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Document 62022CC0394

    Conclusões da advogada-geral Medina apresentadas em 18 de abril de 2024.


    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:330

    Edição provisória

    CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

    LAILA MEDINA

    apresentadas em 18 de abril de 2024 (1)

    Processo C394/22

    Oilchart International NV

    contra

    O.W. Bunker (Netherlands) BV,

    ING Bank NV

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica)]

    «Pedido de decisão prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 1.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b) — Conceito de “matéria civil e comercial” — Matérias excluídas — Falências e concordatas — Regulamento (CE) n.° 1346/2000 — Artigo 3.°, n.° 1 — Ações que decorrem diretamente de um processo de insolvência e que se encontram estreitamente relacionadas com este processo»






    1.        A Oilchart International NV (a seguir «Oilchart») é uma sociedade belga que pretende obter o reembolso de uma fatura não paga relativa ao abastecimento de combustível de um navio de alto mar no porto de Sluiskil (Países Baixos). A fatura ainda não tinha sido paga na data em que a devedora, a O.W. Bunker BV NL (a seguir «OWB NL»), uma sociedade neerlandesa, se tornou insolvente. A ação no processo principal foi intentada na Bélgica na sequência da abertura do processo de insolvência nos Países Baixos.

    2.        Esta situação suscita a questão de saber se o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), um órgão jurisdicional que não foi chamado a conhecer do processo de insolvência, pode ser competente para apreciar a ação através da qual a Oilchart pretende obter o reembolso da referida fatura.

    3.        O processo oferece ao Tribunal de Justiça uma nova oportunidade para aperfeiçoar a sua jurisprudência relativa à demarcação entre os respetivos âmbitos de aplicação, por um lado, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2) (a seguir «Regulamento Bruxelas I‑A») (3) e, por outro, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (4) (a seguir «Regulamento relativo aos processos de insolvência») (5).

    4.        Para efeitos da decisão sobre a questão da competência internacional, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se a ação intentada pelo credor num órgão jurisdicional nacional diferente daquele que é chamado a pronunciar‑se no processo de insolvência , que tem por objeto uma fatura apresentada para verificação ao administrador da insolvência, está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência ou pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A.

    I.      Quadro jurídico

    A.      Direito da União

    1.      Regulamento Bruxelas IA

    5.        O artigo 1.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I‑A dispõe:

    «1.      O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. […]

    2.      O presente regulamento não se aplica:

    […]

    b) Às falências, concordatas e processos análogos;

    […]»

    2.      Regulamento relativo aos processos de insolvência

    6.        O artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência tem a seguinte redação:

    «Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas coletivas é o local da respetiva sede estatutária.»

    B.      Direito neerlandês

    7.        O artigo 25.° da Wet van 30 September 1893 op het faillissement en de surséance van betaling (Lei de 30 de setembro de 1893 relativa à Insolvência e à Suspensão de Pagamentos), a «Nederlandse Faillissementswet» (Lei neerlandesa relativa à Insolvência) (a seguir «NFW») tem a seguinte redação:

    «1.      As ações judiciais que têm por objeto direitos ou obrigações que fazem parte da massa insolvente devem ser intentadas contra ou pelo administrador da insolvência.

    2.      Se as referidas ações judiciais forem intentadas ou prosseguidas pelo ou contra o devedor falido e conduzirem à sua condenação, esta última não é oponível à massa insolvente.»

    8.        O artigo 26.° da NFW dispõe que:

    «As ações judiciais destinadas à execução de uma obrigação a cargo da massa insolvente não podem ser intentadas contra o falido por qualquer outra forma diferente da prevista no artigo 110.°»

    9.        Nos termos do artigo 110.°, n.° 1, da NFW, «os créditos devem ser apresentados ao administrador da insolvência sob a forma de uma fatura ou de outra declaração por escrito que indique a natureza e o montante do crédito, acompanhada de documentos comprovativos ou de uma cópia dos mesmos, e de uma declaração que indique se é ou não reivindicado um direito de preferência, penhor, hipoteca ou direito de retenção».

    II.    Processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

    10.      Em 21 de outubro de 2014, a Oilchart efetuou o abastecimento de combustível, no porto de Sluiskil (Países Baixos), ao navio de alto mar MS Evita K, propriedade da Sharsburg Navigation SA. A proprietária deste navio tinha encomendado o abastecimento, através da sua agente Orient Shipping Rotterdam, à sociedade dinamarquesa OW Bunker & Trading A/S (a seguir «OWB A/S»), a qual reencaminhou esta encomenda à OWB NL, uma sociedade que pertencia ao mesmo grupo. Por sua vez, a OWB NL adquiriu o abastecimento de combustível à Oilchart.

    11.      Em 21 de outubro de 2014, a OWB A/S emitiu uma fatura à Orient Shipping Rotterdam no montante de 117 179 dólares dos Estados Unidos (USD).

    12.      Em 22 de outubro de 2014, a Oilchart emitiu uma fatura à OWB NL pelo abastecimento de combustível no montante de 116 471,45 USD (a seguir «fatura controvertida»). Em 21 de novembro de 2014, o rechtbank te Rotterdam (Tribunal de Primeira Instância de Roterdão, Países Baixos) declarou insolvente a OWB NL. Consequentemente, a fatura controvertida não foi paga. Com base nesta fatura, a Oilchart apresentou o seu crédito para verificação junto dos administradores da insolvência da OWB NL.

    13.      Na sequência da insolvência da OWB NL, a Oilchart viu‑se confrontada com uma série de faturas não pagas que tinham sido emitidas à OWB NL (incluindo a fatura controvertida) e, como medida cautelar, solicitou o arresto de alguns navios de alto mar aos quais tinha fornecido combustível. Para desonerar os navios, os proprietários ou as mútuas de seguros (a seguir «clubes P&I») constituíram garantias a favor da Oilchart no montante das faturas que tinha emitido à OWB NL. De acordo com as referidas garantias, estas podiam ser acionadas com base numa decisão judicial ou arbitral proferida na Bélgica contra a OWB NL ou contra o proprietário do navio.

    14.      Em 11 de março de 2015, a Oilchart intentou no rechtbank van Koophandel te Antwerpen (Tribunal de Comércio de Antuérpia, Bélgica) uma ação contra a OWB NL. A ING Bank NV (a seguir «ING»), na qualidade de credor da OWB NL (6), interveio voluntariamente neste processo. Na sua petição, a Oilchart apresentou o seu pedido como um pedido de natureza comercial e destinado à cobrança de uma fatura não paga. Além disso, apresentou um pedido incidental contra a ING, que, por sua vez, apresentou um pedido reconvencional. Por Acórdão de 15 de março de 2017, o rechtbank van Koophandel (Tribunal de Comércio de Antuérpia) declarou‑se competente para se pronunciar sobre a ação da Oilchart, mas declarou o pedido de pagamento inadmissível, com o fundamento de que, nos termos da NFW, a Oilchart só podia apresentar uma reclamação de crédito por dívidas ao administrador da insolvência do processo de insolvência.

    15.      Em 16 de maio de 2017, a Oilchart interpôs recurso desta decisão no órgão jurisdicional de reenvio, o Hof van Beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso, Antuérpia). O referido órgão jurisdicional considerou‑se obrigado a examinar a sua competência internacional, nos termos do artigo 28.° n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A (7).

    16.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio, remetendo para a jurisprudência do Tribunal de Justiça, manifesta dúvidas quanto à necessidade de determinar se a ação intentada pela Oilchart contra a OWB NL se baseia nas regras gerais do direito civil e comercial na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A ou se está sujeita às regras específicas dos processos de insolvência. Além disso, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência se opõe a uma disposição de direito nacional que permite a um credor intentar, num Estado‑Membro, uma ação judicial para obter o pagamento de um crédito relativamente ao qual já apresentou uma reclamação de créditos à massa insolvente noutro Estado‑Membro.

