no artigo 2.o da referida diretiva, o qual se refere, por um lado, à necessidade de assegurar a proteção dos trabalhadores temporários e melhorar a qualidade do trabalho temporário, em especial assegurando que o princípio da igualdade de tratamento é aplicável aos trabalhadores temporários, e, por outro, à necessidade de estabelecer um quadro apropriado para do trabalho temporário, por forma a contribuir eficazmente para a criação de emprego e para o desenvolvimento de formas de trabalho flexíveis ( 9 ).

32.

As duas vertentes deste objetivo são complementares, pelo não se afigura coerente separá‑las. Com efeito, o aumento do grau de proteção dos trabalhadores temporários pode pôr em causa a necessidade de algumas proibições ou restrições existentes, o que deveria permitir uma maior abertura relativamente a esta forma de trabalho ( 10 ).

33.

Em certa medida, trata‑se de um aspeto comum dos três atos da União Europeia sobre o trabalho atípico, a respeito das relações de trabalho parcial ou temporário ( 11 ). A ação da União neste domínio teve por objetivo global o desenvolvimento das formas flexíveis de trabalho, ao mesmo tempo que procurava atingir um novo grau de harmonização do direito social ( 12 ). O modelo regulamentar subjacente a esta ação, assente na procura de um equilíbrio entre a flexibilidade e a segurança no mercado de trabalho, foi denominado «flexissegurança» ( 13 ).

34.

Segundo esse modelo, o recurso a formas flexíveis de trabalho deveria permitir reforçar a capacidade de adaptação do mercado de trabalho, criar mais empregos e melhorar o acesso de determinados grupos precários, como os trabalhadores jovens, ao trabalho por tempo indeterminado. Para alguns, este tipo de emprego pode servir de trampolim ‑ «stepping stone» ‑ no mercado de trabalho ( 14 ).

35.

A dualidade do seu objetivo encontra‑se na estrutura da Diretiva 2008/104 que, à parte as suas disposições introdutórias (âmbito de aplicação, objeto, definições) e finais, se articula em torno de dois eixos: o capítulo II, inteiramente dedicado às condições de trabalho dos trabalhadores temporários, e o seu artigo 4.o, inserido no capítulo I, relativo às restrições ao recurso ao trabalho temporário.

36.

Ora, não vejo de que forma o referido artigo 4.o pode contribuir para os objetivos da Diretiva 2008/104, na medida em que se limita a prever uma simples obrigação de os Estados‑Membros identificarem os obstáculos ao trabalho temporário, sem lhes associar a menor consequência vinculativa.

37.

Na minha opinião, lido à luz do seu objetivo, o referido artigo 4.o deve ser interpretado no sentido de que prevê não só obrigações processuais (n.os 2 a 5) mas também uma regra material (n.o 1). Esta regra material proíbe a manutenção das restrições ao recurso ao trabalho temporário, quando não são justificadas, designadamente tendo em conta a harmonização das condições mínimas de trabalho ( 15 ).

38.

Os n.os 2 a 5 do referido artigo 4.o preveem um mecanismo processual que visa ajudar a pôr em prática essa proibição, por via do reexame das restrições existentes a nível nacional, em complemento dos meios habituais de implementação do direito da União. Se o n.o 1 do mesmo artigo não comportasse a proibição de restrições injustificadas, este mecanismo processual não teria razão de ser.

39.

Não me parece razoável pretender que o legislador da União só tenha querido prever que os Estados‑Membros preparassem um inventário não vinculativo das restrições, a título puramente informativo e sem nenhuma consequência. A Comissão tem o direito de coligir tais informações no âmbito da missão geral que lhe incumbe, por força dos Tratados, de zelar pela aplicação do direito da União.

40.

A doutrina é quase unânime ao interpretar o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, no sentido de que impõe aos Estados‑Membros a obrigação de eliminar restrições injustificadas ao recurso ao trabalho temporário ( 16 ). Alguns autores referem que a referida disposição visa manifestamente encontrar um justo equilíbrio entre as liberdades do mercado interno e o direito social e que não teria nenhum efeito útil se fosse interpretada como uma simples recomendação ( 17 ).

41.

A mesma razão parece ter inspirado a declaração comum dos parceiros sociais a nível europeu no setor do trabalho temporário, divulgada pouco antes da aprovação formal da Diretiva 2008/104. Esta declaração, por um lado, reconhece a necessidade de introduzir determinadas restrições ao recurso ao trabalho temporário para prevenir os abusos, ao mesmo tempo que, por outro, refere que as restrições injustificadas devem ser eliminadas ( 18 ).

3. Trabalhos preparatórios

42.

Os trabalhos preparatórios parecem também advogar a favor do caráter vinculativo do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104.

43.

Algumas partes sustentam o contrário ( 19 ), alegando que a proposta de diretiva submetida pela Comissão ao Conselho da União Europeia continha, no seu artigo 4.o, n.o 2, uma disposição explícita, segundo a qual os Estados‑Membros reexaminam as restrições ao recurso ao trabalho temporário a fim de verificar se continuam a ser justificadas e, «[n]o caso de a resposta ser negativa, […] deverão suprimi‑las» ( 20 ). Dado que esta última frase foi retirada durante os debates no Conselho ( 21 ), isso implica, segundo as referidas partes, que o Conselho não quis proibir as restrições injustificadas.

44.

Parece‑me que este raciocínio segue uma pista falsa.

45.

Antes de mais, a alteração introduzida pelo Conselho durante o processo legislativo diz respeito ao artigo 4.o, n.o 2 da Diretiva 2008/104, relativo ao procedimento de reexame. Em contrapartida, o seu n.o 1, que está em causa no caso em apreço, foi transcrito tal qual na posição comum aprovada pelo Conselho.

46.

Além disso, a lista de razões de interesse geral que figura no referido n.o 1 foi amplamente debatida no decurso do processo legislativo ( 22 ). Porque teriam as instituições conferido tal importância a esta disposição se ela fosse desprovida de qualquer caráter vinculativo?

47.

A este respeito, os motivos da retirada da frase em causa do n.o 2 do referido artigo 4.o, segundo a qual os Estados‑Membros deviam «suprimir» as restrições, não podem ser estabelecidos com certeza. No entanto, a explicação mais plausível parece ser que o Conselho retirou essa passagem, porque a proibição de restrições injustificadas já constava do n.o 1, o qual permaneceu inalterado.

48.

