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Document 62022CJ0021

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 12 de outubro de 2023.
    OP contra Notariusz Justyna Gawlica.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Okręgowy w Opolu.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Lei nacional aplicável em matéria sucessória — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Artigo 22.o — Cláusula de escolha de lei — Âmbito de aplicação pessoal — Nacional de um Estado terceiro — Artigo 75.o — Relações com convenções internacionais existentes — Convenção bilateral entre a República da Polónia e a Ucrânia.
    Processo C-21/22.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:766

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

    12 de outubro de 2023 ( *1 ( ( i ))

    [Texto retificado por Despacho de 9 de janeiro de 2024]

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Lei nacional aplicável em matéria sucessória — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Artigo 22.o — Cláusula de escolha de lei — Âmbito de aplicação pessoal — Nacional de um Estado terceiro — Artigo 75.o — Relações com convenções internacionais existentes — Convenção bilateral entre a República da Polónia e a Ucrânia»

    No processo C‑21/22,

    [Conforme retificado por Despacho de 9 de janeiro de 2024] que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole, Polónia), por Decisão de 10 de dezembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de janeiro de 2022, no processo instaurado por

    OP

    sendo interveniente:

    Notariusz Justyna Gawlica,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, N. Piçarra, M. Safjan, N. Jääskinen (relator) e M. Gavalec, juízes,

    advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação do Notariusz Justyna Gawlica, por M. Margoński, zastępca notarialny,

    em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Espanhol, por M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agente,

    em representação do Governo Húngaro, por Zs. Biró‑Tóth e M. Z. Fehér, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por S. L. Kalėda e W. Wils, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de março de 2023,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 22.o e 75.o do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe OP, cidadã ucraniana que reside na Polónia, onde é coproprietária de um bem imóvel, ao notário‑adjunto do Notariusz Justyna Gawlica (notário Justyna Gawlica), que gere o cartório notarial de Krapkowice (a seguir «notário»), a respeito da recusa deste último em lavrar um testamento autêntico que contenha uma cláusula nos termos da qual o direito aplicável à sucessão de OP é o direito ucraniano.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    Os considerandos 7, 37, 38, 57 e 59 do Regulamento n.o 650/2012 enunciam:

    «(7)

    É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça. No espaço europeu de justiça, os cidadãos devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessão. É necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão.

    […]

    (37)

    Para que os cidadãos possam beneficiar, com toda a segurança jurídica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento deverá permitir‑lhes conhecer antecipadamente qual será a lei aplicável à sua sucessão. Deverão ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contraditórios. A regra principal deverá assegurar previsibilidade no que se refere à lei aplicável com a qual a sucessão apresente uma conexão estreita. Por razões de segurança jurídica e para evitar a fragmentação da sucessão, essa lei deverá regular a totalidade da sucessão, ou seja, todos os bens da herança, independentemente da natureza dos bens e independentemente de estes se encontrarem situados noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro.

    (38)

    O presente regulamento deverá permitir aos cidadãos organizarem antecipadamente a sua sucessão através da escolha da lei aplicável à mesma. Esta escolha deverá limitar‑se à lei do Estado da sua nacionalidade a fim de assegurar a conexão entre o falecido e a lei escolhida e de evitar que seja escolhida uma lei com a intenção de frustrar as expectativas legítimas das pessoas com direito à legítima.

    […]

    (57)

    As regras de conflito de leis estabelecidas no presente regulamento podem resultar na aplicação da lei de um Estado terceiro. Nesses casos, haverá que atender às regras do direito internacional privado da lei desse Estado. Se essas regras previrem o reenvio para a lei de um Estado‑Membro ou para a lei de um Estado terceiro que aplicaria a sua própria lei à sucessão, esse reenvio deverá ser aceite a fim de assegurar a coerência internacional. O reenvio deverá, todavia, ser excluído nos casos em que o falecido tiver feito uma escolha de lei a favor da lei de um Estado terceiro.

