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Document 62003CJ0173

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 13 de Junho de 2006.
    Traghetti del Mediterraneo SpA contra Repubblica italiana.
    Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Genova - Itália.
    Responsabilidade extracontratual dos Estados-Membros - Danos causados aos particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância - Limitação, pelo legislador nacional, da responsabilidade do Estado aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz - Exclusão da responsabilidade ligada à interpretação de normas jurídicas e à apreciação dos elementos de facto e de prova efectuadas no quadro do exercício da actividade jurisdicional.
    Processo C-173/03.

    Colectânea de Jurisprudência 2006 I-05177

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2006:391

    Partes
    Fundamentação jurídica do acórdão
    Parte decisória

    Partes

    No processo C‑173/03,

    que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Tribunale di Genova (Itália), por decisão de 20 de Março de 2003, entrado no Tribunal de Justiça em 14 de Abril de 2003, no processo

    Traghetti del Mediterraneo SpA , em liquidação,

    contra

    República Italiana ,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans (relator), K. Schiemann e J. Makarczyk, presidentes de secção, J. N. Cunha Rodrigues, R. Silva de Lapuerta, K. Lenaerts, P. Kūris, E. Juhász e U. Lõhmus, juízes,

    advogado‑geral: P. Léger,

    secretário: M. Ferreira, administradora principal,

    vistos os autos e após a audiência de 7 de Dezembro de 2004,

    vistas as observações apresentadas:

    – em representação de Traghetti del Mediterraneo SpA, em liquidação, por V. Roppo, P. Canepa e S. Sardano, avvocati,

    – em representação do Governo italiano, por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Aiello e G. De Bellis, avvocati dello Stato,

    – em representação do Governo grego, por E. Samoni, Z. Chatzipavlou, M. Apessos, K. Boskovits e K. Georgiadis, na qualidade de agentes,

    – em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por P. Sreenan, SC, e P. McGarry, BL,

    – em representação do Governo neerlandês, por S. Terstal, na qualidade de agente,

    – em representação do Governo do Reino Unido, por R. Caudwell, na qualidade de agente, assistida por D. Anderson, QC, e M. Hoskins, barrister,

    – em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Maidani e V. Di Bucci, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de Outubro de 2005,

    profere o presente

    Acórdão

    Fundamentação jurídica do acórdão

    1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto o princípio e as condições de constituição da responsabilidade extracontratual dos Estados‑Membros por danos causados a particulares por violação do direito comunitário, quando essa violação seja imputável a um órgão jurisdicional nacional.

    2. Este pedido foi apresentado no quadro de um processo instaurado contra a República Italiana por Traghetti del Mediterrâneo SpA, empresa de transporte marítimo actualmente em liquidação (a seguir «TDM»), tendo em vista obter a reparação do prejuízo alegadamente sofrido em virtude de uma interpretação errada, por parte da Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal), das normas comunitárias relativas à concorrência e aos auxílios de Estado e, em particular, devido ao indeferimento, por parte desse tribunal, do seu requerimento de que fossem submetidas ao Tribunal de Justiça as questões pertinentes de interpretação do direito comunitário.

    Quadro jurídico nacional

    3. Nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da Lei n.° 117, de 13 de Abril de 1988, sobre a indemnização dos danos causados no exercício de funções jurisdicionais e a responsabilidade civil dos magistrados [Legge n.° 117 (sul) risarcimento dei danni cagionati nell’esercizio delle funzioni giudiziarie e responsabilità civile dei magistrati (GURI n.° 88, de 15 de Abril de 1988, p. 3, a seguir «Lei n.° 117/88»)], esta lei é aplicável «a todos os membros das magistraturas judicial, administrativa, financeira, militar e especial que exerçam uma actividade jurisdicional, independentemente da natureza das funções, bem como às demais pessoas que participam no exercício da função jurisdicional».

    4. O artigo 2.° da Lei n.° 117/88 prevê:

    «1. Qualquer pessoa que tenha sofrido um prejuízo injustificado por efeito de um comportamento, de um acto ou de uma medida judicial tomada por um magistrado que tenha agido com dolo ou culpa grave no exercício das suas funções, ou devido a denegação de justiça, pode agir contra o Estado para obter a reparação dos danos patrimoniais que sofreu bem como dos danos não patrimoniais que derivam da privação da liberdade.

