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Document 62022CJ0670

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 30 de abril de 2024.
Processo penal contra M.N.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Berlin.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2014/41/UE — Decisão europeia de investigação em matéria penal — Obtenção de provas já na posse das autoridades competentes do Estado de execução — Condições de emissão — Serviço de telecomunicações encriptadas — EncroChat — Necessidade de uma decisão judicial — Utilização de provas obtidas em violação do direito da União.
Processo C-670/22.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:372

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

30 de abril de 2024 ( *1 ) ( i )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2014/41/UE — Decisão europeia de investigação em matéria penal — Obtenção de provas já na posse das autoridades competentes do Estado de execução — Condições de emissão — Serviço de telecomunicações encriptadas — EncroChat — Necessidade de uma decisão judicial — Utilização de provas obtidas em violação do direito da União»

No processo C‑670/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), por Decisão de 19 de outubro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de outubro de 2022, no processo penal contra

M.N.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Prechal, K. Jürimäe (relatora), C. Lycourgos, T. von Danwitz, Z. Csehi e O. Spineanu‑Matei, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, I. Jarukaitis, A. Kumin, D. Gratsias, M. L. Arastey Sahún e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade, e K. Hötzel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 4 de julho de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Staatsanwaltschaft Berlin, por R. Pützhoven e J. Raupach, na qualidade de agentes,

em representação de M.N., por S. Conen, Rechtsanwalt,

em representação do Governo Alemão, por J. Möller, P. Busche e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Checo, por L. Halajová, M. Smolek, e T. Suchá, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Estónio, por M. Kriisa, na qualidade de agente,

em representação da Irlanda, por M. Browne, Chief State Solicitor, M. A. Joyce e D. O’Reilly, na qualidade de agentes, assistidos por D. Fennelly, BL,

em representação do Governo Espanhol, por A. Gavela Llopis e A. Pérez‑Zurita Gutiérrez, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Francês, por G. Bain e R. Bénard, B. Dourthe, B. Fodda e T. Stéhelin, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér, na qualidade de agente,

em representação do Governo Neerlandês, por M. K. Bulterman, A. Hanje e J. Langer, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação do Governo Sueco, por F.‑L. Göransson e H. Shev, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por H. Leupold, M. Wasmeier e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 26 de outubro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, alínea c), do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 31.o da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1), bem como dos princípios da equivalência e da efetividade.

2

Este pedido foi apresentado no contexto do processo penal instaurado contra M.N. e diz respeito à legalidade de três decisões europeias de investigação emitidas pelo Generalstaatsanwaltschaft Frankfurt am Main (Ministério Público de Frankfurt am Main, Alemanha) (a seguir «Ministério Público de Frankfurt»).

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2002/58/CE

3

O artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas) (JO 2002, L 201, p. 37), enuncia:

«Os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.o e 6.o, nos n.os 1 a 4 do artigo 8.o e no artigo 9.o da presente diretiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas, tal como referido no n.o 1 do artigo 13.o da Diretiva 95/46/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31)]. […] Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.o [TUE].»

Diretiva 2014/41

4

Os considerandos 2, 5 a 8, 19 e 30 da Diretiva 2014/41 têm a seguinte redação:

«(2)

Nos termos do artigo 82.o, n.o 1, [TFUE], a cooperação judiciária em matéria penal na União [Europeia] assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais, princípio esse comummente referido, desde o Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de outubro de 1999, como a pedra angular da cooperação judiciária em matéria penal na União.

[…]

(5)

Desde que as Decisões‑Quadro [2003/577/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa à execução na União Europeia das decisões de congelamento de bens ou de provas (JO 2003, L 196, p. 45),] e [2008/978/JAI do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativa a um mandado europeu de obtenção de provas destinado à obtenção de objetos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais (JO 2008, L 350, p. 72),] foram adotadas, tornou‑se claro que o enquadramento existente para a recolha de elementos de prova é demasiado fragmentado e complexo. Por conseguinte, é necessária uma nova abordagem.

(6)

No Programa de Estocolmo, aprovado pelo Conselho Europeu de 10‑11 de dezembro de 2009, o Conselho Europeu considerou que os trabalhos para a criação de um sistema global de obtenção de elementos de prova nos processos de dimensão transfronteiriça, com base no princípio do reconhecimento mútuo, deveriam ser prosseguidos. O Conselho Europeu indicou que os instrumentos existentes neste domínio constituíam um regime fragmentário e que era necessária uma nova abordagem baseada no princípio do reconhecimento mútuo mas tendo em conta a flexibilidade do sistema tradicional de auxílio judiciário mútuo. Por conseguinte, o Conselho Europeu apelou à criação de um sistema global, destinado a substituir todos os instrumentos existentes neste domínio, incluindo a Decisão‑Quadro 2008/978/JAI, que abranja tanto quanto possível todos os tipos de elementos de prova, que contenha prazos de execução e que limite, tanto quanto possível, os motivos de recusa.

(7)

Esta nova abordagem deve assentar num instrumento único, denominado decisão europeia de investigação (DEI). Deve ser emitida uma DEI para que uma ou várias medidas específicas de investigação sejam realizadas no Estado que executa a DEI (“Estado de execução”) tendo em vista a recolha de elementos de prova. A execução deve incluir a obtenção de elementos de prova que já estejam na posse da autoridade de execução.

(8)

A DEI deverá ter um âmbito horizontal, aplicando‑se, por conseguinte, a todas as medidas de investigação que visam recolher elementos de prova. Todavia, a criação de equipas de investigação conjuntas e a recolha de elementos de prova por essas equipas requerem regras específicas que é melhor tratar separadamente. Sem prejuízo da aplicação da presente diretiva, os instrumentos existentes deverão portanto continuar a aplicar‑se a esse tipo de medidas de investigação.

[…]

(19)

A criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça na União baseia‑se na confiança mútua e na presunção de que os outros Estados‑Membros cumprem o direito da União e, em particular, respeitam os direitos fundamentais. No entanto, essa presunção é refutável. Em consequência, se houver motivos substanciais para supor que a execução de uma medida de investigação indicada na DEI se traduziria na violação de um direito fundamental da pessoa em causa, e que o Estado de execução ignoraria as suas obrigações relativamente à proteção dos direitos reconhecidos na [Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir “Carta”)], a execução da DEI deverá ser recusada.

[…]

(30)

As possibilidades de cooperação ao abrigo da presente diretiva relativas à interceção de telecomunicações não deverão ficar limitadas ao conteúdo das telecomunicações, poderão abranger também a recolha de dados de tráfego e localização a elas associados, o que permitirá às autoridades competentes emitir uma DEI para obtenção de dados sobre telecomunicações menos intrusiva. Uma DEI emitida para obtenção de dados de tráfego e localização relativos a telecomunicações deverá ser tratada segundo o regime geral de execução das DEI e pode ser considerada, consoante a lei do Estado de execução, como uma medida de investigação intrusiva.»

5

Sob a epígrafe «A decisão europeia de investigação e a obrigação de a executar», o artigo 1.o desta diretiva enuncia:

«1.   A decisão europeia de investigação (DEI) é uma decisão judicial emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado‑Membro (“Estado de emissão”) para que sejam executadas noutro Estado‑Membro (“Estado de execução”) uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova em conformidade com a presente diretiva.

Também pode ser emitida uma DEI para obter elementos de prova que já estejam na posse das autoridades competentes do Estado de execução.

2.   Os Estados‑Membros executam uma DEI com base no princípio do reconhecimento mútuo e nos termos da presente diretiva.»

6

Nos termos do artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições»:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

c)

“Autoridade de emissão”:

i)

um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público competente no processo em causa; ou

ii)

qualquer outra autoridade competente definida pelo Estado de emissão e que, no caso em apreço, atue enquanto autoridade de investigação num processo penal com competência para ordenar a obtenção de elementos de prova no processo de acordo com a lei nacional. Além disso, antes de ser transmitida à autoridade de execução, a DEI é validada por um juiz, por um tribunal, por um juiz de instrução ou por um magistrado do Ministério Público no Estado de emissão, após análise da sua conformidade com as condições de emissão de uma DEI ao abrigo da presente diretiva, designadamente as condições previstas no artigo 6.o, n.o 1. Se a DEI tiver sido validada por uma autoridade judiciária, esta também pode ser equiparada a autoridade de emissão para efeitos de transmissão da DEI;

d)

“Autoridade de execução”, uma autoridade com competência para reconhecer a DEI e garantir a sua execução de acordo com a presente diretiva e com os procedimentos aplicáveis num processo nacional semelhante. Esses procedimentos podem exigir uma autorização do tribunal no Estado de execução, nos casos previstos na lei desse Estado.»

