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Documento 62006CJ0002

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 12 de Fevereiro de 2008.
Willy Kempter KG contra Hauptzollamt Hamburg-Jonas.
Pedido de decisão prejudicial: Finanzgericht Hamburg - Alemanha.
Exportação de bovinos - Restituições à exportação - Decisão administrativa definitiva - Interpretação de um acórdão do Tribunal de Justiça - Efeito de um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça após essa decisão - Reexame e revogação - Limites temporais - Segurança jurídica - Princípio da cooperação - Artigo 10.º CE.
Processo C-2/06.

Colectânea de Jurisprudência 2008 I-00411

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2008:78

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

12 de Fevereiro de 2008 ( *1 )

«Exportação de bovinos — Restituições à exportação — Decisão administrativa definitiva — Interpretação de um acórdão do Tribunal de Justiça — Efeito de um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça após essa decisão — Reexame e revogação — Limites temporais — Segurança jurídica — Princípio da cooperação — Artigo 10.o CE»

No processo C-2/06,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Finanzgericht Hamburg (Alemanha), por decisão de 21 de Novembro de 2005, entrado no Tribunal de Justiça em 4 de Janeiro de 2006, no processo

Willy Kempter KG

contra

Hauptzollamt Hamburg-Jonas,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Lenaerts e A. Tizzano (relator), presidentes de secção, J. N. Cunha Rodrigues, A. Borg Barthet, M. Ilešič, P. Lindh e J.-C. Bonichot, juízes,

advogado-geral: Y. Bot,

secretário: J. Swedenborg, administrador,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Willy Kempter KG, por K. Makowe, Rechtsanwalt,

em representação da República Checa, por T. Boček, na qualidade de agente,

em representação da República da Finlândia, por E. Bygglin, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por F. Erlbacher e T. van Rijn, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 24 de Abril de 2007,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do princípio da cooperação que decorre do artigo 10.o CE, à luz do acórdão de 13 de Janeiro de 2004, Kühne & Heitz (C-453/00, Colect., p. I-837).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Willy Kempter KG (a seguir «Kempter») ao Hauptzollamt Hamburg-Jonas (Serviço Aduaneiro Principal, a seguir «Hauptzollamt») a respeito da aplicação dos artigos 48.o e 51.o do Código de Procedimento Administrativo (Verwaltungsverfahrensgesetz), de 25 de Maio de 1976 (BGBl. 1976 I, p. 1253, a seguir «VwVfG»).

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento (CEE) n.o 3665/87 da Comissão, de 27 de Novembro de 1987, que estabelece regras comuns de execução do regime das restituições à exportação para os produtos agrícolas (JO L 351, p. 1), tem a seguinte redacção:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 16.o, o pagamento da restituição fica subordinado à apresentação da prova de que os produtos para os quais foi aceite uma declaração de exportação deixaram, no mesmo estado, o território aduaneiro da Comunidade, o mais tardar no prazo de 60 dias a contar da data dessa aceitação.»

4

O artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 3665/87 dispõe:

«O pagamento da restituição diferenciada ou não diferenciada fica sujeito, para além da condição de que o produto tenha deixado o território aduaneiro da Comunidade, à condição de que o produto, excepto se tiver perecido no decurso do transporte em consequência de um caso de força maior, tenha sido importado num país terceiro e, se for caso disso, num país terceiro determinado, nos doze meses seguintes à data de aceitação da declaração de exportação:

a)

Sempre que existam sérias dúvidas quanto ao destino real do produto,

[…]»

Legislação nacional

5

O § 48, n.o 1, primeira frase, do VwVfG dispõe que, mesmo que um acto administrativo inválido já não seja passível de impugnação, pode ser revogado total ou parcialmente, com efeitos para o futuro ou retroactivos.

6

O § 51 do VwVfG respeita à reabertura de processos encerrados por um acto administrativo que se tornou definitivo. O seu n.o 1 prevê que a autoridade em causa tem o dever de se pronunciar sobre a revogação ou a modificação de um acto administrativo definitivo, a pedido do interessado, quando:

haja ocorrido uma alteração, favorável ao interessado, dos factos ou da situação jurídica em que o acto administrativo assentou, após a sua adopção;

existam novos meios de prova que permitam ao interessado obter uma decisão mais favorável;

existam motivos para a reabertura do processo, na acepção do § 580 do Código de Processo Civil (Zivilprozessordnung).

