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Documento 62010CJ0046

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 14 de Julho de 2011.
Viking Gas A/S contra Kosan Gas A/S.
Pedido de decisão prejudicial: Højesteret - Dinamarca.
Marcas - Directiva 89/104/CEE - Artigos 5.º e 7.º - Botijas de gás protegidas como marca tridimensional - Colocação no mercado pelo titular de uma licença exclusiva - Actividade de um concorrente do titular da licença que consiste no enchimento das referidas botijas.
Processo C-46/10.

Colectânea de Jurisprudência 2011 I-06161

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2011:485

Processo C‑46/10

Viking Gas A/S

contra

Kosan Gas A/S, anteriormente BP Gas A/S

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Højesteret)

«Marcas – Directiva 89/104/CEE – Artigos 5.° e 7.° – Botijas de gás protegidas como marca tridimensional – Colocação no mercado pelo titular de uma licença exclusiva – Actividade de um concorrente do titular da licença que consiste no enchimento das referidas botijas»

Sumário do acórdão

Aproximação das legislações – Marcas – Directiva 89/104 – Colocação no mercado pelo titular de uma licença exclusiva, de botijas de gás protegidas como marca tridimensional – Actividade de um concorrente do titular da licença que consiste no enchimento das referidas botijas – Oposição do titular da licença – Inadmissibilidade, em virtude do princípio do esgotamento consagrado no artigo 7.°, n.° 1, sem prejuízo das excepções enunciadas no artigo 7.°, n.° 2 da directiva

(Directiva do Conselho 89/104, artigos 5.° e 7.°, n.os 1 e 2)

Os artigos 5.° e 7.° da Primeira Directiva 89/104/CEE, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, devem ser interpretados no sentido de que não permitem que o titular de uma licença exclusiva para a utilização de botijas de gás em material compósito destinadas a serem reutilizadas, cuja forma é protegida como marca tridimensional e nas quais este titular apôs a sua denominação e o seu logótipo, registados como marcas nominativa e figurativa, se oponha a que estas botijas, após terem sido adquiridas por consumidores que, em seguida, gastaram o gás inicialmente contido nas mesmas, sejam trocadas por um terceiro, mediante pagamento, por botijas em material compósito cheias de gás que não provém do referido titular, a menos que esse mesmo titular possa invocar um motivo legítimo na acepção do artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104.

A venda da botija em material compósito esgota os direitos que o licenciado do direito à marca constituída pela forma da botija em material compósito e titular das marcas apostas na mesma retira destas marcas e transfere para o comprador o direito de dispor livremente dessa botija, incluindo o de a trocar ou de a mandar encher quando o gás de origem estiver gasto, junto de uma empresa da sua escolha, ou seja, não apenas junto do referido licenciado e titular mas também junto de um dos seus concorrentes. Este direito do comprador tem como corolário o direito destes concorrentes de procederem, dentro dos limites estabelecidos pelo artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104, ao enchimento e troca das botijas vazias.

No que respeita a estes limites nos termos do referido artigo 7.°, n.° 2, o titular de uma marca, apesar da colocação no mercado dos produtos que ostentam a sua marca, pode opor‑se à sua comercialização ulterior quando motivos legítimos justifiquem essa oposição e, designadamente, quando o estado dos produtos seja modificado ou alterado após a sua comercialização. A utilização do advérbio «nomeadamente» no referido artigo 7.°, n.° 2, demonstra que a hipótese relativa à modificação ou à alteração do estado dos produtos que ostentam a marca só é referida a título de exemplo do que podem ser motivos legítimos.

Assim, existe igualmente um motivo legítimo quando o uso por um terceiro de um sinal idêntico ou semelhante a uma marca prejudica seriamente o prestígio desta última, ou ainda quando esse uso é feito de modo a dar a impressão de que existe uma ligação económica entre o titular da marca e este terceiro, e designadamente que este último pertence à rede de distribuição do titular ou que existe uma relação especial entre estas duas entidades.