7

O artigo 4.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Tipos de processos para os quais pode ser emitida uma DEI», dispõe:

«A DEI pode ser emitida:

a)

Relativamente a processos penais instaurados por uma autoridade judiciária, ou que possam ser instaurados perante uma tal autoridade, relativamente a uma infração penal ao abrigo do direito interno do Estado de emissão;

[…]»

8

O artigo 6.o da Diretiva 2014/41, sob a epígrafe «Condições de emissão e de transmissão de uma DEI», dispõe:

«1.   A autoridade de emissão só pode emitir uma DEI se estiverem reunidas as seguintes condições:

a)

A emissão da DEI é necessária e proporcionada para efeitos dos processos a que se refere o artigo 4.o, tendo em conta os direitos do suspeito ou do arguido; e

b)

A medida ou medidas de investigação indicadas na DEI poderiam ter sido ordenadas nas mesmas condições em processos nacionais semelhantes.

2.   As condições referidas no n.o 1 são avaliadas pela autoridade de emissão, caso a caso.

3.   Se a autoridade de execução tiver razões para considerar que as condições previstas no n.o 1 não estão preenchidas, pode consultar a autoridade de emissão quanto à importância de executar a DEI. Após essa consulta, a autoridade de emissão pode decidir retirar a decisão europeia de investigação.»

9

O artigo 14.o desta diretiva, sob a epígrafe «Vias de recurso», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que sejam aplicáveis às medidas de investigação indicadas na DEI vias de recurso equivalentes às existentes em processos nacionais semelhantes.

[…]

7.   Se a impugnação do reconhecimento ou execução de uma DEI for procedente, essa decisão será tida em conta pelo Estado de emissão de acordo com a lei nacional. Sem prejuízo do disposto no direito processual nacional, os Estados‑Membros asseguram‑se de que, no processo penal no Estado de emissão, quando da avaliação dos elementos de prova obtidos através da DEI, são respeitados os direitos da defesa e a equidade do processo.»

10

O artigo 30.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Interceção de telecomunicações com a assistência técnica de outro Estado‑Membro», enuncia:

«1.   Pode ser emitida uma DEI para a interceção de telecomunicações no Estado‑Membro cuja assistência técnica é necessária.

[…]

7.   Ao emitir a DEI referida no n.o 1 ou durante a interceção, a autoridade de emissão pode também, se tiver especial motivo para tal, requerer a transcrição, descodificação ou decifragem do registo, sob reserva do acordo da autoridade de execução.

8.   As despesas decorrentes da aplicação do presente artigo são suportadas nos termos do artigo 21.o, com exceção das despesas decorrentes da transcrição, descodificação e decifragem das comunicações intercetadas, que são suportadas pelo Estado de emissão.»

11

O artigo 31.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Notificação do Estado‑Membro onde se encontra o sujeito que é alvo da interceção e cuja assistência técnica não é necessária», dispõe:

«1.   Caso seja autorizada, para efeitos da realização de uma medida de investigação, a interceção de telecomunicações pela autoridade competente de um Estado‑Membro («Estado‑Membro intercetante»), e o endereço de comunicação do sujeito que é alvo da interceção especificado no mandado de interceção estiver a ser utilizado no território de outro Estado‑Membro («Estado‑Membro notificado»), cuja assistência técnica não é necessária para efetuar a interceção, o Estado‑Membro intercetante informa dessa interceção a autoridade competente do Estado‑Membro notificado:

a)

Antes da interceção, se a autoridade competente do Estado‑Membro intercetante souber, ao pedir a interceção, que o sujeito que é alvo da interceção está ou estará no território do Estado‑Membro notificado;

b)

Durante a interceção ou depois de esta ter sido feita, logo que tenha conhecimento de que o sujeito que é alvo da interceção está ou esteve, durante a interceção, no território do Estado‑Membro notificado.

2.   A notificação referida no n.o 1 é efetuada utilizando o formulário que consta do anexo C.

3.   Caso a interceção não seja autorizada num processo nacional semelhante, a autoridade competente do Estado‑Membro notificado pode notificar a autoridade competente do Estado intercetante, sem demora e o mais tardar no prazo de 96 horas após receção da notificação referida no n.o 1, de que:

a)

A interceção não pode ser feita ou vai ser terminada; e

b)

Sendo caso disso, não podem ser utilizados dados já intercetados enquanto o sujeito que é alvo da interceção se encontrava no seu território, ou só podem ser utilizados sob certas condições, que especificará. A autoridade competente do Estado‑Membro notificado informa a autoridade competente do Estado‑Membro intercetante das razões que justificam tais condições.

[…]»

12

O artigo 33.o da Diretiva 2014/41, sob a epígrafe «Notificações», enumera, no seu n.o 1, as informações que devem ser comunicadas e disponibilizadas a todos os Estados‑Membros e à Rede Judiciária Europeia (RJE) criada pela Ação Comum 98/428/JAI de 29 de junho de 1998, adotada pelo Conselho com base no artigo K.3 [UE] que cria uma Rede Judiciária Europeia (JO 1998, L 191, p. 4).

Direito alemão

13

A interceção de telecomunicações em processo penal é regulada pelo Strafprozessordnung (StPO) (Código de Processo Penal) (a seguir «StPO»).

14

O § 100a, n.o 1, primeiro a terceiro períodos, do StPO autoriza, respetivamente, o controlo das comunicações em curso sob a forma de controlo «clássico» das telecomunicações, a vigilância das comunicações em curso graças à instalação de um software espião em equipamentos terminais («interceção de telecomunicações na fonte») e a apreensão de comunicações terminadas e já guardadas num aparelho quando um despacho do Landgericht (Tribunal Regional, Alemanha) que tenha ordenado a realização da medida em causa («busca restrita online») tiver sido proferido. Nos termos do § 100b do StPO, é admitida a leitura de todos os dados que tiverem sido guardados num equipamento terminal («busca online»).

15

Todas estas medidas pressupõem a existência de uma suspeita concreta da prática de uma infração penal, estando a categoria de atos ilícitos visados limitada a determinados atos enumerados no § 100a, n.o 2, e no § 100b, n.o 2, do StPO.

16

Por força do § 100e, n.os 1 e 2, do StPO, as referidas medidas só podem ser ordenadas pelo Landgericht (Tribunal Regional) competente a pedido do Ministério Público interessado. A este respeito, em conformidade com o § 100e, n.o 2, do StPO, lido em conjugação com o § 74a, n.o 4, da Gerichtsverfassungsgesetz (GVG) (Lei da Organização Judiciária), de 12 de setembro de 1950 (BGBl. 1950 I, p. 455), as buscas online são da competência exclusiva de uma secção especializada desse Landgericht (Tribunal Regional).

17

A Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (IRG) (Lei relativa à Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), de 23 de dezembro de 1982 (BGBl. 1982 I, p. 2071), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «IRG»), não indica expressamente a autoridade competente para emitir decisões europeias de investigação. Por referência ao § 161 do StPO, uma decisão europeia de investigação que tenha por objeto um controlo de telecomunicações no estrangeiro pode, assim, ser adotada pelo Ministério Público durante o inquérito prévio à dedução de acusação.

18

O § 91g, n.o 6, da IRG, que transpõe o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 para o direito alemão, dispõe que a autoridade competente à qual um Estado‑Membro notifica a sua intenção de realizar uma medida de interceção no território alemão deve proibir a aplicação dessa medida ou a utilização dos dados intercetados o mais tardar no prazo de 96 horas ou sujeitar a utilização desses dados ao cumprimento de determinadas condições, se, num caso comparável, a referida medida não for autorizada a nível nacional. No entanto, a IRG não especifica se essa medida deve ser notificada ao Landgericht (Tribunal Regional) competente ou ao Ministério Público interessado. O § 92d da IRG apenas regula a competência geográfica da autoridade competente.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

No âmbito de um inquérito conduzido pelas autoridades francesas, verificou‑se que os arguidos utilizavam telemóveis encriptados, que funcionavam ao abrigo de uma licença denominada «EncroChat», para cometer infrações principalmente relacionadas com o tráfico de estupefacientes. Graças a um programa informático especial e a material modificado, estes telemóveis permitiam, por intermédio de um servidor instalado em Roubaix (França), estabelecer uma comunicação encriptada de extremo a extremo que não podia ser intercetada através de métodos de investigação tradicionais (a seguir «serviço EncroChat»).

20

Com autorização de um juiz, a polícia francesa conseguiu conservar dados do referido servidor em 2018 e 2019. Estes dados permitiram o desenvolvimento de um software troiano por parte de uma equipa de investigação conjunta que incluía peritos neerlandeses. O referido software foi instalado naquele servidor na primavera de 2020, com autorização do tribunal correctionnel de Lille (Tribunal Correcional de Lille, França) e, a partir daí, nos referidos telemóveis, com recurso a uma atualização simulada. O software em questão abrangeu 32477 utilizadores, num total de 66134 utilizadores inscritos, espalhados por 122 países, de entre os quais 4600 eram utilizadores na Alemanha.