Com efeito, na exposição de motivos da posição comum, o Conselho indica que «segui[u] essencialmente o espírito da alteração 34 do Parlamento» ( 23 ), mas «considerou desnecessário manter uma referência explícita à supressão de restrições e proibições injustificadas» ( 24 ). Aquando da comunicação da posição comum ao Parlamento, a Comissão referiu que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2008/104 seguia a alteração 34 do Parlamento, «salvo na medida em que já não refere o facto de os Estados‑Membros estarem sujeitos à obrigação de acabar com quaisquer restrições […], uma vez que o Conselho não considerou necessário repetir o efeito da proibição no n.o 1 do artigo 4.o ou pertinente precisar o resultado final do exercício de revisão» ( 25 ). Por conseguinte, a posição comum foi aprovada pelo Parlamento com base nestas considerações ( 26 ).

49.

Consequentemente, a génese da adoção da Diretiva 2008/104 vai ao encontro da interpretação, segundo a qual o seu artigo 4.o, n.o 1, proíbe a manutenção de restrições ao recurso ao trabalho temporário que não são justificadas por razões de interesse geral.

4. Base jurídica

50.

Por último, o Governo alemão levantou uma dúvida quanto à questão de saber se a base jurídica da Diretiva 2008/104 autorizava a inserção de uma disposição material com vista a suprimir as restrições ao recurso ao trabalho temporário.

51.

Observo que a base jurídica de um ato é pertinente para a sua interpretação, na medida em que pode clarificar os objetivos prosseguidos pelo legislador. Por outro lado, deve ser tomada em conta para excluir, de entre as diferentes interpretações possíveis, a que pode conduzir à invalidade do ato.

52.

A Diretiva 2008/104 assenta no anterior artigo 137.o, n.os 1 e 2, CE, que conferia às instituições a competência para «adotar, por meio de diretivas, prescrições mínimas progressivamente aplicáveis», designadamente, no que se refere às «condições de trabalho».

53.

Algumas partes ( 27 ) sustentam que esta base jurídica exclui a possibilidade de interpretar o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, no sentido de que proíbe as restrições injustificadas ao recurso ao trabalho temporário. Em sua opinião, tal proibição não se enquadra nas «condições de trabalho» e, além disso, não constitui uma «prescrição mínima» na aceção do anterior artigo 137.o CE.

54.

A lógica deste argumento não me convence.

55.

Parece‑me demonstrado que a Diretiva 2008/104 prossegue um duplo objetivo e que respeita não só às condições de trabalho dos trabalhadores temporários mas também às restrições ao recurso a essa forma de trabalho. De outro modo, o seu artigo 4.o, qualquer que fosse a sua interpretação, não faria sentido.

56.

A este propósito, segundo o argumento das partes já referidas, o anterior artigo 137.o CE não se opõe a que a Diretiva 2008/104 abranja as restrições ao recurso ao trabalho temporário. No entanto, estas partes sustentam que esta base jurídica permite unicamente impor aos Estados‑Membros obrigações muito «limitadas» ou «meramente processuais» relativamente a tais restrições.

57.

A este respeito, recordo que a escolha da base jurídica do ato deve basear‑se em elementos objetivos, e designadamente na finalidade e no conteúdo do ato ( 28 ). Ora, não vejo nenhum elemento objetivo que possa justificar uma distinção, no quadro do anterior Tratado CE, entre as disposições materiais e as disposições processuais, quando se trata de eliminar as restrições ao recurso a uma certa forma de trabalho.

58.

Se se considerasse que a base jurídica escolhida para a Diretiva 2008/104 não permite inserir disposições relativas ao recurso ao trabalho temporário, esta abordagem conduziria à invalidade do seu artigo 4.o, independentemente do facto de saber se prevê obrigações processuais ou obrigações materiais para os Estados‑Membros.

59.

Assim, o argumento segundo o qual o anterior artigo 137.o CE permite unicamente a inserção de certas obrigações processuais não me convence.

60.

Em seguida, importa perguntar se a interpretação, segundo a qual o artigo 4.o da Diretiva 2008/104 comporta a proibição das restrições injustificadas do recurso ao trabalho temporário, não põe em causa a sua validade.

61.

Recordo que, segundo jurisprudência constante, no caso de a análise de um ato da União demonstrar que esse ato prossegue uma dupla finalidade ou que tem duas componentes, e se uma delas for identificável como principal ou preponderante, sendo a outra apenas acessória, o ato deve ter por fundamento uma única base jurídica, ou seja, a exigida pela finalidade ou componente principal ou preponderante.

62.

É só a título excecional, quando se estabelecer que o ato prossegue simultaneamente vários objetivos que se encontram ligados de forma indissociável, sem que um seja secundário e indireto em relação ao outro, que esse ato deverá ser fundamentado nas diferentes bases jurídicas correspondentes ( 29 ).

63.

A componente principal da Diretiva 2008/104 é constituída pelas suas disposições em matéria de condições de trabalho, ocupando o seu artigo 4.o, claramente, uma posição assessória. Esta relação resulta, por um lado, da estrutura da Diretiva 2008/104 (em que um capítulo inteiro é consagrado às condições de trabalho) e, por outro, do raciocínio seguido aquando da sua adoção: só quando estiver realizada a harmonização das condições de trabalho pode justificar‑se uma certa liberalização do trabalho temporário.

64.

Por conseguinte, o facto de a Diretiva 2008/104 respeitar às disposições sociais do Tratado não a impede de prosseguir o objetivo assessório relativo à eliminação de determinadas restrições do trabalho temporário.

65.

A título de exemplo, observo que a Diretiva 97/81 relativa ao trabalho a tempo parcial, que foi adotada com base nas disposições sociais do Tratado, prossegue também uma dupla finalidade que consiste, por um lado, em promover o trabalho a tempo parcial e, por outro, eliminar as discriminações entre os trabalhadores a tempo parcial e os trabalhadores a tempo inteiro. Além disso, esta diretiva contém uma disposição destinada a eliminar os obstáculos ao trabalho a tempo parcial ( 30 ).

66.

Atendendo a estas considerações, penso que a Diretiva 2008/104 foi corretamente adotada com base no anterior artigo 137.o CE, sem fazer referência aos anteriores artigos 47.°, n.o 2, CE e 55.° CE, relativos aos serviços, apesar do facto de conter, no seu artigo 4.o, algumas disposições aplicáveis às restrições da prestação de serviços em matéria de trabalho temporário.

5. Compatibilidade com o artigo 28.o da Carta

67.

A demandante no processo principal, ao invocar o princípio da autonomia dos parceiros sociais, contesta também o facto de a proibição das restrições injustificadas relativas ao recurso ao trabalho temporário poder ser aplicada às cláusulas de convenções coletivas. Na sua opinião, tais cláusulas beneficiam de uma imunidade decorrente do direito fundamental à negociação coletiva consagrado no artigo 28.o da Carta.

68.

