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Document 62022CJ0083

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 14 de setembro de 2023.
RTG contra Tuk Tuk Travel S.L.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de Primera Instancia de Cartagena.
Reenvio prejudicial — Diretiva (UE) 2015/2302 — Artigo 5.o — Viagens organizadas e serviços de viagem conexos — Rescisão de contrato de viagem organizada — Circunstâncias inevitáveis e excecionais — Pandemia de COVID‑19 — Direito de rescisão — Pedido de reembolso integral — Dever de informação que incumbe ao organizador da viagem — Artigo 12.o — Aplicação dos princípios do dispositivo e da coerência consagrados no direito nacional — Proteção efetiva do consumidor — Exame oficioso pelo órgão jurisdicional nacional — Requisitos.
Processo C-83/22.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:664

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

14 de setembro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva (UE) 2015/2302 — Artigo 5.o — Viagens organizadas e serviços de viagem conexos — Rescisão de contrato de viagem organizada — Circunstâncias inevitáveis e excecionais — Pandemia de COVID‑19 — Direito de rescisão — Pedido de reembolso integral — Dever de informação que incumbe ao organizador da viagem — Artigo 12.o — Aplicação dos princípios do dispositivo e da coerência consagrados no direito nacional — Proteção efetiva do consumidor — Exame oficioso pelo órgão jurisdicional nacional — Requisitos»

No processo C‑83/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de Primera Instancia n.o 5 de Cartagena (Tribunal de Primeira Instância n.o 5 de Cartagena, Espanha), por Decisão de 11 de janeiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de fevereiro de 2022, no processo

RTG

contra

Tuk Tuk Travel S. L.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal (relatora), presidente de secção, M. L. Arastey Sahún, F. Biltgen, N. Wahl e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 12 de janeiro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo Espanhol, por I. Herranz Elizalde, na qualidade de agente,

em representação do Governo Checo, por L. Halajová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

em representação do Parlamento Europeu, por P. López‑Carceller e M. Menegatti, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por S. Sáez Moreno e L. Vétillard, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por I. Rubene e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 23 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a validade do artigo 5.o da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho (JO 2015, L 326, p. 1), à luz dos artigos 114.o e 169.o TFUE, bem como da interpretação destes dois últimos artigos e do artigo 15.o desta diretiva.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe RTG, um viajante, à Tuk Tuk Travel S. L., o organizador da viagem, a respeito de uma quantia que esse viajante pagou na sequência da celebração de um contrato de viagem organizada, cujo reembolso parcial pede a esse organizador da viagem após ter rescindido esse contrato de viagem devido à propagação do coronavírus nos países de destino.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O considerando 5 da Diretiva 2015/2302 enuncia:

«Nos termos do artigo 26.o, n.o 2, e do artigo 49.o TFUE, o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual são asseguradas a livre circulação de mercadorias e serviços e a liberdade de estabelecimento. Importa harmonizar os direitos e as obrigações decorrentes dos contratos relativos a viagens organizadas e serviços de viagem conexos, a fim de criar um verdadeiro mercado interno dos consumidores nesse domínio, estabelecendo o bom equilíbrio entre um elevado nível de defesa do consumidor e a competitividade das empresas.»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», prevê:

«O objetivo da presente diretiva é contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e para alcançar um nível de defesa do consumidor elevado e o mais uniforme possível, através da aproximação de determinados aspetos das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de contratos celebrados entre viajantes e operadores relativos a viagens organizadas e serviços de viagem conexos.»

5

O artigo 5.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Informações pré‑contratuais», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que, antes de o viajante ficar vinculado por um contrato de viagem organizada ou uma proposta correspondente, o organizador e, se a viagem for vendida através de um retalhista, também este último, fiquem obrigados a fornecer ao viajante a informação normalizada através das fichas informativas pertinentes constantes do anexo I, partes A ou B, e, caso aplicável à viagem organizada, as informações seguintes:

a)

As principais características dos serviços de viagem:

[…]

g)

A informação de que o viajante pode rescindir o contrato em qualquer momento antes do início da viagem organizada mediante o pagamento de uma taxa de rescisão adequada ou, se aplicável, das taxas de rescisão normalizadas exigidas pelo organizador, nos termos do artigo 12.o, n.o 1;

[…]

3.   As informações a que se referem os n.os 1 e 2 são prestadas de forma clara, compreensível e bem visível. Caso sejam prestadas por escrito, essas informações devem ser legíveis.»