21

Em 9 de março de 2020, representantes do Bundeskriminalamt (Serviço Federal da Polícia Judiciária, Alemanha) (a seguir «BKA») e do Ministério Público de Frankfurt, bem como representantes, nomeadamente, das autoridades francesas, neerlandesas e do Reino Unido, participaram numa videoconferência organizada pela Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust). Durante esta conferência, os representantes das autoridades francesas e neerlandesas informaram os representantes das autoridades dos outros Estados‑Membros a respeito do inquérito que estavam a conduzir contra uma sociedade de exploração de telemóveis encriptados e da medida de interceção de dados que previam levar a cabo, que incluía dados provenientes de telemóveis que estavam fora do território francês. Os representantes das autoridades alemãs manifestaram interesse pelos dados dos utilizadores alemães.

22

Numa comunicação de 13 de março de 2020, o BKA anunciou a abertura de um inquérito contra um conjunto desconhecido de utilizadores do serviço EncroChat por alegado tráfico organizado de estupefacientes em quantidades significativas e associação criminosa. O BKA justificou a abertura desse inquérito explicando que a utilização do serviço EncroChat levantava, por si só, a suspeita da prática de infrações graves, em especial a organização de tráfico de estupefacientes.

23

Com base nesta comunicação, em 20 de março de 2020, o Ministério Público de Frankfurt abriu um inquérito contra X (a seguir «processo UJs») com a menção «Urgente».

24

Em 27 de março de 2020, através do sistema seguro de intercâmbio de informações da Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol), denominado «Secure Information Exchange Newtork Application» (SIENA), o BKA recebeu uma mensagem que a equipa de investigação conjunta dirigiu às autoridades policiais dos Estados‑Membros interessados nos dados do serviço EncroChat. As autoridades competentes desses Estados‑Membros foram convidadas a confirmar por escrito que tinham sido informadas dos métodos utilizados para recolher dados a partir de telemóveis situados no seu território nacional. Essas mesmas autoridades também tinham de garantir que, numa primeira fase, em princípio, os dados apenas seriam transmitidos com o objetivo de serem analisados e que só seriam utilizados nos processos de inquérito em curso após autorização por parte dos Estados‑Membros da equipa de investigação conjunta. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o BKA transmitiu as confirmações pedidas com o acordo do Ministério Público de Frankfurt.

25

Entre 3 de abril e 28 de junho de 2020, o BKA consultou os dados divulgados diariamente no servidor da Europol relativos aos telemóveis utilizados na Alemanha.

26

Em 2 de junho de 2020, no âmbito do processo UJs, com recurso a uma primeira decisão europeia de investigação, o Ministério Público de Frankfurt pediu autorização às autoridades francesas para utilizar sem restrições os dados provenientes do serviço EncroChat em processos penais. Justificou o seu pedido indicando que o BKA tinha sido informado pela Europol de que, na Alemanha, um grande número de infrações muito graves, nomeadamente a importação e o tráfico de estupefacientes em quantidades significativas, era cometido com o auxílio de telemóveis equipados com esse serviço e que pessoas não identificadas até à data eram suspeitas de planear e cometer infrações muito graves na Alemanha através da utilização de comunicações encriptadas.

27

Na sequência desse pedido, o Tribunal Penal de Lille autorizou a transferência e a utilização em juízo dos dados dos telemóveis dos utilizadores alemães equipados com o serviço EncroChat. Posteriormente, foram transmitidos dados complementares em aplicação de duas decisões europeias de investigação suplementares, respetivamente de 9 de setembro de 2020 e de 2 de julho de 2021 (a seguir, conjuntamente com a decisão europeia de investigação de 2 de junho de 2020, «decisões europeias de investigação»).

28

Em seguida, o Ministério Público de Frankfurt separou o processo UJs, reatribuindo os processos de inquérito contra certos utilizadores, entre os quais M.N., a delegações locais do Ministério Público. É neste contexto que o Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), aqui órgão jurisdicional de reenvio, se interroga sobre a legalidade das decisões europeias de investigação à luz da Diretiva 2014/41.

29

Com uma primeira série de três questões, este órgão jurisdicional pretende determinar qual era a autoridade competente para adotar as decisões europeias de investigação.

30

A este respeito, num Despacho de 2 de março de 2022, proferido no processo 5 StR 457/21 (DE:BGH:2022:020322B5STRT457.21.0), o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) declarou que o Ministério Público de Frankfurt, que investiga o processo UJs, era competente para emitir decisões europeias de investigação com vista à transferência de elementos de provas (a seguir «Despacho do Supremo Tribunal de Justiça Federal de 2 de março de 2022»). O órgão jurisdicional de reenvio não partilha esta interpretação. Tende pelo contrário a considerar que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, só um órgão jurisdicional poderia ter tomado as decisões europeias de investigação.

31

O órgão jurisdicional de reenvio invoca, a este respeito, os Acórdãos de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152), e de 16 de dezembro de 2021, Spetsializirana prokuratura (Dados de tráfego e de localização) (C‑724/19, EU:C:2021:1020). Baseia‑se, mais precisamente, nas considerações que o Tribunal de Justiça consagrou, na jurisprudência resultante desses acórdãos, à interpretação do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 à luz dos direitos fundamentais decorrentes dos artigos 7.o, 8.o e 11.o da Carta. Segundo esse órgão jurisdicional, esta jurisprudência é transponível para a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41.

32

O acesso por parte das autoridades responsáveis pela ação penal aos dados do serviço EncroChat através de decisões europeias de investigação deve estar sujeito a critérios análogos aos que regem o acesso a dados conservados em aplicação do artigo 15.o, n.o1, da Diretiva 2002/58. O facto de os dados respeitantes àquele serviço não terem sido guardados por um operador de telecomunicações na sequência de uma injunção administrativa, mas terem sido imediatamente recolhidos pelas autoridades francesas responsáveis pela ação penal, não justifica uma solução diferente. Pelo contrário, este facto agrava a ingerência nos direitos fundamentais das pessoas em causa.

33

Por outro lado, resulta do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 que uma decisão europeia de investigação deve, para efeitos de uma ação penal, independentemente das regras nacionais de competência numa situação comparável a nível nacional, ser sempre tomada por um juiz que não seja responsável pelas medidas de investigação concretas, quando a fiscalização da proporcionalidade, prevista no artigo 6.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, implicar uma ponderação complexa dos interesses em causa e disser respeito a violações graves dos direitos fundamentais.

34

A segunda e terceira séries de questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito às condições materiais a que está sujeita a adoção de uma decisão europeia de investigação.

35

Este órgão jurisdicional considera, em primeiro lugar, que uma decisão europeia de investigação na qual é pedido o acesso a dados provenientes da interceção de telecomunicações para efeitos de ação penal só preenche as condições de necessidade e proporcionalidade, enunciadas no artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41, se, contra cada pessoa em causa, existir uma presunção, baseada em factos concretos, de participação numa infração grave.

36

O referido órgão jurisdicional não partilha da conclusão que a este respeito consta do Despacho do Supremo Tribunal de Justiça Federal de 2 de março de 2022, segundo a qual para adotar decisões europeias de investigação basta uma simples suspeita, não especificada, de prática de múltiplas infrações. O órgão jurisdicional de reenvio baseia as suas dúvidas na jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito da licitude da conservação de dados, em especial nas apreciações respeitantes à proporcionalidade, na aceção do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, e invoca, a este respeito, os Acórdãos de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.os 39, 40 e 50), e de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána e o. (C‑140/20, EU:C:2022:258, n.o 44). A este respeito, no contexto do processo nacional, não se pode alegar que as normas nacionais em matéria de processo penal garantem de forma suficiente os direitos fundamentais das pessoas em causa.

37

A questão da proporcionalidade de uma decisão europeia de investigação também suscita dúvidas ao órgão jurisdicional de reenvio à luz do direito a um processo equitativo garantido no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta e no artigo 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950. Este direito exige que uma parte num processo judicial tenha uma possibilidade real de apresentar as suas observações sobre um elemento de prova. Isto é válido, em especial, nos casos em que os elementos de prova têm origem num domínio técnico em que o órgão jurisdicional competente e a parte no processo não dispõem de conhecimentos especializados.

38

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41, a autoridade de emissão deve fiscalizar a medida indicada na decisão europeia de investigação à luz do direito nacional.