7

O n.o 3 dessa mesma disposição indica que este pedido deve ser apresentado no prazo de três meses a contar do dia em que o interessado tomou conhecimento das circunstâncias que permitem a reabertura do processo.

Matéria de facto na origem do litígio no processo principal e questões prejudiciais

8

Resulta da decisão de reenvio que, de 1990 a 1992, a Kempter exportou bovinos para vários países árabes e para a ex-Jugoslávia. Em conformidade com o disposto no Regulamento n.o 3665/87, em vigor à época, requereu e recebeu restituições à exportação por parte do Hauptzollamt.

9

No âmbito de uma acção de fiscalização, o Betriebsprüfungsstelle Zoll (Serviço Aduaneiro de Fiscalização das Empresas) da Oberfinanzdirektion (Direcção Regional das Finanças) de Friburgo verificou que, antes da sua importação nos referidos países terceiros, parte dos animais tinham morrido ou sido abatidos de urgência durante o transporte ou durante o período de quarentena no país de destino.

10

Por decisão de 10 de Agosto de 1995, o Hauptzollamt exigiu assim da Kempter o reembolso das restituições à exportação por si recebidas.

11

A Kempter interpôs recurso desta decisão, sem, no entanto, invocar nenhuma violação do direito comunitário. Por acórdão de 16 de Junho de 1999, o Finanzgericht Hamburg negou provimento ao recurso, com fundamento em que a recorrente não tinha feito prova de que os animais tinham sido importados num país terceiro nos doze meses seguintes à data de aceitação da declaração de exportação, conforme exigido pelo artigo 5.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 3665/87, para o pagamento das restituições. Por despacho de 11 de Maio de 2000, o Bundesfinanzhof negou provimento, em última instância, ao recurso desse acórdão interposto pela Kempter.

12

A decisão de reembolso do Hauptzollamt de 10 de Agosto de 1995 tornou-se, assim, definitiva.

13

No acórdão de 14 de Dezembro de 2000, Emsland-Stärke (C-110/99, Colect., p. I-11569, n.o 48), o Tribunal de Justiça declarou que a condição de as mercadorias terem sido importadas num país terceiro para as restituições à exportação previstas num regulamento comunitário serem concedidas só pode ser imposta ao beneficiário das restituições antes da respectiva concessão.

14

Num outro processo, o Bundesfinanzhof proferiu um acórdão, em 21 de Março de 2002, onde aplicou essa interpretação dada pelo Tribunal de Justiça. A Kempter alega ter tido conhecimento desse acórdão em 1 de Julho de 2002.

15

Invocando este acórdão do Bundesfinanzhof, em 16 de Setembro de 2002, ou seja, cerca de 21 meses após a prolação do acórdão Emsland-Stärke, já referido, a Kempter requereu ao Hauptzollamt, com base no § 51, n.o 1, do VwVfG, o reexame e a revogação da decisão de reembolso em causa.

16

Por decisão de 5 de Novembro de 2002, o Hauptzollamt indeferiu o requerimento da Kempter, sublinhando que essa alteração da jurisprudência não implicava uma alteração no direito que justificasse, por si só, a reabertura do processo nos termos do § 51, n.o 1, primeiro travessão, do VwVfG. A reclamação que a Kempter apresentou desta decisão foi igualmente indeferida por decisão de 25 de Março de 2003.

17

A Kempter recorreu então de novo ao Finanzgericht Hamburg, sustentando designadamente que, no caso em apreço, estavam preenchidas as condições que permitiam o reexame de uma decisão administrativa definitiva, enunciadas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Kühne & Heitz, já referido, devendo, por conseguinte, ser revogada a decisão de reembolso do Hauptzollamt de 10 de Agosto de 1995.

18

Na sua decisão de reenvio, o Finanzgericht Hamburg verifica desde logo que, à luz do acórdão Emsland-Stärke, já referido, bem como do acórdão do Bundesfinanzhof de 21 de Março de 2002, a decisão de reembolso do Hauptzollamt de 10 de Agosto de 1995 é ilegal. Interroga-se, em seguida, sobre a questão de saber se, por esse facto, o Hauptzollamt tem a obrigação de reexaminar esta decisão, que, entretanto, adquiriu carácter definitivo, embora a recorrente não tenha invocado, nem no Finanzgericht Hamburg, nem no Bundesfinanzhof, uma interpretação errada do direito comunitário, ou seja, do artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 3665/87.

