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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 61985CJ0309

Acórdão do Tribunal de 2 de Fevereiro de 1988.
Bruno Barra contra Estado belga e Ville de Liège.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal de première instance de Liège - Bélgica.
Não discriminação - Acesso ao ensino não universitário - Repetição do indevido.
Processo 309/85.

Colectânea de Jurisprudência 1988 -00355

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:1988:42

61985J0309

ACORDAO DO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 2 DE FEVEREIRO DE 1988. - BRUNO BARRA CONTRA ESTADO BELGA E MUNICIPIO DE LIEGE. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE PREMIERE INSTANCE DE LIEGE. - NAO DISCRIMINACAO - ACESSO AO ENSINO NAO UNIVERSITARIO - REPETICAO DO INDEVIDO. - PROCESSO 309/85.

Colectânea da Jurisprudência 1988 página 00355
Edição especial sueca página 00325
Edição especial finlandesa página 00327


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

1. Questões prejudiciais - Interpretação - Eficácia no tempo dos acórdãos interpretativos - Efeito retroactivo - Limites - Segurança jurídica - Poder de apreciação do Tribunal que se exerce no próprio acórdão prejudicial - Limitação posterior - Inadmissibilidade

(Artigo 177.° do Tratado CEE)

2. Direito comunitário - Princípios - Igualdade de tratamento - Discriminação em razão da nacionalidade - Ensino de carácter profissional ministrado num Estado-membro - Propina de inscrição ou "minerval" exigido apenas aos nacionais de outros Estados-membros - Proibição - Reconhecimento num acórdão prejudicial - Interpretação aplicável aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional anteriores à prolação do acórdão

(Artigos 7.° e 177.° do Tratado CEE)

3. Direito comunitário - Efeito directo - Cobrança de uma propina de inscrição nos cursos de ensino profissional em violação do princípio de não discriminação em razão da nacionalidade - Restituição - Modalidades - Aplicação do direito nacional - Limites

(Artigo 7.° do Tratado CEE)

Sumário


1. A interpretação que, no exercício da competência que lhe confere o artigo 177.° do Tratado, o Tribunal der de uma norma de direito comunitário, esclarece e especifica, quando disso haja necessidade, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Daí resulta que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz, mesmo a relações jurídicas surgidas e constituídas antes do acórdão que decide sobre o pedido de interpretação, se por outro lado estiverem reunidas as condições que permitem levar aos tribunais competentes um litígio relativo à aplicação da mesma norma.

Só a título excepcional, por aplicação de um princípio geral de segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, tendo em conta as perturbações graves que o seu acórdão poderia provocar, para o passado, nas relações jurídicas constituídas de boa fé, pode o Tribunal ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar a disposição assim interpretada para impugnar essas relações jurídicas. Semelhante limitação só poderá, todavia, ser admitida no próprio acórdão que decide quanto à interpretação solicitada.

2. A interpretação do artigo 7.° do Tratado, segundo o qual constitui uma discriminação em razão da nacionalidade, proibida pelo mesmo artigo, a imposição de uma taxa, de uma propina de inscrição ou de um minerval como condição de acesso aos cursos de ensino profissional, aos estudantes nacionais de outros Estados-membros, quando o mesmo encargo não seja imposto aos estudantes nacionais, é aplicável aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional anteriores à prolação do acórdão em que o Tribunal deu essa interpretação.

3. O direito de obter o reembolso das importâncias cobradas por um Estado-membro em violação das disposições do direito comunitário é a consequência e o complemento dos direitos conferidos aos respectivos titulares pelas disposições comunitárias tal como foram interpretadas pelo Tribunal. Se é certo que o reembolso só pode ser prosseguido no quadro das condições de fundo e de forma fixadas pelas diversas legislações nacionais na matéria, não é menos verdade que essas condições não podem ser estabelecidas de forma a tornar impossível na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

Uma disposição legislativa que, tratando-se de propinas de inscrição complementares ou minerval exigidos, em violação do artigo 7.° do Tratado, unicamente aos estudantes nacionais de outros Estados-membros para acesso aos cursos de ensino profissional, limita o reembolso apenas aos demandantes que tenham intentado uma acção de reembolso antes de proferido o acórdão do Tribunal que declarou essa violação, priva os indivíduos que não preenchem essa condição do direito de obter o reembolso das importâncias pagas indevidamente e torna, por isso, impossível o exercício dos direitos conferidos pelo Tratado. Os tribunais nacionais não devem aplicar tal disposição.