Recordo que é jurisprudência constante que os artigos 45.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE não se aplicam apenas a atos das autoridades públicas, sendo também são extensivos às regulamentações de outra natureza destinadas a regular, de forma coletiva, o trabalho assalariado, o trabalho independente e as prestações de serviços. O Tribunal de Justiça reafirmou reiteradamente que as convenções coletivas não estão subtraídas do âmbito de aplicação das disposições do Tratado ( 31 ). Assim, na medida em que a convenção coletiva contenha uma disposição que restrinja o recurso a trabalhadores temporários, entra no âmbito de aplicação do artigo 56.o TFUE.

69.

Embora o direito da União reconheça plenamente a autonomia dos parceiros sociais, o respetivo direito de negociar e celebrar convenções coletivas deve ser exercido no respeito do direito, inclusive do direito da União ( 32 ).

70.

Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que os parceiros sociais devem agir no respeito das obrigações do direito derivado da União que concretizem o princípio da não discriminação, no domínio do emprego e da atividade profissional. O facto de o direito da União se opor a uma disposição de uma convenção coletiva não prejudica o direito de negociar e de celebrar convenções coletivas reconhecido no artigo 28.o da Carta ( 33 ). Se uma disposição de um contrato coletivo é incompatível com o direito da União, o tribunal não deverá aplicá‑la ( 34 ).

71.

Na minha opinião, estas considerações aplicam‑se com a mesma força ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, uma vez que se trata de uma regra imperativa que aplica uma liberdade consagrada no Tratado e que não contém uma derrogação a favor das convenções coletivas ( 35 ).

72.

Esta abordagem está de acordo com o facto de as disposições das diretivas da União no domínio do direito do trabalho poderem ser executadas, não só por via legislativa mas também através de convenções coletivas de aplicação geral. Assim, por força do artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, os Estados‑Membros devem não só adotar as medidas necessárias para dar cumprimento à referida diretiva mas também assegurar que os parceiros sociais estabelecem as disposições necessárias através de acordo.

73.

A este respeito, não vejo nenhuma razão válida para sustentar que as convenções coletivas devem ser privilegiadas em relação à legislação dos Estados‑Membros e escapar à aplicação do direito da União.

74.

Estas considerações não implicam de forma alguma que a livre prestação de serviços prevalece sobre o direito de negociação coletiva. O facto de prever, por via de disposições imperativas, determinados limites ao conteúdo das convenções coletivas não prejudica o exercício deste direito fundamental.

75.

Por conseguinte, o direito de negociação coletiva consagrado no artigo 28.o da Carta não se opõe à interpretação do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, segundo o qual as restrições introduzidas por convenções coletivas ao recurso ao trabalho temporário devem ser justificadas por razões de interesse geral, sob pena de serem declaradas incompatíveis com o direito da União.

6. Papel dos órgãos jurisdicionais nacionais

76.

Quero chamar a atenção do Tribunal de Justiça para uma interpretação teleológica mais geral.

77.

A ordem jurídica da União assenta no princípio sistémico que reconhece o papel essencial dos órgãos jurisdicionais nacionais na execução das suas disposições.

78.

No sistema instaurado no artigo 267.o TFUE, as funções atribuídas, respetivamente, aos órgãos jurisdicionais nacionais e ao Tribunal de Justiça são essenciais tendo em conta a própria natureza do direito da União. Uma disposição que privasse os órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados‑Membros das suas competências relativas à interpretação e aplicação do direito da União e que privasse o Tribunal de Justiça da sua competência para responder às questões prejudiciais que lhe são submetidas, desvirtuaria as competências que os Tratados conferem às instituições da União e aos Estados‑Membros, que são essenciais à preservação da própria natureza do direito da União ( 36 ).

79.

A interpretação defendida por alguns Estados‑Membros no presente processo, segundo a qual os Estados‑Membros devem reexaminar as restrições ao recurso ao trabalho temporário sem limitações quanto ao resultado desse exame, parece‑me inconciliável com esse princípio.

80.

Segundo esta interpretação, só as administrações dos Estados‑Membros, e eventualmente os parceiros sociais, seriam responsáveis por identificar as restrições ao recurso ao trabalho temporário e liderar o processo que deve logicamente conduzir à alteração ou à supressão das que não são justificadas.

81.

O Governo alemão, nas suas observações escritas, refere‑se a este propósito a um «administrative Überprüfung» (reexame administrativo), enquanto admite que o artigo 4.o da Diretiva 2008/104 em causa poderia, de acordo com o seu sentido e finalidade, conter uma obrigação não escrita de suprimir ou adaptar restrições que não podem ser justificadas.

82.

A Comissão alegou, na audiência ( 37 ), que a interpretação de que o artigo 4.o da Diretiva 2008/104 prevê unicamente obrigações processuais não o priva de efeito útil. Segundo a Comissão, sempre que tomasse conhecimento da existência de uma restrição, poderia encetar um diálogo com as autoridades do Estado‑Membro em causa a fim de encontrar a melhor forma de conformar a disposição com a referida diretiva. Poderia também dar início a uma ação por incumprimento.

83.

Do mesmo modo, alguns autores criticam o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, alegando que seria arriscado deixar aos tribunais a tarefa de apreciar a justificação das restrições e sua proporcionalidade. Na opinião destes, se se deixasse nas mãos dos juízes a aplicação das razões de interesse geral e do critério de proporcionalidade, essa aplicação tornar‑se‑ia arriscada e altamente imprevisível, à semelhança de «areias movediças» ( 38 ).

84.

Ora, na minha opinião, seria contrário aos fundamentos do sistema do direito da União atribuir aos órgãos administrativos a competência exclusiva para verificar a compatibilidade da legislação nacional com uma diretiva da União e retirar essa competência aos órgãos jurisdicionais nacionais.

85.

Observo que esta abordagem não só excluiria os órgãos jurisdicionais nacionais do processo de execução do artigo 4.o da Diretiva 2008/104 mas também poria em causa a sua competência para examinar as restrições aplicáveis ao trabalho temporário nos termos do artigo 56.o TFUE.

86.

Tal abordagem parece‑me inconciliável com a finalidade do sistema do direito da União, dado que privaria os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros da missão principal que lhes foi cometida relativamente à execução do direito da União.

7. Conclusão intercalar

87.

Segundo o considerando 22 da Diretiva 2008/104, esta deve ser aplicada de acordo com as disposições do direito primário, designadamente as aplicáveis aos serviços. Por conseguinte, importa analisar a relação existente entre o artigo 56.o TFUE e o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104.

88.

Observo que a ratio legis do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 não coincide com a do princípio da livre circulação de serviços. Com efeito, o referido artigo 4.o, n.o 1, visa eliminar os obstáculos injustificados ao trabalho temporário com o objetivo de promover esta forma flexível de trabalho e, assim, contribuir para a criação de emprego e para a inserção no mercado de trabalho.

89.