    2. No exercício das funções judiciais, a interpretação das normas e a apreciação dos factos e das provas não podem dar origem a responsabilidade.

    3. Constituem culpa grave:

    a) Uma grave violação de lei resultante de negligência indesculpável;

    b) A afirmação, determinada por negligência indesculpável, de um facto cuja existência é incontestavelmente desmentida pelos autos;

    c) A negação, determinada por negligência indesculpável, de um facto cuja existência está incontestavelmente demonstrada nos autos;

    d) A prolação de uma decisão relativa à liberdade das pessoas fora dos casos autorizados por lei ou sem fundamentação.»

    5. Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, primeira frase, da Lei n.° 117/88, constitui denegação de justiça «a recusa, a omissão ou o atraso do magistrado no cumprimento dos actos da sua competência, quando, decorrido o prazo legal para a prática do acto, a parte tenha requerido a prática do mesmo e, sem motivo justificado, não tenha sido tomada qualquer medida no prazo de 30 dias subsequentes à apresentação do requerimento na Secretaria judicial».

    6. Os artigos seguintes da Lei n.° 117/88 precisam as condições e as modalidades segundo as quais pode ser proposta uma acção de indemnização ao abrigo dos artigos 2.° e 3.° dessa lei, bem como as acções que podem ser desencadeadas, a posteriori , contra o magistrado que tenha agido com dolo ou culpa grave no exercício das suas funções ou que tenha incorrido em denegação de justiça.

    Factos na origem do processo principal e questões prejudiciais

    7. A TDM e a Tirrenia di Navigazione (a seguir «Tirrenia») são duas empresas de transporte marítimo que, nos anos 70, efectuavam ligações marítimas regulares entra a Itália continental e as ilhas da Sardenha e da Sicília. Em 1981, a TDM, então em situação de concordata preventiva, intentou uma acção contra a Tirrenia no Tribunale di Napoli, a fim de obter uma indemnização do prejuízo que esta lhe terá causado, nos anos anteriores, em virtude da política de preços por ela praticada.

    8. A TDM invocava também, a este respeito, quer a violação, por parte da sua concorrente, do artigo 2598.°, n.° 3, do Código Civil italiano, relativo aos actos de concorrência desleal, quer a violação dos artigos 85.°, 86.°, 90.° e 92.° do Tratado CEE (que passaram a artigos 85.°, 86.°, 90.° e 92.° do Tratado CE, respectivamente, os quais por sua vez passaram a artigos 81.° CE, 82.° CE, 86.° CE e, após alteração, 87.° CE), na medida em que, segundo afirmava, a Tirrenia infringira as regras essenciais desse Tratado e, designadamente, abusara da sua posição dominante no mercado em causa, praticando tarifas largamente inferiores aos preços de custo, graças à obtenção de subvenções públicas de legalidade duvidosa face ao direito comunitário.

    9. Por sentença do Tribunale di Napoli de 26 de Maio de 1993, confirmada, em recurso, por acórdão da Corte d'appello di Napoli de 13 de Dezembro de 1996, esse pedido de indemnização foi recusado pelos tribunais italianos, com o fundamento de que as subvenções concedidas pelas autoridades desse Estado eram legais, na medida em que correspondiam a objectivos de interesse geral ligados, designadamente, ao desenvolvimento do Mezzogiorno e, de qualquer forma, não afectavam o exercício de actividades de ligações marítimas diferentes e concorrentes das que eram objecto da acusação por parte da TDM. Por consequência, nenhum acto de concorrência desleal podia ser imputado à Tirrenia.

    10. Por considerar que essas duas decisões jurisdicionais estavam viciadas de um erro de direito, na medida em que, designadamente, se baseavam numa interpretação errada das normas do Tratado em matéria de auxílios de Estado, o administrador da insolvência da TDM interpôs recurso do acórdão da Corte d'appello di Napoli no quadro do qual requereu à Corte suprema di cassazione que submetesse as questões pertinentes de interpretação do direito comunitário ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 177.°, terceiro parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE).

