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Document 62023CJ0229

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Décima Secção) de 13 de junho de 2024.
    Processo penal contra HYA e o.
    Reenvio prejudicial — Setor das telecomunicações — Tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade — Diretiva 2002/58/CE — Artigo 15.o, n.o 1 — Restrição da confidencialidade das comunicações eletrónicas — Decisão judicial que autoriza a escuta, a interceção e o armazenamento das conversas telefónicas de pessoas suspeitas de ter cometido uma infração penal dolosa grave — Regulamentação nacional que exige que a própria decisão exija por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais — Artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Dever de fundamentação.
    Processo C-229/23.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:505

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

    13 de junho de 2024 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Setor das telecomunicações — Tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade — Diretiva 2002/58/CE — Artigo 15.o, n.o 1 — Restrição da confidencialidade das comunicações eletrónicas — Decisão judicial que autoriza a escuta, a interceção e o armazenamento das conversas telefónicas de pessoas suspeitas de ter cometido uma infração penal dolosa grave — Regulamentação nacional que exige que a própria decisão exija por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais — Artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Dever de fundamentação»

    No processo C‑229/23,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), por Decisão de 12 de abril de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de abril de 2023, no processo penal contra

    HYA,

    IP,

    DD,

    ZI,

    SS,

    sendo intervenientes:

    Sofiyska gradska prokuratura,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

    composto por: Z. Csehi, presidente de secção, E. Regan (relator), presidente da Quinta Secção, e I. Jarukaitis, juiz,

    advogado‑geral: J. Kokott,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Irlanda, por M. Browne, Chief State Solicitor, A. Burke e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por A. Thuillier, BL,

    em representação da Comissão Europeia, por C. Georgieva, H. Kranenborg, P.‑J. Loewenthal e F. Wilman, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva Relativa à Privacidade e às Comunicações Eletrónicas) (JO 2002, L 201, p. 37), bem como do artigo 47.o, segundo parágrafo, do artigo 52.o, n.o 1, e do artigo 53.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra HYA, IP, DD, ZI e SS por participação num grupo de criminalidade organizada.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    O considerando 11 da Diretiva 2002/58 enuncia:

    «Tal como a Diretiva 95/46/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31)], a presente diretiva não trata questões relativas à proteção dos direitos e liberdades fundamentais relacionadas com atividades não reguladas pelo direito comunitário. Portanto, não altera o equilíbrio existente entre o direito dos indivíduos à privacidade e a possibilidade de os Estados‑Membros tomarem medidas como as referidas no n.o 1 do artigo 15.o da presente diretiva, necessários para a proteção da segurança pública, da defesa, da segurança do Estado (incluindo o bem‑estar económico dos Estados quando as atividades digam respeito a questões de segurança do Estado) e a aplicação da legislação penal. Assim sendo, a presente diretiva não afeta a capacidade de os Estados‑Membros intercetarem legalmente comunicações eletrónicas ou tomarem outras medidas, se necessário, para quaisquer desses objetivos e em conformidade com a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais [, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)], segundo a interpretação da mesma na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Essas medidas devem ser adequadas, rigorosamente proporcionais ao objetivo a alcançar e necessárias numa sociedade democrática e devem estar sujeitas, além disso, a salvaguardas adequadas, em conformidade com a [CEDH].»

    4

    O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 dispõe:

    «Os Estados‑Membros garantirão, através da sua legislação nacional, a confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis. Proibirão, nomeadamente, a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto quando legalmente autorizados a fazê‑lo, de acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 15.o O presente número não impede o armazenamento técnico que é necessário para o envio de uma comunicação, sem prejuízo do princípio da confidencialidade.»

    5

    O artigo 15.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

    «Os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.o e 6.o, nos n.os 1 a 4 do artigo 8.o e no artigo 9.o da presente diretiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas, tal como referido no n.o 1 do artigo 13.o da Diretiva [95/46]. Para o efeito, os Estados‑Membros podem designadamente adotar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.o [TUE].»

    Direito búlgaro

    6

    O artigo 121.o, n.o 4, da Constituição búlgara dispõe que «os atos judiciais devem ser fundamentados».