6

O artigo 12.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Rescisão do contrato de viagem organizada e direito de retratação antes do início da viagem organizada», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o viajante possa rescindir o contrato de viagem organizada em qualquer altura antes do início da viagem organizada. Caso rescinda o contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante pode ser obrigado a pagar ao organizador uma taxa de rescisão adequada e justificável. O contrato de viagem organizada pode estipular taxas de rescisão normalizadas razoáveis, baseadas na antecedência da rescisão do contrato relativamente ao início da viagem organizada e nas economias de custos e nas receitas esperadas em resultado da reafetação dos serviços de viagem. Na falta de taxas de rescisão normalizadas, o montante da taxa de rescisão corresponde ao preço da viagem organizada deduzido das economias de custos e das receitas resultantes da reafetação dos serviços de viagem. A pedido do viajante, o organizador justifica o montante da taxa de rescisão.

2.   Não obstante o disposto no n.o 1, o viajante tem direito a rescindir o contrato de viagem organizada antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino. Em caso de rescisão do contrato de viagem organizada nos termos do presente número, o viajante tem direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados para a viagem organizada, mas não tem direito a uma indemnização adicional.

[…]»

7

O artigo 23.o da Diretiva 2015/2302, sob a epígrafe «Caráter imperativo da diretiva», dispõe:

«1.   A declaração por parte de um organizador de uma viagem organizada ou operador que facilite um serviço de viagem conexo de que atua exclusivamente enquanto prestador de um serviço de viagem, intermediário ou em qualquer outra qualidade, ou de que uma viagem organizada ou serviço de viagem conexo não constituem uma viagem organizada ou um serviço de viagem conexo, não exonera esse organizador ou operador das obrigações que lhe são impostas pela presente diretiva.

2.   Os viajantes não podem renunciar aos direitos que lhes são conferidos pelas disposições nacionais de transposição da presente diretiva.

3.   Os viajantes não ficam vinculados por disposições contratuais ou declarações suas que, direta ou indiretamente, configurem uma renúncia ou restrição dos direitos que lhes são conferidos pela presente diretiva ou que visem contornar a aplicação da mesma.»

8

O artigo 24.o desta diretiva, sob a epígrafe «Execução», enuncia:

«Os Estados‑Membros asseguram a existência de meios adequados e efetivos para assegurar o cumprimento da presente diretiva.»

9

A parte A do anexo I da referida diretiva, com a epígrafe «Ficha informativa normalizada para contratos de viagem organizada caso a utilização de hiperligações seja possível», apresenta, numa caixa de texto, o conteúdo dessa ficha e refere que, clicando na hiperligação, o viajante receberá as seguintes informações:

«Direitos essenciais previstos na Diretiva (UE) 2015/2302

[…]

Os viajantes podem rescindir o contrato sem pagar uma taxa de rescisão antes do início da viagem organizada, em circunstâncias excecionais, por exemplo em caso de graves problemas de segurança no destino suscetíveis de afetar a viagem organizada.

[…]»

10

A parte B do anexo I da Diretiva 2015/2302, com a epígrafe «Ficha informativa normalizada para contratos de viagem organizada caso as situações sejam distintas das abrangidas pela parte A», apresenta, numa caixa de texto, o conteúdo dessa ficha e enuncia os mesmos direitos essenciais conferidos por esta diretiva que os enunciados na parte A do anexo I da mesma.

Direito espanhol

Decreto Legislativo Real 1/2007

11

Os artigos 153.o e 160.o do texto reformulado da Lei Geral de Defesa dos Consumidores e Utentes e outras leis complementares, aprovado pelo Decreto Legislativo Real 1/2007, de 16 de novembro de 2007 (BOE n.o 287, de 30 de novembro de 2007, p. 49181), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, bem como as partes A e B do seu anexo II, transpõem para o direito espanhol os artigos 5.o e 12.o da Diretiva 2015/2302 e as partes A e B do anexo I da mesma.

Código de Processo Civil

12

O artigo 216.o da Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000, que aprova o Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000 (BOE n.o 7, de 8 de janeiro de 2000, p. 575), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»), dispõe:

«Os tribunais cíveis conhecem dos processos que lhes são submetidos com base nos elementos de facto, nas provas e nos pedidos das partes, salvo se a lei dispuser diferentemente em casos especiais.»