    11. Por acórdão n.° 5087 de 19 de Abril de 2000 (a seguir «acórdão de 19 de Abril de 2000), a Corte suprema di cassazione indeferiu esse requerimento com o fundamento de que a solução adoptada pela Corte d'appello respeitava a letra das disposições pertinentes do Tratado e era, além disso, perfeitamente conforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em particular, com o seu acórdão de 22 de Maio de 1985, Parlamento/Conselho (13/83, Recueil, p.1513).

    12. Para chegar a essa conclusão, a Corte suprema di cassazione recordou, por um lado, no que se refere à alegada violação dos artigos 90.° e 92.° do Tratado, que estes artigos permitem, em certas condições, derrogar a proibição de princípio dos auxílios de Estado, a fim de favorecer o desenvolvimento económico de regiões desfavorecidas ou de responder à procura de bens e de serviços que o funcionamento da livre concorrência não está em condições de satisfazer plenamente. Ora, segundo esse órgão jurisdicional, essas condições estariam preenchidas no caso vertente, pois, no decurso do período considerado (ou seja, entre 1976 e 1980), os transportes em massa entre a Itália continental e as suas ilhas principais só podiam ser assegurados por via marítima, devido ao seu custo, de forma que tinha sido necessário responder a uma procura cada vez mais forte desse tipo de serviços confiando a gestão desses transportes a um concessionário público que praticava um tarifário obrigatório.

    13. Segundo esse mesmo órgão jurisdicional, a distorção da concorrência decorrente dessa concessão não implicava, contudo, que o auxílio concedido estivesse automaticamente ferido de ilegalidade. Com efeito, a outorga da concessão de um serviço público desse tipo comporta sempre, implicitamente, um efeito de distorção da concorrência e a TDM não conseguiu demonstrar que a Tirrenia tivesse tirado partido do auxílio concedido pelo Estado para realizar benefícios ligados a outras actividades diferentes daquelas para as quais as subvenções foram efectivamente concedidas.

    14. Por outro lado, quanto ao fundamento relativo à alegada violação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, a Corte suprema di cassazione considerou‑o improcedente, porque a actividade de cabotagem marítima não tinha ainda sido liberalizada à época dos factos controvertidos e porque o carácter restrito e o contexto geográfico limitado dessa actividade não permitiam identificar claramente o mercado relevante na acepção do artigo 86.° do Tratado. Neste aspecto, aquele órgão jurisdicional salientou todavia que, embora fosse difícil identificar o referido mercado, era contudo possível exercer uma concorrência efectiva no sector em causa, uma vez que o auxílio concedido no caso em apreço só visava uma única actividade entre as inúmeras actividades tradicionalmente levadas a cabo pelas empresas de transporte marítimo e, além disso, estava limitado a um único Estado‑Membro.

    15. Nestas condições, a Corte suprema di cassazione negou provimento ao recurso, após ter igualmente rejeitado os fundamentos suscitados pela TDM baseados na violação das disposições nacionais relativas aos actos de concorrência desleal e na omissão de pronúncia, por parte da Corte d'appello di Napoli, relativamente ao requerimento da TDM de reenvio ao Tribunal de Justiça das questões de interpretação pertinentes. É esta decisão que negou provimento ao recurso que está na origem do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

    16. Com efeito, por considerar que o acórdão de 19 de Abril de 2000 se baseia numa interpretação incorrecta das normas do Tratado relativas à concorrência e aos auxílios de Estado e na premissa errada da existência de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça na matéria, o administrador da insolvência da TDM, sociedade que entretanto entrou em liquidação, moveu uma acção contra a República Italiana no Tribunale di Genova a fim de obter a sua condenação na reparação do prejuízo que essa empresa alegadamente sofreu devido a erros de interpretação cometidos pela Corte suprema di cassazione e devido à violação do dever de reenvio que incumbe a este último tribunal por força do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE.

    17. Baseando‑se, principalmente, a esse respeito, na Decisão 2001/851/CE da Comissão, de 21 de Junho de 2001, relativa aos auxílios estatais concedidos pela Itália à companhia de navegação Tirrenia di Navigazione (JO L 318, p. 9) – uma decisão que diz respeito, é certo, a subvenções concedidas posteriormente ao período que está em causa no processo principal, mas tomada no termo de um processo aberto pela Comissão das Comunidades Europeias antes da audiência de alegações da Corte suprema di cassazione no processo em que foi proferido o acórdão de 19 de Abril de 2000 –, a TDM alega que, se esse órgão jurisdicional tivesse pedido ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse a título prejudicial, a decisão do recurso teria sido totalmente diferente. Tal como a Comissão na decisão referida, o Tribunal de Justiça teria salientado a dimensão comunitária das actividades de cabotagem marítima, bem como as dificuldades inerentes à apreciação da compatibilidade de subvenções públicas com as normas do Tratado em matéria de auxílios de Estado, o que teria levado a Corte suprema di cassazione a declarar ilegais os auxílios concedidos à Tirrenia.