39

No Despacho do Supremo Tribunal de Justiça Federal de 2 de março de 2022, este último considerou, todavia, que esta disposição não era aplicável ao processo principal. A referida disposição só seria aplicável a uma decisão europeia de investigação destinada à recolha de provas que ainda devesse ser executada. Segundo o Supremo Tribunal de Justiça Federal, a referida disposição não é aplicável a uma decisão europeia de investigação que apenas se destina a transmitir provas já recolhidas. A fiscalização da medida à luz do direito nacional seria, portanto, desnecessária.

40

O órgão jurisdicional de reenvio considera, pelo contrário, que, nesse caso, a autoridade de emissão de uma decisão europeia de investigação deve fiscalizar a medida de investigação que está na origem da recolha de dados à luz do direito nacional. Por outras palavras, esta autoridade só pode pedir elementos de prova recolhidos no Estado de execução, através de uma decisão europeia de investigação, se a medida de investigação graças à qual esses elementos de prova foram recolhidos for autorizada no Estado de emissão numa situação comparável nacional.

41

A quinta questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio tem por objeto a interpretação do artigo 31.o da Diretiva 2014/41.

42

Este órgão jurisdicional considera que, quando um Estado‑Membro pretender intercetar telecomunicações de pessoas que se encontrem em território alemão, deve, em conformidade com este artigo, notificar a interceção projetada à autoridade alemã competente antes que a medida comece a ser concretizada ou logo que tenha conhecimento do local em que essas pessoas se encontram.

43

No Despacho do Supremo Tribunal de Justiça Federal de 2 de março de 2022, este último pôs em causa que a medida francesa de recolha de dados constitua uma «interceção de telecomunicações», na aceção do artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41. O órgão jurisdicional de reenvio tem uma opinião contrária. Considera que as autoridades francesas de investigação deveriam ter notificado à autoridade alemã competente a medida de infiltração nos telemóveis alemães equipados com o serviço EncroChat antes de esta medida ser concretizada.

44

Ora, apesar de a legislação alemã fixar a competência territorial da referida autoridade, a mesma não precisa, em contrapartida, se a notificação em questão deve ser dirigida a um Landgericht (Tribunal Regional) ou ao Ministério Público em causa. A este propósito, existe uma divergência jurisprudencial e doutrinária na Alemanha. O órgão jurisdicional de reenvio é favorável a uma interpretação do conceito de «autoridade competente», referido no artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, no sentido de que tal conceito só pode designar uma instância independente e que não tenha interesse nos dados para efeitos de investigação, ou seja, um tribunal.

45

Com efeito, no caso de medidas transfronteiriças à escala do território da União e aplicadas no interesse simultâneo de vários Estados‑Membros, o conceito de «decisão europeia de investigação», na aceção do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41, e o de «notificação» previsto no artigo 31.o desta diretiva, são em larga medida intermutáveis. Por conseguinte, deverá ser promovida uma aproximação das competências das autoridades responsáveis por estas medidas.

46

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se igualmente sobre o objetivo de proteção da soberania dos Estados‑Membros prosseguido pelo artigo 31.o da Diretiva 2014/41, tendo em conta a particularmente elevada sensibilidade da ingerência secreta em comunicações.

47

A quinta série de questões submetidas tem por objeto as consequências de uma eventual violação do direito da União à luz dos princípios da equivalência e da efetividade.

48

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que as decisões nacionais proferidas sobre dados que resultaram da utilização do serviço EncroChat partem do princípio, por um lado, de que esses dados são utilizáveis e, por outro, de que, caso estejam em causa eventuais violações do direito da União, deve, todavia, ser dada prioridade aos processos penais atendendo à gravidade das infrações identificadas com base nos referidos dados.

49

No entanto, o órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à conformidade desta abordagem com o direito da União, em especial com os princípios da equivalência e da efetividade.

50

Quanto ao princípio da equivalência, o referido órgão jurisdicional salienta que, ao abrigo das normas de processo penal alemãs, seriam inutilizáveis os dados recolhidos através de escutas telefónicas ordenadas em violação da competência reservada ao juiz nesta matéria e na falta de uma suspeita concreta de prática de uma infração tipificada.

51

No que respeita ao princípio da efetividade, resulta do Acórdão de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 43), que o objetivo de evitar que informações e elementos de prova obtidos de forma ilegal prejudiquem indevidamente uma pessoa suspeita de ter cometido infrações penais pode ser alcançado não só através da proibição de explorar tais informações e elementos de prova mas também através da tomada em consideração do seu caráter ilegal na apreciação dos elementos de prova ou no âmbito da determinação da pena.

52

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a proibição de utilizar tais provas decorre diretamente do princípio da efetividade do direito da União. Esta proibição aplica‑se no processo principal, uma vez que o princípio geral do direito a um processo equitativo foi violado em vários aspetos, nomeadamente pelo facto de os dados solicitados pelas decisões europeias de investigação não poderem ser objeto de verificação por parte de um perito técnico pelo facto de as autoridades francesas os terem qualificado de «segredo de defesa».

53

Por outro lado, aquele órgão jurisdicional deduz dos Acórdãos de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 141), de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 50), e de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána e o. (C‑140/20, EU:C:2022:258, n.o 65), que o objetivo de luta contra as infrações graves não pode justificar uma conservação geral e indiferenciada de dados pessoais. Esses dados, conservados ilegalmente e sem motivo, não podem posteriormente estar acessíveis às autoridades responsáveis pela ação penal, ainda que devam servir para elucidar a prática de atos graves num caso concreto.

54

Nestas condições, o Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Quanto à interpretação do elemento “autoridade de emissão” segundo o artigo 6.o, n.o 1, em conjugação com o artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41

a)

Deve uma [“DEI”] destinada a obter provas que já estão na posse do Estado de execução (no caso vertente, a França) ser emitida por um juiz se, por força do direito do Estado de emissão (no caso vertente, a Alemanha), num caso interno semelhante a obtenção de provas subjacente devesse ser ordenada por um juiz?

b)

A título subsidiário, o mesmo é válido pelo menos no caso de o Estado de execução ter executado a medida subjacente no território do Estado de emissão a fim de disponibilizar posteriormente os dados obtidos às autoridades de investigação do Estado de emissão, que têm interesse nos dados para efeitos de procedimento criminal?

c)

Deve uma DEI destinada à obtenção de provas ser emitida por um juiz (ou por um organismo independente que não participe na investigação criminal), independentemente das regras de competência nacionais do Estado de emissão, quando a medida implicar uma ingerência grave em direitos fundamentais de grau superior?

2)

Quanto à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41

a)

O artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41 opõe‑se a uma DEI relativa à [transferência] de dados que já estão na posse do Estado de execução ([no caso vertente, a] França), obtidos em resultado de uma interceção de telecomunicações, em especial dados de tráfego e de localização, bem como gravações dos conteúdos de comunicações, se a interceção pelo Estado de execução tiver abrangido todos os utilizadores de uma rede de comunicações, se for pedida, através da DEI, a [transferência] dos dados de todas as conexões utilizadas no território do Estado de emissão e não houver indícios concretos da prática de crimes graves pelos mesmos utilizadores individuais à data em que foi ordenada ou executada a medida de interceção ou à data da emissão da DEI?

b)

O artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41 opõe‑se à referida DEI se a integridade dos dados obtidos através da medida de interceção não puder ser verificada pelas autoridades no Estado de execução devido à sua absoluta confidencialidade?

3)

Quanto à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41

a)

O artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41 opõe‑se a uma DEI que tem por objeto a [transferência] de dados de telecomunicações que já estão na posse do Estado de execução ([no caso vertente, a] França) se, num caso interno semelhante, a medida de interceção do Estado de execução que está [na] base da recolha dos dados tivesse sido inadmissível por força do direito do Estado de emissão ([no caso vertente, a] Alemanha)?

b)

A título subsidiário: A título subsidiário, o mesmo é, de qualquer modo, válido se o Estado de execução tiver levado a cabo a interceção no território do Estado de emissão e no interesse deste último?

4)

Quanto à interpretação do artigo 31.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 2014/41

a)

Uma medida ligada à infiltração de dispositivos terminais para recolha de dados de tráfego, de localização e de comunicação de um serviço de comunicações por Internet constitui uma interceção de telecomunicações na aceção do artigo 31.o, da Diretiva 2014/41?

b)

Deve a notificação prevista no artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 ser dirigida sempre a um juiz ou pelo menos quando, num caso interno semelhante, a medida planeada pelo Estado de interceção ([no caso vertente, a] França), com base na legislação do Estado notificado ([no caso vertente, a] Alemanha), só pudesse ser ordenada por um juiz?

c)

Na medida em que o artigo 31.o, da Diretiva 2014/41 visa igualmente a proteção individual dos utilizadores das telecomunicações afetados, é essa proteção igualmente extensiva à utilização dos dados no âmbito de procedimentos criminais no Estado notificado ([no caso vertente, a] Alemanha) e, na afirmativa, tem esse objetivo o mesmo valor que o objetivo mais amplo de proteção da soberania do Estado‑Membro notificado?