    7

    O artigo 34.o do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «NPK»), dispõe que «qualquer ato do tribunal deve conter […] uma fundamentação […]».

    8

    Em conformidade com o artigo 105.o, n.o 2, do NPK, «[n]ão são admissíveis fundamentos de prova materiais que não tenham sido recolhidos ou estabelecidos nas condições e segundo as modalidades previstas no presente código».

    9

    Nos termos do artigo 173.o, n.o 1, do NPK:

    «A utilização de métodos especiais de investigação durante a fase de instrução está sujeita à apresentação ao tribunal de um pedido escrito fundamentado pelo procurador encarregado da direção do inquérito. […]»

    10

    O artigo 174.o, n.os 3 e 4, do NPK prevê, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal:

    «(3)   A autorização da utilização de métodos especiais de investigação em processos da competência do Spetsializiran nakazatelen sad [Tribunal Criminal Especial, Bulgária] é concedida previamente pelo seu presidente. […]

    (4)   A autoridade referida nos n.os 1 a 3 decide por despacho fundamentado. […]».

    11

    O artigo 14.o, n.o 1, da zakon za spetsialnite razuznavatelni sredstva (Lei sobre os Métodos Especiais de Investigação) (DV n.o 95, de 21 de outubro de 1997, p. 2), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «ZSRS»), dispõe:

    «A utilização de métodos especiais de investigação exige um pedido escrito fundamentado […]».

    12

    O artigo 15.o, n.o 1, do ZSRS prevê, a sua versão aplicável ao litígio no processo principal:

    «[…] [Os] presidentes […] do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) […] concedem […] a autorização escrita da utilização de métodos especiais de investigação, fundamentando a sua decisão.»

    Litígio no processo principal e questão prejudicial

    13

    Entre 10 de abril e 23 de maio de 2017, a Spetsializirana prokuratura (Procuradoria Especializada, Bulgária) apresentou ao presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) sete pedidos de autorização para recorrer a métodos especiais de investigação, com vista a escutar e intercetar, ou mesmo vigiar e localizar, as conversas telefónicas de IP, DD, ZI e SS, quatro pessoas suspeitas de ter cometido infrações penais graves.

    14

    Cada um desses pedidos de escutas telefónicas descrevia de forma exaustiva, detalhada e fundamentada o objeto do pedido, o nome e o número de telefone da pessoa em causa, a ligação existente entre esse número e a respetiva pessoa, os elementos de prova recolhidos até então e o papel supostamente desempenhado pela respetiva pessoa nos atos ilícitos. A necessidade de proceder às escutas telefónicas solicitadas para recolher elementos de prova a propósito da atividade criminosa objeto do inquérito e as razões e as condições que justificavam a impossibilidade de recolher essas informações através de outros meios foram igualmente fundamentadas de modo específico.

    15

    O presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) deferiu cada um desses pedidos no próprio dia da sua apresentação e emitiu, consequentemente, sete decisões de autorização de escutas telefónicas. Segundo esse órgão jurisdicional, as referidas autorizações correspondem a um formulário pré‑elaborado destinado a abranger todos os casos possíveis de autorização, sem nenhuma referência às circunstâncias factuais e jurídicas, com exceção do prazo durante o qual a utilização dos métodos especiais de investigação era autorizada. Com base nessas autorizações, certas conversas feitas por IP, DD, ZI e SS foram gravadas e armazenadas.

    16

    Em 19 de junho de 2020, a Procuradoria Especializada acusou estas quatro pessoas e uma quinta, HYA, de participação num grupo de criminalidade organizada destinada a fazer passar clandestinamente nacionais de países terceiros através das fronteiras búlgaras, a ajudá‑los a entrar ilegalmente no território búlgaro e a receber ou pagar subornos em relação a essas atividades, visando o enriquecimento.

    17

    O órgão jurisdicional de reenvio inicialmente chamado a conhecer do mérito do processo, a saber, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), entendendo que o conteúdo das conversas gravadas reveste uma importância direta para apurar o mérito das acusações feitas a IP, DD, ZI e SS, considerou que lhe cabia previamente fiscalizar a validade do processo que levou às autorizações das escutas telefónicas.