No entanto, dado que o trabalho temporário implica a existência de intermediários (as empresas de trabalho temporário), qualquer restrição a esta forma de trabalho constitui também uma restrição aos serviços prestados por estas empresas. Por conseguinte, a liberalização desta forma de trabalho implica a liberalização dos serviços de trabalho temporário, uma vez que são as duas faces da mesma moeda.

90.

Deste modo, o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, embora se refira às restrições relativas «ao recurso ao trabalho temporário» e, portanto, diga respeito, antes de mais, à situação dos trabalhadores temporários ( 39 ), aplica‑se também, por extensão, às restrições relativas aos serviços dos agentes de trabalho temporário.

91.

Observo que a proibição de restrições à livre prestação de serviços por empresas de trabalho temporário resulta já do artigo 56.o TFUE ( 40 ). Na medida em que as restrições ao recurso a trabalhadores temporários também obstam aos serviços prestados por empresas de trabalho temporário, o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 concretiza a proibição decorrente do artigo 56.o TFUE.

92.

A este respeito, o referido artigo 4.o, n.o 1, precisa as razões imperiosas de interesse geral que são particularmente aptas para justificar tais restrições. Por outro lado, estende a aplicação do princípio da livre prestação de serviços às situações internas, dado que se trata atualmente de um domínio harmonizado do direito da União e que a aplicação da Diretiva 2008/104 não implica a procura de um elemento transfronteiriço.

93.

Para concluir, proponho que se responda à primeira questão no sentido de que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 proíbe a manutenção ou a introdução de proibições ou restrições relativas ao recurso ao trabalho temporário que não sejam justificadas por razões de interesse geral, respeitantes, nomeadamente, à proteção dos trabalhadores temporários, às exigências em matéria de saúde e segurança no trabalho ou à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e para prevenir abusos.

8. Quanto às consequências de uma interpretação diferente

94.

No caso de o Tribunal de Justiça decidir não seguir a minha proposta e interpretar o referido artigo 4.o, n.o 1, como sendo inválido ou desprovido de qualquer valor normativo, considero que seria útil que o Tribunal de Justiça recordasse explicitamente no seu acórdão que o artigo 56.o TFUE continua plenamente aplicável às restrições como as que estão em causa nestes autos.

95.

Este esclarecimento afigura‑se‑me particularmente importante, uma vez que algumas partes parecem defender que as restrições em causa não estão sujeitas à fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais, nem por força do artigo 4.o da Diretiva 2008/104 (na medida em que, no seu entender, o referido artigo só enuncia obrigações processuais), nem nos termos do artigo 56.o TFUE (atendendo a que se trata de um domínio harmonizado) ( 41 ).

96.

O direito derivado não pode limitar o âmbito de aplicação das liberdades fundamentais. No caso de o Tribunal de Justiça considerar que a Diretiva 2008/104 não proíbe a manutenção das restrições ao trabalho temporário, caberá ainda ao órgão jurisdicional nacional verificar se essas restrições podem ser justificadas em aplicação do artigo 56.o TFUE.

97.

A este respeito, observo que a regulamentação em causa é manifestamente suscetível de produzir efeitos transfronteiriços pertinentes nos termos do artigo 56.o TFUE, o qual continua, por conseguinte, potencialmente aplicável ao litígio no processo principal ( 42 ).

B – Quanto à justificação da restrição na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 (segunda questão)

1. Observações preliminares

98.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma disposição como a prevista na cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial constitui uma restrição na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 e, nesse caso, se pode ser justificada.

99.

Recordo que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 prevê que as restrições são justificáveis apenas por razões de interesse geral respeitantes, nomeadamente, à proteção dos trabalhadores temporários, às exigências em matéria de saúde e segurança no trabalho ou à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e para prevenir abusos.

100.

Como demonstra a utilização do vocábulo «nomeadamente», não se trata de uma lista exaustiva. Com efeito, resulta dos termos da disposição acima referida que a mesma abre a possibilidade, já admitida no âmbito da aplicação das liberdades consagradas no Tratado, de justificar por razões imperiosas de interesse geral as restrições aplicáveis indistintamente aos prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros.

101.

A este respeito, recordo que o artigo 56.o TFUE exige não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços estabelecido noutro Estado‑Membro em razão da sua nacionalidade mas também a supressão de qualquer restrição, ainda que indistintamente aplicada a prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros, quando seja suscetível de impedir, perturbar ou tornar menos atrativas as atividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde preste legalmente serviços análogos ( 43 ).

102.

Uma vez que essa restrição se aplica indistintamente, pode, não obstante, ser justificada quando corresponda a razões imperiosas de interesse geral, na medida em que esse interesse não esteja já salvaguardado pelas regras a que o prestador está sujeito no Estado‑Membro em que está estabelecido, quando sejam adequadas para garantir a realização do objetivo que prosseguem e não ultrapassem o limite do necessário para o atingir ( 44 ).

103.

Estes considerações, que são válidas, em princípio, num domínio que não foi objeto de uma harmonização ao nível da União, são também pertinentes neste caso, dado que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 concretiza o artigo 56.o TFUE no domínio do trabalho temporário.

104.

A este propósito, observo que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 engloba as restrições aplicáveis aos serviços das empresas de trabalho temporário, na medida em que essas restrições limitam o recurso a trabalhadores temporários. Por conseguinte, o artigo 56.o TFUE continua aplicável às disposições nacionais que afetam os serviços das empresas de trabalho temporário, que não as relativas ao «recurso ao trabalho temporário» ( 45 ).

105.

A aplicação coerente das disposições em causa exige que os requisitos relativos à justificação das restrições, a que se refere o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, sejam idênticos aos aplicáveis para efeitos do artigo 56.o TFUE. Esta consideração é corroborada pela relação estreita existente entre estas disposições e o considerando 22 da Diretiva 2008/104, que recorda a necessidade de aplicar as suas disposições no respeito do direito primário em matéria de liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços.

2. Quanto ao objeto das restrições

106.

Relativamente à cláusula que é objeto do litígio no processo principal, observo que é constituída por duas disposições distintas:

a primeira, que descreve a natureza das tarefas que podem ser atribuídas aos trabalhadores temporários, refere unicamente as tarefas que são «limitadas no tempo ou delimitadas por natureza» e que, «por razões de urgência, de duração, de competências profissionais, de utilização de instrumentos especializados ou por outras razões similares», não possam ser realizadas pelo próprio pessoal da empresa em causa, e

a segunda, que visa limitar a duração da utilização de um trabalhador temporário numa determinada empresa, qualifica de «prática desleal» as situações em que os trabalhadores temporários «efetua[m] durante longos períodos o trabalho normal da empresa, a par dos trabalhadores permanentes desta e [são] colocados sob a mesma direção».

107.