13

O artigo 218.o, n.o 1, do Código de Processo Civil tem a seguinte redação:

«As decisões judiciais devem ser claras e precisas e devem pronunciar‑se sobre os pedidos e outras pretensões das partes deduzidos oportunamente no processo. Tais decisões incluem as declarações requeridas, condenam ou absolvem o réu e decidem todos os aspetos controvertidos que foram objeto da discussão.

O tribunal, sem se afastar do pedido recorrendo a elementos de facto ou de direito diferentes dos alegados pelas partes, decide nos termos das disposições aplicáveis ao processo, ainda que estas não tenham sido corretamente citadas ou invocadas pelas partes no litígio.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

Em 10 de outubro de 2019, RTG comprou à Tuk Tuk Travel uma viagem organizada para duas pessoas com destino ao Vietname e ao Camboja, com partida de Madrid (Espanha), em 8 de março de 2020, estando o regresso previsto para o dia 24 de março seguinte.

15

Na celebração do contrato de viagem organizada em causa, o demandante no processo principal pagou a quantia de 2402 euros a título de adiantamento relativo ao preço total da viagem, que ascendia a um montante de 5208 euros. As condições gerais desse contrato informavam nomeadamente da possibilidade de rescindir o mesmo antes do seu início, mediante pagamento de uma taxa de rescisão. Estas informações não previam a possibilidade de rescindir o referido contrato caso se verificassem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetassem consideravelmente a realização do mesmo contrato.

16

Por mensagem de correio eletrónico de 12 de fevereiro de 2020, o demandante no processo principal informou a demandada no processo principal da sua decisão de rescindir o contrato de viagem organizada em causa, tendo em conta a propagação do coronavírus na Ásia, e pediu‑lhe o reembolso de todas as quantias a que tinha direito.

17

Em 14 de fevereiro de 2020, a demandada no processo principal respondeu‑lhe que, em caso de cancelamento da viagem, lhe seria reembolsado o montante de 81 euros, após dedução dos custos de cancelamento. No mesmo dia, o demandante no processo principal reiterou a sua decisão de rescisão e contestou o montante dos custos de cancelamento.

18

Em 4 de março de 2020, a demandada no processo principal informou o demandante no processo principal de que lhe reembolsaria o montante de 302 euros, uma vez que a companhia aérea encarregada de operar o voo em causa concedia aos seus viajantes o benefício do cancelamento sem encargos.

19

Na sequência dessa informação, o demandante no processo principal, sem ser representado por advogado, intentou uma ação contra a demandada no processo principal no Juzgado de Primera Instancia n.o 5 de Cartagena (Tribunal de Primeira Instância n.o 5 de Cartagena, Espanha), o órgão jurisdicional de reenvio. Na sua petição, alegou que a sua decisão de rescindir o contrato de viagem organizada em causa ocorreu quase um mês antes da data de partida prevista e que se deve a um caso de força maior, ou seja, a propagação do coronavírus na Ásia. O demandante no processo principal pede que a demandada no processo principal seja condenada a reembolsar‑lhe um montante adicional de 1500 euros. Com efeito, considera que os restantes 601 euros correspondem aos custos administrativos efetuados pela demandada no processo principal.

20

A demandada no processo principal opôs‑se a este pedido, alegando que tanto na data da rescisão do contrato de viagem organizada em causa como na data prevista de partida ainda era possível viajar normalmente para os países de destino. Além disso, alega que o demandante no processo principal aceitou as condições gerais desse contrato que previam que, em caso de rescisão, os custos administrativos ascendiam a 15 % do preço total da viagem em causa e que os custos de rescisão correspondiam aos aplicados por cada um dos seus prestadores de serviços.

21

Uma vez que as partes no processo principal não requereram uma audiência, o processo entrou na fase de deliberação em 22 de junho de 2021.

22

Todavia, por Despacho de 15 de setembro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio convidou as partes no processo principal a apresentarem as suas observações, no prazo de dez dias, sobre um conjunto de questões relativas, em substância, ao respeito do direito da União, especialmente, da Diretiva 2015/2302.