5)

Consequências jurídicas de uma obtenção de provas em violação do direito da União

a)

Em caso de obtenção de provas através de uma DEI em violação do direito da União, pode resultar diretamente do princípio da efetividade do direito da União a proibição da utilização das provas?

b)

Em caso de obtenção de provas através de uma DEI em violação do direito da União, o princípio da equivalência do direito da União implica a proibição da utilização das provas se a medida em que se baseia a obtenção das provas no Estado de execução não pudesse ter sido ordenada num caso interno semelhante no Estado de emissão e as provas obtidas através dessa medida interna ilegal não pudessem ter sido utilizadas por força do direito do Estado de emissão?

c)

É contrário ao direito da União, em especial ao princípio da efetividade, o facto de a utilização, num processo penal, de provas cuja obtenção tenha sido feita em violação do direito da União, precisamente por não haver suspeita de crime, ser justificada, no âmbito de uma ponderação de interesses, pela gravidade dos factos de que se tomou conhecimento pela primeira vez ao proceder à avaliação da prova?

d)

A título subsidiário: resulta do direito da União, em especial do princípio da efetividade, que as violações do direito da União em matéria de obtenção de provas num processo penal nacional também não possam deixar totalmente de ter consequências, mesmo em caso de crimes graves, e que, por conseguinte, devem ser tidas em conta em benefício do arguido, pelo menos na fase da apreciação da prova ou da fixação da pena?»

Tramitação processual no Tribunal de Justiça

55

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

56

Em apoio do seu pedido, indica que o processo principal deve ser tratado com especial urgência. Com efeito, embora o mandado de detenção nacional emitido contra M.N. não esteja atualmente a ser executado, um prolongamento do processo evitável e imputável ao Estado pode implicar a anulação desse mandado de detenção. A decisão do Tribunal de Justiça interessa, além disso, a muitos outros processos pendentes semelhantes.

57

O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça possa, quando a natureza do processo exigir o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada, em derrogação das disposições deste regulamento.

58

A este respeito, importa recordar que tal tramitação acelerada constitui um instrumento processual destinado a responder a uma situação de urgência extraordinária (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 37 e jurisprudência referida).

59

No caso em apreço, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, em 16 de novembro de 2022, ouvida a juíza‑relatora e a advogada‑geral, indeferir o pedido referido no n.o 55 do presente acórdão.

60

Com efeito, primeiro, uma vez que M.N. não é objeto de uma medida privativa de liberdade, a circunstância de o órgão jurisdicional de reenvio ser obrigado a tomar todas as medidas para assegurar uma resolução rápida do litígio no processo principal não basta, em si, para justificar o recurso à tramitação acelerada em aplicação do artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo (v., neste sentido, Despachos do presidente do Tribunal de Justiça de 7 de outubro de 2013, Rabal Cañas, C‑392/13, EU:C:2013:877, n.o 15, e de 20 de setembro de 2018, Minister for Justice and Equality, C‑508/18 e C‑509/18, EU:C:2018:766, n.o 13; e Acórdão de 13 de julho de 2023, Ferrovienord, C‑363/21 e C‑364/21, EU:C:2023:563, n.o 46).

61

Segundo, a importância das questões ou o facto de as mesmas dizerem potencialmente respeito a um número significativo de pessoas ou situações jurídicas não constituem, enquanto tais, razões que estabeleçam uma urgência extraordinária, a qual é, no entanto, necessária para justificar um tratamento por via acelerada [Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 21 de setembro de 2004, Parlamento/Conselho, C‑317/04, EU:C:2004:834, n.o 11, e Acórdão de 21 de dezembro de 2023, GN (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança), C‑261/22, EU:C:2023:1017, n.o 30].

62

O presidente do Tribunal de Justiça decidiu, todavia, que o presente processo seria julgado com prioridade, em aplicação do artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

63

O Staatsanwaltschaft Berlin (Ministério Público de Berlim, Alemanha) e vários Governos que apresentaram observações no Tribunal de Justiça alegam que certas questões são inadmissíveis, por serem, no essencial, ou hipotéticas, ou demasiado gerais, ou relativas a uma apreciação dos factos ou da legislação nacional.

64

Segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo instituído pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 1981, Foglia, 224/80, EU:C:1981:302, n.o 15). Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 20 de setembro de 2022, VD e SR, C‑339/20 e C‑397/20, EU:C:2022:703, n.o 56).

65

O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto ou de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, EU:C:1995:463, n.o 61, e de 20 de setembro de 2022, VD e SR, C‑339/20 e C‑397/20, EU:C:2022:703, n.o 57).

66

No caso em apreço, é certo que resulta da decisão de reenvio que algumas preocupações do órgão jurisdicional de reenvio têm efetivamente origem no direito nacional e que esse órgão jurisdicional ainda deverá apurar certos elementos de facto.

67

No entanto, por um lado, decorre de jurisprudência constante que os órgãos jurisdicionais nacionais são livres de exercer a faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça em qualquer momento do processo que considerem adequado. Com efeito, a escolha do momento mais oportuno para submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça é da sua competência exclusiva (v., neste sentido, Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 17 e jurisprudência referida).

68

Por outro lado, há que constatar que as questões prejudiciais submetidas têm por objeto a interpretação de disposições do direito da União claramente identificadas que, segundo o referido órgão jurisdicional, condicionam a resolução do litígio no processo principal. Nestas circunstâncias, dado que os argumentos invocados pelo Ministério Público de Berlim e pelos Governos referidos no n.o 63 do presente acórdão não são suficientes para demonstrar que esta interpretação não tem manifestamente nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, a resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas é necessária para a resolução do litígio no processo principal.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

69

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, alínea c), e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 devem ser interpretados no sentido de que uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução tem necessariamente de ser tomada por um juiz, quando, ao abrigo do direito do Estado de emissão, num processo puramente interno a esse Estado, a recolha inicial desses elementos de prova deva ser ordenada por um juiz.

70

A título preliminar, importa salientar que, embora o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 contribua para a definição das condições de emissão de uma decisão europeia de investigação, o mesmo não determina a natureza da autoridade que pode emitir essa decisão.

71

A este respeito, decorre do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 que uma decisão europeia de investigação pode ser emitida em dois casos. Essa decisão pode ter por objeto, por um lado, a execução de uma ou mais medidas específicas de investigação noutro Estado‑Membro com vista à obtenção de elementos de prova ou, por outro, a obtenção de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, ou seja, a transferência desses elementos de prova às autoridades competentes do Estado de emissão. Em qualquer dos casos, resulta desta disposição que uma decisão europeia de investigação deve ser emitida ou validada por uma «autoridade judiciária».

72

O conceito de «autoridade judiciária» utilizado nesta disposição não é, contudo, nela definido. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, neste contexto, importa interpretar o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 em conjugação com o seu artigo 2.o, alínea c), que define o conceito de «autoridade de emissão» para efeitos daquela diretiva [v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2023, Staatsanwaltschaft Graz (Serviço de investigação de infrações tributárias de Dusseldórfia), C‑16/22, EU:C:2023:148, n.os 27 e 28].

73

A este respeito, resulta da letra do artigo 2.o, alínea c), i), da referida diretiva que esta disposição prevê expressamente que o magistrado do Ministério Público figura entre as autoridades que, tal como o juiz, o tribunal ou o juiz de instrução, são entendidas como «autoridade de emissão». Esta última disposição apenas sujeita a qualificação de «autoridade de emissão» à condição de que o tribunal e as pessoas que exercem a função de juiz, de juiz de instrução ou de magistrado do Ministério Público tenham competência no processo em causa [Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien, (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.os 50 e 51].

74

Assim sendo, se, ao abrigo do direito do Estado de emissão, um magistrado do Ministério Público for competente, numa situação puramente interna desse Estado, para ordenar uma medida de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades nacionais competentes, esse magistrado é abrangido pelo conceito de «autoridade de emissão», na aceção do artigo 2.o, alínea c), i), da Diretiva 2014/41, para efeitos da emissão de uma decisão de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução [v., por analogia, Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 52).

75

Em contrapartida, quando, no direito do Estado de emissão, um magistrado do Ministério Público não for competente para ordenar essa medida de transferência de provas já na posse das autoridades nacionais competentes — e, portanto, nomeadamente quando, numa situação puramente interna, essa transferência deva ser autorizada por um juiz pelo facto de implicar ingerências graves nos direitos fundamentais da pessoa em causa — o magistrado do Ministério Público não pode ser considerado uma autoridade de emissão competente, na aceção desta disposição [v., por analogia, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, Spetsializirana prokuratura (Dados de tráfego e de localização), C‑724/19, EU:C:2021:1020, n.o 39].