    17.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a natureza exata da ação e a possibilidade de intentar tal ação contra a sociedade insolvente só pode ser apreciada através da aplicação das regras derrogatórias específicas do processo de insolvência. Contudo, este órgão jurisdicional considera que a determinação da competência internacional deve ser precedida pela aplicação das regras derrogatórias específicas do direito neerlandês da insolvência, e não ser efetuada através da aplicação destas regras.

    18.      Nestas condições, o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso, Antuérpia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «a) Deve o artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento [Bruxelas I‑A], em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento […] relativo aos processos de insolvência, ser interpretado no sentido de que os termos “falências, concordatas e processos análogos”, que constam do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento [Bruxelas I‑A], também abrangem um processo em que o crédito reclamado no requerimento de citação é descrito como um mero crédito comercial, sem nenhuma referência à prévia abertura de insolvência da recorrida, sendo a base jurídica efetiva do crédito as disposições derrogatórias específicas da [NFW], e em que

    –        é necessário determinar se o crédito em causa deve ser considerado um crédito verificável (artigo 26.° em conjunção com o artigo 110.° da NFW) ou um crédito não verificável (artigo 25.°, n.° 2, da NFW), [e]

    –        a questão de saber se os dois créditos podem ser reclamados simultaneamente e se um não parece excluir o outro, tendo em conta as consequências jurídicas específicas de cada um dos créditos (nomeadamente quanto à possibilidade de se acionar uma garantia bancária constituída depois da insolvência), deve ser apreciada de acordo com as regras específicas do direito da insolvência neerlandês?

    E ainda:

    b) O disposto no artigo 25.°, n.° 2, da [NFW] é compatível com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento […] relativo aos processos de insolvência, na medida em que a referida disposição permite intentar a ação em causa (artigo 25.°, n.° 2, da NFW) no órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, em vez de no órgão jurisdicional da insolvência do Estado‑Membro da abertura da insolvência?»

    19.      Apresentaram observações escritas a Oilchart, a ING, o Governo dos Países Baixos e a Comissão Europeia. Em 31 de março de 2023, o Tribunal de Justiça enviou ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido de informações sobre o contexto jurídico do processo principal, ao qual este respondeu em 28 de abril de 2023. As alegações da ING e da Comissão foram ouvidas na audiência de 1 de fevereiro de 2024.

    III. Apreciação

    20.      No âmbito da determinação da sua competência internacional para conhecer da ação intentada pela Oilchart, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta dúvidas quanto à questão de saber se, no caso em apreço, a ação em causa deve ser qualificada de ação em matéria de insolvência e estar, portanto, abrangida pela exceção relativa às falências prevista no artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I‑A (a seguir «exceção da insolvência») (8). Uma vez que as suas dúvidas sobre esta questão parecem resultar do contexto factual e da natureza da ação intentada pela Oilchart, abordarei estas questões nas minhas observações preliminares (Secção A), antes de analisar as duas questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio (Secções B e C).

    A.      Observações preliminares sobre o apuramento dos factos pelo órgão jurisdicional de reenvio

    21.      Importa observar que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, apesar de, na petição, não citar o fundamento jurídico da sua ação, a Oilchart baseou o seu pedido no artigo 25.°, n.° 2, da NFW. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio também salienta que a Oilchart apresentou o mesmo pedido, por um lado, ao administrador da insolvência nos Países Baixos, nos termos dos artigos 26.° e 110.° da NFW (enquanto crédito verificável da massa insolvente), e, por outro, nos órgãos jurisdicionais belgas, nos termos do artigo 25.°, n.° 2, da NFW, contra o devedor falido (9), OWB NL (como um crédito não verificável excluído da massa insolvente) (10). Por conseguinte, é extremamente importante sublinhar que a Oilchart apresentou o mesmo pedido duas vezes: uma vez ao administrador da insolvência no âmbito do processo de insolvência e outra no órgão jurisdicional belga, como uma ação civil. No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o mesmo crédito não pode ser simultaneamente verificável e não verificável.

    22.      Além disso, refira‑se que tanto a ING como o Governo Neerlandês contestaram os fundamentos jurídicos invocados pela Oilchart — artigo 25.°, n.° 2, da NFW — para intentar a ação no órgão jurisdicional de reenvio.

    23.      Note‑se, a este respeito, que o artigo 25.°, n.° 2, da NFW prevê, em substância, que no caso de serem intentadas ações judiciais contra o devedor falido (e não contra o administrador da insolvência), a decisão relativa a tal pedido é inoponível à massa insolvente. Por outras palavras, parece que, nos termos desta disposição, se o credor intentar uma ação fora do processo de insolvência contra o devedor, a decisão só poderá produzir efeitos «fora da massa insolvente» e é inoponível ao administrador da insolvência ou à massa insolvente. A ING e o Governo Neerlandês sustentam, com alguma plausibilidade, que esta disposição não pode servir de fundamento jurídico a uma ação que vise a massa insolvente.

    24.      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não se pronunciou sobre a questão do fundamento jurídico adequado da ação que lhe é submetida, é impossível determinar se este órgão jurisdicional pode ter competência internacional. O presente processo coloca assim o Tribunal de Justiça perante um dilema. Por um lado, como indica o órgão jurisdicional de reenvio, o fundamento jurídico formal do pedido é o artigo 25.°, n.° 2, da NFW, nos termos do qual uma ação intentada fora do processo de insolvência não pode produzir efeitos na massa insolvente. Por outro, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que os efeitos dessa ação têm repercussões na massa insolvente e no processo de insolvência.

    25.      Na minha opinião, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio qualificar o pedido em causa, uma vez que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.° TFUE, não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação das disposições de direito nacional, nem declarar se a interpretação que dele faz o órgão jurisdicional de reenvio está correta (11). Por conseguinte, no exercício das competências que lhe são conferidas, o Tribunal de Justiça não pode apreciar argumentos sobre os fundamentos jurídicos adequados da ação à luz do direito nacional nem se pronunciar sobre a qualificação da ação intentada no órgão jurisdicional de reenvio.

    26.      Uma vez que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, para efeitos da determinação da sua competência internacional, qualificar adequadamente a ação em causa, cabe‑lhe também, no exercício da sua autonomia processual, determinar a verdadeira natureza do pedido.

    27.      Na análise que se segue, partirei do princípio de que o pedido foi apresentado (e qualificado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio) com fundamento numa disposição da NFW, a lex concursus, e que tem repercussões na massa insolvente, embora os fundamentos jurídicos exatos devam ser determinados por esse órgão jurisdicional.

    B.      Quanto à primeira questão

    28.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a ação que tem por objeto um pedido relativo a uma obrigação contratual de pagar por uma entrega de bens, intentada contra uma sociedade insolvente, está abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A e, por conseguinte, pelo âmbito de aplicação material deste regulamento, ou se esta ação está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência, uma vez que este pedido é objeto de um processo de insolvência noutro Estado‑Membro.

    29.      Em especial, resulta das questões prejudiciais que este órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à sua competência para conhecer da ação em causa, sendo certo que tal competência só existe se o pedido não estiver ligado ao processo de insolvência aberto e em curso nos Países Baixos. Segundo a jurisprudência constante, o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência atribui competência exclusiva para instaurar o processo de insolvência principal aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor para conhecer de ações revogatórias com fundamento na insolvência do devedor (12).

    30.      Para responder a esta questão, examinarei, em primeiro lugar, o impacto de uma ação paralela que tenha por objeto o mesmo crédito contratual, centrando‑me na lógica da exceção da insolvência (secção 1). Em seguida, analisarei o conteúdo dos dois critérios estabelecidos pela jurisprudência (secção 2).