23

O demandante no processo principal não apresentou observações a este respeito. A demandada no processo principal reafirmou a sua posição segundo a qual, à data da rescisão do contrato celebrado de viagem organizada, não havia razão para não efetuar a viagem em causa. Além disso, o demandante no processo principal nunca alegou a falta de informação ou a omissão relativamente aos seus direitos.

24

No pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a validade do artigo 5.o da Diretiva 2015/2302 à luz do artigo 169.o TFUE, lido em conjugação com o artigo 114.o TFUE, na medida em que este artigo 5.o não prevê o dever de um organizador da viagem informar o consumidor da possibilidade, caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais, de rescindir o contrato de viagem organizada que celebrou recuperando a totalidade dos pagamentos efetuados. Assim, no caso em apreço, o demandante no processo principal ignorou a existência do seu direito de obter um reembolso integral desses pagamentos quando essas circunstâncias se verificam. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se essa falta de informação do consumidor em causa não torna mais difícil a defesa dos seus direitos e dos seus interesses, sobretudo quando, como no caso em apreço, este não é representado por um advogado, e se essa falta de informação não compromete o objetivo de alcançar um nível de defesa do consumidor elevado prosseguido pela Diretiva 2015/2302.

25

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a possibilidade de atribuir oficiosamente, ao abrigo do direito da União, ao consumidor o reembolso da totalidade dos pagamentos efetuados caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a execução do contrato de viagem organizada em causa. Tal possibilidade garante o objetivo referido no número anterior. Todavia, esta possibilidade viola os princípios fundamentais do direito processual espanhol que são os princípios do dispositivo e da coerência das decisões judiciais consagrados no artigo 218.o, n.o 1, do Código de Processo Civil.

26

Nestas circunstâncias, o Juzgado de Primera Instancia n.o 5 de Cartagena (Tribunal de Primeira Instância n.o 5 de Cartagena) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 169.o, [n.o 1, e n.o 2,] alínea a), e 114.o, n.o 3, TFUE ser interpretados no sentido de que se opõem ao artigo 5.o da Diretiva 2015/2302 relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, uma vez que este artigo não inclui, entre as informações pré‑contratuais a prestar obrigatoriamente ao viajante, o direito, reconhecido ao abrigo do artigo 12.o da diretiva, de rescindir o contrato antes do seu início, com direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, case se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a realização da viagem?

2)

Os artigos 114.o e 169.o TFUE, bem como o artigo 15.o da Diretiva 2015/2302, opõem‑se à aplicação dos princípios do dispositivo e da coerência constantes dos artigos 216.o e 218.o, n.o 1, [do Código de Processo Civil], quando esses princípios processuais possam impedir a plena proteção do consumidor demandante?»

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

27

O Governo Checo contesta, em substância, a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial com o fundamento de que a interpretação pedida não é necessária para resolver o litígio no processo principal. Concretamente, alega que as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio não têm fundamento, uma vez que os receios de propagação do coronavírus na Ásia, invocados pelo demandante no processo principal para rescindir o seu contrato de viagem organizada quase um mês antes do início da sua partida, não constituem circunstâncias inevitáveis e excecionais que se verificaram no local de destino ou na sua proximidade imediata e que afetaram consideravelmente a execução desse contrato de viagem ou o transporte dos passageiros para o destino, como exigido pelo artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302.

28

A este respeito, cumpre recordar que, no quadro de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional tem competência exclusiva para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal (Acórdão de 27 de abril de 2023, Legea, C‑686/21, EU:C:2023:357, n.o 24 e jurisprudência referida). O Tribunal de Justiça apenas está habilitado a pronunciar‑se sobre a interpretação ou a validade de um diploma da União Europeia, a partir dos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional nacional (Acórdão de 27 de abril de 2023, AxFina Hungary,C‑705/21, EU:C:2023:352, n.o 28 e jurisprudência referida. Ora, os órgãos jurisdicionais nacionais, a quem foi submetido o litígio e que devem assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, têm competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma questão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submetem ao Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 1981, Foglia,244/80, EU:C:1981:302, n.o 15, e de 7 de junho de 2018, Scotch Whisky Association, C‑44/17, EU:C:2018:415, n.o 22 e jurisprudência referida).