    […]

    (59)

    À luz do seu objetivo geral, isto é, o reconhecimento mútuo das decisões proferidas nos Estados‑Membros em matéria sucessória, independentemente de terem sido proferidas em processos contenciosos ou não contenciosos, o presente regulamento deverá prever normas relativas ao reconhecimento, à executoriedade e à execução de decisões semelhantes às de outros diplomas legais da União no domínio da cooperação judiciária em matéria civil.»

    4

    O artigo 5.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Acordo de eleição do foro», dispõe, no n.o 1:

    «Caso a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão nos termos do artigo 22.o seja a lei de um Estado‑Membro, as partes em causa podem acordar em que um ou os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro cuja lei foi escolhida tenham competência exclusiva para decidir de toda e qualquer questão em matéria sucessória.»

    5

    Nos termos do artigo 6.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Declaração de incompetência no caso de uma escolha de lei»:

    «Sempre que a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão nos termos do artigo 22.o seja a lei de um Estado‑Membro, o órgão jurisdicional onde a ação foi intentada nos termos do artigo 4.o ou do artigo 10.o:

    […]»

    6

    O artigo 12.o, n.o 1, do mesmo regulamento enuncia:

    «Caso a herança do falecido inclua bens situados num Estado terceiro, o órgão jurisdicional chamado a decidir da sucessão pode, a pedido de uma das partes, decidir não se pronunciar sobre um ou mais desses bens se for expectável que a sua decisão relativamente a tais bens não será reconhecida nem, se for caso disso, declarada executória nesse Estado terceiro.»

    7

    O artigo 20.o do Regulamento n.o 650/2012, sob a epígrafe «Aplicação universal», tem a seguinte redação:

    «É aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado‑Membro.»

    8

    O artigo 21.o deste regulamento, sob a epígrafe «Regra geral», estabelece:

    «1.   Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.

    […]»

    9

    O artigo 22.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Escolha da lei», dispõe, no n.o 1:

    «Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.

    […]»

    10

    O artigo 75.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Relações com convenções internacionais existentes», prevê, no n.o 1:

    «O presente regulamento não prejudica a aplicação das convenções internacionais de que um ou mais Estados‑Membros sejam partes na data da adoção do presente regulamento e que digam respeito a matérias por ele regidas.

    […]»

    Direito polaco

    11

    O artigo 37.o da Convenção entre a República da Polónia e a Ucrânia relativa à assistência judiciária e às relações jurídicas em matéria civil e penal, de 24 de maio de 1993 (a seguir «Convenção bilateral»), prevê:

    «As relações jurídicas em matéria de sucessão de bens móveis são reguladas pela lei da parte contratante de que o autor da sucessão fosse nacional à data da sua morte.

    As relações jurídicas em matéria de sucessão de bens imóveis são reguladas pela lei da parte contratante em cujo território esses bens estão situados.

    A qualificação dos bens que fazem parte da herança como bens móveis ou como bens imóveis é regulada pela lei da parte contratante em cujo território se encontrem os bens.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    12

    OP é uma cidadã ucraniana, reside na Polónia e é neste Estado coproprietária de um imóvel. Solicitou ao notário que lavrasse um testamento autêntico que contenha uma cláusula nos termos da qual o direito aplicável à sua sucessão é o direito ucraniano.

    13

    O notário recusou‑se a lavrar esse ato e invocou para isso duas razões principais. Primeiro, o artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012, à luz do seu considerando 38, apenas confere o direito de escolher a lei aplicável aos nacionais dos Estados‑Membros da União. Segundo, o artigo 37.o da Convenção bilateral, que prevalece, em quaisquer circunstâncias, sobre o referido regulamento, dispõe que o direito aplicável em matéria de sucessão é o direito do Estado de que o autor da sucessão é nacional quando se trate de bens móveis, e o direito do Estado onde os bens estão situados quando se trate de bens imóveis. Assim, o notário considerou que o direito aplicável à sucessão de OP é o direito polaco no que respeita aos bens imóveis que esta possui na Polónia.