    1.      Impacto de uma ação paralela

    31.      Como afirmou um académico, os processos de insolvência são artefactos jurisprudenciais e jurídicos. Não existe uma «natureza» dos processos de insolvência da qual se possam deduzir algumas das suas características. O que é importante para efeitos da definição ou da qualificação das ações são as consequências jurídicas (e económicas) que decorrem dessa definição ou qualificação e as condições em que essas consequências podem ser justificadas (13). Por conseguinte, o processo de insolvência é um processo que procura resolver o problema do fundo comum dos bens dos credores (14) (a seguir «problema do fundo comum») através da instauração de um processo coletivo (15). O processo coletivo, que procura impedir a apropriação destrutiva de bens e justifica a existência de preferências entre credores, é a razão de ser da exceção da insolvência. Para efeitos das presentes conclusões, referir‑me‑ei a uma «abordagem orientada para os resultados».

    32.      No caso em apreço, no que respeita às consequências económicas e jurídicas da ação, o órgão jurisdicional de reenvio declarou claramente que a ação em causa tem repercussões na massa insolvente (16). Considera, nomeadamente, que ao intentar a ação em causa num órgão jurisdicional belga após a insolvência da OWB NL, a Oilchart procura obter uma decisão a seu favor para, posteriormente, beneficiar das garantias. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, ao procurar obter uma execução individual do crédito, a Oilchart procura, de facto, obter, fora dos limites da concorrência, a recuperação do montante do crédito que a OWB NL detém sobre a sociedade dinamarquesa OW Bunker. A ação paralela pendente nos órgãos jurisdicionais belgas teria um impacto direto na ordem de prioridade dos credores e, eventualmente, na composição da massa insolvente (17). Deste modo, o processo coletivo instaurado pelos credores nos termos das regras neerlandesas em matéria de insolvência podia ser anulado por uma decisão do órgão jurisdicional belga a favor da Oilchart, que, enquanto credor não privilegiado, cobraria o seu crédito fora do «fundo comum». Assim, a ação em causa constituiria uma evasão ao mecanismo de cobrança coletiva de créditos, que é exatamente o que a criação de uma exceção da insolvência procura impedir.

    33.      No que diz respeito às ações paralelas, num sistema nacional puramente interno, a suspensão [dos processos de cobrança] é geralmente imposta aos credores para impedir a execução individual ou a cobrança de créditos fora do processo de insolvência. Numa situação transfronteiriça, quando é aberto um processo de insolvência, os outros Estados‑Membros devem reconhecer esse processo (18). Isto significa que, quando tal suspensão é imposta aos credores (19), a suspensão deve também ser reconhecida por esses Estados‑Membros. No caso em apreço, o Tribunal de Justiça não tem nenhuma indicação da existência de tal mecanismo e da intenção do órgão jurisdicional de reenvio de invocá‑lo. Portanto, uma vez demonstrado que o pedido em causa foi apresentado ao administrador da insolvência no âmbito do processo de insolvência nos Países Baixos, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se a Oilchart foi objeto dessa suspensão ou de outra restrição à instauração de um processo paralelo. Se assim for, também se pode argumentar que o pedido em causa faz parte do processo de insolvência, substantivamente e processualmente, e está, por conseguinte, abrangido pelo Regulamento relativo aos processos de insolvência. Por conseguinte, se for imposta uma suspensão ou uma restrição aos credores, o órgão jurisdicional estrangeiro será incompetente para apreciar a ação.

    34.      Esta abordagem está em conformidade, por um lado, com o imperativo de proteção dos interesses dos credores e com os princípios da unidade e da universalidade do processo de insolvência (20) subjacentes ao Regulamento relativo aos processos de insolvência (21). Uma vez que o processo de insolvência é um processo coletivo (22), o órgão jurisdicional onde se situa o centro dos interesses principais do devedor tratará da maior parte dos assuntos do devedor (23). Esta abordagem visa proteger os interesses e a ordem de prioridade dos credores em caso de insolvência e garantir um meio mais eficiente e eficaz de pagamento aos credores (24).

    35.      A este respeito, o processo de insolvência aberto num Estado‑Membro deve produzir todos os seus efeitos noutros Estados‑Membros. Gostaria de salientar que um dos principais objetivos do Regulamento relativo aos processos de insolvência é assegurar a eficácia dos processos de insolvência, evitando simultaneamente o «forum shopping», o que se depreende, em especial, dos considerandos 2 e 4 do referido regulamento. A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou no Acórdão Seagon (25) que a concentração de todas as ações diretamente ligadas à insolvência de uma empresa nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro competente para o início do processo de insolvência parece também em conformidade com o objetivo de melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços (26). Em vez de cada credor investigar o património do devedor e determinar a veracidade dos seus pedidos de incapacidade para o pagamento das dívidas, durante a insolvência, tal é feito pelo administrador da insolvência em benefício de todos os credores, o que não só permite a redução dos custos mas também promove a eficiência operacional (27).

    36.      Por conseguinte, quando um crédito é objeto de um processo de insolvência, o mesmo é abrangido pela competência do administrador da insolvência que atua sob o controlo do juiz do processo de insolvência. Assim, por princípio, tal crédito não deve ser artificialmente afastado do processo coletivo.

    37.      Por outro lado, deve ser aplicado o princípio da prioridade. O facto de o processo de insolvência na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência ter sido aberto significa que o estatuto de uma das partes se alterou. A consequência mais importante da abertura do processo de insolvência é o facto de a lei aplicável a este processo nos termos do referido regulamento ser a do Estado‑Membro em cujo território o processo é aberto e de o processo aberto ser reconhecido de pleno direito em todos os outros Estados‑Membros (28). Este reconhecimento implica que o órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro não tenha o poder de controlar a decisão do juiz de insolvência (29). Assim, os bens que fazem parte da massa insolvente não podem ser objeto de uma cobrança de créditos por um único credor e de uma evasão ao processo de insolvência. Quando ações com a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de órgãos jurisdicionais de diferentes Estados‑Membros, qualquer órgão jurisdicional (que não o chamado a pronunciar‑se em primeiro lugar) deve evitar adotar uma decisão que seja inconciliável com o processo de insolvência (30).

    38.      A este respeito, é importante salientar que, em conformidade com um acórdão proferido recentemente pela Grande Secção do Tribunal de Justiça, embora o artigo 1.°, n.° 2, alínea d), do Regulamento n.° 44/2001 — o antecessor do Regulamento Bruxelas I‑A que contém a mesma exceção — exclua explicitamente a arbitragem do seu âmbito de aplicação, a regra da litispendência aplica‑se, em especial, à sentença arbitral. O Tribunal de Justiça considerou que «o tribunal a que a ação foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar e, quando essa competência estiver estabelecida, declara‑se incompetente em favor daquele» (31). O Tribunal de Justiça sublinhou deste modo (mesmo num domínio claramente fora do âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A) a importância da prioridade do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em primeiro lugar. Aplicando, por analogia, este princípio ao caso em apreço, importa respeitar a prioridade do órgão jurisdicional da insolvência nos Países Baixos.

    39.      A este respeito, na audiência, a Comissão alegou que a abertura do processo de insolvência não tem consequências para a competência do órgão jurisdicional onde foi intentada uma ação paralela, mas sim para a lei aplicável à ação. Segundo a Comissão, a lex concursus determina a admissibilidade ou o mérito da ação paralela, que deve ser rejeitada. Na minha opinião, em primeiro lugar, tal abordagem esvazia de sentido as regras de competência previstas no Regulamento relativo aos processos de insolvência e, em especial, o seu artigo 3.°, n.° 1. Em segundo lugar, ao afirmar que compete ao órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro rejeitar a ação paralela, a Comissão admite, em substância, que, em princípio, a ação paralela suscita problemas. No entanto, a questão é deixada à apreciação de um órgão jurisdicional nacional que, com base numa lex concursus estrangeira, deve decidir da ação paralela (ou seja, julgando‑a improcedente). A meu ver, para preservar os objetivos acima referidos (32), sem ter de proceder ao exame das disposições de uma lex concursus estrangeira, o órgão jurisdicional nacional deve poder declarar a sua incompetência com base no facto de a ação em causa ser da competência exclusiva do juiz do processo de insolvência situado noutro Estado‑Membro. Tal abordagem garantiria maior segurança jurídica às partes envolvidas no processo de insolvência e implicaria uma certa coerência na aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência em diferentes Estados‑Membros uma vez aberto um processo de insolvência num Estado‑Membro (33).