    18

    Neste contexto, esse órgão jurisdicional decidiu, por Decisão de 3 de junho de 2021, submeter um reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça para perguntar, o que é o objeto da sua primeira questão, se uma prática nacional — segundo a qual o dever de fundamentar a decisão judicial que autoriza o recurso a métodos especiais de investigação na sequência de um pedido fundamentado das autoridades penais é cumprido quando essa decisão, redigida de acordo com um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, se limita a indicar que os requisitos previstos nessa legislação, que menciona, foram preenchidos — é compatível com o artigo 15.o, n.o 1, último período, da Diretiva 2002/58, lido à luz do seu considerando 11.

    19

    Com o Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, HYA e o. (Fundamentação das autorizações das escutas telefónicas) (C‑349/21, a seguir Acórdão HYA e o. I, EU:C:2023:102), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal prática nacional, desde que as razões precisas pelas quais o juiz competente considerou que os requisitos legais foram respeitados à luz dos elementos factuais e jurídicos que caracterizam o caso em apreço possam ser inferidas com facilidade e inequivocamente de uma leitura cruzada da decisão e do pedido de autorização, devendo este último ser facultado, posteriormente à concessão da autorização, à pessoa contra a qual o recurso aos métodos especiais de investigação foi autorizado.

    20

    Nestas condições, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 66 do referido acórdão, que não havia que responder à segunda questão submetida, pela qual se perguntava, em caso de resposta negativa à primeira questão, se o direito da União se opunha a que a lei nacional fosse interpretada no sentido de que as informações obtidas na sequência dessa autorização fossem utilizadas como elemento de prova da acusação.

    21

    Na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, certos processos penais pendentes no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), o qual foi dissolvido, foram transferidos para o Sofiyski gradski sad (Tribunal da Cidade de Sófia, Bulgária), que é o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo. Este último órgão jurisdicional indica, no seu pedido de decisão prejudicial, que enfrenta certas dificuldades em aplicar o Acórdão HYA e o. I.

    22

    Recorda que, nos n.os 56 a 61 desse acórdão, o Tribunal de Justiça obrigou o órgão jurisdicional de reenvio a verificar se a fundamentação da autorização para recorrer aos métodos especiais de investigação era acessível e compreensível, realizando, para o efeito, uma leitura cruzada do pedido e da autorização judicial.

    23

    É certo que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a integralidade do pedido, no caso em apreço, foi apensa aos autos e que a contraparte tem acesso ao mesmo. Além disso, o referido pedido tem o conteúdo exigido pela legislação nacional. Por conseguinte, caso seja feita uma leitura cruzada da fundamentação que consta do pedido e da autorização judicial, é possível compreender com facilidade e inequivocamente os fundamentos da decisão judicial que autoriza a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações sem o consentimento dos utilizadores.

    24

    No entanto, o referido órgão jurisdicional considera que o modelo de fundamentação elaborado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão HYA e o. I, que consiste, no essencial, em que seja feita uma leitura cruzada da autorização e do pedido quando a autorização seja redigida segundo um modelo pré‑elaborado sem elementos individualizados a fim de deduzir os motivos precisos pelos quais foi concedida a autorização, não é aplicável no direito nacional tendo em conta os requisitos estabelecidos por este último no que se refere ao procedimento de emissão de decisões judiciais que autorizam a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações sem o consentimento dos utilizadores. Com efeito, o artigo 14.o, n.o 1, da ZSRS, e o artigo 173.o, n.o 1, do NPK preveem que o pedido apresentado pelas autoridades penais para o efeito deve ser escrito e fundamentado. Do mesmo modo, o artigo 15.o, n.o 1, da ZSRS, e o artigo 174.o, n.o 4, do NPK exigem que a própria autorização judicial concedida na sequência desse pedido seja escrita e fundamentada.