19

O órgão jurisdicional de reenvio recorda o que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Kühne & Heitz, já referido:

«[…] o princípio da cooperação que decorre do artigo 10.o CE impõe que um órgão administrativo, ao qual foi apresentado um pedido nesse sentido, reexamine uma decisão administrativa definitiva para ter em conta a interpretação da disposição pertinente entretanto feita pelo Tribunal de Justiça quando:

dispõe, segundo o direito nacional, do poder de revogação desta decisão;

a decisão em causa se tornou definitiva em consequência de um acórdão de um órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância;

o referido acórdão, face à jurisprudência do Tribunal de Justiça posterior a esse acórdão, se fundamenta numa interpretação errada do direito comunitário aplicada sem que ao Tribunal de Justiça tivesse sido submetida uma questão prejudicial nas condições previstas no artigo 234.o, [terceiro parágrafo], CE, e

o interessado se dirigiu ao órgão administrativo imediatamente depois de ter tido conhecimento da referida jurisprudência».

20

No que respeita às duas primeiras condições enumeradas no número anterior, o Finanzgericht Hamburg considera que se encontram preenchidas no caso vertente, atendendo a que, por um lado, o Hauptzollamt dispõe, por força do § 48, n.o 1, primeira frase, do VwVfG, do poder de revogar a sua decisão de reembolso de 10 de Agosto de 1995 e, por outro lado, esta decisão se tornou de facto definitiva em virtude do despacho de 11 de Maio de 2000 do Bundesfinanzhof que decidiu em última instância.

21

No que se refere à terceira condição mencionada no acórdão Kühne & Heitz, já referido, o Finanzgericht Hamburg interroga-se sobre a questão de saber se esta deveria ser interpretada no sentido de que, por um lado, o interessado devia ter impugnado judicialmente o acto administrativo invocando o direito comunitário e, por outro, o tribunal nacional devia ter julgado improcedente a acção sem ter submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial. Se for este o caso, não se pode considerar preenchida esta condição no caso em apreço e, consequentemente, a acção proposta pela recorrente no processo principal deverá ser julgada improcedente, uma vez que a Kempter não invocou uma interpretação errada do direito comunitário nem no Finanzgericht Hamburg nem no Bundesfinanzhof.

22

O Finanzgericht Hamburg considera, todavia, poder inferir-se do acórdão Kühne & Heitz, já referido, que, no processo que deu origem a esse acórdão, a recorrente também não tinha requerido que fosse submetida ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial.

23

No âmbito da fundamentação da sua decisão de reenvio, o Finanzgericht Hamburg sugere, além disso, que, quando os próprios órgãos jurisdicionais nacionais não se apercebem da importância de uma questão de interpretação do direito comunitário, o particular lesado não deve sofrer as consequências daí resultantes.

24

Relativamente à quarta condição referida no acórdão Kühne & Heitz, já referido, o Finanzgericht Hamburg considera que a mesma se encontra preenchida se o particular lesado pela decisão administrativa incompatível com o direito comunitário pedir «sem demora» ou «sem atraso culposo» à administração que reexamine esta decisão, logo que teve «conhecimento efectivo» da jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça.

25

Nas circunstâncias do processo principal, embora a acção tenha sido proposta 21 meses após a prolação do acórdão Emsland-Stärke, já referido, o pedido de reexame apresentado pela Kempter ao Hauptzollamt não pode ser considerado extemporâneo, se se atender ao facto de só ter sido entregue em 16 de Setembro de 2002, ou seja, num prazo inferior a três meses a contar do momento em que a Kempter alegou ter tomado conhecimento do acórdão pelo qual o Bundesfinanzhof aplicou a interpretação constante do acórdão Emsland-Stärke, já referido.

26

Na medida em que a administração deve aplicar a interpretação de uma disposição de direito comunitário, dada pelo Tribunal de Justiça num acórdão proferido a título prejudicial, às relações jurídicas constituídas antes desse acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a questão de saber se a possibilidade de pedir o reexame e a revogação de uma decisão administrativa com carácter definitivo e que viola o direito comunitário pode ser ilimitada no tempo ou se, pelo contrário, deve estar limitada temporalmente por razões de segurança jurídica.

27

Nestas circunstâncias, o Finanzgericht Hamburg suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O [reexame e a revogação] de uma decisão administrativa definitiva, de forma a levar em conta a interpretação entretanto dada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias às normas comunitárias aplicáveis, pressupõem que o interessado tenha impugnado judicialmente a decisão administrativa nos tribunais nacionais invocando o direito comunitário?