    40.      Em conclusão, resulta claramente das informações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio que o pedido que lhe foi apresentado é idêntico ao que foi apresentado no âmbito do processo de insolvência nos Países Baixos. Uma vez que o devedor foi declarado falido e que a questão é abrangida pelas regras neerlandesas em matéria de insolvência, o órgão jurisdicional de reenvio deve verificar se existe uma suspensão que impeça outros órgãos jurisdicionais de apreciar a questão. Nesse caso, defendo que uma ação baseada numa obrigação contratual que é objeto do processo de insolvência nos Países Baixos e que deveria, em princípio, ser objeto de uma suspensão das ações individuais dos credores está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência e é da competência do órgão jurisdicional onde foi aberto o processo de insolvência. No entanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que aponta por vezes em sentido contrário, é bastante incoerente.

    2.      O duplo critério estabelecido pela jurisprudência

    41.      Embora o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência se refira ao «processo de insolvência», esta disposição engloba igualmente, por força da jurisprudência do Tribunal de Justiça, as «ações ligadas à insolvência». Nos seus Acórdãos emblemáticos Gourdain (34) e Seagon (35), o Tribunal de Justiça decidiu que as ações ligadas à insolvência não estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação do antecessor do Regulamento Bruxelas I‑A, mas pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência. Para o efeito, o Tribunal de Justiça aplicou o duplo critério estabelecido pelo Acórdão Gourdain (a seguir «critérios Gourdain»).

    42.      Em especial, de acordo com a fórmula adotada por esta jurisprudência, uma ação que decorra diretamente de um processo de insolvência (primeiro critério) e que com este se encontre estreitamente relacionada (segundo critério) está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência (36) e, por conseguinte, não está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A (37). Combinada com a exigência de interpretar em sentido lato o conceito de «matéria civil e comercial» referido no artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A (38), a exceção da insolvência prevista no mesmo regulamento limita‑se aos processos em que os critérios Gourdain estão preenchidos (39). Embora o Tribunal de Justiça tenha sido coerente na enunciação dos critérios Gourdain, tais critérios têm sido, na prática, aplicados de forma incoerente (40).

    43.      Em especial, uma vez que o Tribunal de Justiça tende a examinar os dois critérios em conjunto (41), é muito difícil determinar o seu alcance e conteúdo exatos. Por exemplo, a jurisprudência nem sempre corresponde à fórmula acima referida e a relação entre os dois critérios e o respetivo conteúdo são incertas (42). Por vezes, o Tribunal analisa apenas um critério (43). Outras, considera que um critério é determinante e que prevalece sobre o outro (44), o que suscita a questão do caráter cumulativo destes critérios. Por conseguinte, a jurisprudência do Tribunal de Justiça nem sempre dá origem a regras coerentes. Neste contexto, passo a analisar sucessivamente o conteúdo e a aplicação dos referidos critérios.

    a)      Primeiro critério: a ação decorre diretamente de um processo de insolvência

    44.      Para determinar se uma ação decorre diretamente de um processo de insolvência, o Tribunal de Justiça examina o fundamento jurídico da ação (45). A este respeito, o Tribunal de Justiça exige que se determine se o direito ou a obrigação que está na base da ação tem a sua origem nas regras gerais do direito civil e comercial ou nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência (46). O Tribunal de Justiça sublinhou que é necessário determinar se o ato em questão tinha origem no direito processual relativo aos processos de insolvência ou noutras normas (47).

    45.      Desde logo, antes de analisar a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre este critério, farei uma observação preliminar sobre os factos do processo. O órgão jurisdicional de reenvio observa que, na sequência da falência da OWB NL, a Oilchart pediu e obteve o arresto ou seja, uma penhora cautelar de determinados navios de alto mar na Bélgica. Para desonerar os navios, os proprietários dos navios ou os clubes P&I constituíram garantias a favor da Oilchart no montante das faturas que tinha emitido à OWB NL. Segundo este órgão jurisdicional, estas garantias previam, nomeadamente, que podiam ser acionadas pela Oilchart com base numa sentença que condenasse a OWB NL.

    46.      A este respeito, saliento que, na hipótese de o órgão jurisdicional de reenvio concluir que a questão é abrangida pelo artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, a competência do órgão jurisdicional belga deverá ainda ser estabelecida, tendo em conta o facto de o abastecimento de combustível ter tido lugar nos Países Baixos e de o processo de insolvência ter sido também aberto no centro dos interesses principais do devedor nesse Estado‑Membro. Além disso, gostaria de salientar que, no âmbito do presente processo, é importante distinguir entre o fundamento jurídico da obrigação e o mecanismo de execução dessa obrigação. Embora o fundamento jurídico da ação resida nas obrigações decorrentes da relação contratual entre o credor e o devedor, a execução destas obrigações foi efetuada através do arresto de navios e da constituição de garantias. Por conseguinte, considero que estas garantias constituem uma execução dos direitos da Oilchart, mas não, por si só, a origem da obrigação.

    47.      Dito isto, passo a examinar a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativamente ao primeiro critério, que é muito variável consoante a abordagem adotada.

    48.      Por vezes, o Tribunal de Justiça parece optar por uma abordagem formalista. No Acórdão Riel, por exemplo, o Tribunal de Justiça salientou expressamente que a disposição com base na qual foi intentada a ação de declaração da existência de créditos «constitu[ía] um elemento da legislação austríaca em matéria de insolvência», acrescentando que resultava «dos termos dessa disposição que essa ação pode ser exercida no âmbito de um processo de insolvência, por parte de credores que nela participam, em caso de contestação relativa à exatidão ou à graduação de créditos declarados por esses credores» (48). Mais recentemente, no Acórdão Tiger, o Tribunal de Justiça decidiu que uma ação do administrador da insolvência designado por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro de abertura do processo de insolvência tinha o seu fundamento jurídico nas regras de direito do Reino Unido que dizem especificamente respeito à insolvência (49).

    49.      No entanto, o Tribunal de Justiça parece também ter em conta o facto de a ação em causa poder ser intentada individualmente pelos credores antes, durante ou após a tramitação do processo de insolvência. No Acórdão Nickel & Goeldner Spedition, o Tribunal de Justiça observou que uma ação para pagamento de uma dívida decorrente de uma prestação de serviços em cumprimento de um contrato de transporte podia ter sido proposta pelo próprio credor, antes de ter perdido a correspondente faculdade para o fazer, devido à abertura de um processo de insolvência a esse respeito e que, nessa hipótese, essa ação seria regida pelas regras de competência judiciária aplicáveis em matéria civil ou comercial (50). Do mesmo modo, no Acórdão NK, o Tribunal de Justiça considerou que a ação em causa, por um lado, podia ser intentada pelo próprio credor, de modo que não integrava a competência exclusiva do administrador da insolvência, e, por outro, era independente da abertura de um processo de insolvência, não podia ser considerada uma consequência direta e indissociável desse processo (51).

    50.      Por conseguinte, no presente processo, se se adotar à letra a fórmula adotada nos Acórdãos Riel e Tiger, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio considerou que o fundamento jurídico da ação é o artigo 25.°, n.° 2, da NFW — e na ausência de qualificação do crédito nesta fase —, o pedido apresentado pela Oilchart está abrangido pelo âmbito de aplicação das disposições da NWF e constitui, portanto, um elemento da legislação neerlandesa em matéria de insolvência. No entanto, se aplicarmos o raciocínio dos Acórdãos Nickel & Goeldner Spedition e NK, a ação em causa pode ser intentada pelos credores a título individual e, por conseguinte, não pode ter uma relação direta com o processo de insolvência.