    18. A República Italiana contesta a própria admissibilidade da acção de indemnização, baseando‑se na letra da Lei n.° 117/88, especialmente, no seu artigo 2.°, n.° 2, nos termos do qual a interpretação de normas jurídicas efectuada no quadro do exercício de funções jurisdicionais não pode dar origem a responsabilidade do Estado. Todavia, na hipótese de ser admitida pelo tribunal de reenvio, alega, a título subsidiário, que a acção deve, em qualquer caso, ser julgada improcedente, na medida em que não se verificam as condições para um reenvio prejudicial e que o acórdão de 19 de Abril de 2000, que entretanto adquiriu força de caso julgado, não pode já ser posto em causa.

    19. Em resposta a estes argumentos, a TDM interroga‑se sobre a compatibilidade da Lei n.° 117/88 com as exigências do direito comunitário. Alega, em especial, que as condições de admissibilidade das acções referidas nessa lei e a prática seguida na matéria pelos tribunais nacionais (entre os quais a própria Corte suprema di cassazione) são de tal forma restritivas que tornam excessivamente difícil, ou até impossível na prática, a obtenção de uma indemnização do Estado pelos prejuízos causados por decisões jurisdicionais. Por consequência, esse regime ignora os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente, nos acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357), e de 5 de Março de 1996, Brasserie du Pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029).

    20. Nestas condições, por ter dúvidas quanto à solução a dar ao litígio que lhe foi submetido e quanto à possibilidade de estender ao poder judicial os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos citados no número anterior, referentes a violações do direito comunitário cometidas no exercício de uma actividade legislativa, o Tribunale di Genova decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

    «1) É um Estado[‑Membro] responsável, a título de responsabilidade extracontratual, para com um particular, pelos erros dos juízes nacionais na aplicação do direito comunitário ou na não aplicação do mesmo e, em especial, pelo não cumprimento, por parte de um tribunal de última instância, da obrigação de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça que é imposta pelo artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE?

    2) Se se entender que um Estado‑Membro responde pelos erros dos juízes nacionais na aplicação do direito comunitário e, em especial, pela omissão de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça por parte de um juiz de última instância que é imposto pelo artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, uma regulamentação nacional relativa à responsabilidade do Estado por erro dos juízes que:

    – exclui a responsabilidade relativamente à interpretação das normas jurídicas e à valoração dos factos e das provas prosseguidas no âmbito da actividade judicial, e

    – limita a responsabilidade do Estado unicamente aos casos de dolo e culpa grave do juiz,

    opõe‑se à declaração dessa responsabilidade e é, portanto, incompatível com os princípios do direito comunitário?»

    21. Na sequência da prolação do acórdão de 30 de Setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, Colect., p. I‑10239), o secretário do Tribunal de Justiça transmitiu uma cópia desse acórdão ao tribunal de reenvio perguntando‑lhe se, perante o conteúdo do mesmo, considerava útil manter a questão prejudicial.

    22. Por carta de 13 de Janeiro de 2004, entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça no dia 29 seguinte, o Tribunale di Genova, após audição das partes no processo principal, considerou que o acórdão Köbler, já referido, dava uma resposta exaustiva à primeira das duas questões que tinha colocado, pelo que deixava de ser necessário que o Tribunal de Justiça se pronunciasse sobre ela.

    23. Em contrapartida, considerou útil manter a segunda questão, a fim de que o Tribunal de Justiça se pronunciasse, «igualmente à luz dos princípios enunciados […] no acórdão Köbler», sobre a questão de saber se «uma regulamentação nacional relativa à responsabilidade do Estado por erros dos juízes que exclui a responsabilidade relativamente à interpretação de normas jurídicas e à valoração dos factos e das provas prosseguidas no âmbito da actividade judicial e limita a responsabilidade do Estado unicamente aos casos de dolo e de culpa grave do juiz se opõe à declaração dessa mesma responsabilidade».