76

No caso em apreço, o Governo Alemão alega que o § 100e, n.o 6, ponto 1, do StPO autoriza a transferência de provas, a nível nacional, de uma autoridade nacional de inquérito para outra. Além disso, esta base jurídica, diferente da utilizada para a recolha inicial de dados, não exige que essa transferência seja autorizada por um juiz. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, único competente para interpretar o direito nacional, determinar se é esse o caso.

77

Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41 devem ser interpretados no sentido de que uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução não tem necessariamente de ser tomada por um juiz quando, ao abrigo do direito do Estado de emissão, num processo puramente interno a esse Estado, a recolha inicial desses elementos de prova devesse ser ordenada por um juiz, mas um magistrado do Ministério Público seja competente para ordenar a transferência dos referidos elementos de prova.

Quanto à segunda e terceira questões

78

Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos de direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de dezembro de 1984, Haug‑Adrion, 251/83, EU:C:1984:397, n.o 9, e de 18 de maio de 2021, Asociala Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 131).

79

Importa pois observar que com as decisões europeias de investigação em causa no processo principal o Ministério Público de Frankfurt procurava obter das autoridades de inquérito francesas dados recolhidos a partir de telemóveis equipados com o serviço EncroChat que estavam a ser usados por utilizadores alemães. Estes dados tinham sido recolhidos por essas autoridades depois de as mesmas terem recebido autorização nesse sentido por parte de um juiz francês.

80

Por conseguinte, como também resulta da redação das questões, a situação em causa na segunda e terceira questões prejudiciais diz exclusivamente respeito à segunda hipótese prevista no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, a saber, a emissão de uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução.

81

A este propósito, resulta do pedido de decisão prejudicial que, com a sua segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre as condições materiais de emissão dessa decisão europeia de investigação enunciadas no artigo 6.o, n.o 1, alíneas a) e b), da Diretiva 2014/41, no contexto específico em que as autoridades de um Estado‑Membro recolheram dados a partir de telemóveis que permitem uma comunicação encriptada de extremo a extremo graças a um programa informático especial e a um material modificado.

82

Assim, com a sua segunda questão, alínea a), este órgão jurisdicional tem dúvidas quanto a saber se, para responder às exigências de necessidade e de proporcionalidade previstas no artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41, a emissão de uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução deve depender, nomeadamente, da existência de indícios concretos de prática de uma infração grave, contra cada pessoa em causa, no momento em que essa decisão europeia de investigação é ordenada, ou se, a este respeito, podem ser suficientes indícios de múltiplas infrações cometidas por pessoas ainda não identificadas.

83

Com a sua segunda questão, alínea b), o referido órgão jurisdicional interroga‑se, além disso, sobre a questão de saber se, à luz do direito a um processo equitativo, o princípio da proporcionalidade se opõe à emissão de uma decisão europeia de investigação nos casos em que a integridade dos dados obtidos através da medida de interceção não possa ser verificada devido ao caráter confidencial da tecnologia de base que permitiu essa medida e nos casos em que, por essa razão, o arguido possa não estar em condições de comentar eficazmente esses dados no processo penal posterior.

84

No que respeita ao artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41, com a sua terceira questão, alíneas a) e b), o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas a respeito da questão de saber se — de forma geral ou, pelo menos, quando os dados tenham sido recolhidos pelas autoridades competentes do Estado de execução no território do Estado de emissão e no interesse deste — a emissão de uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução está sujeita às mesmas condições materiais que as que são aplicadas no Estado de emissão em matéria de recolha de tais elementos de prova numa situação puramente interna.

85

Nestas condições, há que considerar que, com a sua segunda e terceira questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, e sendo caso disso, em que condições, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 se opõe a que um magistrado do Ministério Público adote uma decisão europeia de investigação que visa a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, quando esses elementos de prova tiverem sido obtidos na sequência da interceção, por parte dessas autoridades, no território do Estado de emissão, de telecomunicações de todos os utilizadores de telemóveis que, graças a um programa informático especial e a um material modificado, permitem uma comunicação encriptada de extremo a extremo.

86

A este respeito, importa recordar que, como resulta dos seus considerandos 5 a 8, a Diretiva 2014/41 tem por objeto substituir o enquadramento fragmentado e complexo existente em matéria de obtenção de elementos de prova nos processos penais que revistam uma dimensão transfronteiriça e pretende, ao instituir um sistema simplificado e mais eficaz baseado num instrumento único denominado «decisão europeia de investigação», facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo atribuído à União de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se num grau de confiança elevado que deve existir entre os Estados‑Membros [Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 39].

87

Em conformidade com o artigo 6.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/41, a emissão de uma decisão europeia de investigação está sujeita ao cumprimento de duas condições cumulativas, cuja observância é controlada pela autoridade de emissão. Por um lado, por força do referido artigo 6.o, n.o 1, alínea a), esta autoridade deve garantir que a emissão da decisão europeia de investigação é necessária e proporcionada para efeitos dos processos a que se refere o artigo 4.o desta diretiva, tendo em conta os direitos do suspeito ou do arguido. Por outro, nos termos do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), a referida autoridade deve verificar se a medida ou medidas de investigação indicadas na decisão europeia de investigação poderiam ter sido ordenadas nas mesmas condições em processos nacionais semelhantes.

88

Assim sendo, o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41 exige que se proceda a uma fiscalização do caráter necessário e proporcionado da emissão da decisão europeia de investigação, referindo‑se às finalidades dos procedimentos referidos no artigo 4.o desta diretiva. Este último artigo, que determina os tipos de processos para os quais pode ser emitida uma decisão europeia de investigação, dispõe, na alínea a), que essa decisão pode ser emitida «[para efeitos dos] processos penais instaurados por uma autoridade judiciária, ou que possam ser instaurados perante uma tal autoridade, relativamente a uma infração penal ao abrigo do direito interno do Estado de emissão». Uma vez que esta disposição remete para o direito do Estado de emissão, a necessidade e a proporcionalidade da adoção dessa decisão devem ser exclusivamente apreciadas à luz desse direito.

89

A este respeito, tendo em conta as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio recordadas nos n.os 82 e 83 do presente acórdão, importa observar que, por um lado, o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2014/41 não exige que a emissão de uma decisão europeia de investigação que vise a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução dependa necessariamente da suspeita da prática de uma infração grave baseada em factos concretos, contra cada pessoa em causa, no momento em que essa decisão europeia de investigação é ordenada, quando essa exigência não decorrer do direito do Estado de emissão.

90

Por outro lado, esta disposição também não se opõe a que seja emitida uma decisão europeia de investigação quando a integridade dos dados obtidos através da medida de interceção não puder ser verificada devido ao caráter confidencial da tecnologia de base que permitiu essa medida, desde que o direito a um processo equitativo seja garantido no processo penal subsequente. Com efeito, em princípio, a integridade das provas transmitidas só pode ser apreciada quando as autoridades competentes dispõem efetivamente das provas em causa e não na fase anterior de emissão da decisão europeia de investigação.

91

Em seguida, decorre da letra do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41 e da distinção efetuada no artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, recordada no n.o 68 do presente acórdão, que, na hipótese de «a medida […] de investigação indicad[a] na DEI» consistir na obtenção de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, ou seja, na transferência desses elementos de prova às autoridades competentes do Estado de emissão, essa decisão só pode ser emitida se essa transferência «[pudesse] ter sido ordenad[a] nas mesmas condições em processos nacionais semelhantes».

92

Ao utilizar os termos «nas mesmas condições» e «em processos nacionais semelhantes», o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41 faz depender a determinação das condições específicas exigidas para a emissão de uma decisão europeia de investigação apenas do direito do Estado de emissão.

93

Daqui resulta que, quando pretende obter elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, a autoridade de emissão deve subordinar a decisão europeia de investigação ao cumprimento de todas as condições previstas no direito do seu próprio Estado‑Membro para um processo nacional semelhante.

94

Isto significa que a legalidade de uma decisão europeia de investigação, como as que estão em causa no processo principal, que visa a transferência de dados que estão na posse das autoridades competentes do Estado de execução e que são suscetíveis de fornecer informações a respeito das comunicações efetuadas por um utilizador de um telemóvel que permite uma comunicação encriptada de extremo a extremo, graças a um software especial e a material modificado, está sujeita ao cumprimento das mesmas condições que as que são aplicáveis à transferência desses dados numa situação puramente interna ao Estado de emissão.