    51.      No entanto, para ter em conta as consequências jurídicas e económicas da exceção da insolvência e, especialmente, do problema do fundo comum, o Tribunal de Justiça deve aplicar o primeiro critério de forma que preserve simultaneamente a competência exclusiva do juiz de insolvência (52) e os interesses dos outros credores e a evitar o forum shopping (53). Por conseguinte, quando o pedido em causa no processo principal e no processo de insolvência é idêntico, o Tribunal de Justiça deve examinar se este pedido está abrangido pelo processo de insolvência.

    52.      A este respeito, uma vez que o Tribunal de Justiça declarou, no Acórdão Riel, que uma ação de declaração da existência de créditos prevista na legislação nacional se destina a ser intentada no âmbito de um processo de insolvência, está estreitamente relacionada com este e tem a sua origem no processo de insolvência (54), esta apreciação deve ser aplicada, mutatis mutandis, ao exercício de um direito de pagamento do credor, como o que está em causa no processo principal.

    53.      Além disso, pode‑se salientar que, no Acórdão H (55), o Tribunal de Justiça decidiu que o facto de uma ação poder, «em princípio, [ser proposta] mesmo no caso em que não tenha sido aberto nenhum processo de insolvência relativo aos bens da sociedade devedora em causa, [...] este facto, em si, não pode obstar à qualificação dessa ação como uma ação que decorre diretamente de um processo de insolvência e que com este está estreitamente relacionada, partindo do pressuposto de que essa ação seja efetivamente instaurada no âmbito de um processo de insolvência». Tais ações «derrogam» as regras gerais do direito civil e comercial, especificamente por causa da situação de insolvência do devedor. Por conseguinte, o elemento distintivo reside na declaração de falência do devedor (56). Quando o devedor é declarado insolvente e a ação visa a cobrança de um crédito abrangido pela massa insolvente no processo de insolvência, o fundamento jurídico desse crédito passa a ser uma disposição da legislação em matéria de insolvência da lex concursus e esta ação deve ser qualificada como uma ação diretamente decorrente de um processo de insolvência.

    54.      Acrescento que, logicamente, a maior parte dos créditos abrangidos pela massa insolvente tem a sua origem nas regras gerais de direito civil e comercial, sobretudo quando, como no caso em apreço, está em causa a executoriedade de uma obrigação contratual de pagamento de uma entrega de bens. Por outras palavras, quando um crédito está abrangido pela massa insolvente devido à abertura de um processo de insolvência e à reclamação de um crédito junto do administrador da insolvência, é abrangido pelas regras derrogatórias desse processo. Caso contrário, todos os créditos de natureza civil e comercial que foram apresentados a um administrador da insolvência poderiam ser reclamados noutro órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, esvaziando de sentido os princípios da centralização dos créditos e da vis attractiva concursus (57).

    55.      Por conseguinte, na minha opinião, se o Tribunal de Justiça adotar uma abordagem orientada para os resultados quanto ao primeiro critério (o critério do fundamento jurídico), aplicará a regra de competência exclusiva prevista no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência (58), aumentando assim a eficácia do processo de insolvência e contribuindo para a prossecução do objetivo de evitar o «forum shopping» (59). Considero, assim, que o critério do «fundamento jurídico» é um critério através do qual o Tribunal de Justiça determina se a origem da obrigação está abrangida pela massa insolvente.

    56.      Por conseguinte, considero que o âmbito das obrigações da OWB NL e os direitos correspondentes da Oilchart constituem o fundamento jurídico do pedido. A execução deste pedido depende da aplicação das disposições do direito neerlandês em matéria de insolvência relativamente ao efeito da insolvência declarada nos Países Baixos (60). Assim, convido o Tribunal de Justiça a concluir que o pedido da Oilchart decorre diretamente do processo de insolvência e tem o seu fundamento jurídico num crédito que está abrangido pela massa insolvente.

    b)      Segundo critério: a intensidade do nexo existente entre essa ação e o processo de insolvência

    57.      No que respeita ao segundo critério, para determinar se uma ação está estreitamente relacionada com um processo de insolvência, segundo a fórmula adotada pelo Tribunal de Justiça, é determinante a intensidade do nexo existente entre essa ação e o processo de insolvência (61). Este critério permite, assim, ter em conta outros fatores contextuais além dos relativos ao fundamento jurídico.

    58.      Em princípio, o segundo critério procura responder à questão de saber se uma ação semelhante à que está em causa pode ser intentada em simultâneo ou independentemente de um processo de insolvência. Por exemplo, no Acórdão German Graphics Graphische Maschinen, o Tribunal de Justiça concluiu que uma ação intentada com base numa cláusula de reserva de propriedade contra um administrador da insolvência não tinha um nexo suficientemente estreito com o processo de insolvência porque, em substância, a questão de direito suscitada nessa ação era independente da abertura de um processo de insolvência (62). Mais recentemente, no Acórdão Feniks, o Tribunal de Justiça declarou que uma ação pauliana, através da qual um credor pede que o ato seja declarado inoponível a seu respeito, pretensamente praticado em prejuízo dos seus direitos, através do qual o seu devedor cedeu um bem a um terceiro, não estava relacionada com o processo de insolvência (63). No caso em apreço, se o Tribunal de Justiça aplicasse esse «critério da possibilidade», teria de considerar que a ação em causa é independente do processo de insolvência, uma vez que pode ser intentada independentemente de um processo de insolvência, salvo se a sua suspensão estiver prevista na lei que regula o processo de insolvência.

    59.      Na mesma ordem de ideias, o Tribunal de Justiça examina por vezes o contexto processual, verificando se o credor prossegue um interesse coletivo ou individual. No Acórdão F‑Tex, por exemplo, as partes alegaram que a origem e a substância da ação intentada pelo cessionário eram, no essencial, as mesmas de uma ação de impugnação intentada pelo administrador da insolvência (64). No entanto, o Tribunal de Justiça considerou que «o exercício do direito adquirido pelo cessionário obedece a regras diferentes das aplicáveis no quadro dos processos de insolvência» (65). Em primeiro lugar, ao contrário do administrador da insolvência que, em princípio, está obrigado a atuar no interesse dos credores, o cessionário tem liberdade para exercer, ou não, o seu direito ao crédito que adquiriu. Em segundo lugar, quando decide exercer o seu direito ao crédito, o cessionário atua no seu próprio interesse e para seu benefício pessoal. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que a ação nesse processo não se encontrava estreitamente relacionada com o processo de insolvência (66). Caso o Tribunal de Justiça aplicasse estas considerações no processo em apreço, teria de concluir que o exercício do direito adquirido pela Oilchart estava sujeito a regras diferentes das aplicáveis nos processos de insolvência, uma vez que a Oilchart — ao contrário de um administrador da insolvência — continua a ser livre de decidir exercer esse direito e atuar no seu próprio interesse. Por conseguinte, a sua ação não se encontra estreitamente relacionada com o processo de insolvência.

    60.      Uma maior abordagem orientada para os resultados foi adotada no Acórdão Valach, no qual o Tribunal de Justiça examinou o alcance das obrigações da comissão de credores que rejeita um plano de recuperação. O Tribunal de Justiça decidiu nomeadamente, que, para verificar se a responsabilidade dos membros da comissão de credores pode ser desencadeada com a rejeição do plano de recuperação, deve, nomeadamente, ser analisado o alcance das obrigações que incumbem a essa comissão no processo de insolvência e a compatibilidade da referida rejeição com essas obrigações. Esta ação foi considerada suficientemente relacionada com o processo de insolvência (67). Embora esse acórdão não explique as razões pelas quais o Tribunal de Justiça chegou a essa conclusão, a meu ver, a sua abordagem explica‑se pela necessidade de tomar em consideração o impacto da ação na massa insolvente e, em particular, a obrigação subjacente de preservar os bens que fazem parte da massa insolvente. De acordo com o referido critério, devia concluir‑se que, no âmbito do processo de insolvência, a Oilchart está impedida de cobrar o seu crédito. Por conseguinte, deve considerar‑se que a ação em causa está suficientemente relacionada com o processo de insolvência.