Consequentemente, a leitura conjugada destas duas disposições limita a possibilidade de recorrer a mão de obra temporária em função, por um lado, da natureza das tarefas executadas e, por outro, da sua duração. As referidas disposições restringem assim o recurso a esta forma de trabalho e têm também um efeito restritivo sobre os serviços das empresas de trabalho temporário, pelo que constituem, indubitavelmente, restrições na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104.

3. Quanto à justificação por razões de interesse geral

108.

A maioria das partes no processo, com exceção da demandada no processo principal, sustenta que as restrições em causa são justificadas por uma razão de interesse geral relativa à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e prevenir abusos.

109.

Como explica o Governo finlandês, trata‑se, com efeito, de impedir que uma tarefa que se enquadra nas relações de trabalho estáveis seja, sem justa causa, confiada a trabalhadores temporários e, deste modo, garantir que o recurso ao trabalho temporário não se traduz em perdas de postos de trabalho na empresa utilizadora.

110.

A este propósito, observo que resulta das considerações subjacentes à adoção da Diretiva 2008/104 que o trabalho temporário não é considerado uma alternativa às formas estáveis de trabalho.

111.

Por um lado, a ação legislativa da União no domínio do direito do trabalho assenta na premissa fundamental, segundo a qual os contratos por tempo indeterminado constituem a forma geral das relações de trabalho ( 46 ). As disposições da Diretiva 2008/104, em especial o seu artigo 6.o, relativo ao acesso dos trabalhadores temporários ao emprego na empresa utilizadora, demonstram, também, que o contrato de trabalho direto constitui uma relação de trabalho privilegiada por comparação com o trabalho temporário.

112.

Por outro lado, resulta das definições constantes do artigo 3.o da Diretiva 2008/104 que o trabalho temporário implica relações mantidas temporariamente ( 47 ). Pode concluir‑se daqui que esta forma de trabalho não é adequada a todas as circunstâncias, designadamente quando a necessidade de mão de obra é permanente.

113.

Consequentemente, a Diretiva 2008/104 não define trabalho temporário e também não visa enumerar os casos suscetíveis de justificar o recurso a esta forma de trabalho. Em contrapartida, o seu considerando 12 recorda que a diretiva pretende respeitar a diversidade dos mercados de trabalho.

114.

Uma vez que o legislador optou por não delimitar as situações que justificam o recurso ao trabalho temporário, os Estados‑Membros conservaram uma margem de apreciação importante a este respeito.

115.

Esta larga margem de apreciação decorre da competência dos Estados‑Membros para efetuar opções políticas que afetam o desenvolvimento do mercado de trabalho e legislar em conformidade, no respeito pelo direito da União. É também confirmada pela existência da cláusula de não‑regressão social contida no artigo 9.o, n.o 2, da Diretiva 2008/104. Com efeito, os Estados‑Membros devem ser dotados de uma liberdade de ação importante a fim de zelar para que a supressão de certas restrições não conduza a uma redução do nível geral de proteção dos trabalhadores no domínio em causa.

116.

Na minha opinião, um Estado‑Membro pode, sem ultrapassar os limites desta margem de apreciação, prever que o recurso ao trabalho temporário é autorizado em circunstâncias conformes com a natureza temporária desta forma de trabalho, sendo que esta não deve ocorrer em detrimento do contrato de trabalho direto.

117.

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se a cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial em causa no litígio do processo principal é justificada ao abrigo desta última consideração.

118.

No entanto, observe‑se que a formulação da referida disposição tende a indicar que é esse o caso.

119.

Por um lado, tendo em conta a natureza do trabalho temporário descrito nos n.os 111 e 112, supra, parece‑me justificado restringir o recurso a esta forma de trabalho, como previsto na cláusula 29.°, n.o 1, da convenção setorial, «às situações em que [as empresas utilizadoras] devam fazer face a picos de trabalho ou a outras tarefas, limitadas no tempo ou pela sua natureza, que, por razões de urgência, de duração, de competências profissionais, de utilização de instrumentos especializados ou por outras razões similares, não possam realizar recorrendo unicamente ao seu próprio pessoal».

120.

Por outro lado, na medida em que a disposição controvertida proíbe a afetação de trabalhadores temporários a par dos próprios trabalhadores assalariados da empresa durante um «período prolongado», prossegue, na minha opinião, um objetivo legítimo destinado a limitar os abusos relativos ao recurso a esta forma de trabalho. Com efeito, em conformidade com as orientações subjacentes à regulamentação da União, o recurso ao trabalho temporário não deve ocorrer em detrimento do contrato de trabalho direto, mas, pelo contrário, deve poder conduzir a formas de emprego mais estáveis.

121.

Ora, a manutenção, durante um período, prolongado, de relações de trabalho temporário, quando estas devem, por natureza, ser temporárias, pode constituir o indício de um abuso desta forma de trabalho.

122.

Observo que a adoção de medidas destinadas a prevenir abusos na celebração de contratos de trabalho temporário não pode justificar uma exclusão quase geral desta forma de trabalho, como, por exemplo, a proibição do trabalho temporário em todo um setor económico ou a fixação de uma quota para este tipo de contrato, na falta de qualquer outra justificação objetiva. Com efeito, uma medida destinada a prevenir abusos no exercício de um direito não pode equivaler a uma negação do direito em causa.

123.

Tal não se verifica neste caso, dado que as restrições em causa se limitam a descrever as razões objetivas que justificam o recurso a mão de obra temporária e não visam eliminar essa forma de trabalho.

124.

Por conseguinte, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, que, por um lado, limita o recurso ao trabalho temporário às tarefas que, tendo em conta a sua natureza ou a sua duração, respondem objetivamente à necessidade de mão de obra temporária e que, por outro lado, proíbe a afetação de trabalhadores temporários a par dos próprios trabalhadores assalariados da empresa durante um período prolongado, afigura‑se‑me justificada por uma razão de interesse geral, correspondente à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e de prevenir abusos.

4. Quanto à proporcionalidade

125.

Relativamente à proporcionalidade dessas restrições, saliento que as observações das partes mostram uma grande divergência entre as abordagens dos Estados‑Membros a respeito de eventuais limitações do trabalho temporário ( 48 ).

126.

No entanto, a intensidade variável das limitações introduzidas ao recurso ao trabalho temporário nos Estados‑Membros não pode ter incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições examinadas ( 49 ).

127.

A este respeito, embora caiba ao órgão jurisdicional nacional proceder à análise da proporcionalidade, observo, no entanto, desde já, que, na minha opinião, as restrições impostas pela cláusula controvertida não ultrapassam o necessário para assegurar a finalidade prosseguida pela regulamentação.

128.