29

No caso em apreço, a questão de saber se os factos invocados pelo demandante no processo principal para justificar a sua rescisão do contrato de viagem organizada em causa podem ser qualificados de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção da Diretiva 2015/2302, está abrangida pela apreciação autónoma do órgão jurisdicional de reenvio. Além disso, este último não considerou necessário submeter uma questão prejudicial quanto ao alcance do conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção desta diretiva, para resolver o litígio que lhe foi submetido.

30

Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

31

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a validade do artigo 5.o da Diretiva 2015/2302 à luz do artigo 169.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), e do artigo 114.o, n.o 3, TFUE, pelo facto de este artigo 5.o não impor a um organizador da viagem que informe o viajante do seu direito, enunciado no artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, de rescindir o seu contrato de viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão e obtendo o reembolso integral dos pagamentos efetuados a título dessa viagem organizada, em caso de circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a execução desse contrato de viagem organizada.

32

O Governo Espanhol e a Comissão Europeia contestam a admissibilidade desta questão. A Comissão alega que a referida questão é hipotética porque o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 prevê o dever de informar o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva.

33

A este respeito, importa recordar que o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 25 de julho de 2018, AY (Mandado de detenção — Testemunha), C‑268/17, EU:C:2018:602, n.o 25 e jurisprudência referida].

34

Ora, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre o alcance do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302. Com efeito, a interpretação do alcance desta disposição é um pré‑requisito para a apreciação da sua validade. Esta interpretação não implica que se aprecie um problema de natureza hipotética, pelo que é erradamente que a Comissão alega que esta questão é inadmissível.

35

Assim sendo, no que respeita à interpretação do alcance do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, há que salientar que esta disposição prevê que os Estados‑Membros asseguram que, antes de o viajante ficar vinculado por um contrato de viagem organizada, o organizador da viagem fique obrigado a fornecer ao viajante, nomeadamente, a informação normalizada através das fichas informativas pertinentes constantes do anexo I, partes A ou B, desta diretiva.

36

As fichas informativas normalizadas, constantes das partes A e B, da referida diretiva, reproduzem através de uma hiperligação, ou, expressamente na falta dessa hiperligação, os direitos essenciais dos quais os viajantes devem ser informados. Esses direitos incluem, de acordo com o sétimo travessão da parte A e da parte B desse anexo I, o direito que assiste aos viajantes de «rescindir o contrato sem pagar uma taxa de rescisão antes do início da viagem organizada, em circunstâncias excecionais, por exemplo em caso de graves problemas de segurança no destino suscetíveis de afetar a viagem organizada». Este sétimo travessão expõe e ilustra, assim, o conteúdo do direito de rescisão conferido a esses viajantes no artigo 12.o, n.o 2, da mesma diretiva.

37

Por conseguinte, ao contrário do que o órgão jurisdicional de reenvio considerou, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 não exclui informações pré‑contratuais a prestar obrigatoriamente ao viajante, incluindo a relativa ao direito, conferido a este último pelo artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, de rescindir o seu contrato de viagem antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão, quando existam circunstâncias inevitáveis e excecionais que afetem consideravelmente a execução da viagem organizada.

38

Tendo em conta o alcance do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, não há que responder à interrogação do órgão jurisdicional de reenvio quanto à validade deste artigo. Com efeito, uma vez que o referido artigo impõe que se informe o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da mesma diretiva, não se coloca a questão da validade do artigo 5.o da Diretiva 2015/2302 à luz do artigo 169.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), TFUE, assim como do artigo 114.o, n.o 3, TFUE, devido ao facto de este artigo 5.o não impor que se informe o consumidor desse direito de rescisão.

39

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 deve ser interpretado no sentido de que impõe a um organizador da viagem que informe o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva. A validade do artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva à luz do artigo 169.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), TFUE, lido em conjugação com o artigo 114.o, n.o 3, TFUE, não pode, portanto, ser posta em causa pelo facto de não prever que aquele informe o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da mesma diretiva.

Quanto à segunda questão

40

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se os artigos 114.o e 169.o TFUE e o artigo 15.o da Diretiva 2015/2302 devem ser interpretados no sentido de que se opõem à aplicação dos princípios do dispositivo e da coerência, consagrados nas disposições do Código de Processo Civil, quando a aplicação destas últimas disposições possa impedir a plena proteção do consumidor na qualidade de demandante.