Partes


No processo 309/85,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo presidente do tribunal de première instance de Liège, em sede de processo sumário urgente, e destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Bruno Barra, estudante, residente em Bonnetable (França) e dezasseis outros estudantes, por um lado,

e

1) Estado belga,

2) Município de Liège, por outro,

uma decisão a título prejudicial sobre, designadamente, a interpretação do artigo 7.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL,

constituído pelos Srs. Mackenzie Stuart, presidente, G. Bosco, O. Due, J. C. Moitinho de Almeida e G. C. Rodríguez Iglesias, presidentes de secção, T. Koopmans, U. Everling, K. Bahlmann, Y. Galmot, C. Kakouris, R. Joliet, T. F. O' Higgins e F. Schockweiler, juízes,

advogado-geral: Sir Gordon Slynn

secretária: D. Louterman, administradora

vistas as observações apresentadas:

- em representação dos demandantes, por L. Misson, advogado no foro de Liège,

- em representação do Reino da Bélgica, por P. Deltenre, advogado no foro de Bruxelas,

- em representação do Reino Unido, por McHenry, agente, e por Mummery, advogado,

- em representação da Comissão, por J. Griesmar, agente,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 18 de Fevereiro de 1987,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Setembro de 1987

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 9 de Outubro de 1985, entrado no Tribunal em 14 de Outubro seguinte, o presidente do tribunal de première instance de Liège apresentou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões a título prejudicial relativas à interpretação de certos princípios do direito comunitário a fim de apreciar a compatibilidade com esses princípios de uma lei que limita a possibilidade de obter o reembolso de propinas de inscrição cuja não conformidade com o artigo 7.° do Tratado CEE resulta de um acórdão proferido a título prejudicial.

2 As questões foram suscitadas no âmbito de uma citação em processo sumário urgente intentado por B. Barra e dezasseis outros demandantes no processo principal (a seguir designados "demandantes") contra a recusa do Estado belga, demandado no processo principal, de reembolsar as propinas de inscrição complementares (a seguir designadas "minerval") que pagaram antes de 13 de Fevereiro de 1985, data em que foi proferido o acórdão Gravier (293/83, Recueil, p. 606). Durante o processo, os demandantes provocaram a intervenção do município de Liège.

3 Resulta dos autos que os demandantes são todos de nacionalidade francesa e efectuaram estudos secundários técnicos e profissionais na secção de mecânica de armamento do Institut communal d' enseignement technique de la fine mécanique, de l' armurerie e de l' horlogerie (Instituto Municipal de Ensino Técnico de Mecânica de Precisão, de Armamento e de Relojoaria), organizados pelo município de Liège. Durante os seus estudos neste instituto, foram obrigados a pagar todos os anos um minerval que não era exigido aos estudantes de nacionalidade belga. Consoante as circunstâncias e o número de anos de estudo efectuados, os demandantes pagaram cada um entre 21 000 e 136 558 BFR a título de minerval.

4 Não foi contestado perante o tribunal nacional que o instituto em causa, e especialmente a sua secção de mecânica de armamento, é um estabelecimento de ensino de carácter profissional. O tribunal nacional considerou, por isso, à luz do referido acórdão do Tribunal de 13 de Fevereiro de 1985, que os demandantes pagaram um minerval que não era devido.

5 Com efeito, o Tribunal declarou nesse acórdão que a imposição de uma taxa, de uma propina de inscrição ou de um minerval como condição de acesso ao curso de ensino profissional, aos estudantes nacionais de outros Estados-membros, quando o mesmo encargo não é imposto aos estudantes nacionais, constitui uma discriminação em razão da nacionalidade, proibida pelo artigo 7.° do Tratado.