    25

    Consequentemente, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma contradição entre o direito nacional e o direito da União relativamente à qualidade da fundamentação da autorização judicial. Efetivamente, o direito nacional exige que a própria autorização judicial contenha razões explícitas por escrito enquanto o direito da União se contenta com uma autorização judicial padrão, desde que a autorização seja tomada com base num pedido fundamentado de forma pormenorizada, tornado acessível ao juiz e à defesa, pelo que uma leitura cruzada da autorização judicial e do pedido permitem compreender os fundamentos da decisão adotada.

    26

    Na falta de qualquer possibilidade de interpretação em conformidade com o direito nacional, esse órgão jurisdicional pergunta‑se se, por força do princípio do primado do direito da União, há que afastar a aplicação do direito nacional, a fim de aplicar o modelo de fundamentação estabelecido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão HYA e o. I, ainda que este último acórdão se afigure contrário não só à jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça, como decorre, em especial, do Acórdão de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152), mas também à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, tal como decorre do Acórdão de 11 de janeiro de 2022, Ekimdzhiev e o. c. Bulgarie (CE:ECHR:2022:0111JUD007007812).

    27

    A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o modelo de fundamentação estabelecido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão HYA e o. I decorre de uma interpretação do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.

    28

    Contudo, é duvidoso que esse modelo de fundamentação cumpra os requisitos decorrentes, primeiro, do considerando 11 da Diretiva 2002/58, segundo o qual a aplicação das medidas previstas no artigo 15.o, n.o 1, desta diretiva deve estar em conformidade com a CEDH e com a interpretação dada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, segundo, do artigo 52.o da Carta, segundo o qual qualquer restrição ao exercício dos direitos reconhecidos por esta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial dos referidos direitos na observância do princípio da proporcionalidade, terceiro, do artigo 53.o da Carta, que prevê que nenhuma disposição da mesma deve ser interpretada no sentido de restringir um determinado direito reconhecido pela CEDH ou pela Constituição de um Estado‑Membro e, quarto, do princípio da equivalência, segundo o qual uma situação jurídica que diga respeito ao direito da União não deve ser regulamentada de forma menos favorável pela lei e jurisprudência nacionais do que uma situação jurídica semelhante que diga exclusivamente respeito a uma situação jurídica interna.

    29

    Deste modo, coloca‑se a questão de saber se essas disposições e princípios do direito da União se opõem a que seja afastada a aplicação de uma legislação nacional que exige expressamente a fundamentação das decisões judiciais e não autoriza o modelo de fundamentação estabelecido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão HYA e o. I.

    30

    Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, em caso de resposta afirmativa a esta primeira questão, o direito da União se opõe igualmente a uma norma de direito nacional tal como a prevista no artigo 105.o, n.o 2, do NPK, que exige que as comunicações gravadas sejam excluídas dos elementos de prova devido à falta de fundamentação das autorizações judiciais quando, em conformidade com o direito da União, essas autorizações não exigem uma fundamentação própria, desde que os pedidos sejam suficientemente fundamentados. Nesse caso, nada obsta, nos termos do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, a explorar as conversas telefónicas como elemento de prova. Caso contrário, há que afastar, em aplicação do artigo 105.o, n.o 2, do NPK, na falta de fundamentação própria das autorizações em violação do direito nacional, as conversas telefónicas como elementos de prova, a menos que, sendo caso disso, o Tribunal de Justiça considere que o direito da União não se opõe a que esta disposição seja interpretada no sentido de permitir explorar elementos de prova obtidos com base numa autorização judicial não fundamentada quando a legalidade desta autorização seja posteriormente determinada por um juiz no respeito pelos direitos de defesa do acusado.