A rotulagem das botijas em material compósito e as condições em que as mesmas são trocadas não devem levar o consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, a considerar que existe uma ligação entre as duas empresas em causa no processo principal ou que o gás que serviu para o enchimento destas botijas seja proveniente da Kosan Gas. Para apreciar se essa impressão errónea está afastada, há que ter em conta as práticas neste sector e, designadamente, apurar se os consumidores estão habituados a que as botijas de gás sejam cheias por outros distribuidores. Afigura‑se, por outro lado, razoável presumir que um consumidor que se dirige directamente a um concorrente para trocar a sua botija de gás vazia por uma botija cheia, ou para mandar encher a sua própria botija, esteja mais facilmente em condições de conhecer a inexistência de ligação entre esta empresa e o titular.

(cf. n.os 35 a 37, 40, 42 e disp.)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

14 de Julho de 2011 (*)

«Marcas – Directiva 89/104/CEE – Artigos 5.° e 7.° – Botijas de gás protegidas como marca tridimensional – Colocação no mercado pelo titular de uma licença exclusiva – Actividade de um concorrente do titular da licença que consiste no enchimento das referidas botijas»

No processo C‑46/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Højesteret (Dinamarca), por decisão de 2 de Novembro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 28 de Janeiro de 2010, no processo

Viking Gas A/S

contra

Kosan Gas A/S, anteriormente BP Gas A/S,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑J. Kasel, presidente da Quinta Secção, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, A. Borg Barthet, M. Ilešič (relator), M. Safjan e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 20 de Janeiro de 2011,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Viking Gas A/S, por P. H. Würtz, advokat,

–        em representação da Kosan Gas A/S, anteriormente BP Gas A/S, por E. Bertelsen, advokat,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Fiorentino, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. W. Bulst e H. Støvlbæk, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 7 de Abril de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 5.° e 7.° da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a Viking Gas A/S (a seguir «Viking Gas») e a Kosan Gas A/S, anteriormente BP Gas A/S (a seguir «Kosan Gas»), a respeito da prática da Viking Gas que consiste em vender gás enchendo e trocando mediante pagamento botijas de gás em material compósito, cuja forma está protegida como marca tridimensional, previamente adquiridas pelos consumidores à Kosan Gas, que é titular de uma licença exclusiva para a sua utilização e nelas apôs a sua denominação e o seu logótipo, protegidos como marcas nominativa e figurativa.

 Quadro jurídico

3        A Directiva 89/104 foi revogada pela Directiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (versão codificada) (JO L 299, p. 25), que entrou em vigor em 28 de Novembro de 2008. No entanto, atendendo à data dos factos, o litígio no processo principal continua a ser regido pela Directiva 89/104.

4        O artigo 5.°, n.os 1 a 3, da Directiva 89/104 dispunha:

«1.      A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)      De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)      De um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista, no espírito do público, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca.

[...]

3.      Pode nomeadamente ser proibido, caso se encontrem preenchidas as condições enumeradas nos n.os 1 e 2:

a)      Apor o sinal nos produtos ou na respectiva embalagem;

b)      Oferecer os produtos para venda ou colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o sinal;

[...]»

5        O artigo 7.° da Directiva 89/104, sob a epígrafe «Esgotamento dos direitos conferidos pela marca», dispunha:

«1.      O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.

2.      O n.° 1 não é aplicável sempre que existam motivos legítimos que justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior dos produtos, nomeadamente sempre que o estado desses produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado.»

6        Em conformidade com o artigo 65.°, n.° 2, do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de Maio de 1992, lido em conjugação com o anexo XVII, ponto 4, deste acordo, o artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 foi alterado para efeitos do mesmo acordo, tendo a expressão «na Comunidade» sido substituída pelos termos «no território de uma Parte Contratante».

7        O artigo 8.°, n.° 1, da Directiva 89/104 previa:

«Uma marca pode ser objecto de licenças para a totalidade ou parte dos produtos ou serviços para os quais tenha sido registada e para a totalidade ou parte do território de um Estado‑Membro. As licenças podem ser exclusivas ou não exclusivas.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8        A Kosan Gas produz e vende gás em botija a particulares e a profissionais. Desde 2001, a Kosan Gas comercializa gás em botija na Dinamarca em botijas designadas «de material compósito» (botijas leves). A forma particular destas botijas está registada como marca tridimensional comunitária e como marca tridimensional dinamarquesa para combustíveis gasosos e para recipientes destinados a conter combustíveis líquidos. A validade e o alcance destes registos não são contestados.