6 Todavia, nos termos da lei belga de 21 de Junho de 1985 relativa ao ensino (Moniteur belge de 6.7.1985), os minervais cobrados entre 1 de Setembro de 1976 e 31 de Dezembro de 1984 não serão em caso algum reembolsados, à excepção dos cobrados a estudantes nacionais de um Estado-membro da Comunidade que tenham frequentado um curso de formação profissional, que serão reembolsados na base das decisões judiciais proferidas na sequência de uma acção para reembolso proposta nos tribunais antes de 13 de Fevereiro de 1985, data em que foi proferido o já referido acórdão Gravier.

7 Foi nestas circunstâncias que o tribunal nacional, para apreciar a compatibilidade da recusa de reembolso do minerval pago com o direito comunitário, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal as seguintes questões:

"No seu acórdão Gravier, proferido em 13 de Fevereiro de 1985 no processo 293/83, o Tribunal de Justiça declarou que a imposição aos estudantes nacionais de outros Estados-membros de uma taxa, de uma propina de inscrição ou de um minerval como condição de acesso aos cursos de ensino profissional, quando esse encargo não é imposto aos estudantes nacionais, constitui uma discriminação em razão da nacionalidade, proibida pelo artigo 7.° do Tratado.

1) Esta interpretação do Tratado limita-se aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional posteriores à prolação do acórdão ou aplica-se também ao período entre 1 de Setembro de 1976 e 31 de Dezembro de 1984?

2) Se a interpretação se aplicar igualmente a esse período anterior à prolação do acórdão, é compatível com o direito comunitário o facto de os estudantes dos outros Estados-membros que pagaram indevidamente uma taxa, uma propina de inscrição ou um minerval serem privados, por uma lei nacional, do direito de obter a sua restituição quando não tenham proposto uma acção judicial para reembolso antes da prolação desse acórdão?"

8 Para mais ampla exposição do enquadramento jurídico e dos factos do processo principal bem como das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação do Tribunal.

Quanto à primeira questão

9 Os demandantes e a Comissão estão de acordo em reconhecer que os acórdãos do Tribunal proferidos no âmbito de um processo prejudicial têm, em princípio, efeito retroactivo. Por isso, a interpretação do artigo 7.° do Tratado CEE dada no referido acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 deveria ser respeitada pelos tribunais nacionais também no que toca aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional em relação ao período compreendido entre 1 de Setembro de 1976 e 31 de Dezembro de 1984. Um Estado-membro não pode adoptar uma lei que redunde em limitar os efeitos de tal acórdão no tempo quando o Tribunal não o tenha decidido nesse acórdão.

10 Sem contestar o princípio do efeito retroactivo dos acórdãos prejudiciais, o Reino da Bélgica sustenta que, no caso presente, estão reunidas todas as condições para uma limitação no tempo dos efeitos do acórdão de 13 de Fevereiro de 1985.

11 Há que recordar, a este propósito, a jurisprudência do Tribunal (ver, designadamente, o acórdão de 27 de Março de 1980, Amministrazione delle finanze dello Stato/Denkavit italiana 61/79, Recueil, p. 1205), segundo a qual a interpretação que o Tribunal dá de uma norma de direito comunitário, no exercício da competência que lhe confere o artigo 177.°, esclarece e especifica, quando haja necessidade disso, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Daí resulta que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz, mesmo a relações jurídicas surgidas e constituídas antes do acórdão que decide sobre o pedido de interpretação, se por outro lado estiverem preenchidas as condições que permitem levar aos tribunais competentes um processo relativo à aplicação da mesma norma.

12 Só a título excepcional, como o Tribunal reconheceu no seu acórdão de 8 de Abril de 1976 (Defrenne/Sabena, 43/75, Recueil, p. 455), por aplicação de um princípio geral de segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, tendo em conta as perturbações graves que o seu acórdão poderia causar para o passado nas relações jurídicas constituídas de boa fé, pode o Tribunal ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar a disposição assim interpretada para impugnar essas relações jurídicas.