2)

O pedido de [reexame e de revogação] de uma decisão administrativa definitiva contrária ao direito comunitário está limitado temporalmente [por razões imperiosas de direito comunitário], independentemente das condições estabelecidas no acórdão do Tribunal de Justiça [Kühne & Heitz, já referido]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

28

Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o acórdão Kühne & Heitz, já referido, só impõe o reexame e a revogação (rectius: rectificação) de uma decisão administrativa que se tornou definitiva por força de um acórdão de um órgão jurisdicional de última instância se a recorrente no processo principal tiver invocado o direito comunitário no âmbito do recurso jurisdicional de direito interno que interpôs dessa decisão.

Observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

29

A Kempter, o Governo finlandês e a Comissão das Comunidades Europeias consideram que se deve responder negativamente à primeira questão.

30

Desde logo, a Kempter salienta que não decorre do artigo 234.o, terceiro parágrafo, CE que as partes no processo principal tivessem que invocar no órgão jurisdicional nacional uma interpretação errada do direito comunitário para que este fosse obrigado a proceder a um reenvio prejudicial. A Comissão acrescenta que esta condição também não resulta da fundamentação nem da parte decisória do acórdão Kühne & Heitz, já referido.

31

Em seguida, a Kempter e a Comissão observam que a obrigação de reenvio prejudicial que incumbe aos tribunais nacionais que decidem em última instância, por força do artigo 234.o, terceiro parágrafo, CE, não pode igualmente depender de as partes requererem um tal reenvio aos referidos órgãos jurisdicionais.

32

Por último, o Governo finlandês considera que, por um lado, a necessidade de as partes no processo principal terem invocado no órgão jurisdicional nacional uma interpretação errada do direito comunitário poderia tornar impossível, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária e ser assim contrária ao princípio da efectividade. Por outro lado, o cidadão lesado não deve sofrer as consequências resultantes do facto de um órgão jurisdicional nacional não se ter apercebido da importância de uma questão de direito comunitário.

33

O Governo checo, por sua vez, sustenta que o reexame e a revogação de uma decisão administrativa definitiva só podem estar limitados ao facto de o interessado ter impugnado essa decisão nos órgãos jurisdicionais nacionais invocando o direito comunitário no caso de esses mesmos órgãos jurisdicionais não terem, nos termos do direito interno, nem a faculdade nem a obrigação de aplicar oficiosamente o direito comunitário e de esta circunstância não constituir um obstáculo ao respeito dos princípios da equivalência e da efectividade.

Resposta do Tribunal de Justiça

34

Para responder à primeira questão, importa desde logo recordar que, segundo jurisprudência bem assente, incumbe a todas as autoridades dos Estados-Membros assegurar o respeito das normas de direito comunitário no âmbito das suas competências (v. acórdãos de 12 de Junho de 1990, Alemanha/Comissão, 8/88, Colect., p. I-2321, n.o 13, e Kühne & Heitz, já referido, n.o 20).

35

Cumpre igualmente recordar que a interpretação que, no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 234.o CE, o Tribunal de Justiça dá a uma norma de direito comunitário esclarece e precisa, sempre que seja necessário, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ser ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor (v., designadamente, acórdãos de 27 de Março de 1980, Denkavit italiana, 61/79, Recueil, p. 1205, n.o 16; de 10 de Fevereiro de 2000, Deutsche Telekom, C-50/96, Colect., p. I-743, n.o 43; e Kühne & Heitz, já referido, n.o 21). Por outras palavras, um acórdão prejudicial não tem valor constitutivo, mas puramente declarativo, com a consequência que esses efeitos remontam, em princípio, à data da entrada em vigor da norma interpretada (v., neste sentido, acórdão de 19 de Outubro de 1995, Richardson, C-137/94, Colect., p. I-3407, n.o 33).

36

Daqui resulta que, num processo como o processo principal, uma norma de direito comunitário interpretada dessa forma deve ser aplicada por um órgão administrativo no âmbito das suas competências mesmo a relações jurídicas nascidas e constituídas antes de proferido o acórdão do Tribunal de Justiça que decidiu o pedido de interpretação (acórdão Kühne & Heitz, já referido, n.o 22, bem como, neste sentido, acórdãos de 3 de Outubro de 2002, Barreira Pérez, C-347/00, Colect., p. I-8191, n.o 44; de 17 de Fevereiro de 2005, Linneweber e Akritidis, C-453/02 e C-462/02, Colect., p. I-1131, n.o 41; e de 6 de Março de 2007, Meilicke e o., C-292/04, Colect., p. I-1835, n.o 34).