9        As botijas em material compósito são usadas pela Kosan Gas nos termos de um acordo de aquisição exclusiva celebrado com o fabricante norueguês das botijas, que confere à Kosan Gas uma licença exclusiva de utilização das referidas botijas como marca constituída pela embalagem na Dinamarca, bem como o direito de agir contra as contrafacções da marca. A Kosan Gas apõe nas referidas botijas a sua denominação e o seu logótipo, os quais estão registados como marcas nominativa e figurativa comunitárias designadamente para o gás.

10      Quando da primeira aquisição de uma botija de gás em material compósito a um distribuidor da Kosan Gas, o consumidor paga também o preço da botija que, deste modo, passa a ser sua propriedade. A Kosan Gas tem como actividade, por outro lado, o enchimento de botijas em material compósito quando estas estão vazias. O consumidor pode então trocar junto de um distribuidor da Kosan Gas uma botija em material compósito vazia por uma botija semelhante cheia por este distribuidor e pagará apenas o preço do gás adquirido.

11      A Viking Gas, que vende, mas não produz, ela própria, gás, possui um centro de enchimento na Dinamarca, a partir do qual são encaminhadas para distribuidores independentes botijas em material compósito, depois de terem sido cheias de gás. A Viking Gas apõe, então, nestas botijas um autocolante no qual figura a sua denominação e o número do centro de enchimento, bem como outro autocolante que contém, nomeadamente, informações legais relativas ao centro de enchimento e ao conteúdo das botijas. As marcas nominativa e figurativa da Kosan Gas, que figuram nas referidas botijas, não são retiradas nem cobertas. Ao pagar o gás, o consumidor pode trocar, junto de um distribuidor que colabore com a Viking Gas, uma botija de gás vazia por uma botija semelhante cheia pela Viking Gas.

12      A Kosan Gas tem igualmente vendido gás utilizando como recipiente outras botijas para além das botijas em material compósito, ou seja, botijas de gás em aço do mesmo tipo das utilizadas pela maior parte dos operadores no mercado (botijas em aço estandardizadas, amarelas, de diferentes tamanhos). Estas últimas botijas, anteriormente utilizadas pela Kosan Gas, não estão registadas como marcas constituídas pela embalagem, mas, tal como as botijas em material compósito, apresentam as marcas nominativa e figurativa desta empresa. A Viking Gas alega que a Kosan Gas aceitou durante muitos anos, e continua a aceitar, que outras empresas encham estas botijas estandardizadas para vender o seu gás, apesar de estas ostentarem a denominação e o logótipo da Kosan Gas.

13      Na sequência de um processo por contrafacção intentado pela Kosan Gas, o fogedret de Viborg, por despacho de 6 de Dezembro de 2005, proibiu a Viking Gas de vender gás através do enchimento das botijas em material compósito da Kosan Gas. Este despacho foi confirmado pelo acórdão do Sø‑ og Handelsretten de 21 de Dezembro de 2006, que declara, designadamente, que a Viking Gas violou os direitos de marca da Kosan Gas ao encher e comercializar as botijas em material compósito na Dinamarca e proibiu a utilização pela primeira empresa das marcas de que é titular a segunda. A Viking Gas foi ainda condenada a pagar 75 000 DKK à Kosan Gas a título de direitos pela utilização destas marcas.

14      A Viking Gas interpôs recurso deste acórdão para o Højesteret, o qual decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 5.°, conjugado com o artigo 7.°, da [Directiva 89/104] deve ser interpretado no sentido de que a empresa B incorre em violação do direito de marca pelo facto de encher e vender gás em botijas provenientes da empresa A, quando se constatam as seguintes circunstâncias:

a)      [a empresa] A vende gás em botijas em material compósito com uma apresentação específica que como tal, ou seja, como marca [constituída pela embalagem], está registada como marca dinamarquesa e como marca comunitária. [A empresa] A não é titular dessa marca [constituída pela embalagem], mas tem licença exclusiva para a usar na Dinamarca e tem o direito de se opor à sua violação neste país;

b)      na primeira aquisição de uma botija em material compósito com gás num distribuidor [da empresa] A, o consumidor paga também a botija que, deste modo, passa a ser sua propriedade;