    61.      Por último, no Acórdão SCT Industri, o Tribunal de Justiça analisou essencialmente o nexo entre as ações das partes e os bens. O Tribunal de Justiça considerou que a ação de uma sociedade sujeita a um processo de insolvência para recuperar a propriedade de ações que foram vendidas a outra sociedade estava estreitamente relacionada com o processo de insolvência, uma vez que a venda tinha sido efetuada com base em disposições de insolvência. O Tribunal de Justiça sublinhou que os bens da empresa objeto do processo de insolvência aumentaram na sequência da venda das ações em causa pelo administrador da insolvência (68). Do mesmo modo, no caso em apreço, as ações da Oilchart afetam claramente a massa insolvente. Assim, segundo este critério, a ação em causa está suficientemente relacionada com o processo de insolvência.

    62.      Tendo em conta o que precede, concluo que os critérios Gourdain devem ser interpretados de forma que tenham em conta o objetivo e a razão de ser do processo de insolvência, ou seja, o problema do fundo comum e a gestão eficaz dos bens. A interpretação restritiva destes critérios conduz à possibilidade de o credor contornar as regras do processo de insolvência, à apropriação de bens e ao esvaziamento dos direitos dos outros credores. Esta evasão seria possível devido à existência de múltiplas jurisdições competentes e à qualificação da ação paralela como uma ação «civil e comercial» na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. No entanto, a meu ver, a aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A não pode servir para pôr em causa a competência exclusiva do juiz de insolvência (69), a eficácia do processo de insolvência (70) e o imperativo de proteção dos interesses dos credores (71). Com efeito, permitir que o órgão jurisdicional de reenvio seja competente nos termos do Regulamento Bruxelas I‑A leva a contornar o funcionamento eficiente e efetivo dos processos de insolvência, prejudicando o «bom funcionamento do mercado interno» (72). No caso em apreço, uma vez que o pedido em causa é idêntico ao que foi apresentado ao administrador da insolvência nos Países Baixos, sugiro que o Tribunal de Justiça considere que uma ação como a que está em causa no processo principal decorre diretamente de um processo de insolvência e está estreitamente ligada a este, pelo que é abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência.

    63.      Deste modo, proponho que a resposta do Tribunal de Justiça seja a de que o artigo 1.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I‑A e o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência devem ser interpretados no sentido de que, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a pronunciar‑se num processo de insolvência sobre um pedido relativo a uma obrigação contratual de pagamento de uma entrega de bens e este mesmo pedido é objeto de uma ação contra uma sociedade insolvente ao abrigo desse processo de insolvência, tal ação está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência.

    C.      Quanto à segunda questão

    64.      A segunda questão é colocada no caso de o Tribunal de Justiça responder à primeira questão no sentido de que a ação em causa está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento relativo aos processos de insolvência.

    65.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 25.°, n.° 2, da NFW está em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, uma vez que esta disposição permite intentar uma ação contra a sociedade insolvente, como a que está em causa no processo principal, nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro diferente daquele em que a insolvência foi decretada.

    66.      Recorde‑se, desde logo, que não compete ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo prejudicial, pronunciar‑se sobre a compatibilidade das disposições do direito nacional com o direito da União. O Tribunal de Justiça limita a sua análise a uma interpretação das disposições do direito da União que será útil ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem por missão determinar, in fine, a compatibilidade das disposições do direito nacional com o direito da União para efeitos da decisão do litígio no processo principal (73).

    67.      Resulta da decisão de reenvio que as partes no processo principal não estão de acordo quanto à questão de saber se o artigo 25.°, n.° 2, da NFW constitui o verdadeiro fundamento da ação e quanto à interpretação correta desta disposição. Por conseguinte, como já referi, antes de se pronunciar sobre a compatibilidade da disposição com o direito da União, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio qualificar o pedido e decidir se esta disposição pode constituir o verdadeiro fundamento da ação em causa (74).

    68.      No que respeita à compatibilidade desta disposição com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, conforme já referi (75), esta última disposição visa identificar o órgão jurisdicional competente para abrir um processo de insolvência. Estabelece, portanto, uma regra de competência internacional (76). No entanto, o Tribunal de Justiça interpretou‑a de forma que confira competência exclusiva ao juiz do processo de insolvência (77).

    69.      No caso em apreço, o artigo 25.°, n.° 2, da NFW parece estabelecer que uma decisão contra um devedor falido não é oponível à massa insolvente. Em substância, parece permitir que sejam intentadas ações fora da massa insolvente, mas declara que estas não são oponíveis à massa insolvente.

    70.      Com efeito, considerando, prima facie, a própria redação do artigo 25.°, n.° 2, da NFW, esta disposição não parece estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, uma vez que não trata da «abertura» de um «processo de insolvência», mas permite simplesmente ações não verificáveis fora desses processos. Em todo o caso, o artigo 25.°, n.° 2, da NFW parece, à primeira vista, estar em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, uma vez que esta disposição não tem repercussões para a massa insolvente.

    71.      Não obstante, se a aplicação do artigo 25.°, n.° 2, da NFW conduzir a uma prática que permita contornar o processo de insolvência e a competência exclusiva do juiz de insolvência, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar, pode considerar‑se, nesse caso, que a medida nacional tem por efeito contornar o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, e é, por conseguinte, contrária a esta disposição.

    72.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio deve examinar se a aplicação do artigo 25.°, n.° 2, da NFW implica uma alteração jurídica ou económica da situação dos credores relativamente à massa insolvente ou ao processo de insolvência (por exemplo, o estatuto ou a ordem de prioridade dos credores ou a composição da massa insolvente). A este respeito, é importante notar que a ING alegou na audiência perante o Tribunal de Justiça que as ações da Oilchart podiam ter repercussões na execução das garantias prestadas pelos proprietários ou pelos clubes P&I, ou seja, em relação a terceiros. Se, pelo contrário, a aplicação da referida disposição não tiver esse efeito, então a ação intentada no órgão jurisdicional de reenvio é «neutra» relativamente a esse processo.

    73.      Atendendo a tudo o que precede, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial no sentido de que o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência e o princípio da competência exclusiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação ou prática nacional que tem por efeito contornar a competência exclusiva de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ao qual foi submetido em primeiro lugar um processo de insolvência para conhecer de um pedido relativo a uma obrigação contratual de pagamento de uma entrega de bens abrangida pela massa insolvente.

    IV.    Conclusão

    74.      Com base na análise acima exposta, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões submetidas pelo hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica):

    1)      O artigo 1.°, n.° 1, e n.° 2, alínea b), do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, e o artigo 3.° n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência

    devem ser interpretados no sentido de que, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a pronunciar‑se num processo de insolvência sobre um pedido relativo a uma obrigação contratual de pagamento de uma entrega de bens e este mesmo pedido é objeto de uma ação contra uma sociedade insolvente ao abrigo desse processo de insolvência, tal ação está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000.

    2)      O artigo 3.° n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 e o princípio da competência exclusiva

    devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação ou prática nacional que tem por efeito contornar a competência exclusiva de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ao qual foi submetido em primeiro lugar um processo de insolvência para conhecer de um pedido relativo a uma obrigação contratual de pagamento de uma entrega de bens abrangida pela massa insolvente.


    1      Língua original: inglês.


    2      JO 2012, L 351, p. 1.


    3      O referido regulamento substituiu o Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que, por sua vez, tinha substituído a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32: EE 01F01, p. 186), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»).


    4      JO 2000, L 160, p. 1.


    5      O Regulamento relativo aos processos de insolvência foi substituído pelo Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência (JO 2015, L 141, p. 19), que não é aplicável ratione temporis ao caso em apreço.


    6      É alegado que, antes de ter sido declarada a insolvência, a ING tinha concedido um empréstimo à OWB NL, que, juntamente com outras sociedades do grupo, transferiu para a ING os créditos atuais e futuros sobre os seus clientes finais.


    7      O artigo 28.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A prevê que caso o requerido domiciliado num Estado‑Membro seja demandado no órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e não compareça em juízo, o juiz deve declarar‑se oficiosamente incompetente, salvo se a sua competência resultar do disposto no referido regulamento.