    Quanto à questão prejudicial

    24. Deve salientar‑se, a título liminar, que o processo no tribunal de reenvio tem por objecto uma acção de responsabilidade do Estado decorrente de uma decisão, insusceptível de recurso, proferida por um órgão jurisdicional supremo. A questão mantida pelo tribunal de reenvio deve, assim, ser entendida como dizendo respeito, em substância, à questão de saber se o direito comunitário e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça no acórdão Köbler, já referido, obstam a um regime nacional como o que está em causa no processo principal, que, por um lado, exclui a responsabilidade do Estado‑Membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, quando essa violação resulte de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuadas por esse órgão jurisdicional e que, por outro, limita essa responsabilidade aos casos de dolo e de culpa grave do juiz.

    25. Para a TDM, como para a Comissão, esta questão exige claramente uma resposta afirmativa. Com efeito, uma vez que a apreciação dos factos e das provas, bem como a interpretação das normas jurídicas são inerentes à actividade jurisdicional, a exclusão, nessas hipóteses, da responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude do exercício dessa actividade equivaleria, na prática, a exonerá‑lo de toda e qualquer responsabilidade por violações do direito comunitário imputáveis ao poder judicial.

    26. Além disso, no que diz respeito à limitação dessa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz, ela seria igualmente susceptível de conduzir a uma exoneração de facto de toda e qualquer responsabilidade estatal, porquanto, por um lado, o próprio conceito de «culpa grave» não é deixado à livre apreciação do juiz encarregado de decidir de um eventual pedido de indemnização dos danos causados por uma decisão judicial, mas é estritamente enquadrada pelo legislador nacional, que enumera antecipadamente – e de forma taxativa – as hipóteses de culpa grave.

    27. Segundo a TDM, resulta, por outro lado, da experiência adquirida em Itália com a aplicação da Lei n.° 117/88 que os órgãos jurisdicionais deste Estado, designadamente a Corte suprema di cassazione, fazem uma leitura extremamente restritiva dessa lei e dos conceitos de «culpa grave» e de «negligência indesculpável». Estes conceitos são interpretados por esse órgão jurisdicional como uma «violação do direito manifesta, grosseira e em grande escala» ou que faz uma interpretação «em termos contrários a qualquer critério lógico», o que conduz, na prática, à improcedência quase sistemática das acções intentadas contra o Estado italiano.

    28. Em contrapartida, segundo o Governo italiano, apoiado, neste ponto, pela Irlanda e pelo Governo do Reino Unido, um regime nacional como o que está em causa no processo principal é perfeitamente conforme com os princípios do direito comunitário, uma vez que realiza um justo equilíbrio entre, por um lado, a necessidade de preservar a independência do poder judicial e os imperativos da segurança jurídica e, por outro, a concessão de uma protecção jurisdicional efectiva aos particulares nos casos mais flagrantes de violações do direito comunitário imputáveis ao poder judicial.

    29. Nesta óptica, a admitir‑se a responsabilidade dos Estados‑Membros por danos resultantes dessas violações, esta deveria, portanto, ser limitada aos casos em que pudesse ser detectada uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário. Contudo, não existiria quando um órgão jurisdicional nacional tivesse decidido um litígio com base numa interpretação dos artigos do Tratado que se reflicta adequadamente na fundamentação apresentada por esse órgão jurisdicional.

    30. A este respeito, deve recordar‑se que, no acórdão Köbler, já referido, proferido posteriormente à data em que o órgão jurisdicional de reenvio se dirigiu ao Tribunal de Justiça, este último recordou que o princípio segundo o qual um Estado‑Membro é obrigado a reparar os danos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhe sejam imputáveis é válido para qualquer violação do direito comunitário por um Estado‑Membro, independentemente da entidade do Estado‑Membro cuja acção ou omissão está na origem do incumprimento (v. n.° 31 deste acórdão).