c)      [a empresa] A procede ao enchimento das botijas em material compósito, de modo que os consumidores de um distribuidor [da empresa] A podem, mediante o pagamento do gás, trocar uma botija em material compósito vazia por uma botija igual que é enchida [pela empresa] A;

d)      [a empresa] B exerce a actividade de enchimento de botijas de gás, incluindo botijas em material compósito abrangidas pela marca [constituída pela embalagem] referida [na alínea a)], podendo os consumidores de um distribuidor que trabalha com [a empresa] B, mediante pagamento do gás, trocar uma botija em material compósito vazia por uma botija igual que é enchida [pela empresa] B; [e]

e)      no enchimento, [pela empresa] B, de gás nas botijas em material compósito em causa, [esta] apõe‑lhes um autocolante que indica que o enchimento foi por si efectuado?

2)      No caso de se constatar que os consumidores em geral adquirem a convicção de que existe uma ligação entre [as empresas A e B], isto é relevante para a resposta à primeira questão?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, poderá o resultado ser diferente se as botijas em material compósito – independentemente de estarem abrangidas pela referida marca [constituída pela embalagem] – também [tiverem] aposta (gravada na botija) a marca registada figurativa e/ou nominativa [da empresa] A, que continua a ser visível para além do autocolante [da empresa] B?

4)      Em caso de resposta afirmativa à primeira ou [...] terceira questões, poderá o resultado ser diferente se se verificar, relativamente a outro tipo de botijas não abrangidas pela referida marca [constituída pela embalagem], mas que têm aposta a marca nominativa e/ou figurativa [da empresa] A, que, durante muitos anos, [esta] permitiu e continua a permitir que outras empresas encham [essas] botijas?

5)      Em caso de resposta afirmativa à primeira ou [...] terceira questões, poderá o resultado ser diferente se o próprio consumidor se dirigir directamente [à empresa] B para

a)      mediante o pagamento do gás, trocar uma botija em material compósito vazia por uma botija igual, que é enchida [pela empresa] B, ou,

b)      mediante pagamento, encher com gás a botija em material compósito por si trazida?»

 Quanto às questões prejudiciais

15      Com as suas questões, que devem ser abordadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se e, eventualmente, em que condições o titular de uma licença exclusiva para a utilização de botijas em material compósito destinadas a ser reutilizadas, cuja forma está protegida como marca tridimensional e nas quais o referido titular apôs a sua denominação e o seu logótipo, registados como marcas nominativa e figurativa, se pode opor, nos termos dos artigos 5.° e 7.° da Directiva 89/104, a que estas botijas, após terem sido adquiridas por consumidores que, em seguida, gastaram o gás inicialmente contido nas mesmas, sejam trocadas por um terceiro, mediante pagamento, por botijas em material compósito cheias de gás que não provêm do referido titular.

 Observações apresentadas ao Tribunal

16      Segundo a Viking Gas, em circunstâncias como as em causa no processo principal, o facto de encher e trocar as botijas em material compósito não pode ser proibido nos termos dos artigos 5.° e 7.° da Directiva 89/104. A Kosan Gas e a República Italiana têm opinião contrária. Quanto à Comissão Europeia, trata‑se essencialmente de determinar se existe, no processo principal, um risco de confusão no sentido de que o consumidor possa acreditar que o gás contido numa botija cheia pela Viking Gas provém da Kosan Gas ou que existe uma ligação económica entre estas empresas, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

17      A Viking Gas realça que o consumidor adquire a botija em material compósito quando da primeira compra, o que tem como consequência que se esgota o direito da Kosan Gas sobre a marca. Consequentemente, o consumidor tem o direito de utilizar livremente essa botija, que, aliás, se destina a ser cheia com gás, para a encher novamente. Os direitos conferidos ao titular de uma marca não podem ser alargados ao ponto de impedir o comprador do produto que ostenta essa marca de o utilizar para os fins para os quais foi colocado no mercado. Pouco importa a este respeito que o consumidor mande encher as botijas em material compósito que comprou dirigindo‑se directamente à Viking Gas ou trocando uma botija em material compósito vazia por uma botija semelhante cheia num distribuidor que colabore com a Viking Gas. Com efeito, dado que, nestas duas hipóteses, se torna claro para os compradores que, por um lado, a botija em material compósito é um bem em segunda mão e, por outro, o gás não provém da Kosan Gas, mas da Viking Gas, o que é indicado nas botijas através da aposição de autocolantes, a revenda de botijas cheias pela Viking Gas não viola os direitos de marca da Kosan Gas.