Por um lado, as referidas restrições estão fortemente ligadas aos objetivos legítimos prosseguidos, na medida em que se destinam unicamente a traduzir em termos concretos a natureza temporária desta forma de trabalho, evitando assim que esta se substitua ao trabalho direto. Por outro lado, na medida em que dizem respeito designadamente a «outras tarefas» e a «uma duração prolongada», as referidas restrições afiguram‑se suficientemente gerais para permitir a tomada em conta das circunstâncias individuais próprias das diferentes empresas utilizadoras.

5. Conclusão intercalar

129.

Para concluir, considero que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 não se opõe a uma regulamentação nacional que, por um lado, limita o recurso ao trabalho temporário a tarefas que são temporárias e que, por razões objetivas, não podem ser efetuadas pelos trabalhadores contratados diretamente pela empresa utilizadora e, por outro, proíbe a afetação de trabalhadores temporários, a par dos trabalhadores contratados diretamente pela empresa, para efetuar tarefas idênticas às efetuadas por estes últimos durante um período prolongado.

C – Quanto ao efeito da disposição interpretada na ordem jurídica nacional (terceira questão)

130.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o papel que lhe é atribuído pelo direito da União, no caso de concluir que a cláusula controvertida é incompatível com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104.

131.

Não é necessário responder a esta questão tendo em conta a minha proposta de resposta à segunda questão. No entanto, analisá‑la‑ei brevemente.

132.

Antes de mais, importa recordar que os órgãos jurisdicionais nacionais estão vinculados pela obrigação de interpretação conforme, que abrange também as disposições das convenções coletivas ( 50 ).

133.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto a saber se o direito nacional é suscetível de uma interpretação conforme com a Diretiva 2008/104, na medida em essa diretiva e a convenção sectorial parecem prosseguir abordagens contraditórias relativamente ao trabalho temporário e uma vez que o direito finlandês não contém disposições especificas relativas à transposição da proibição resultante do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104.

134.

A este propósito, recordo que a obrigação de interpretação conforme não se limita à exegese das disposições internas introduzidas com vista à transposição da Diretiva 2008/104, mas exige a tomada em consideração de todo o direito nacional, para apreciar em que medida este pode se objeto de uma aplicação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela referida diretiva ( 51 ).

135.

Por conseguinte, a falta de medidas de transposição não impede o órgão jurisdicional de reenvio de verificar, tendo em consideração todo o direito interno, se pode alcançar, por via de interpretação, uma solução conforme com o direito da União.

136.

No caso de não ser possível uma interpretação conforme, importa analisar se o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 tem efeito direto.

137.

Tendo em conta o seu conteúdo, afigura‑se que a referida disposição pode ter efeito direto. No entanto, há que examinar se a demandada no processo principal a pode invocar contra um sindicato de trabalhadores.

138.

Embora o Tribunal de Justiça nem sempre tenha reconhecido o efeito horizontal das diretivas da União ( 52 ), pode deduzir‑se da jurisprudência que as liberdades fundamentais consagradas no Tratado são dotadas de efeito direto horizontal, no sentido de que podem ser diretamente invocadas por uma empresa contra um sindicato ou um grupo de sindicatos ( 53 ).

139.

Afigura‑se‑me lógico reconhecer o mesmo efeito à disposição do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, que concretiza a proibição de restrições à livre prestação de serviços no domínio específico do trabalho temporário.

140.

Com efeito, antes da adoção da Diretiva 2008/104, as medidas nacionais que limitavam o recurso a trabalhadores temporários e que obstavam também à prestação de serviços nesse domínio, enquadravam‑se potencialmente no âmbito da proibição do artigo 56.o TFUE. Na minha opinião, seria pouco coerente permitir que essas medidas escapassem a essa proibição pelo simples facto de esta estar atualmente expressamente concretizada na Diretiva 2008/104 e de, em princípio, as diretivas não se aplicarem diretamente às relações entre particulares.

141.

Para ser preciso: não é minha intenção enriquecer o debate relativo ao efeito horizontal suscetível de ser exercido por certos princípios do direito da União, designadamente quando estão concretizados nas diretivas ( 54 ).

142.

Na minha opinião, a situação do caso em apreço é bastante menos controversa, na medida em que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 não afeta minimamente o conteúdo material do artigo 56.o TFUE que, aliás, tem efeito direto em certas relações horizontais, de acordo com a jurisprudência existente.

143.

Com efeito, o referido artigo 4.o, n.o 1, limita‑se a enunciar uma proibição de restrições injustificadas do trabalho temporário num ato de direito derivado que procede a uma harmonização nesse domínio (enquanto anteriormente tais restrições decorriam do artigo 56.o TFUE) e a precisar as razões de interesse geral suscetíveis de justificar as referidas restrições.

144.

Por outro lado, a harmonização operada neste domínio significa que já não é necessário procurar um elemento transfronteiriço que, de outro modo, seria uma condição para desencadear a aplicação das disposições relativas às liberdades fundamentais. Com efeito, é ponto assente que a Diretiva 2008/104 é aplicável às situações internas.

145.

No entanto, observo que não se pode excluir a aplicação do artigo 56.o TFUE de um litígio, como o que foi submetido ao órgão jurisdicional de reenvio, apesar de envolver pessoas do mesmo Estado‑Membro, mesmo abstraindo da Diretiva 2008/104.

146.

Com efeito, a cláusula controvertida é manifestamente suscetível de produzir efeitos transfronteiriços pertinentes para efeitos do artigo 56.o TFUE, designadamente, na medida em que pode entravar o acesso da Shell aos serviços prestados por empresas de trabalho temporário estabelecidas noutros Estados‑Membros ( 55 ). Nessa situação, parece‑me inútil procurar um elemento transfronteiriço, meramente casual, em função da questão de saber, por exemplo, se, durante o período pertinente, a Shell recorreu a uma agência de trabalho temporário situada fora da Finlândia, ou se um dos trabalhadores temporários que trabalhavam para a Shell durante esse período não vinha de outro Estado‑Membro.

147.

Por conseguinte, caso o Tribunal de Justiça deva pronunciar‑se sobre a terceira questão, proponho que se responda no sentido de que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 pode ser invocado por uma empresa contra um sindicato.

VI – Conclusão

148.

Vistas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo työtuomioistuin do seguinte modo:

1)

O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa ao trabalho temporário, deve ser interpretado no sentido de que proíbe a manutenção ou a introdução de proibições ou restrições relativas ao recurso ao trabalho temporário que não sejam justificadas por razões de interesse geral, respeitantes, nomeadamente, à proteção dos trabalhadores temporários, às exigências em matéria de saúde e segurança no trabalho ou à necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado de trabalho e para prevenir abusos.

2)

O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 não se opõe a uma regulamentação nacional que, por um lado, limita o recurso ao trabalho temporário a tarefas que são temporárias e que, por razões objetivas, não podem ser efetuadas pelos trabalhadores contratados diretamente pela empresa utilizadora e, por outro, proíbe a afetação de trabalhadores temporários, a par dos trabalhadores contratados diretamente pela empresa, para efetuar tarefas idênticas às efetuadas por estes últimos durante um período prolongado.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008 (JO L 327, p. 9).