    31. Baseando‑se, designadamente, a esse respeito, no papel essencial desempenhado pelo poder judicial na protecção dos direitos que decorrem para os particulares das normas comunitárias e na circunstância de que um tribunal que decide em última instância constitui, por definição, a última instância perante a qual os particulares podem invocar os direitos que lhes são conferidos pelo direito comunitário, o Tribunal de Justiça concluiu daí que a protecção desses direitos ficaria enfraquecida – e a plena eficácia das normas comunitárias que os consagram ficaria posta em causa – se se excluísse que os particulares pudessem, sob certas condições, obter a reparação dos prejuízos que lhes são causados por uma violação do direito comunitário imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância (v. acórdão Köbler, já referido, n. os  33 a 36).

    32. É certo que, atentas a especificidade da função jurisdicional e as legítimas exigências da segurança jurídica, a responsabilidade do Estado, em tal hipótese, não é ilimitada. Como declarou o Tribunal de Justiça, essa responsabilidade só pode existir no caso excepcional de o tribunal nacional que decide em última instância ter ignorado de forma manifesta o direito aplicável. Para determinar se esta condição se encontra preenchida, o juiz nacional a quem caiba conhecer de um pedido de indemnização deve, a este respeito, ter em consideração todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida, designadamente, o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE (acórdão Köbler, já referido, n. os  53 a 55).

    33. Considerações análogas ligadas à necessidade de garantir aos particulares uma protecção jurisdicional efectiva dos direitos que lhes são conferidos pelo direito comunitário opõem‑se, da mesma forma, a que a responsabilidade do Estado não possa existir pelo simples facto de uma violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância resultar da interpretação de normas jurídicas efectuada por esse órgão jurisdicional.

    34. Com efeito, por um lado, a interpretação de normas jurídicas faz parte da própria essência da actividade jurisdicional, pois, qualquer que seja o domínio de actividade considerado, o juiz, confrontado com teses divergentes ou antinómicas, deverá normalmente interpretar as normas jurídicas pertinentes ­– nacionais e/ou comunitárias – para poder decidir o litígio que lhe foi submetido.

    35. Por outro lado, não se pode excluir que não seja cometida uma violação manifesta do direito comunitário aplicável precisamente no exercício dessa actividade, se, por exemplo, o juiz der a uma norma de direito material ou processual comunitário um alcance manifestamente errado, designadamente face à jurisprudência comunitária pertinente do Tribunal de Justiça nessa matéria (v., a este respeito, acórdão Köbler, já referido, n.° 56), ou se interpretar o direito nacional de uma maneira que conduza, na prática, à violação do direito comunitário aplicável.

    36. Como salientou o advogado‑geral no n.° 52 das suas conclusões, excluir, nestas circunstâncias, a responsabilidade do Estado pelo facto de a violação do direito comunitário decorrer de uma operação de interpretação de normas jurídicas efectuada por um órgão jurisdicional seria esvaziar de conteúdo ou privar de efeito útil o princípio estabelecido pelo Tribunal de Justiça no já referido acórdão Köbler. Esta conclusão aplica‑se, por maioria de razão, aos órgãos jurisdicionais que decidem em última instância e que estão encarregados de assegurar, à escala nacional, a interpretação uniforme das normas jurídicas.

    37. Deve chegar‑se a uma conclusão análoga no caso de uma legislação que exclua, de forma geral, a responsabilidade do Estado quando a violação imputável a um órgão jurisdicional desse Estado resultar de uma apreciação de factos e de provas.

    38. Com efeito, por um lado, tal apreciação constitui, ao mesmo título que a interpretação de normas jurídicas, outro aspecto essencial da actividade jurisdicional, porquanto, independentemente da interpretação seguida pelo juiz nacional a quem caiba julgar determinado caso, a aplicação das referidas normas aos casos concretos depende muitas vezes da apreciação que aquele tiver feito da matéria de facto desse caso bem como do valor e da relevância dos elementos de prova apresentados para esse efeito pelos litigantes.

    39. Por outro lado, essa apreciação – que requer por vezes análises complexas – pode igualmente conduzir, em certos casos, a uma violação manifesta do direito aplicável, quer seja efectuada no quadro da aplicação de regras específicas relativas ao ónus da prova, ao valor dessas provas ou à admissibilidade dos meios de prova quer no quadro da aplicação de normas que exigem uma qualificação jurídica dos factos.