18      A Viking Gas alega que, relativamente aos tipos de botijas de gás diferentes das botijas em material compósito, é frequente que o seu enchimento ulterior seja efectuado por operadores diferentes dos que comercializaram esses tipos de botijas. Ora, a Kosan Gas não pode pôr termo a esta prática introduzindo no mercado uma botija de gás de outro tipo. Com efeito, a aquisição de um direito de marca não pode ter por objectivo a repartição dos mercados a fim de poder beneficiar de uma vantagem concorrencial indevida e de praticar uma diferença de preço não justificada, o que há que ter igualmente em consideração na interpretação das regras relativas ao esgotamento do direito conferido pela marca. A Viking Gas afirma, neste contexto, que a Kosan Gas utiliza a falta de esgotamento do direito conferido pela marca em questão para realizar uma divisão artificial do mercado do gás em botija, o que é demonstrado pelo facto de esta empresa vender actualmente o gás contido numa botija em material compósito a um preço superior em mais de 20% ao do gás contido numa botija em aço clássica, sem que haja factores ligados à produção ou à distribuição que possam justificar essa diferença de preço.

19      A Kosan Gas considera que, no processo principal, estão em causa produtos e marcas idênticos, pelo que existe contrafacção por esse simples facto. Em todo o caso, existe um risco de confusão elevado, uma vez que a rotulagem das botijas em material compósito efectuada pela Viking Gas é muito discreta.

20      A Kosan Gas considera que a regra do esgotamento do direito conferido pela marca não permite à Viking Gas proceder ao enchimento e à venda do seu próprio gás em botijas em material compósito protegidas por uma marca de que não é titular. Com efeito, a referida regra implica unicamente que a Kosan Gas não se possa opor a que as botijas em material compósito cheias e comercializadas por ela própria sejam revendidas. O esgotamento do direito em causa não pode dizer respeito a uma embalagem reutilizável, dado que a embalagem não é em si mesma um produto, sendo o gás, no caso concreto, o produto. Mesmo na hipótese inversa, o esgotamento apenas poderia abranger a embalagem enquanto tal, caso esta pudesse ser distribuída sem conteúdo. Por outro lado, a substituição de um produto coberto por uma marca, destinado a ser utilizado pelo consumidor, constitui uma alteração desse produto na acepção do artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104, à qual o titular da marca se pode opor mesmo depois de ter colocado o produto no comércio.

21      A República Italiana refere os riscos que decorrem de uma protecção de recipientes como marca tridimensional e o interesse público em os manter disponíveis para promover a concorrência e proteger os consumidores. Contudo, o referido interesse é protegido pelo artigo 3.° da Directiva 89/104, que enumera os motivos de recusa e de nulidade das marcas, e não pode contribuir para definir os limites e o alcance do direito conferido pela marca, uma vez que esta tenha sido validamente registada. Dado que a validade do registo da botija em material compósito como marca não foi contestada, deve dar‑se por assente que a forma da botija tem uma função distintiva em relação ao produto, o que implica que a venda do mesmo produto sob a mesma forma por um terceiro viola a função distintiva da marca.

22      O princípio do esgotamento do direito conferido pela marca não pode ser invocado contra esta interpretação, dado que o mesmo se refere apenas às revendas sucessivas do produto em relação ao qual ocorreu o esgotamento da marca. Mesmo que se parta da tese inversa, os direitos da marca não estariam menos esgotados no processo principal, dado que as circunstâncias descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio entrariam no âmbito de aplicação da derrogação prevista pelo artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104. Com efeito, a circunstância de a Viking Gas encher as botijas com o seu próprio gás implicaria o risco de uma alteração ou modificação do «produto botija». A Kosan Gas tem um interesse evidente em que as botijas em material compósito sejam cheias pelos seus distribuidores autorizados, para poder manter um controlo sobre a qualidade do produto vendido, uma vez que qualquer defeito deste pode ter consequências para a reputação da marca.