    31

    Nestas circunstâncias, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da Cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «Deve o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, […] e o artigo 47.o, [segundo parágrafo], da [Carta], conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão [HYA e o. I], e [lido] à luz do considerando 11 [da Diretiva 2002/58], do artigo 52.o, n.o 1, e do artigo 53.o da Carta, bem como do princípio da equivalência, ser interpretado no sentido de que obriga o tribunal nacional:

    a afastar a aplicação de disposições de direito nacional (artigo 121.o, n.o 4), da […] Constituição da República da Bulgária, artigo 174.o, n.o 4, da […] NPK, o artigo 15.o, n.o 2, do […] ZSRS), bem como a interpretação do artigo 8.o, n.o 2, da [CEDH], dada pelo TEDH [no Acórdão do TEDH de 11 de janeiro de 2022, Ekimdzhiev e o. c. Bulgarie (CE:ECHR:2022:0111JUD007007812)], nos termos dos quais é necessária a indicação expressa e por escrito dos fundamentos da autorização judicial (para escutar, intercetar e armazenar telecomunicações sem o consentimento dos utilizadores), e isso independentemente da fundamentação que figure no pedido com base no qual a autorização foi concedida, quando o motivo para afastar a aplicação [do direito nacional e da interpretação do TEDH] é o facto de a leitura cruzada do pedido e da autorização permitir identificar 1) os motivos precisos que induziram o tribunal a considerar, nas circunstâncias factuais e jurídicas do caso específico, que os requisitos legais foram respeitados, e 2) a pessoa e o meio de comunicação a respeito dos quais a autorização judicial foi concedida?

    no âmbito da apreciação da questão de saber se as telecomunicações objeto do processo devem ser excluídas enquanto prova, a afastar a aplicação de uma disposição de direito nacional (artigo 105.o, n.o 2, do NPK) ou deve interpretá‑la em conformidade com o direito da União na parte em que exige o respeito das regras processuais nacionais (no caso em apreço, artigo 174.o, n.o 4, do NPK e artigo 15.o, n.o 2, do ZSRS), e antes aplicar a regra estabelecida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão [HYA e o. I]?»

    Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial e à competência do Tribunal de Justiça

    32

    A Comissão alega que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível. Com efeito, este pedido visa que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a conformidade, em relação ao direito búlgaro, da prática judiciária nacional que tem por objeto o Acórdão HYA e o. I, segundo o qual as decisões judiciais que autorizam o recurso a métodos especiais de investigação, como as escutas telefónicas, na sequência de um pedido fundamentado das autoridades penais, são redigidas por um texto pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, limitando‑se a indicar, além do prazo de validade da autorização, que estão preenchidos os requisitos previstos na legislação mencionada por essas decisões. Ora, tal questão, que tem por objeto a interpretação do direito nacional, não faz parte da competência do Tribunal de Justiça.

    33

    A este respeito, há que observar que é certo que resulta do pedido de decisão prejudicial, o qual se apresenta no contexto do mesmo litígio no processo principal que o que deu lugar ao Acórdão HYA e o. I, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, ao qual foi transmitido este processo, tal prática judicial nacional é contrária a várias disposições do direito nacional, em especial ao artigo 121.o, n.o 4, da Constituição búlgara, que exigem que qualquer decisão judicial de autorização do recurso, sem o consentimento dos utilizadores, a escuta, a interceção e a armazenamento de comunicações exige por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais.

    34

    Afigura‑se assim que esse órgão jurisdicional efetua uma interpretação do direito nacional que, como resulta dos n.os 47 a 52 do Acórdão HYA e o. I, diverge da pretendida pelo órgão jurisdicional nacional que era inicialmente responsável pelo referido processo e cuja decisão de reenvio deu lugar a este último acórdão.

    35

    Ora, convém recordar que, segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o direito interno de um Estado‑Membro (Acórdão de 26 de janeiro de 2021, Hessischer Rundfunk, C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63, n.o 31 e jurisprudência referida).

    36

    No entanto, há que indicar que, com este novo pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio não visa determinar a conformidade da referida prática judicial nacional com as disposições do direito nacional, mas apurar se o direito da União se opõe a disposições de direito nacional que proíbem tal prática, ao exigir que qualquer decisão judicial que autorize recorrer, sem o consentimento dos utilizadores, à escuta, à interceção e ao armazenamento de comunicações exige por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais. Ora, tal questão, que tem por objeto a interpretação do direito nacional, faz parte da competência do Tribunal de Justiça.