    40. Nestas circunstâncias, excluir a existência de responsabilidade do Estado porque a falta censurada ao juiz nacional tem a ver com a apreciação por este feita dos factos ou das provas redundaria em privar igualmente de efeito útil o princípio formulado no acórdão Köbler, já referido, no que diz respeito às violações manifestas do direito comunitário imputáveis aos órgãos jurisdicionais nacionais que decidem em última instância.

    41. Como salientou o advogado‑geral nos n. os  87 e 89 das suas conclusões, isso é assim, especialmente, no domínio dos auxílios de Estado. Excluir, neste domínio, a responsabilidade estatal pelo motivo de que a violação do direito comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional resulta de uma apreciação dos factos pode conduzir ao enfraquecimento das garantias processuais conferidas aos particulares, na medida em que a salvaguarda dos direitos que para eles decorrem das disposições pertinentes do Tratado depende, em larga medida, de operações sucessivas de qualificação jurídica dos factos. Ora, se se excluísse, em absoluto, a responsabilidade do Estado em razão das apreciações feitas sobre a matéria de facto por um órgão jurisdicional, os particulares não gozariam de nenhuma protecção jurisdicional no caso de um órgão jurisdicional, decidindo em última instância, cometer um erro manifesto na fiscalização das ditas operações de qualificação jurídica dos factos.

    42. Por fim, no que se refere à limitação da responsabilidade do Estado aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz, deve recordar‑se, como foi salientado no n.° 32 do presente acórdão, que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Köbler, já referido, que a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares devido a uma violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância podia ser efectivada no caso excepcional de esse órgão jurisdicional ter ignorado de forma manifesta o direito aplicável.

    43. Essa ignorância manifesta aprecia‑se, nomeadamente, através de um conjunto de critérios, tais como o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito ou o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234.°, terceiro parágrafo, CE, e presume‑se, em qualquer caso, quando a decisão em causa for tomada violando manifestamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria (acórdão Köbler, já referido, n. os  53 a 56).

    44. Assim, não se pode excluir que o direito nacional precise os critérios, relativos à natureza ou ao grau de uma infracção, que devem estar preenchidos para que possa existir responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância, mas esses critérios não podem, em nenhum caso, impor exigências mais restritivas do que a decorrente da condição de violação manifesta do direito aplicável, tal como precisada nos n. os  53 a 56 do acórdão Köbler, já referido.

    45. Verificada esta última condição, o direito à indemnização constituir‑se‑á, portanto, se se demonstrar que a norma jurídica violada tem por objecto conferir direitos aos particulares e que existe um nexo de causalidade directo entre a violação manifesta invocada e o dano sofrido pelo interessado (v., a este respeito, designadamente, acórdãos, já referidos, Francovich e o., n.° 40; Brasserie du Pêcheur e Factortame, n.° 66, e Köbler, n.° 51). Tal como resulta, designadamente, do n.° 57 do acórdão Köbler, já referido, essas três condições são necessárias e suficientes para instituir, a favor dos particulares, um direito a obter reparação, sem no entanto impedir que a responsabilidade do Estado possa ser efectivada em condições menos restritivas com base no direito nacional.

    46. Tendo em conta o conjunto das considerações que precedem, deve, portanto, responder‑se à questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, tal como reformulada pela sua carta de 13 de Janeiro de 2004, que o direito comunitário se opõe a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a responsabilidade do Estado‑Membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional que decide em última instância pelo facto de essa violação resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuadas por esse órgão jurisdicional. O direito comunitário opõe‑se igualmente a um regime legal nacional que limite essa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz, se essa limitação levar a excluir a responsabilidade do Estado‑Membro em causa noutros casos em que se tenha verificado uma violação manifesta do direito aplicável, tal como precisada nos n. os  53 a 56 do acórdão Köbler, já referido.

    Quanto às despesas

    47. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

    Parte decisória

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

    O direito comunitário opõe‑se a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a responsabilidade do Estado‑Membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional que decide em última instância pelo facto de essa violação resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuada por esse órgão jurisdicional.

    O direito comunitário opõe‑se igualmente a um regime nacional que limite essa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz, se essa limitação levar a excluir a responsabilidade do Estado‑Membro em causa noutros casos em que se tenha verificado uma violação manifesta do direito aplicável, tal como precisado nos n. os  53 a 56 do acórdão de 30 de Setembro de 2003, Köbler (C‑224/01).

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