23      A Comissão entende que o elemento determinante no processo principal tem a ver com a questão de saber se o consumidor que se dirige à Viking Gas para encher a sua botija em material compósito vazia pode compreender sem dificuldade, apenas com base no rótulo, que o gás que acaba de adquirir é proveniente da Viking Gas e que não existe uma ligação económica entre esta empresa e a Kosan Gas. Esclarece que a situação no processo principal é abrangida pelo artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104, o qual protege, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, todas as funções da marca. Contudo, nada indica que outras funções para além da que consiste em garantir a origem do produto sejam comprometidas pela utilização em causa.

24      Quanto à questão do esgotamento do direito conferido pela marca, a Comissão faz uma distinção entre, por um lado, a utilização da botija em material compósito cheia de gás da Kosan Gas ou, eventualmente, da botija em material compósito vazia e, por outro, a utilização desta botija cheia com gás proveniente de outra empresa. O primeiro tipo de utilização não pode ser proibido pelo titular da marca constituída pela embalagem, dado que os direitos conferidos por esta foram esgotados com a venda da botija em material compósito na medida em que esta venda permitiu realizar o valor económico da botija. Quanto ao segundo tipo de utilização, há que ter em conta que o produto abrangido pela marca, ou seja, o gás, já foi consumido e foi substituído, sem consentimento do titular da marca, por outro produto que não provém do titular dessa marca. Neste caso, os requisitos estabelecidos pelo artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 não estão satisfeitos, uma vez que a marca não permite garantir a origem do produto que está destinada a cobrir.

 Apreciação do Tribunal

25      Segundo jurisprudência bem assente, os artigos 5.° a 7.° da Directiva 89/104 procedem a uma harmonização completa das disposições relativas aos direitos conferidos pela marca, definindo assim os direitos de que gozam os titulares de marcas na União Europeia (v., designadamente, acórdão de 3 de Junho de 2010, Coty Prestige Lancaster Group, C‑127/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 27 e jurisprudência aí referida).

26      Em particular, o artigo 5.° da referida directiva confere ao titular da marca um direito exclusivo que lhe permite proibir que qualquer terceiro, designadamente, ofereça produtos que ostentem a sua marca, os coloque no mercado ou os detenha para esses fins. O artigo 7.°, n.° 1, da mesma directiva contém uma excepção a esta regra, na medida em que prevê que o direito do titular fica esgotado quando os produtos tiverem sido colocados no mercado do Espaço Económico Europeu (EEE) pelo titular ou com o seu consentimento (v., designadamente, acórdão de 15 de Outubro de 2009, Makro Zelfbedieningsgroothandel e o., C‑324/08, Colect., p. I‑10019, n.° 21 e jurisprudência aí referida).

27      A extinção do direito exclusivo resulta quer do consentimento, expresso ou tácito, do titular para a comercialização no EEE quer da comercialização no EEE pelo próprio titular ou por um operador economicamente ligado a este, como, em particular, um operador licenciado. O consentimento do titular ou a comercialização no EEE, por este ou por um operador que esteja economicamente ligado a este, que equivalem à renúncia ao direito exclusivo, constituem assim, cada um deles, um elemento determinante da extinção desse direito (v. acórdão Coty Prestige Lancaster Group, já referido, n.° 29 e jurisprudência aí referida).

28      No processo principal, é pacífico que as botijas em material compósito, cujo enchimento e troca pela Viking Gas estão em causa, foram comercializadas no EEE pela Kosan Gas, que detém uma licença exclusiva para a utilização na Dinamarca da marca tridimensional constituída pela forma dessas botijas e que é titular das marcas nominativa e figurativa apostas nas mesmas.

29      A Kosan Gas, a República Italiana e a Comissão entendem, contudo, que o artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 deve ser interpretado no sentido de que esta comercialização apenas esgota o direito do titular ou do licenciado de proibir a comercialização ulterior das botijas ainda cheias do gás de origem ou vazias, mas não autoriza terceiros a encher, para fins comerciais e com o seu próprio gás, as mesmas botijas. A Kosan Gas afirma designadamente que o esgotamento dos direitos de marca não pode dizer respeito à embalagem do produto.