    14

    OP interpôs recurso no Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole, Polónia), que é órgão jurisdicional de reenvio, da recusa do notário com o fundamento de que este se baseou numa leitura errada do Regulamento n.o 650/2012. A este respeito, alegou, particularmente, que o artigo 22.o permite que «uma pessoa» escolha a lei do seu país como lei aplicável à sucessão. Além disso, sustentou que o artigo 75.o, n.o 1, do referido regulamento tem por objeto preservar a conformidade deste último com as obrigações que resultam das convenções celebradas pelos Estados‑Membros com Estados terceiros. Ora, uma vez que a Convenção bilateral não regula a escolha da lei da sucessão, OP considera que a aplicação do artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012 não é incompatível com esta última.

    15

    Nestas circunstâncias, o Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Deve o artigo 22.o [do Regulamento n.o 650/2012] ser interpretado no sentido de que uma pessoa que não é nacional da União Europeia está habilitada a escolher a lei nacional como lei que regulará toda a sucessão?

    2)

    Deve o artigo 75.o, em conjugação com o artigo 22.o do [referido regulamento], ser interpretado no sentido de que, quando uma convenção bilateral entre um Estado‑Membro e um [Estado] terceiro não regula a escolha da lei aplicável em matéria sucessória, mas designa a lei aplicável à sucessão, um nacional desse [Estado que] resida num Estado‑Membro vinculado por essa convenção bilateral pode escolher a lei aplicável?»

    Quanto à primeira questão

    16

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que um nacional de um Estado terceiro que resida num Estado‑Membro da União pode escolher a lei desse Estado terceiro como lei que regula toda a sua sucessão.

    17

    O artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012 dispõe que «[u]ma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito».

    18

    Como resulta da sua redação, esta disposição abrange qualquer «pessoa», sem distinguir entre os nacionais dos Estados‑Membros da União e os nacionais de Estados terceiros. Com efeito, a única restrição à liberdade de escolha de que essa pessoa dispõe prende‑se com o facto de esta só poder escolher a lei de um Estado de que é nacional, independentemente da qualidade de Estado‑Membro da União, ou não, do referido Estado.

    19

    Por conseguinte, não se pode considerar que só os cidadãos da União podem gozar de tal liberdade de escolha.

    20

    Esta interpretação literal é corroborada por outras disposições do Regulamento n.o 650/2012 que fazem igualmente referência à lei de um Estado terceiro à União.

    21

    Assim, primeiro, o artigo 20.o do referido regulamento dispõe que é aplicável a lei designada por aquele regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado‑Membro. Ora, embora resulte do considerando 57 do Regulamento n.o 650/2012 que as regras de conflito de leis estabelecidas neste regulamento podem resultar na aplicação da lei de um Estado terceiro e que, nesses casos, haverá que atender às regras de reenvio previstas pelo direito internacional privado desse Estado, aí está expressamente previsto que esse tipo de reenvio deverá ser excluído «nos casos em que o falecido tiver feito uma escolha de lei a favor da lei de um Estado terceiro».

    22

    Segundo, o artigo 5.o deste regulamento circunscreve os acordos de eleição do foro aos casos em que «a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão nos termos do artigo 22.o [do referido regulamento] seja a lei de um Estado‑Membro». Do mesmo modo, o artigo 6.o do referido regulamento regula a declaração de incompetência «[s]empre que a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão nos termos do artigo 22.o seja a lei de um Estado‑Membro». Tais especificações só têm sentido se existir outra possibilidade de escolha distinta da lei de um Estado‑Membro. Ora, se não for a lei de um Estado‑Membro, só poderá ser a lei de um Estado terceiro.