( 3 ) Convenção celebrada em 4 de junho de 1997 entre o Teollisuuden ja Työnantajain Keskusliitto (atual Elinkeinoelämän keskusliitto, federação central da vida económica) e a Suomen Ammattiliittojen Keskusjärjestö SAK (organização central dos sindicatos finlandeses).

( 4 ) As demandadas no processo principal e o Governo húngaro. A mesma posição é também expressa pelo órgão jurisdicional de reenvio. Os Governos francês e polaco não emitiram observações sobre esta questão.

( 5 ) A demandante no processo principal e os Governos finlandês, alemão, sueco e norueguês. A Comissão, que alterou a sua posição no decurso da instância, parece propor a mesma interpretação.

( 6 ) No que se refere ao caráter não exaustivo desta lista, v. n.o 100 das presentes conclusões.

( 7 ) Os Governos finlandês, alemão, sueco e norueguês e — na audiência — a Comissão.

( 8 ) O título que figurava na proposta legislativa inicial, «Diretiva […] relativa às condições de trabalho dos trabalhadores temporários», foi alterado no momento da leitura do Parlamento Europeu para «Diretiva [...] relativa ao trabalho temporário», porquanto «o objeto e o conteúdo da diretiva em apreço não se limitam às ‘condições de trabalho’, mas abrangem a promoção e a regulamentação do setor das empresas de trabalho temporário», inserindo‑se também na mesma linha das diretivas precedentes relativas ao trabalho a tempo parcial e a termo certo (v. exposição de motivos da resolução legislativa do Parlamento, A5‑0356/2002, de 23 de outubro de 2002, alteração 1).

( 9 ) Os considerandos 9 a 11 da Diretiva 2008/104 sublinham assim a importância de novas formas de organização do trabalho para a criação de emprego, um dos eixos principais da estratégia de Lisboa.

( 10 ) V. considerando 18 da Diretiva 2008/104.

( 11 ) Trata‑se, além da Diretiva 2008/104, da Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO 1998, L 14, p. 9), e da Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo‑quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo (JO L 175, p. 43).

( 12 ) Foi este objetivo que presidiu às propostas consecutivas da Comissão em matéria de trabalho atípico: a proposta da diretiva que completa a aplicação de medidas tendentes a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores COM(90)228 final, apresentada pela Comissão em 29 de junho de 1990 que falhou amplamente, e a proposta SEC(1995)1540 que lançou a consulta dos parceiros sociais que conduziu à adoção dos dois acordos‑quadro relativos ao tempo parcial e ao trabalho a termo.

( 13 ) V. princípios comuns de flexissegurança adotados pelo Conselho em 5 e 6 de dezembro de 2007 e aprovados pelo Conselho Europeu em 14 de dezembro de 2007 (documento do Conselho n.o 16201/07). V. também comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, intitulado «Para a definição de princípios comuns de flexissegurança: Mais e melhores empregos mediante flexibilidade e segurança» [COM(2007)359 final de 27 de junho 2007].

( 14 ) V. Bell, M., «Between flexicurity and fundamental social rights: the EU directives on atypical work», European law review, 2012, vol. 37, n.o 1, p. 36; Davies, A., «Regulating atypical work: beyond equality», Resocialising Europe in a time of crisis, 2013, p. 237.

( 15 ) Esta harmonização, por força da cláusula de não‑regressão social contida no artigo 9.o, n.o 2, da Diretiva 2008/104, não deve conduzir a uma redução do nível geral de proteção dos trabalhadores no domínio em causa.

( 16 ) V., designadamente, Bell, M., op. cit., p. 36; Davies,A., op. cit., p. 237; Countouris, N., e Horton. R., «The Temporary Agency Work Directive: Another Broken Promise», Industrial Law Journal, 2009, vol. 38, n.o 3, p. 335; Lhernould, J.‑P., «Le détachement des travailleurs intérimaires dans l’Union européenne», Revue de droit de travail, 2012, p. 308; Weiss, M., «Regulating Temporary Work in Germany», Temporary agency work in the European Union and the United States, pp. 120 a 122; Rönnmar, M., «The regulation of temporary agency work in Sweden and the impact of the (2008/104/EC) Directive», European Labour Law Journal (ELLJ), 2010, vol. 1, n.o 3, pp. 422 a 429.

( 17 ) Respetivamente, Engels, C., «Regulating temporary work in the European Union: The Agency Directive», Temporary agency work in the European Union and the United States, 2013, n.o 82, p. 14; Mitrus, L., «Ochrona pracowników tymczasowych w świetle prawa unijnego a prawo polskie», Sobczyk A. (red.), Z problematyki zatrudnienia tymczasowego, Wolters Kluwer Polska, 2011, p. 18.

( 18 ) Declaração comum da EuroCIETT (Confederação Europeia das Empresas de Trabalho Temporário) e UNI‑Europa (Federação sindical Europeia) de 28 de maio de 2008 sobre a Diretiva relativa ao trabalho temporário, n.os 7 e 14 (http://www.eurociett.eu/).

( 19 ) A demandante no processo principal e o Governo finlandês.

( 20 ) V. Proposta alterada de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às condições de trabalho dos trabalhadores temporários [COM(2002) 701 de 28 de novembro de 2002] que substituiu a proposta inicial de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às condições de trabalho dos trabalhadores temporários [COM(2002) 149 final de 20 de março de 2002] na sequência da primeira leitura ao Parlamento.

( 21 ) Posição Comum n.o 24/2008 do Conselho, de 15 de setembro de 2008 (ST 10599 2008).

( 22 ) Designadamente, o Parlamento alterou a proposta inicial da Comissão introduzindo três novos motivos suscetíveis de justificar as restrições (considerações de saúde e de segurança e outros riscos para certas categorias de trabalhadores ou certos ramos de atividade económica, bom funcionamento do mercado de trabalho e necessidade de prevenir eventuais abusos). V. resolução legislativa do Parlamento de 21 de novembro de 2002 [P5_TA(2002) 0562] e exposição de motivos (A5‑0356/2002 de 23 de outubro 2002).

( 23 ) A referida alteração 34 dividiu a disposição em causa do artigo 4.o em duas partes distintas, concretamente «a primeira elimina qualquer dúvida quanto à possibilidade de manter e/ou introduzir, em determinadas circunstâncias, restrições e proibições que visam o recurso a trabalho temporário […], a segunda parte reforça as disposições que preveem o reexame dessas restrições pelos Estados‑Membros». V. exposição de motivos da resolução legislativa do Parlamento (A5‑0356/2002, de 23 de outubro 2002).