37

No entanto, como relembrou o Tribunal de Justiça, esta jurisprudência deve ser lida à luz do princípio da segurança jurídica, que figura entre os princípios gerais reconhecidos no direito comunitário. A este respeito, importa observar que o carácter definitivo de uma decisão administrativa, adquirido no termo de prazos de recurso razoáveis ou, como no processo principal, por terem sido esgotadas as vias de recurso, contribui para a referida segurança, daqui resultando que o direito comunitário não exige que um órgão administrativo seja, em princípio, obrigado a revogar uma decisão administrativa que já adquiriu este carácter definitivo (acórdão Kühne & Heitz, já referido, n.o 24).

38

No entanto, o Tribunal de Justiça declarou que determinadas circunstâncias particulares podem impor que, por força do princípio da cooperação que decorre do artigo 10.o CE, um órgão administrativo nacional reexamine uma decisão administrativa que se tornou definitiva depois de terem sido esgotadas as vias de recurso internas, para ter em conta a interpretação de uma disposição pertinente de direito comunitário feita posteriormente pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdãos Kühne & Heitz, já referido, n.o 27, e de 19 de Setembro de 2006, i-21 Germany e Arcor, C-392/04 e C-422/04, Colect., p. I-8559, n.o 52).

39

Como recorda o órgão jurisdicional de reenvio, à luz dos n.os 26 e 28 do acórdão Kühne & Heitz, já referido, entre as condições em que se pode basear a obrigação de reexame, o Tribunal de Justiça tomou em consideração, nomeadamente, o facto de o acórdão do órgão jurisdicional de última instância, por força do qual a decisão administrativa impugnada se tornou definitiva, ser, face à posterior jurisprudência do Tribunal de Justiça, baseado numa interpretação errada do direito comunitário adoptada sem que tivesse sido submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial nas condições previstas no artigo 234.o, terceiro parágrafo, CE.

40

Ora, a presente questão prejudicial pretende unicamente saber se uma tal condição só se encontra preenchida se a recorrente no processo principal tiver invocado o direito comunitário no âmbito do recurso jurisdicional que interpôs da decisão administrativa em causa.

41

A este respeito, sublinhe-se que o sistema instituído pelo artigo 234.o CE a fim de assegurar a uniformidade da interpretação do direito comunitário nos Estados-Membros institui a cooperação directa entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais através de um processo alheio a qualquer iniciativa das partes (v., neste sentido, acórdãos de 27 de Março de 1963, Schaake e o., 28/62 a 30/62, Colect. 1962-1964, p. 233; de 1 de Março de 1973, Bollmann, 62/72, Colect., p. 145, n.o 4; e de 10 de Julho de 1997, Palmisani, C-261/95, Colect., p. I-4025, n.o 31).

42

Com efeito, como esclarece o advogado-geral nos n.os 100 a 104 das suas conclusões, o reenvio prejudicial assenta num diálogo de juiz a juiz, cujo início depende inteiramente da apreciação que o órgão jurisdicional nacional faça da pertinência e da necessidade do referido reenvio (v., neste sentido, acórdão de 16 de Junho de 1981, Salonia, 126/80, Recueil, p. 1563, n.o 7).

43

De resto, como observam a Comissão e o advogado-geral nos n.os 93 a 95 das suas conclusões, o próprio teor do acórdão Kühne & Heitz, já referido, não indica de modo algum que a recorrente seja obrigada a suscitar, no âmbito do seu processo jurisdicional de direito interno, a questão de direito comunitário que foi posteriormente objecto do acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça.

44

Não se pode, por isso, inferir do acórdão Kühne & Heitz, já referido, que, para efeitos da terceira condição estabelecida por esse acórdão, as partes devam ter suscitado no órgão jurisdicional nacional a questão de direito comunitário em causa. Com efeito, para que essa condição esteja preenchida, basta que a referida questão de direito comunitário, cuja interpretação se tenha revelado errada à luz de um posterior acórdão do Tribunal de Justiça, tenha sido examinada pelo órgão jurisdicional nacional que decide em última instância ou que pudesse ter sido suscitada oficiosamente por esse mesmo órgão jurisdicional.