    23

    Terceiro, ao enunciar que «[o] presente regulamento deverá permitir aos cidadãos organizarem antecipadamente a sua sucessão através da escolha da lei aplicável à mesma», o considerando 38 do Regulamento n.o 650/2012 visa, de forma genérica, todos os «cidadãos» e não apenas os cidadãos da União.

    24

    Tendo em conta os fundamentos precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que um nacional de um Estado terceiro que resida num Estado‑Membro da União pode escolher a lei desse Estado terceiro como lei que regula toda a sua sucessão.

    Quanto à segunda questão

    25

    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 75.o do Regulamento n.o 650/2012, lido em conjugação com o artigo 22.o do mesmo regulamento, deve ser interpretado no sentido de que, quando um Estado‑Membro da União tenha celebrado, antes da adoção do referido regulamento, uma convenção bilateral com um Estado terceiro que designe a lei aplicável em matéria sucessória e não preveja expressamente a possibilidade de escolher outra lei, um nacional desse Estado terceiro, residente no Estado‑Membro em causa, possa escolher a lei do referido Estado terceiro para regular toda a sua sucessão.

    26

    A este respeito, decorre, em substância, do artigo 75.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 que a aplicação deste regulamento não pode afetar a aplicação das convenções internacionais em que um ou mais Estados‑Membros sejam partes, desde que, por um lado, o ou os Estados‑Membros em causa já fossem partes na convenção internacional em causa no momento da adoção do Regulamento n.o 650/2012 e que, por outro, essa convenção tenha por objeto as matérias regidas por este regulamento. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando o legislador da União dispõe que a aplicação de um regulamento «não prejudica» as convenções internacionais existentes, estas são aplicáveis em caso de concurso de normas com esse regulamento (v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 46).

    27

    Por conseguinte, quando um Estado‑Membro seja parte numa convenção bilateral celebrada com um Estado terceiro antes da entrada em vigor do Regulamento n.o 650/2012 e essa convenção bilateral contenha disposições que preveem regras aplicáveis em matéria de sucessão, em princípio, são aplicáveis estas últimas e não as previstas pelo Regulamento n.o 650/2012 na matéria.

    28

    Além disso, como salientado pelo advogado‑geral nos n.os 29 e 30 das suas conclusões, o artigo 75.o do Regulamento n.o 650/2012 não é uma disposição isolada nos instrumentos da União relativos à cooperação judiciária em matéria civil e comercial. Com efeito, muitos outros regulamentos e convenções têm por objeto as relações entre particulares no espaço europeu de liberdade, segurança e justiça e contêm disposições que se inscrevem numa lógica análoga à do artigo 75.o do Regulamento n.o 650/2012.

    29

    Ora, neste contexto, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo que rege, no âmbito do ato do direito da União em causa, as relações entre esse ato e as convenções internacionais não pode ter um alcance que esteja em conflito com os princípios basilares da legislação de que faz parte (v., neste sentido, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 51).

    30

    No presente processo, o Regulamento n.o 650/2012, como resulta em substância dos seus considerandos 7 e 59, tem por objeto suprimir os entraves à livre circulação de pessoas que se possam defrontar com dificuldades para exercer os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça, nomeadamente estabelecendo normas relativas à competência e à lei aplicável na matéria, bem como ao reconhecimento e à execução, num Estado‑Membro, das decisões e dos atos provenientes de outros Estados‑Membros.

    31

    A este respeito, o artigo 21.o do referido regulamento consagra, sob a epígrafe «Regra geral», um fator de conexão supletivo que é determinado por referência à residência habitual do falecido no momento do óbito. Tendo em conta a estrutura deste regulamento, a possibilidade de escolher a lei do Estado de que o falecido é nacional, regulada pelo artigo 22.o daquele regulamento, deve ser entendida como constituindo uma derrogação à regra geral estabelecida no artigo 21.o do mesmo regulamento.