95

Por conseguinte, se o direito do Estado de emissão sujeitar essa transferência de dados à existência de indícios concretos da prática de infrações graves pelo arguido ou à admissibilidade das provas compostas pelos referidos dados, a adoção de uma decisão europeia de investigação estará sujeita a todas essas condições.

96

Em contrapartida, mesmo numa situação como a que está em causa no processo principal, em que os dados em questão foram recolhidos pelas autoridades competentes do Estado de execução no território do Estado de emissão e no interesse deste, o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41 não exige que a emissão de uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução esteja sujeita às mesmas condições materiais que as que são aplicáveis em matéria de recolha desses elementos de prova no Estado de emissão.

97

É certo que o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/41 visa impedir uma evasão às normas e garantias previstas pelo direito do Estado de emissão. Todavia, no caso em apreço, não parece que a recolha e transferência, através de uma decisão europeia de investigação, de elementos de prova recolhidos dessa forma, tenha tido tal evasão como objetivo ou como efeito, circunstância que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

98

Por outro lado, na falta de quaisquer normas na Diretiva 2014/41 que alterem o regime aplicável a uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução em função do local onde essas provas foram recolhidas, a circunstância de, no caso em apreço, o Estado de execução ter procedido a essa recolha no território do Estado de emissão, e no interesse deste, é, a este respeito, irrelevante.

99

Além disso, cabe recordar que decorre, nomeadamente, dos considerandos 2, 6 e 19 da referida diretiva que a decisão europeia de investigação é um instrumento abrangido pela cooperação judiciária em matéria penal prevista no artigo 82.o, n.o 1, TFUE, baseado no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e das decisões judiciais. Este princípio, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, é ele próprio baseado na confiança mútua e na presunção ilidível de que os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, em especial, os direitos fundamentais [Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 40].

100

Daqui resulta que, quando, através de uma decisão europeia de investigação, a autoridade de emissão pretende obter a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, aquela primeira autoridade não está autorizada a fiscalizar a regularidade do processo distinto através do qual o Estado‑Membro de execução recolheu os elementos de prova cuja transferência é pedida por aquela autoridade. Em particular, qualquer outra interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva conduziria, na prática, a um sistema mais complexo e menos eficaz, o que prejudicaria o objetivo prosseguido pela referida diretiva.

101

Além disso, deve sublinhar‑se que a Diretiva 2014/41 garante uma fiscalização jurisdicional do respeito dos direitos fundamentais das pessoas em causa.

102

Por um lado, nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, os Estados‑Membros asseguram que sejam aplicáveis às medidas de investigação indicadas na decisão europeia de investigação vias de recurso equivalentes às existentes em processos nacionais semelhantes. Ora, neste contexto, cabe ao órgão jurisdicional competente fiscalizar o respeito das condições de emissão dessa decisão, as quais são enunciadas no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva e foram recordadas nos n.os 87 a 95 do presente acórdão.

103

Por conseguinte, se a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes de outro Estado‑Membro se revelar desproporcionada para efeitos dos processos penais instaurados contra a pessoa em causa no Estado de emissão, devido, por exemplo, à gravidade da violação dos direitos fundamentais dessa pessoa, ou tiver sido ordenada em violação do regime legal aplicável a um processo nacional semelhante, o órgão jurisdicional chamado a conhecer do recurso contra a decisão europeia de investigação que ordena essa transferência deve daí retirar as necessárias consequências ao abrigo do direito nacional.

104

Por outro lado, o artigo 14.o, n.o 7, da Diretiva 2014/41 exige que os Estados‑Membros se assegurem de que, no processo penal no Estado de emissão, quando da avaliação dos elementos de prova obtidos através da decisão europeia de investigação, são respeitados os direitos da defesa e a equidade do processo.

105

Ora, no que respeita, em especial, ao direito a um processo equitativo, cumpre nomeadamente recordar que, quando um órgão jurisdicional considera que uma parte não está em condições de comentar eficazmente um elemento de prova suscetível de influenciar de forma preponderante a apreciação dos factos, esse órgão jurisdicional deve declarar a existência de uma violação do direito a um processo equitativo e excluir esse elemento de prova a fim de evitar essa violação [v., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas), C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 44].

106

Tendo em conta todos os fundamentos acima expostos, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um magistrado do Ministério Público adote uma decisão europeia de investigação que visa a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, quando esses elementos de prova tiverem sido obtidos na sequência da interceção, por parte dessas autoridades, no território do Estado de emissão, de telecomunicações de todos os utilizadores de telemóveis que, graças a um programa informático especial e a um material modificado, permitem uma comunicação encriptada de extremo a extremo, desde que essa decisão respeite todas as condições eventualmente previstas pelo direito do Estado de emissão para a transferência de tais provas numa situação puramente interna nesse Estado.

Quanto à quarta questão, alíneas a) e b)

107

Com a sua quarta questão, alíneas a) e b), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que uma medida relacionada com a infiltração de dispositivos terminais, com vista a extrair dados de tráfego, de localização e de comunicação de um serviço de comunicação por Internet, constitui uma «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo, que deve ser notificada a um juiz do Estado‑Membro em cujo território se encontra o alvo da interceção.

108

O artigo 31.o, n.o 1, desta diretiva prevê a hipótese de a autoridade competente de um Estado‑Membro ter autorizado, para efeitos da realização de uma medida de investigação, a interceção de telecomunicações de um alvo cujo endereço de comunicação seja utilizado no território de outro Estado‑Membro cuja assistência técnica não seja necessária para efetuar essa interceção. Nesta hipótese, o primeiro desses Estados‑Membros, designado «Estado‑Membro intercetante», deve notificar a referida interceção à autoridade competente do segundo desses Estados‑Membros, designado «Estado‑Membro notificado».

109

No que respeita, em primeiro lugar, ao conceito de «telecomunicações» utilizado nesta disposição, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros, para determinar o seu sentido e o seu alcance devem, normalmente, ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada não apenas tendo em conta a letra dessa disposição mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que a mesma faz parte [v., neste sentido, Acórdãos de 18 de janeiro de 1984, Ekro, 327/82, EU:C:1984:11, n.o 11, e de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas), C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.o 49].

110

Tendo em conta que nenhuma disposição da Diretiva 2014/41 contém uma definição do conceito de «telecomunicações» utilizado no artigo 31.o, n.o 1, desta diretiva, ou uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para efeitos da determinação do sentido e do alcance deste conceito, há que considerar que esta disposição deve ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme no direito da União, em conformidade com a metodologia recordada no número anterior.

111

Primeiro, no que respeita à letra do artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, o termo «telecomunicações» remete, no seu sentido habitual, para todos os processos de transferência de informações à distância.

112

Segundo, no que respeita ao contexto em que o artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41 se insere, importa salientar que o n.o 2 deste artigo prevê que a notificação referida no n.o 1 do referido artigo é feita através do formulário constante do anexo C daquela diretiva. Ora, sob a epígrafe «Objeto da interceção», o ponto B, III, deste anexo tanto prevê um número de telefone como um endereço de protocolo Internet («número IP») ou ainda um endereço eletrónico. O sentido amplo do termo «telecomunicações» é, além disso, confirmado pelo n.o 3 do artigo 31.o da Diretiva 2014/41, que visa, de forma indiferenciada, os «dados» intercetados.

113

Terceiro, no que respeita ao objetivo do artigo 31.o da Diretiva 2014/41, resulta do seu considerando 30 que as possibilidades de cooperação ao abrigo dessa diretiva relativas à interceção de telecomunicações não devem ficar limitadas ao conteúdo das telecomunicações, mas podem também dizer respeito à recolha de dados de tráfego e de localização a elas associados.

114

Daqui decorre que uma medida ligada à infiltração de dispositivos terminais para recolha de dados de tráfego ou de localização a partir de um serviço de comunicações por Internet constitui uma «interceção de telecomunicações» na aceção do artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41.

115

Em segundo lugar, no que respeita à autoridade à qual deve ser dirigida a notificação prevista neste artigo, resulta, primeiro, da letra do artigo 31.o, n.o 1, desta diretiva que o legislador da União se limitou a remeter para a «autoridade competente do Estado‑Membro notificado», sem precisar a natureza, administrativa ou judicial, que essa autoridade deve revestir ou as funções que a mesma deve desempenhar.

116

Segundo, importa igualmente salientar, por um lado, que a referência à referida autoridade não faz parte das informações, enumeradas no artigo 33.o da Diretiva 2014/41, que deviam ter sido comunicadas pelos Estados‑Membros à Comissão Europeia. Por outro lado, do formulário que consta do anexo C desta diretiva, que, como indicado no n.o 112 do presente acórdão, deve ser utilizado para notificar a «interceção de telecomunicações» na aceção do artigo 31.o, n.o 1, da referida diretiva, resulta que a única informação que aí deve ser fornecida a este respeito é atinente ao «Estado‑Membro notificado».