41

O Governo Espanhol contesta a admissibilidade desta questão com o fundamento de que, por um lado, a inadmissibilidade da primeira questão implica necessariamente a da segunda e, por outro, o artigo 15.o da Diretiva 2015/2302 não tem relação com o litígio no processo principal. Esta contestação deve ser julgada improcedente, uma vez que, pelos motivos apresentados nos n.os 33 e 34 do presente acórdão, a primeira questão não é inadmissível e resulta manifestamente do contexto da segunda questão que a referência ao artigo 15.o desta diretiva é um erro de escrita e deve ser entendida no sentido de que visa o artigo 12.o, n.o 2, da referida diretiva.

42

Tendo em conta o que precede e que a Diretiva 2015/2302 foi adotada com base no artigo 114.o TFUE a fim de contribuir para a realização do objetivo de assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores previsto no artigo 169.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), TFUE, há que reformular a segunda questão no sentido de que visa, em substância, saber se o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de disposições de direito processual nacional que consagram os princípios do dispositivo e da coerência por força dos quais, quando a rescisão de um contrato de viagem organizada preenche os requisitos previstos no artigo 12.o, n.o 2, e o viajante em causa apresenta ao juiz nacional um pedido de reembolso inferior a um reembolso integral, este juiz não pode atribuir oficiosamente a esse viajante um reembolso integral.

43

A este respeito, há que recordar que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 prevê que caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino, o viajante tem direito a rescindir o contrato de viagem organizada antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa de rescisão e obtendo o reembolso integral dos pagamentos efetuados para essa viagem organizada.

44

No entanto, o direito da União não harmoniza as modalidades processuais aplicáveis ao exame desse direito de rescisão. O artigo 24.o da Diretiva 2015/2302 prevê unicamente que os Estados‑Membros asseguram a existência de meios adequados e efetivos para garantir o cumprimento dessa diretiva. Daqui decorre que as modalidades processuais destinadas a assegurar a salvaguarda dos direitos que o artigo 12.o, n.o 2, da referida diretiva confere aos particulares são abrangidas pela ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, por força do princípio da autonomia processual destes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 17 de maio de 2022, Unicaja Banco, C‑869/19, EU:C:2022:397, n.o 22 e jurisprudência referida).

45

Assim, o direito da União não exige, em princípio, que o juiz nacional examine oficiosamente um fundamento relativo à violação de disposições da União quando o exame desse fundamento o obrigue a sair dos limites do litígio tal como este último foi circunscrito pelas partes. Esta limitação do poder do juiz nacional justifica‑se pelo princípio segundo o qual a iniciativa processual pertence às partes. Consequentemente, este juiz só pode agir oficiosamente em casos excecionais em que o interesse público exija a sua intervenção (v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2009, Martín Martín, C‑227/08, EU:C:2009:792, n.os 19 e 20 e jurisprudência referida).

46

Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o juiz nacional é obrigado a examinar oficiosamente o respeito de certas disposições do direito da União em matéria de proteção dos consumidores quando, na falta desse exame, o objetivo de proteção efetiva dos consumidores não poderia ser alcançado (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 23 e jurisprudência referida). Daqui resulta que a proteção efetiva de certos direitos conferidos ao consumidor pelo direito da União está abrangida pelo interesse público que exige a intervenção oficiosa do juiz nacional.

47

O dever de exame oficioso do juiz nacional foi assim reconhecido, nomeadamente, no que respeita às cláusulas da Diretiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais (JO 1985, L 372, p. 31; EE 15/06, p. 131) (Acórdão de 17 de dezembro de 2009, Martín Martín, C‑227/08, EU:C:2009:792, n.o 29), às cláusulas da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29) (Acórdão de 17 de maio de 2022, Ibercaja Banco, C‑600/19, EU:C:2022:394, n.o 37 e jurisprudência referida), bem como às cláusulas da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66, e retificações no JO 2009, L 207, p. 14, JO 2010, L 199, p. 40, JO 2011, L 234, p. 46, e JO 2015, L 36, p. 15) (Acórdão de 5 de março de 2020, OPR‑Finance, C‑679/18, EU:C:2020:167, n.o 23 e jurisprudência referida).

48

No caso em apreço, importa, por conseguinte, apreciar se, para assegurar a proteção efetiva do direito de rescisão que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 confere ao consumidor, o juiz nacional deve poder suscitar oficiosamente a violação desta disposição.