    32

    Além disso, tanto a residência habitual como a nacionalidade constituem fatores de conexão objetivos que concorrem, ambos, para a segurança jurídica das partes no processo sucessório prosseguida pelo Regulamento n.o 650/2012, conforme resulta do seu considerando 37.

    33

    Resulta das considerações precedentes que a possibilidade de escolher o direito aplicável à sua sucessão não pode ser considerada um princípio subjacente ao Regulamento n.o 650/2012 e, portanto, à cooperação judiciária em matéria civil e comercial na União de que este é um instrumento.

    34

    É certo que o Tribunal de Justiça declarou que o objetivo geral deste regulamento, que visa o reconhecimento mútuo das decisões proferidas nos Estados‑Membros em matéria sucessória, está relacionado com o princípio da unidade da sucessão (v., neste sentido, Acórdão de 21 de junho de 2018, Oberle, C‑20/17, EU:C:2018:485, n.os 53 e 54). Todavia, não se trata de um princípio absoluto [v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, E. E. (Competência jurisdicional e lei aplicável às sucessões), C‑80/19, EU:C:2020:569, n.o 69].

    35

    A este respeito, como salientado pelo advogado‑geral no n.o 71 das suas conclusões, o artigo 12.o, n.o 1, do referido regulamento introduz expressamente uma derrogação a este princípio ao permitir que o órgão jurisdicional competente não se pronuncie sobre bens situados em Estados terceiros, por recear que a decisão não seja reconhecida ou não seja declarada executória nesses Estados terceiros.

    36

    Daqui resulta que o legislador da União pretendeu respeitar expressamente, em certos casos específicos, o modelo de cisão da sucessão que pode ser aplicado nas relações com alguns Estados terceiros.

    37

    Por conseguinte, há que considerar que o sistema do Regulamento n.o 650/2012 não se opõe a que, nos termos de uma convenção bilateral celebrada entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro antes da adoção do referido regulamento e à luz da exceção prevista no artigo 75.o, n.o 1, do mesmo regulamento, um nacional de um Estado terceiro, residente no Estado‑Membro vinculado por essa convenção bilateral, não possa escolher a lei aplicável à sua sucessão. Além disso, este resultado é conforme com o princípio consagrado no artigo 351.o, primeiro parágrafo, TFUE, relativo ao efeito das convenções internacionais celebradas pelos Estados‑Membros antes da respetiva adesão à União.

    38

    Tendo em conta todos os fundamentos precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 75.o do Regulamento n.o 650/2012, lido em conjugação com o artigo 22.o do mesmo regulamento, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que, quando um Estado‑Membro da União tenha celebrado, antes da adoção do referido regulamento, uma convenção bilateral com um Estado terceiro que designe a lei aplicável em matéria sucessória e não preveja expressamente a possibilidade de escolher outra lei, um nacional desse Estado terceiro, residente no Estado‑Membro em causa, não possa escolher a lei do referido Estado terceiro para regular toda a sua sucessão.

    Quanto às despesas

    39

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 22.o do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu,

    deve ser interpretado no sentido de que:

    um nacional de um Estado terceiro que resida num Estado‑Membro da União Europeia pode escolher a lei desse Estado terceiro como lei que regula toda a sua sucessão.

     

    2)

    O artigo 75.o do Regulamento n.o 650/2012, lido em conjugação com o artigo 22.o deste regulamento,

    deve ser interpretado no sentido de que:

    não se opõe a que, quando um Estado‑Membro da União tenha celebrado, antes da adoção do referido regulamento, uma convenção bilateral com um Estado terceiro que designe a lei aplicável em matéria sucessória e não preveja expressamente a possibilidade de escolher outra lei, um nacional desse Estado terceiro, residente no Estado‑Membro em causa, não possa escolher a lei do referido Estado terceiro para regular toda a sua sucessão.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: polaco.

    ( i ) Na sequência de um Despacho de 9 de janeiro de 2024, o presente acórdão foi retificado posteriormente à sua primeira publicação em linha.

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