    8      Embora esta disposição contenha o conceito «falências», tendo em conta o Regulamento relativo aos processos de insolvência e o Regulamento 2015/848, é evidente que o conceito «insolvência» é, no presente contexto, mais adequado e utilizá‑lo‑ei nas presentes conclusões. V. também Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (JO 2019, L 172, p. 18).


    9      Os autos do Tribunal de Justiça contêm o conceito «falência». Por conseguinte, nas presentes conclusões, utilizarei este termo sempre que descrever as circunstâncias do processo ou o direito neerlandês. No entanto, o termo «insolvência» será utilizado no contexto do direito da União, uma vez que o Regulamento relativo aos processos de insolvência e o Regulamento 2015/848 se referem ambos a processos de insolvência.


    10      O facto de se tratar de um pedido idêntico uma vez que a fatura e o montante eram os mesmos foi confirmado pela ING, um credor da OWB NL, na audiência no Tribunal de Justiça.


    11      Acórdãos de 21 de setembro de 2016, Etablissements Fr. Colruyt (C‑221/15, EU:C:2016:704, n.° 15), e de 5 de junho de 2018, Grupo Norte Facility (C‑574/16, EU:C:2018:390, n.° 32).


    12      V., nomeadamente, Acórdão de 14 de novembro de 2018, Wiemer & Trachte (C‑296/17, EU:C:2018:902, n.° 23).


    13      Eidenmuller, H., «What is an insolvency proceeding?», American Bankruptcy Law Journal, 92(1), 2018, pp. 53 a 72.


    14      Segundo a teoria dominante em matéria de insolvência, denominada «teoria da negociação dos credores», a insolvência é um problema do fundo comum e, consequentemente, o direito da insolvência é um conjunto de regras especiais para ultrapassar este problema. O problema do fundo comum colocado pela insolvência consiste no facto de todos os credores serem titulares de créditos sobre a sociedade cujo património é insuficiente para satisfazer todos os créditos. Por conseguinte, a insolvência assenta na ideia de que o melhor processo consiste em impedir as ações executivas individuais e em repartir o património do devedor de forma equitativa entre os credores. É preferível um processo coletivo (v. Jackson, T., The Logic and Limits of Bankruptcy Law, Beard Books, 2001, p. 11 e segs).


    15      V., por analogia, UNCITRAL Legislative Guide on Insolvency Law (Nações Unidas 2005, p. 83, ponto 26), que precisa que «um dos princípios fundamentais do direito da insolvência é o caráter coletivo do processo de insolvência, que exige que os interesses de todos os credores sejam protegidos contra a ação individual de um deles» (tradução livre).


    16      A este respeito, importa salientar que o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a ação em causa tem «repercussões na massa insolvente», nomeadamente porque se trata de uma ação destinada a contornar a repartição do conjunto dos bens ou a reduzir o seu montante.


    17      Como explicado pela ING nas suas observações escritas e na audiência, se o pedido da Oilchart fosse julgado procedente pelos órgãos jurisdicionais belgas, esta poderia obter um pagamento da ING, removendo da massa insolvente neerlandesa o crédito a que estava sujeita no processo de insolvência neerlandês.


    18      V. artigo 16.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência. O Tribunal de Justiça considerou que a regra de prioridade definida nesta disposição assenta no princípio da confiança mútua. Com efeito, foi este princípio que permitiu não só a instituição de um sistema obrigatório de competências, que todos os órgãos jurisdicionais sujeitos ao âmbito de aplicação do regulamento têm de respeitar, mas também a correlativa renúncia, pelos Estados‑Membros, às suas normas internas de reconhecimento e de exequatur, em benefício de um mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução das decisões proferidas no âmbito de processos de insolvência (v. Acórdão de 5 de julho de 2012, ERSTE Bank Hungary, C‑527/10, EU:C:2012:417, n.° 34).


    19      V., por analogia, artigo 29.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. V., também, nomeadamente, a Diretiva 2019/1023, que define, no seu artigo 2.°, n.° 1, ponto 4), a «suspensão das medidas de execução» como «a suspensão temporária, concedida por uma autoridade judicial ou administrativa ou aplicada por força da lei, do direito de um credor executar créditos reclamados junto de um devedor e, se o direito nacional assim o previr, junto de terceiros prestadores de garantias, no contexto de processos judiciais, administrativos ou outros, ou de suspender o direito de apreender ou liquidar por via extrajudicial os ativos ou a empresa do devedor».


    20      O «princípio da unidade» implica a existência de um único processo de insolvência. O «princípio da universalidade» implica a extensão desse processo a todos os ativos do devedor, independentemente do local onde se encontrem. A este respeito, saliento que o Regulamento relativo aos processos de insolvência se baseia na distinção, enunciada no seu artigo 3.°, entre o processo principal (universal) e o processo secundário (territorial) (v. Acórdão de 2 de maio de 2006, Eurofood IFSC, C‑341/04, EU:C:2006:281, n.° 28). V. também Acórdão de 14 de novembro de 2018, Wiemer & Trachte (C‑296/17, EU:C:2018:902, n.° 40).


    21      Refira‑se, a este respeito, que o Regulamento relativo aos processos de insolvência «permite que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado‑Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor» e especifica que «o processo tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor». V. considerando 12 do Regulamento relativo aos processos de insolvência. De acordo com o advogado‑geral M. Szpunar (Conclusões no processo Senior Home, C‑195/15, EU:C:2016:369, n.° 21), o Regulamento relativo aos processos de insolvência obedece não a um modelo assente no princípio da universalidade dos processos de insolvência, mas a um modelo de universalidade mitigado (também denominada «universalidade modificada»), uma vez que o ponto de partida do regulamento é o modelo universal, prevendo ao mesmo tempo uma série de regras especiais que funcionam como exceções e que corrigem ou atenuam a sua universalidade


    22      V. n.° 31, supra.


    23      A título exemplificativo, no Acórdão de 16 de janeiro de 2014, Schmid (C‑328/12, EU:C:2014:6, n.° 39), o Tribunal de Justiça declarou que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território foi instaurado o processo de insolvência têm competência para conhecer de uma ação resolutória no âmbito da insolvência. V. também o Relatório explicativo de M. Virgós e E. Schmit sobre a Convenção relativa aos processos de insolvência, de 3 de maio de 1996, documento do Conselho da União Europeia, 6500/96, DRS 8 (CFC), n.° 3.


    24      Decorre dos considerandos 2 e 8 do Regulamento relativo aos processos de insolvência que o seu objetivo é permitir o funcionamento eficiente e eficaz dos processos de insolvência transfronteiriços, bem como a sua melhoria e aceleração.


    25      Acórdão de 12 de fevereiro de 2009 (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.° 22).


    26      V. também considerandos 8 e 16 do Regulamento relativo aos processos de insolvência.


    27      V., por analogia, no que respeita aos objetivos de assegurar a eficiência e a eficácia dos processos de insolvência transfronteiriços, Acórdão de 22 de novembro de 2012, Bank Handlowy e Adamiak (C‑116/11, EU:C:2012:739, n.° 62).


    28      V. artigo 4.°, n.° 1, e artigo 16.° do Regulamento relativo aos processos de insolvência.


    29      O Tribunal de Justiça já salientou, a este respeito, a aplicação do princípio da confiança mútua, que exige que os órgãos jurisdicionais dos outros Estados‑Membros reconheçam a decisão que abre um tal processo, sem poderem fiscalizar a apreciação que o primeiro órgão jurisdicional levou a cabo sobre a respetiva competência (v., por analogia, Acórdão de 2 de maio de 2006, Eurofood IFSC, C‑341/04, EU:C:2006:281, n.° 42).