30      A este respeito, cumpre referir que as botijas em material compósito, que se destinam a ser reutilizadas várias vezes, não constituem uma mera embalagem do produto de origem, mas têm um valor económico autónomo e devem ser consideradas um produto em si mesmas. Com efeito, quando da primeira aquisição de uma destas botijas cheia de gás num distribuidor da Kosan Gas, o consumidor tem de pagar não apenas o gás mas também a botija em material compósito, cujo preço é superior ao das botijas de gás em aço tradicionais, designadamente devido às características técnicas particulares da mesma e ao preço do gás nela contido.

31      Nestas condições, há que ponderar, por um lado, o interesse legítimo do licenciado do direito à marca constituída pela forma da botija em material compósito e titular das marcas apostas na mesma de tirar proveito dos direitos ligados a estas marcas e, por outro, os interesses legítimos dos compradores das referidas botijas, designadamente o de fruir plenamente do seu direito de propriedade sobre estas botijas, bem como o interesse geral na manutenção de uma concorrência não falseada.

32      No que respeita ao interesse do referido licenciado e titular de tirar proveito dos direitos ligados às ditas marcas, há que observar que a venda das botijas em material compósito lhe permite realizar o valor económico das marcas referentes a essas botijas. Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que uma venda que permita a realização do valor económico da marca esgota os direitos exclusivos conferidos pela Directiva 89/104 (v., designadamente, acórdão de 30 de Novembro de 2004, Peak Holding, C‑16/03, Colect., p. I‑11313, n.° 40).

33      Quanto aos interesses dos compradores de botijas em material compósito, é pacífico que estes não poderiam fruir plenamente do seu direito de propriedade sobre estas botijas na hipótese de este direito estar limitado pelos direitos de marca que lhe correspondem mesmo após a venda das ditas botijas pelo titular ou com o seu consentimento. Como refere a advogada‑geral no n.° 66 das suas conclusões, os compradores deixariam de ser livres no exercício do referido direito, mas estariam vinculados a um único fornecedor de gás para o enchimento ulterior das referidas botijas.

34      Por último, permitir ao licenciado do direito à marca constituída pela forma da botija em material compósito e titular das marcas apostas na mesma que se opusesse, com base nos direitos correspondentes a estas marcas, ao enchimento ulterior das botijas reduziria indevidamente a concorrência no mercado a jusante, relativo ao enchimento de botijas de gás, e implicaria mesmo o risco de uma repartição deste mercado se o referido licenciado e titular conseguisse impor a sua botija graças às características técnicas específicas da mesma, cuja protecção não é objecto do direito das marcas. Este risco é, por outro lado, acrescido devido ao facto de a botija em material compósito ter um custo elevado em relação ao gás e de o comprador, para poder escolher de novo livremente o seu fornecedor de gás, ter de renunciar ao investimento inicial efectuado com a aquisição da botija, cuja amortização pressuporia um número suficiente de reutilizações.

35      Resulta das considerações precedentes que a venda da botija em material compósito esgota os direitos que o licenciado do direito à marca constituída pela forma da botija em material compósito e titular das marcas apostas na mesma retira destas marcas e transfere para o comprador o direito de dispor livremente dessa botija, incluindo o de a trocar ou de a mandar encher quando o gás de origem estiver gasto, junto de uma empresa da sua escolha, ou seja, não apenas junto do referido licenciado e titular mas também junto de um dos seus concorrentes. Este direito do comprador tem como corolário o direito destes concorrentes de procederem, dentro dos limites estabelecidos pelo artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104, ao enchimento e troca das botijas vazias.

36      No que respeita a estes limites, cumpre recordar que, nos termos do referido artigo 7.°, n.° 2, o titular de uma marca, apesar da colocação no mercado dos produtos que ostentam a sua marca, pode opor‑se à sua comercialização ulterior quando motivos legítimos justifiquem essa oposição e, designadamente, quando o estado dos produtos seja modificado ou alterado após a sua comercialização. Segundo jurisprudência assente, a utilização do advérbio «nomeadamente» no referido artigo 7.°, n.° 2, demonstra que a hipótese relativa à modificação ou à alteração do estado dos produtos que ostentam a marca só é referida a título de exemplo do que podem ser motivos legítimos (v., designadamente, acórdão de 23 de Abril de 2009, Copad, C‑59/08, Colect., p. I‑3421, n.° 54 e jurisprudência aí referida).