    37

    Consequentemente, não há que responder ao presente pedido de decisão prejudicial.

    Quanto à questão prejudicial

    38

    Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, essencialmente, saber se o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições de direito nacional que proíbem que uma decisão judicial que autoriza, sem o consentimento dos respetivos utilizadores, a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações exija por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais. Em caso de resposta afirmativa, pergunta se esta mesma disposição da Diretiva 2002/58 se opõe a uma norma de direito nacional que exige que as conversas gravadas sejam excluídas dos elementos de prova devido à falta de fundamentação da autorização judicial, ainda que uma leitura cruzada da autorização judicial e do pedido permita compreender com facilidade e inequivocamente os fundamentos dessa autorização.

    39

    A título preliminar, há que constatar que o órgão jurisdicional de reenvio verificou que as medidas em causa no processo principal estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2002/58. Efetivamente, na sequência de tal convite, feito pelo Tribunal de Justiça no n.o 38 do Acórdão HYA e o. I., para verificar se os métodos especiais de investigação utilizados no processo principal tinham por efeito impor obrigações de tratamento aos fornecedores de serviços de telecomunicações em causa, o órgão jurisdicional de reenvio indicou no seu pedido de decisão prejudicial que tal era o caso, uma vez que os fornecedores em causa estão legalmente encarregados de proceder à interceção dos dados e à sua transmissão às autoridades policiais.

    40

    No que diz respeito à questão submetida, há que começar por salientar que esta se baseia, tal como os n.os 24 a 29 do presente acórdão, na premissa de que decorre do Acórdão HYA e o. I que o direito da União, em especial o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, exige que os órgãos jurisdicionais búlgaros adotem a prática judicial nacional examinada neste acórdão, pelo que esses órgãos jurisdicionais devem afastar por serem incompatíveis com o direito da União as disposições do direito nacional que, em incumprimento do modelo de fundamentação estabelecido pelo Tribunal de Justiça no referido acórdão, impõem que toda a decisão judicial que autorize, sem o consentimento dos respetivos utilizadores, a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações exige por si só uma fundamentação explícita por escrito.

    41

    Contudo, essa premissa é errada.

    42

    Com efeito, importa recordar que, no âmbito da repartição das competências entre os órgãos jurisdicionais da União e os órgãos jurisdicionais nacionais, cabe ao Tribunal de Justiça ter em conta o contexto factual e regulamentar em que se inserem as questões prejudiciais, como definido pela decisão de reenvio, pelo que o exame de um reenvio prejudicial deve ser feito à luz da interpretação do direito nacional fornecida pelo órgão jurisdicional de reenvio (v., nomeadamente, Acórdão de 8 de junho de 2023, Prestige and Limousine, C‑50/21, EU:C:2023:448, n.o 42 e jurisprudência referida).

    43

    Em conformidade com esta jurisprudência, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se, no Acórdão HYA e o. I, sobre a conformidade com o direito da União da prática judiciária nacional que tinha sido descrita pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) no seu pedido de decisão prejudicial. Como já foi salientado no n.o 19 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, com o Acórdão HYA e o. I, que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal prática judicial nacional, desde que as razões precisas pelas quais o juiz competente considerou que os requisitos legais foram respeitados à luz dos elementos factuais e jurídicos que caracterizam o caso em apreço possam ser inferidas com facilidade e inequivocamente de uma leitura cruzada da decisão e do pedido de autorização, devendo este último ser facultado, posteriormente à concessão da autorização, à pessoa contra a qual o recurso aos métodos especiais de investigação foi autorizado.

    44

    Em contrapartida, o referido acórdão não pode ser de forma nenhuma interpretado no sentido de estabelecer um modelo de fundamentação que obriga as autoridades búlgaras a adotar tal prática, obrigando‑as a afastar, com o fundamento de que são incompatíveis com o direito da União, as disposições de direito nacional que impõem que uma decisão judicial que autoriza recorrer a métodos especiais de investigação, como a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações, exige por si só uma fundamentação explícita por escrito.