49

A este respeito, há que salientar, antes de mais, que este direito de rescisão contribui para a realização do objetivo desta diretiva que consiste, como resulta do artigo 1.o da mesma, lido à luz do seu considerando 5, em contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e para alcançar um nível de defesa do consumidor elevado e o mais uniforme possível quando estes subscrevem um contrato de viagem organizada. A Diretiva 2015/2302 garante a um viajante um direito que este não teria necessariamente podido negociar com o organizador da viagem quando se encontre numa situação de inferioridade relativamente a esse organizador no que respeita ao poder de negociação dos termos da viagem organizada. O direito de rescisão, tal como o direito ao reembolso dos pagamentos efetuados na sequência dessa rescisão, conferidos aos viajantes pelo artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, respondem a este objetivo de proteção dos consumidores (v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2023, UFC‑Que choisir e CLCV, C‑407/21, EU:C:2023:449, n.o 33).

50

Em seguida, como salientou a advogada‑geral no n.o 54 das suas conclusões, esse direito de rescisão é significativo no sistema da Diretiva 2015/2302, uma vez que é qualificado de «direito essencial» do viajante nas partes A e B do anexo I desta diretiva e que, por força do artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva, um organizador da viagem tem a obrigação de informar esse viajante da existência do referido direito de rescisão.

51

Por último, o artigo 23.o da Diretiva 2015/2302 consagra o caráter imperativo desta última. Daqui resulta que, em conformidade com os n.os 2 e 3 deste artigo, o viajante não pode renunciar aos direitos que lhe são conferidos por esta diretiva e que qualquer cláusula ou declaração feita pelo viajante que pressuponha uma renúncia direta ou indireta a esses direitos não o vincula.

52

Tendo em conta os elementos que precedem, há que considerar que a proteção efetiva do direito de rescisão conferido aos viajantes pelo artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 exige que o juiz nacional possa suscitar oficiosamente uma violação desta disposição.

53

O exame oficioso, pelo juiz nacional, do direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 está, no entanto, sujeito a certos requisitos.

54

Primeiro, uma das partes no contrato de viagem organizada em causa deve ter iniciado um processo judicial perante o juiz nacional e esse processo deve ter por objeto esse contrato (v., no que respeita ao exame oficioso de cláusulas abusivas previstas na Diretiva 93/13, Acórdão de 11 de março de 2020, Lintner, C‑511/17, EU:C:2020:188, n.o 29 e jurisprudência referida).

55

Segundo, o direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 deve estar relacionado com o objeto do litígio tal como é definido pelas partes, tendo em conta os seus pedidos e os seus fundamentos (v., no que respeita ao exame oficioso de cláusulas abusivas previstas na Diretiva 93/13, Acórdão de 11 de março de 2020, Lintner, C‑511/17, EU:C:2020:188, n.o 34).

56

Terceiro, o juiz nacional deve dispor de todos os elementos de direito e de facto necessários para apreciar se esse direito de rescisão pode ser invocado pelo viajante em causa (v., no que respeita ao exame oficioso de cláusulas abusivas previstas na Diretiva 93/13, Acórdão de 11 de março de 2020, Lintner, C‑511/17, EU:C:2020:188, n.o 27 e jurisprudência referida).

57

Quarto, esse viajante não deve ter indicado expressamente ao órgão jurisdicional nacional que se opunha à aplicação do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302.

58

Numa situação em que o referido viajante não invoca a aplicação desta disposição quando os requisitos desta aplicação parecem estar preenchidos, não se deve excluir que este ignorava a existência do direito de rescisão previsto na referida disposição. Ora, isto basta para que o juiz nacional possa invocar oficiosamente a mesma disposição.