    30      Acórdão de 18 de setembro de 2019, Riel (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.° 42).


    31      V., neste sentido, o Acórdão de 20 de junho de 2022, London Steam‑Ship Owners' Mutual Insurance Association (C‑700/20, EU:C:2022:488, n.os 43 e 69). Gostaria de acrescentar que, tendo o Tribunal de Justiça considerado que a regra da litispendência se aplica à exceção prevista no artigo 1.°, n.° 2, alínea d), do Regulamento n.° 44/2001, aplica‑se a mesma conclusão, mutatis mutandis, em relação à exceção prevista no artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento Bruxelas I‑A.


    32      V. n.os 34 a 37, supra.


    33      V., por analogia, Acórdão de 1 de março de 2005, Owusu (C‑281/02, EU:C:2005:120, n.os 31 a 42), em que o Tribunal de Justiça sublinhou os princípios da segurança jurídica, da proteção das pessoas estabelecidas na União Europeia e da aplicação uniforme das regras de competência, recordando que «o objetivo da Convenção de Bruxelas é precisamente prever regras comuns, com exclusão das regras nacionais exorbitantes». Relativamente à aplicação uniforme do Regulamento relativo aos processos de insolvência, v. Acórdão de 16 de abril de 2015, Lutz (C‑557/13, EU:C:2015:227, n.° 48).


    34      Acórdão de 22 de fevereiro de 1979 (133/78, EU:C:1979:49).


    35      Acórdão de 12 de fevereiro de 2009 (C‑339/07, EU:C:2009:83, n.° 20).


    36      V., neste sentido, Acórdão de 18 de setembro de 2019, Riel (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.° 34 e jurisprudência referida).


    37      Importa salientar que esta abordagem foi confirmada pela codificação destes critérios no artigo 6.° do Regulamento 2015/848, nos termos do qual os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território for aberto o processo de insolvência são competentes para apreciar as ações que decorram diretamente do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas.


    38      V., nomeadamente, o Acórdão de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.° 23).


    39      Garcimartin, F., «Insolvency‑Related Judgments and Vis Attractiva Concursus: The EU Approach», Insolvency Intelligence 1, 2018. V. n.° 77 do Relatório de Virgós, M. e Schmit, E., referido na nota n.° 23.


    40      V. críticas do advogado‑geral M. Bobek sobre a aplicação destes critérios nas suas Conclusões no processo NK (C‑535/17, EU:C:2018:850, n.os 44 a 53).


    41      V., nomeadamente, Acórdãos de 4 de dezembro de 2019, Tiger (C‑493/18, EU:C:2019:1046), e de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986).


    42      V. Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo NK (C‑535/17, EU:C:2018:850, n.os 44 a 46).


    43      V., nomeadamente, Acórdão de 18 de setembro de 2019, Riel (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.° 37).


    44      V., neste sentido, Acórdão de 21 de novembro de 2019, CeDe Group (C‑198/18, EU:C:2019:1001, n.os 31 e 32).


    45      V., neste sentido, Acórdão de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.° 22 e jurisprudência referida).


    46      Ibidem. V., também, Acórdãos de 6 de fevereiro de 2019, NK (C‑535/17, EU:C:2019:96, n.° 28), e de 18 de setembro de 2019, Riel (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.° 36).


    47      V. Acórdão de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.° 26).


    48      V. Acórdão de 18 de setembro de 2019 (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.° 37).


    49      V., neste sentido, Acórdão de 4 de dezembro de 2019 (C‑493/18, EU:C:2019:1046, n.os 30 e 31).


    50      V., Acórdão de 4 de setembro de 2014 (C‑157/13, EU:C:2014:2145, n.° 28). O Tribunal de Justiça acrescentou que «o facto de, após a abertura de um processo de insolvência contra o prestador de serviços, a ação destinada a obter o pagamento da dívida ser proposta pelo administrador da insolvência designado no âmbito deste procedimento e de este último agir no interesse dos credores não modifica substancialmente a natureza do crédito invocado, que, quanto ao mérito, continua a estar sujeito a regras jurídicas inalteradas».


    51      V. Acórdão de 6 de fevereiro de 2019, NK (C‑535/17, EU:C:2019:96, n.os 35 e 36). V., também, Acórdão de 10 de setembro de 2009, German Graphics Graphische Maschinen (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.° 31). No entanto, neste último acórdão, não ficou claro se o critério de «independência» estava relacionado com o primeiro ou com o segundo critério.


    52      V. n.° 29, supra.


    53      V. n.° 35, supra.


    54      Acórdão de 18 de setembro de 2019 (C‑47/18, EU:C:2019:754, n.os 33 a 40).


    55      Acórdão de 4 de dezembro de 2014 (C‑295/13, EU:C:2014:2410).


    56      Pelo contrário, no seu Acórdão de 6 de fevereiro de 2019, NK (C‑535/17, EU:C:2019:96), o Tribunal de Justiça considerou que o facto de a ação poder ser proposta pelos credores individualmente, antes, durante ou após a tramitação do processo de insolvência, faz que esta esteja abrangida pelo Regulamento Bruxelas I‑A. Não é evidente a razão pela qual o Tribunal de Justiça considerou este aspeto relevante no Acórdão NK, mas não no seu Acórdão de 4 de dezembro de 2014, H (C‑295/13, EU:C:2014:2410). V., neste sentido, Bork, R., e van Zwieten, K. (eds.), «Jurisdiction for actions which derive directly from the insolvency proceedings and are closely linked with them», em Bork, R., e van Zwieten, K. (eds.), Commentary on the European Insolvency Regulation, 2.ª ed., Oxford University Press, Oxford, 2022, pp. 221 a 243; ed. online, Oxford Academic, 19 de maio de 2022.


    57      Por conseguinte, discordo do argumento da Comissão de que a ação em causa seja independente do processo de insolvência porque está sujeita, quanto ao mérito, a regras de direito comum.


    58      V. n.° 29, supra.


    59      V. n.° 35, supra.


    60      Nos termos do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, os efeitos do processo de insolvência são determinados pela lei do Estado‑Membro em cujo território foi aberto o processo de insolvência. No caso em apreço, os efeitos da insolvência estão abrangidos pelo direito neerlandês.


    61      V. Acórdãos de 2 de julho de 2009,SCT Industri (C‑111/08, EU:C:2009:419, n.os 22 a 25); de 9 de novembro de 2017, Tünkers France e Tünkers Maschinenbau (C‑641/16, EU:C:2017:847, n.° 28 e jurisprudência referida); e de 6 de fevereiro de 2019, NK (C‑535/17, EU:C:2019:96, n.° 30).


    62      Acórdão de 10 de setembro de 2009 (C‑292/08, EU:C:2009:544, n.os 30 e 31).


    63      Acórdão de 4 de outubro de 2018 (C‑337/17, EU:C:2018:805, n.° 32).


    64      Acórdão de 19 de abril de 2012 (C‑213/10, EU:C:2012:215). O Tribunal de Justiça admitiu mesmo que «não se pode [...] negar que o direito em que o demandante no processo principal funda a sua ação decorre da insolvência do devedor, encontrando‑se a sua origem no direito de revogação reconhecido ao administrador judicial pela lei nacional aplicável ao processo de insolvência».


    65      V. n.° 42 do referido acórdão.


    66      V. Acórdão de 19 de abril de 2012, F‑Tex (C‑213/10, EU:C:2012:215, n.os 41 a 47).


    67      Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Valach e o. (C‑649/16, EU:C:2017:986, n.° 38).


    68      Acórdão de 2 de julho de 2009 (C‑111/08, EU:C:2009:419, n.os 26 a 29).


    69      V. n.° 29, supra.


    70      V. n.° 35, supra.


    71      V. n.° 34, supra.


    72      Ver considerando 2 do Regulamento relativo aos processos de insolvência.


    73      V., neste sentido, Acórdão de 17 de março de 2021, Consulmarketing (C‑652/19, EU:C:2021:208, n.° 33 e jurisprudência referida).


    74      V. n.os 25 e 26, supra.


    75      V. n.° 23, supra.


    76      Acórdão de 16 de janeiro de 2014, Schmid (C‑328/12, EU:C:2014:6, n.° 27).


    77      V. n.° 29, supra.

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