45

A este respeito, recorde-se que, embora o direito comunitário não imponha que os órgãos jurisdicionais nacionais conheçam oficiosamente de um fundamento relativo à violação de disposições comunitárias, quando o exame desse fundamento os obriga a ultrapassar os limites do litígio tal como foi circunscrito pelas partes, estes órgãos jurisdicionais são obrigados a conhecer oficiosamente dos fundamentos de direito que decorrem de uma norma comunitária vinculativa quando, por força do direito nacional, estes têm a obrigação ou a faculdade de o fazer em relação a uma norma vinculativa de direito nacional (v., neste sentido, acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen, C-430/93 e C-431/93, Colect., p. I-4705, n.os 13, 14 e 22, e de 24 de Outubro de 1996, Kraaijeveld e o., C-72/95, Colect., p. I-5403, n.os 57, 58 e 60).

46

Por conseguinte, há que responder à primeira questão submetida que, no âmbito de um processo num órgão administrativo, que tenha por objecto o reexame de uma decisão administrativa que se tornou definitiva por força de um acórdão proferido por um órgão jurisdicional de última instância, baseando-se este acórdão, à luz de posterior jurisprudência do Tribunal de Justiça, numa interpretação errada do direito comunitário, não é necessário que o recorrente no processo principal tenha invocado o direito comunitário no âmbito do recurso jurisdicional de direito interno que interpôs dessa decisão.

Quanto à segunda questão

47

Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o direito comunitário impõe um limite temporal para se apresentar um pedido de reexame de uma decisão administrativa que se tornou definitiva.

Observações apresentadas ao Tribunal de Justiça

48

A Kempter sublinha, em primeiro lugar, que o direito comunitário não inclui nenhuma disposição específica relativa ao prazo de caducidade ou prescrição de um pedido de reexame. Acrescenta, em seguida, que, em conformidade com o disposto no acórdão Kühne & Heitz, já referido, o interessado só pode invocar o seu direito ao reexame da decisão administrativa que se tornou definitiva se existir uma disposição nacional que o permita. Para decidir se esse direito está ou não limitado temporalmente, há que tomar em consideração as disposições nacionais em matéria de prescrição.

49

A Kempter alega também que, na hipótese de serem aplicáveis, por analogia, disposições comunitárias relativas a prazos de caducidade ou prescrição, o seu pedido não devia ser considerado extemporâneo, atendendo ao facto de ter sido apresentado menos de três anos depois das conclusões do advogado-geral no processo que deu origem ao acórdão Emsland-Stärke, já referido, ou seja, o momento a partir do qual se poderia antever uma alteração na jurisprudência bem assente dos tribunais alemães.

50

Quanto à quarta condição estabelecida pelo Tribunal de Justiça no acórdão Kühne & Heitz, já referido, os Governos checo e finlandês partilham da opinião expressa pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual o prazo assim fixado pelo Tribunal de Justiça para requerer a revisão de uma decisão administrativa que se tornou definitiva deve depender do conhecimento efectivo dessa jurisprudência por parte do interessado.

51

Além disso, consideram que o direito comunitário não se opõe a que o direito de pedir o reexame de uma decisão administrativa ilegal esteja limitado temporalmente. As regras processuais nacionais podem, portanto, estabelecer validamente prazos específicos para a apresentação deste tipo de pedido, desde que os princípios da equivalência e da efectividade sejam respeitados.

52

Na opinião da Comissão, a segunda questão prejudicial apenas diz respeito ao intervalo compreendido entre a prolação do acórdão do Tribunal de Justiça do qual decorre a ilegalidade da decisão administrativa e o pedido de reexame e de revogação da referida decisão apresentado pela Kempter.

53

Por outro lado, a Comissão indica que o princípio da autonomia processual dos Estados-Membros se opõe à fixação de um prazo a nível comunitário. Propõe, por motivos de segurança jurídica, que se complete a quarta condição prevista no acórdão Kühne & Heitz, já referido, exigindo-se que o interessado se tenha dirigido ao órgão administrativo imediatamente após ter tomado conhecimento do acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça, do qual decorre a ilegalidade da decisão administrativa que se tornou definitiva, num prazo, a contar da prolação do referido acórdão, que seja razoável à luz dos princípios do direito nacional e conforme com os princípios da equivalência e da efectividade.