59

No caso em apreço, e sem prejuízo da apreciação pelo órgão jurisdicional de reenvio, estes requisitos parecem estar preenchidos. Com efeito, o demandante no processo principal intentou nesse órgão jurisdicional uma ação relativa à rescisão do contrato de viagem organizada que este celebrou com a demandada no processo principal. O direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 está relacionado com o objeto do litígio no referido órgão jurisdicional, uma vez que tem por objeto o reembolso dos pagamentos efetuados por esse demandante na sequência da sua decisão de rescindir o referido contrato devido à propagação do coronavírus. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio parece dispor de todos os elementos de direito e de facto necessários para apreciar se esse direito de rescisão pode ser invocado pelo viajante. Aquando desta apreciação autónoma do órgão jurisdicional de reenvio, este poderá ter em conta os n.os 41 a 51 do Acórdão de 8 de junho de 2023, UFC — Que choisir e CLCV (C‑407/21, EU:C:2023:449), nos quais o Tribunal de Justiça declarou de forma geral que o conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, é suscetível de abranger a eclosão de uma crise sanitária mundial. Por outro lado, na sua ação intentada nesse órgão jurisdicional, não se afigura que o referido demandante tenha expressamente excluído uma rescisão com fundamento no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302. Pelo contrário, não se pode excluir que tenha ignorado a existência desse direito quando o organizador da viagem não cumpriu a obrigação de o informar do referido direito, que lhe incumbe por força do artigo 5.o, n.o 1, dessa diretiva, tal como este último foi transposto para o direito espanhol.

60

Quando os requisitos enunciados nos n.os 54 a 57 do presente acórdão estão preenchidos, o juiz nacional é obrigado a examinar oficiosamente o direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302.

61

Este exame oficioso exige a este juiz, segundo as formas previstas a esse respeito pelas normas processuais nacionais, por um lado, que este informe o demandante do seu direito de rescisão como está previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 e, por outro, que confira a esse demandante a possibilidade de invocar esse direito no processo judicial em curso e que, se o referido demandante o invocar, convide o demandado a debater, com observância do contraditório (v., no que respeita ao exame oficioso de cláusulas abusivas previstas na Diretiva 93/13, Acórdão de 11 de março de 2020, Lintner, C‑511/17, EU:C:2020:188, n.o 42 e jurisprudência referida).

62

O referido exame oficioso não exige, portanto, que o juiz nacional rescinda oficiosamente o contrato de viagem organizada em causa sem qualquer taxa e conferindo ao mesmo demandante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados para essa viagem organizada. Com efeito, tal exigência não é necessária para assegurar uma proteção efetiva do direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 e é contrária à autonomia do demandante no exercício do seu direito de rescisão.

63

Mais especificamente, o juiz nacional não pode ser obrigado a rescindir oficiosamente um contrato de viagem organizada em aplicação desta disposição se o viajante, após ter sido avisado por este juiz, entender de forma livre e esclarecida não rescindir o seu contrato com fundamento na referida disposição. Com efeito, a Diretiva 2015/2302 não vai ao ponto de obrigar os viajantes a exercer os direitos de que dispõem ao abrigo do sistema de proteção que instituiu (v., no que respeita ao exame oficioso de cláusulas abusivas previstas na Diretiva 93/13, Acórdão de 3 de outubro de 2019, Dziubak, C‑260/18, EU:C:2019:819, n.os 53 e 54 e jurisprudência referida).

64

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão prejudicial que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à aplicação de disposições do direito processual nacional que consagram os princípios do dispositivo e da coerência, por força dos quais, quando a rescisão de um contrato de viagem organizada preenche os requisitos previstos nesta disposição e o viajante em causa apresenta ao juiz nacional um pedido de reembolso inferior a um reembolso integral, este juiz não pode atribuir oficiosamente a esse viajante um reembolso integral, desde que essas disposições não excluam que o referido juiz possa informar oficiosamente esse viajante do seu direito ao reembolso integral e permitir que este último o invoque perante si.

Quanto às despesas

65

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE,

deve ser interpretado no sentido de que:

impõe a um organizador da viagem que informe o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva. A validade do artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva à luz do artigo 169.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), TFUE, lido em conjugação com o artigo 114.o, n.o 3, TFUE, não pode, portanto, ser posta em causa pelo facto de não prever que aquele informe o viajante do seu direito de rescisão previsto no artigo 12.o, n.o 2, da mesma diretiva.

 

2)

O artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à aplicação de disposições do direito processual nacional que consagram os princípios do dispositivo e da coerência, por força dos quais, quando a rescisão de um contrato de viagem organizada preenche os requisitos previstos nesta disposição e o viajante em causa apresenta ao juiz nacional um pedido de reembolso inferior a um reembolso integral, este juiz não pode atribuir oficiosamente a esse viajante um reembolso integral, desde que essas disposições não excluam que o referido juiz possa informar oficiosamente esse viajante do seu direito ao reembolso integral e permitir que este último o invoque perante si.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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