37      Assim, o Tribunal de Justiça já decidiu que existe igualmente um motivo legítimo quando o uso por um terceiro de um sinal idêntico ou semelhante a uma marca prejudica seriamente o prestígio desta última, ou ainda quando esse uso é feito de modo a dar a impressão de que existe uma ligação económica entre o titular da marca e este terceiro, e designadamente que este último pertence à rede de distribuição do titular ou que existe uma relação especial entre estas duas entidades (v., neste sentido, acórdão de 8 de Julho de 2010, Portakabin, C‑558/08, ainda não publicado na Colectânea, n.os 79, 80 e jurisprudência aí referida).

38      Embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz das circunstâncias que caracterizam o processo principal, se existe um motivo legítimo desse tipo, há contudo que lhe fornecer algumas indicações para essa apreciação, em especial no que respeita aos elementos concretos acerca dos quais questiona o Tribunal de Justiça.

39      Neste contexto, importa precisar que, para responder à questão de saber se a comercialização das botijas em material compósito cheias pela Viking Gas é feita de modo a dar impressão de que existe uma ligação económica entre esta empresa e a Kosan Gas, o que conferiria a esta última empresa o direito de se opor a essa comercialização, há que ter em conta a rotulagem das referidas botijas assim como as condições em que as mesmas são trocadas.

40      Com efeito, a rotulagem das botijas em material compósito e as condições em que as mesmas são trocadas não devem levar o consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, a considerar que existe uma ligação entre as duas empresas em causa no processo principal ou que o gás que serviu para o enchimento destas botijas seja proveniente da Kosan Gas. Para apreciar se essa impressão errónea está afastada, há que ter em conta as práticas neste sector e, designadamente, apurar se os consumidores estão habituados a que as botijas de gás sejam cheias por outros distribuidores. Afigura‑se, por outro lado, razoável presumir que um consumidor que se dirige directamente à Viking Gas para trocar a sua botija de gás vazia por uma botija cheia, ou para mandar encher a sua própria botija, esteja mais facilmente em condições de conhecer a inexistência de ligação entre esta empresa e a Kosan Gas.

41      No que respeita ao facto de as botijas em material compósito apresentarem as marcas nominativa e figurativa constituídas pela denominação e pelo logótipo da Kosan Gas, as quais, segundo a matéria dada como provada pelo órgão jurisdicional de reenvio, se mantêm visíveis apesar da rotulagem aposta pela Viking Gas nestas botijas, cumpre sublinhar que esta circunstância constitui um elemento relevante na medida em que parece excluir que a referida rotulagem altere o estado das botijas encobrindo a sua origem.

42      Resulta do exposto que há que responder às questões submetidas que os artigos 5.° e 7.° da Directiva 89/104 devem ser interpretados no sentido de que não permitem que o titular de uma licença exclusiva para a utilização de botijas de gás em material compósito destinadas a serem reutilizadas, cuja forma é protegida como marca tridimensional e nas quais este titular apôs a sua denominação e o seu logótipo, registados como marcas nominativa e figurativa, se oponha a que estas botijas, após terem sido adquiridas por consumidores que, em seguida, gastaram o gás inicialmente contido nas mesmas, sejam trocadas por um terceiro, mediante pagamento, por botijas em material compósito cheias de gás que não provém do referido titular, a menos que esse mesmo titular possa invocar um motivo legítimo na acepção do artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104.

 Quanto às despesas

43      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

Os artigos 5.° e 7.° da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, devem ser interpretados no sentido de que não permitem que o titular de uma licença exclusiva para a utilização de botijas de gás em material compósito destinadas a serem reutilizadas, cuja forma é protegida como marca tridimensional e nas quais este titular apôs a sua denominação e o seu logótipo, registados como marcas nominativa e figurativa, se oponha a que estas botijas, após terem sido adquiridas por consumidores que, em seguida, gastaram o gás inicialmente contido nas mesmas, sejam trocadas por um terceiro, mediante pagamento, por botijas em material compósito cheias de gás que não provém do referido titular, a menos que esse mesmo titular possa invocar um motivo legítimo na acepção do artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104.

Assinaturas


* Língua do processo: dinamarquês.

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