Resposta do Tribunal de Justiça

54

Quanto à questão dos limites temporais para a apresentação de um pedido de reexame, importa desde logo recordar que, no processo que deu origem ao acórdão Kühne & Heitz, já referido, a sociedade recorrente tinha pedido o reexame e a rectificação da decisão administrativa num prazo que não ultrapassou os três meses após ter tido conhecimento do acórdão de 5 de Outubro de 1994, Voogd Vleesimport en -export (C-151/93, Colect., p. I-4915), do qual decorreu a ilegalidade da decisão administrativa.

55

É certo que o Tribunal de Justiça, na apreciação das circunstâncias de facto do processo que deu origem ao acórdão Kühne & Heitz, já referido, considerou que a duração do prazo no qual o pedido de reexame tinha sido apresentado devia ser tida em consideração e justificava, juntamente com as outras condições indicadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o reexame da decisão administrativa impugnada. No entanto, o Tribunal de Justiça não tinha exigido que um pedido de reexame fosse necessariamente apresentado logo após o requerente ter tido conhecimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça na qual se baseava o pedido.

56

Ora, não se pode deixar de observar que, como refere o advogado-geral nos n.os 132 e 134 das suas conclusões, o direito comunitário não impõe nenhum prazo concreto para a apresentação de um pedido de reexame. Por conseguinte, a quarta condição mencionada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Kühne & Heitz, já referido, não pode ser interpretada como uma obrigação de apresentar o pedido de reexame em causa num determinado prazo depois de o requerente ter tido conhecimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça na qual se baseava o próprio pedido.

57

Importa, contudo, precisar que, segundo jurisprudência assente, na falta de regulamentação comunitária na matéria, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que decorrem para os particulares do direito comunitário, desde que, por um lado, essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das acções análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade) (v., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2007, Unibet, C-432/05, Colect., p. I-2271, n.o 43, e de 7 de Junho de 2007, van der Weerd e o., C-222/05 a C-225/05, Colect., p. I-4233, n.o 28 e jurisprudência aí referida).

58

O Tribunal de Justiça reconheceu assim a compatibilidade com o direito comunitário da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica (v., neste sentido, acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Rewe-Zentralfinanz e Rewe-Zentral, 33/76, Colect., p. 813, n.o 5, e Comet, 45/76, Recueil, p. 2043, n.os 17 e 18, Colect., p. 835; Denkavit italiana, já referido, n.o 23; de 25 de Julho de 1991, Emmott, C-208/90, Colect., p. I-4269, n.o 16; Palmisani, já referido, n.o 28; de 17 de Julho de 1997, Haahr Petroleum, C-90/94, Colect., p. I-4085, n.o 48; e de 24 de Setembro de 2002, Grundig Italiana, C-255/00, Colect., p. I-8003, n.o 34). Com efeito, prazos deste tipo não são susceptíveis de tornar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (acórdão Grundig Italiana, já referido, n.o 34).

59

Decorre desta jurisprudência assente que os Estados-Membros podem exigir, em nome do princípio da segurança jurídica, que um pedido de reexame e de revogação de uma decisão administrativa, que se tornou definitiva e que seja contrária ao direito comunitário tal como interpretado posteriormente pelo Tribunal de Justiça, seja apresentado à administração competente num prazo razoável.

60

Por conseguinte, há que responder à segunda questão submetida que o direito comunitário não impõe qualquer limite temporal para a apresentação de um pedido de reexame de uma decisão administrativa que se tornou definitiva. No entanto, os Estados-Membros continuam a ter a liberdade de fixar prazos de recurso razoáveis, em conformidade com os princípios comunitários da efectividade e da equivalência.

Quanto às despesas

61

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

No âmbito de um processo num órgão administrativo, que tenha por objecto o reexame de uma decisão administrativa que se tornou definitiva por força de um acórdão proferido por um órgão jurisdicional de última instância, baseando-se este acórdão, à luz de posterior jurisprudência do Tribunal de Justiça, numa interpretação errada do direito comunitário, não é necessário que o recorrente no processo principal tenha invocado o direito comunitário no âmbito do recurso jurisdicional de direito interno que interpôs dessa decisão.

 

2)

O direito comunitário não impõe qualquer limite temporal para a apresentação de um pedido de reexame de uma decisão administrativa que se tornou definitiva. No entanto, os Estados-Membros continuam a ter a liberdade de fixar prazos de recurso razoáveis, em conformidade com os princípios comunitários da efectividade e da equivalência.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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