13 Semelhante limitação só poderá, todavia, ser admitida, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal, no próprio acórdão que decide sobre a interpretação solicitada. A exigência fundamental de uma aplicação uniforme e geral do direito comunitário implica que caiba apenas ao Tribunal decidir quanto às limitações no tempo a impor à interpretação por ele dada.

14 Segundo o despacho de reenvio, o Tribunal deve pronunciar-se, neste contexto, quanto ao ponto de saber se o alcance da interpretação do artigo 7.° do Tratado CEE dada no referido acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 se aplica igualmente ao período anterior a esse acórdão. Não tendo o Tribunal limitado o alcance temporal do seu acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 proferido no mesmo processo, essa limitação não poderá ocorrer no presente acórdão.

15 Há, por isso, que responder à primeira questão que o alcance da interpretação do artigo 7.° do Tratado CEE dada pelo Tribunal no seu citado acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 não se limita aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional posteriores à prolação desse acórdão e se aplica igualmente ao período anterior a ela.

Quanto à segunda questão

16 A segunda questão do juiz nacional pretende essencialmente saber se o direito comunitário torna inoponível aos estudantes dos outros Estados-membros, que pagaram indevidamente uma propina de inscrição complementar, uma lei nacional que os priva do direito de obter a respectiva restituição quando não tenham proposto uma acção judicial para reembolso antes de proferido o referido acórdão de 13 de Fevereiro de 1985.

17 Há que salientar a este respeito que o direito de obter o reembolso das importâncias cobradas pelo Estado-membro em violação das disposições do direito comunitário é a consequência e o complemento dos direitos conferidos aos respectivos titulares pelas disposições comunitárias tal como foram interpretadas pelo Tribunal.

18 Se é certo que o reembolso só pode ser prosseguido no quadro das condições de fundo e de forma fixadas pelas diversas legislações nacionais na matéria, não é menos verdade, tal como resulta de jurisprudência constante do Tribunal (ver, especialmente, o acórdão de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio, 199/82, Recueil, p. 3595), que essas condições não podem ser menos favoráveis que as que respeitam a reclamações semelhantes de carácter interno e que não podem ser estabelecidas de forma a tornar impossível na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

19 Uma vez que uma disposição legislativa como a que está em causa no processo principal, que limita o reembolso apenas aos demandantes que tenham proposto uma acção para reembolso antes de ter sido proferido o acórdão de 13 de Fevereiro de 1985, já citado priva pura e simplesmente os indivíduos que não preenchem essa condição do direito de obter o reembolso das importâncias pagas indevidamente, tal disposição torna impossível o exercício dos direitos conferidos pelo artigo 7.° do Tratado CEE.

20 Por isso, o tribunal nacional, que tem a obrigação de aplicar integralmente o direito comunitário e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não deve aplicar essa disposição da lei nacional.

21 Assim, há que responder à segunda questão que o direito comunitário torna inoponível aos estudantes dos outros Estados-membros que pagaram indevidamente uma propina de inscrição complementar uma lei nacional que os priva do direito de obter a respectiva restituição quando não tenham proposto uma acção judicial para reembolso antes de ter sido proferido o acórdão referido de 13 de Fevereiro de 1985.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

22 As despesas efectuadas pelo Reino da Bélgica, pelo Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Revestindo o processo o carácter de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo presidente do tribunal de première instance de Liège, por despacho de 9 de Outubro de 1985, declara:

1) O alcance da interpretação do artigo 7.° do Tratado CEE dada pelo Tribunal no seu acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 (Gravier, 293/83, Recueil, p. 606) não se limita aos pedidos de acesso aos cursos de ensino profissional posteriores à prolação desse acórdão e aplica-se igualmente ao período anterior a essa prolação.

2) O direito comunitário torna inoponível aos estudantes de outros Estados-membros que pagaram indevidamente uma propina de inscrição complementar uma lei nacional que os priva do direito de obter a respectiva restituição quando não tenham proposto uma acção judicial para reembolso antes de ter sido proferido o acórdão referido de 13 de Fevereiro de 1985.

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