( 24 ) Posição Comum n.o 24/2008, n.o 2.2 da exposição de motivos.

( 25 ) Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, nos termos do artigo 251.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Tratado CE, respeitante à posição comum do Conselho para a adoção de uma diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao trabalho temporário — Acordo politico sobre uma posição comum (VMQ) [COM(2008)569 final de 18 de setembro de 2008, p. 6].

( 26 ) Resolução legislativa do Parlamento Europeu de 22 de outubro de 2008 [P6_TA(2008)0507]).

( 27 ) A demandante no processo principal, os Governos finlandês, alemão e sueco, bem como — na audiência — a Comissão.

( 28 ) V., designadamente, acórdão Comissão/Parlamento e Conselho (C‑411/06, EU:C:2009:518, n.o 45 e jurisprudência referida).

( 29 ) V., entre outros, acórdão Huber (C‑336/00, EU:C:2002:509, n.o 31).

( 30 ) V. artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 97/81, e acórdãos Michaeler e o. (C‑55/07 e C‑56/07, EU:C:2008:248) e Bruno e o. (C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 78). A referida diretiva foi adotada com base no artigo 4.o, n.o 2, do acordo sobre a política social, anexo ao Tratado CE, o qual foi em seguida integrado no capítulo social do Tratado CE (artigo 139.o, n.o 2, CE).

( 31 ) Acórdãos Laval un Partneri (C‑341/05, EU:C:2007:809, n.o 98) e The International Transport Workers’ Federation e The Finnish Seamen’s Union (C‑438/05, EU:C:2007:772, n.os 33 e 54 e jurisprudência referida).

( 32 ) Acórdãos Prigge e o. (C‑447/09, EU:C:2011:573, n.o 47) e Erny (C‑172/11, EU:C:2012:399, n.o 50). Esta consideração está refletida no considerando 19 da Diretiva 2008/104.

( 33 ) Acórdão Hennigs e Mai (C‑297/10 e C‑298/10, EU:C:2011:560, n.os 68 e 78).

( 34 ) V. conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Österreichischer Gewerkschaftsbund (C‑476/12, EU:C:2014:89, n.o 51).

( 35 ) Pelo contrário, o artigo 5.o, n.o 3, da Diretiva 2008/104, relativo ao princípio da igualdade de tratamento dos trabalhadores temporário, contém uma derrogação nesse sentido.

( 36 ) Parecer 1/09 (EU:C:2011:123, n.os 85 e 89).

( 37 ) Nas suas observações escritas, a Comissão propôs uma interpretação diferente, defendendo que o referido artigo 4.o proíbe a manutenção de restrições injustificadas aplicadas ao recurso ao trabalho temporário.

( 38 ) Robin‑Olivier, S., «A French reading of Directive 2008/104 on temporary agency work», European labour law journal, 2010, vol. 1, n.o 3, p. 404.

( 39 ) Por exemplo, a proibição de celebrar um contrato de trabalho por tempo indeterminado com um trabalhador temporário, a proibição de recorrer a trabalho temporário para fins de integração na empresa utilizadora ou a proibição de empregar pessoas deficientes como trabalhadores temporários [v. Relatório dos serviços da Comissão relativo aos trabalhos do grupo de peritos sobre a transposição da Diretiva 2008/104, agosto de 2011, pp. 29 e 31, e Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre a aplicação da Diretiva 2008/104/CE relativa ao trabalho temporário», COM(2014)176 final, de 21 de março de 2014, pp. 12 e 13].

( 40 ) V., por exemplo, acórdãos Comissão/Bélgica (C‑397/10, EU:C:2011:444) e Strojírny Prostějov e ACO Industries Tábor (C‑53/13 e C‑80/13, EU:C:2014:2011).

( 41 ) V. n.os 80 a 83 das presentes conclusões.

( 42 ) V. n.os 145 e 146 das presentes conclusões.

( 43 ) Acórdão Portugaia Construções (C‑164/99, EU:C:2002:40, n.o 16 e jurisprudência referida).

( 44 ) Acórdãos Säger (C‑76/90, EU:C:1991:331, n.o 15) e Strojírny Prostějov e ACO Industries Tábor (EU:C:2014:2011, n.o 44). Entre as razões imperiosas de interesse geral já reconhecidas pelo Tribunal de Justiça figura a proteção dos trabalhadores (v. acórdão Portugaia Construções, EU:C:2002:40, n.o 20).

( 45 ) V. acórdão Strojírny Prostějov e ACO Industries Tábor (EU:C:2014:2011). Do mesmo modo, os requisitos nacionais em matéria de registo, licenciamento, certificação, garantias financeiras ou fiscalização das empresas de trabalho temporário estão excluídos do âmbito de aplicação da Diretiva 2008/104, por força do seu artigo 4.o, n.o 4, e, por conseguinte, continuam potencialmente sujeitos aos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

( 46 ) V. considerando 15 da Diretiva 2008/104 e n.o 7 das considerações gerais do acordo‑quadro a que se refere a Diretiva 1999/70/CE. V. também conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen no processo Jansen (C‑313/10, EU:C:2011:593, n.o 57).

( 47 ) V. definições dos conceitos de «[e]mpresa de trabalho temporário», de «[t]rabalhador temporário» e de «[u]tilizador» no artigo 3.o, n.o 1, alíneas a) a d), da Diretiva 2008/104.

( 48 ) Esta indicação é corroborada pelo Relatório COM(2014) 176 final, pp. 9 e 10.

( 49 ) Acórdão Mac Quen e o. (C‑108/96, EU:C:2001:67, n.os 33 e 34).

( 50 ) V., neste sentido, acórdão Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.os 101 e 119) e conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer nesse processo (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2003:245, n.o 59).

( 51 ) Acórdãos Marleasing (C‑106/89, EU:C:1990:395, n.o 8), Pfeiffer e o. (EU:C:2004:584, n.o 115) e Association de médiation sociale (C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 38).

( 52 ) Acórdãos Dominguez (C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 42) e Association de médiation sociale (EU:C:2014:2, n.o 36).

( 53 ) V., neste sentido, acórdão Laval un Partneri (EU:C:2007:809, n.o 98) e conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi nesse processo (C‑341/05, EU:C:2007:291, n.os 159 a 161), e, relativamente à liberdade de estabelecimento, acórdão International Transport Workers’ Federation e Finnish Seamen’s Union (EU:C:2007:772, n.o 66).

( 54 ) V., recentemente, conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Association de médiation sociale (C‑176/12, EU:C:2013:491, n.os 73 a 80).

( 55 ) V., a este respeito, acórdão Venturini e o. (C‑159/12 à C‑161/12, EU:C:2013:791, n.o 26) e conclusões do advogado‑geral N. Wahl neste processo ( C‑159/12 a C‑161/12, EU:C:2013:529, n.o 35).

Início