117

Daqui decorre que cabe a cada Estado‑Membro designar a autoridade competente para receber as notificações previstas no artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41. Caso o Estado‑Membro intercetante não consiga identificar a autoridade competente do Estado‑Membro notificado, a notificação pode ser dirigida a qualquer autoridade do Estado‑Membro notificado que o Estado‑Membro intercetante considere adequada para o efeito.

118

A este respeito, importa todavia precisar que a autoridade competente, na aceção do artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41, pode, ao abrigo do artigo 31.o, n.o 3, desta diretiva, designadamente notificar que a interceção não pode ser feita ou que deve ser interrompida nos casos em que não seja autorizada num processo nacional semelhante. Daqui resulta que, se a autoridade que recebe a notificação não for a autoridade competente ao abrigo do direito do Estado‑Membro notificado, a mesma deve, para assegurar o efeito útil do artigo 31.o da Diretiva 2014/41, transmitir oficiosamente a notificação à autoridade competente.

119

Tendo em conta os fundamentos precedentes, há que responder à quarta questão, alíneas a) e b), que o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que uma medida relacionada com a infiltração de dispositivos terminais, destinada a extrair dados de tráfego, de localização e de comunicação de um serviço de comunicação por Internet, constitui uma «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo, que deve ser notificada à autoridade designada para esse efeito pelo Estado‑Membro em cujo território se encontra o alvo da interceção. Caso o Estado‑Membro intercetante não consiga identificar a autoridade competente do Estado‑Membro notificado, essa notificação pode ser dirigida a qualquer autoridade do Estado‑Membro notificado que o Estado‑Membro intercetante considere adequada para o efeito.

Quanto à quarta questão, alínea c)

120

Com a sua quarta questão, alínea c), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que visa proteger os direitos dos utilizadores afetados por uma medida de «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo, e que essa proteção se estende à utilização dos dados assim recolhidos no âmbito de processos penais instaurados no Estado‑Membro notificado.

121

Antes de mais, contrariamente à «interceção de telecomunicações com assistência técnica de outro Estado‑Membro», regulada no artigo 30.o da Diretiva 2014/41, a «interceção de telecomunicações» referida no artigo 31.o desta diretiva, ou seja, a que não necessita da assistência técnica do Estado‑Membro em cujo território se encontra o alvo dessa interceção, não é objeto de uma decisão europeia de investigação. Daqui resulta que as diferentes condições e garantias que enquadram esta decisão não são aplicáveis à referida interceção.

122

Em seguida, como salientado no n.o 118 do presente acórdão, resulta dos termos do artigo 31.o, n.o 3, da Diretiva 2014/41 que a autoridade competente do Estado‑Membro notificado pode, caso a interceção não seja autorizada no âmbito de um processo nacional semelhante, notificar a autoridade competente do Estado‑Membro intercetado de que essa interceção não pode ser efetuada ou de que a mesma deve ser interrompida, ou até, sendo caso disso, que os dados intercetados não podem ser utilizados ou só o podem ser nas condições que a referida autoridade vier a especificar.

123

A utilização do verbo «poder» nesta disposição implica que o Estado‑Membro notificado dispõe de uma faculdade que depende da apreciação levada a cabo pela autoridade competente desse Estado, devendo o exercício dessa faculdade ser justificado pelo facto de essa interceção não ser autorizada num processo nacional semelhante.

124

Assim, o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 visa não só garantir o respeito da soberania do Estado‑Membro notificado mas também assegurar que o nível de proteção garantido nesse Estado‑Membro em matéria de interceção de telecomunicações não seja comprometido. Por conseguinte, dado que uma medida de interceção de telecomunicações constitui uma ingerência no direito ao respeito pela vida privada e pelas comunicações, consagrado no artigo 7.o da Carta, do alvo da interceção (v., neste sentido, Acórdão de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o., C‑310/16, EU:C:2019:30, n.o 36), há que considerar que o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 também se destina a proteger os direitos das pessoas afetadas por essa medida, finalidade que se estende à utilização dos dados para efeitos de processo penal no Estado‑Membro notificado.

125

Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à quarta questão, alínea c), que o artigo 31.o da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que também visa proteger os direitos dos utilizadores afetados por uma medida de «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo.

Quanto à quinta questão

126

Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da efetividade exige que, num processo penal instaurado contra uma pessoa suspeita da prática de crimes, o juiz penal nacional exclua informações e elementos de prova que forem obtidos em violação das disposições do direito da União.

127

A título preliminar, importa referir, por um lado, que só há que responder a esta questão se, com base nas respostas à primeira a quarta questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio concluir que as decisões europeias de investigação foram ilegalmente ordenadas.

128

Por outro lado, no estado atual do direito da União, em princípio cabe exclusivamente ao direito nacional prever, no âmbito de um processo penal, as regras em matéria de admissibilidade e de apreciação das informações e elementos de prova obtidos de forma contrária ao direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 222).

129

Com efeito, é jurisprudência constante que, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual, regular as modalidades processuais dos recursos judiciais destinados a assegurar a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União, desde que, no entanto, as mesmas não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 1976, Rewe‑Zentralfinanz e Rewe‑Zentral, 33/76, EU:C:1976:188, n.o 5, e de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 223).

130

Assim sendo, como resulta dos n.os 104 e 105 do presente acórdão, não pode deixar de se observar que o artigo 14.o, n.o 7, da Diretiva 2014/41 exige expressamente que os Estados‑Membros assegurem, sem prejuízo da aplicação das regras processuais nacionais, que, no processo penal que corre termos no Estado de emissão, sejam respeitados os direitos de defesa e a equidade do processo no quadro da avaliação dos elementos de prova obtidos através da decisão europeia de investigação, o que implica que os elementos de prova que as partes não estejam em condições de comentar eficazmente devem ser excluídos do processo penal.

131

Tendo em conta os fundamentos acima expostos, há que responder à quinta questão que o artigo 14.o, n.o 7, da Diretiva 2014/41 deve ser interpretado no sentido de que impõe que o juiz penal nacional exclua informações e elementos de prova, no âmbito de um processo penal instaurado contra uma pessoa suspeita da prática de crimes, se essa pessoa não puder comentar eficazmente essas informações e esses elementos de prova e se estes últimos puderem influenciar de forma preponderante a apreciação dos factos.

Quanto às despesas

132

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal,

devem ser interpretados no sentido de que:

uma decisão europeia de investigação com vista à transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução não tem necessariamente de ser tomada por um juiz quando, ao abrigo do direito do Estado de emissão, num processo puramente interno a esse Estado, a recolha inicial desses elementos de prova devesse ser ordenada por um juiz, mas um magistrado do Ministério Público seja competente para ordenar a transferência dos referidos elementos de prova.

 

2)

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/41

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a que um magistrado do Ministério Público adote uma decisão europeia de investigação que visa a transferência de elementos de prova já na posse das autoridades competentes do Estado de execução, quando esses elementos de prova tiverem sido obtidos na sequência da interceção, por parte dessas autoridades, no território do Estado de emissão, de telecomunicações de todos os utilizadores de telemóveis que, graças a um programa informático especial e a um material modificado, permitem uma comunicação encriptada de extremo a extremo, desde que essa decisão respeite todas as condições eventualmente previstas pelo direito do Estado de emissão para a transferência de tais provas numa situação puramente interna nesse Estado.

 

3)

O artigo 31.o da Diretiva 2014/41

deve ser interpretado no sentido de que:

uma medida relacionada com a infiltração de dispositivos terminais, destinada a extrair dados de tráfego, de localização e de comunicação de um serviço de comunicação por Internet, constitui uma «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo, que deve ser notificada à autoridade designada para esse efeito pelo Estado‑Membro em cujo território se encontra o alvo da interceção. Caso o Estado‑Membro intercetante não consiga identificar a autoridade competente do Estado‑Membro notificado, essa notificação pode ser dirigida a qualquer autoridade do Estado‑Membro notificado que o Estado‑Membro intercetante considere adequada para o efeito.

 

4)

O artigo 31.o da Diretiva 2014/41

deve ser interpretado no sentido de que:

também visa proteger os direitos dos utilizadores afetados por uma medida de «interceção de telecomunicações», na aceção deste artigo.

 

5)

O artigo 14.o, n.o 7, da Diretiva 2014/41

deve ser interpretado no sentido de que:

impõe que o juiz penal nacional exclua informações e elementos de prova, no âmbito de um processo penal instaurado contra uma pessoa suspeita da prática de crimes, se essa pessoa não puder comentar eficazmente essas informações e esses elementos de prova e se estes últimos puderem influenciar de forma preponderante a apreciação dos factos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

( i ) O n.o 24 do presente texto foi objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha.

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