    45

    Antes pelo contrário, resulta da fundamentação do Acórdão HYA e o. I que o direito da União em nada se opõe às referidas disposições de direito nacional.

    46

    A este respeito, importa recordar que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 consagra o princípio da confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis, bem como a confidencialidade de comunicações e dos respetivos dados de tráfego das comunicações. Este princípio traduz‑se na proibição da escuta, da instalação de dispositivos de escuta, do armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto nos casos previstos no artigo 15.o n.o 1, da referida diretiva (Acórdão HYA e o. I, n.o 40).

    47

    Esta última disposição prevê, assim, que os Estados‑Membros possam adotar medidas legislativas destinadas a restringir o alcance dos direitos e das obrigações previstos no artigo 5.o da mesma diretiva, nomeadamente, quando essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais. Especifica ainda que todas estas medidas legislativas deverão ser conformes com os princípios gerais do direito da União, incluindo os direitos, liberdades e princípios enunciados na Carta (Acórdão HYA e o. I, n.o 41).

    48

    A este respeito, as medidas legislativas que regulam o acesso das autoridades competentes aos dados previstos no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 não se podem limitar a exigir que esse acesso responda à finalidade prosseguida por essas mesmas medidas legislativas, mas devem igualmente prever as condições materiais e processuais que regem esse tratamento (Acórdão HYA e o. I, n.o 42 e jurisprudência referida).

    49

    Essas medidas e condições devem respeitar os princípios gerais do direito da União, entre os quais figura o princípio da proporcionalidade, e os direitos fundamentais garantidos pela Carta, como resulta do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, que faz referência ao artigo 6.o, n.os 1 e 2, TUE (Acórdão HYA e o. I, n.o 43 e jurisprudência referida).

    50

    Em particular, os requisitos processuais referidos no n.o 48 do presente acórdão devem ser adotados no respeito do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que corresponde, como resulta das anotações relativas a este artigo, ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH. Este direito exige que qualquer decisão judicial seja fundamentada (Acórdão HYA e o. I, n.o 44 e jurisprudência referida).

    51

    Por conseguinte, quando uma medida legislativa adotada ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 prevê que possam ser adotadas restrições ao princípio da confidencialidade das comunicações eletrónicas consagrado no artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva por via de decisões judiciais, este artigo 15.o, n.o 1, lido em conjugação com o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, impõe aos Estados‑Membros que prevejam que essas decisões devam ser fundamentadas (Acórdão HYA e o. I, n.o 45).

    52

    Com efeito, o direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva, garantido pelo artigo 47.o da Carta, exige que o interessado possa conhecer os motivos da decisão tomada a seu respeito, quer através da leitura da decisão, quer através de uma comunicação destes motivos feita a seu pedido, para lhe permitir defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir, com pleno conhecimento de causa, se deve ou não requerer a fiscalização jurisdicional a um órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dessa decisão (Acórdão HYA e o. I, n.o 46 e jurisprudência referida).

    53

    Daqui decorre que uma regulamentação nacional que impõe que qualquer decisão judicial que autoriza, sem o consentimento dos respetivos utilizadores, a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações exija por si só uma fundamentação explícita por escrito cumpre necessariamente os requisitos de fundamentação decorrentes do direito da União. Por conseguinte, os órgãos jurisdicionais nacionais não são de forma nenhuma obrigados a afastar tal regulamentação.

    54

    Consequentemente, há que responder à primeira parte da questão submetida que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a disposições de direito nacional que impõem que uma decisão judicial que autoriza, sem o consentimento dos respetivos utilizadores, a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações exija por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais.

    55

    Atendendo à resposta dada à primeira parte da questão, não há que responder à segunda parte da mesma.

    Quanto às despesas

    56

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

     

    O artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas), lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

     

    deve ser interpretado no sentido de que:

     

    não se opõe a disposições de direito nacional que impõem que uma decisão judicial que autoriza, sem o consentimento dos respetivos utilizadores, a escuta, a interceção e o armazenamento de comunicações exija por si só uma fundamentação explícita por escrito, independentemente da existência de um pedido fundamentado das autoridades penais.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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