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Dokument 62022CC0294

Conclusões do advogado-geral N. Emiliou apresentadas em 4 de maio de 2023.
Office français de protection des réfugiés et apatrides, OFPRA contra SW.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d'État.
Reenvio prejudicial — Política comum em matéria de asilo e de proteção subsidiária — Diretiva 2011/95/UE — Artigo 12.o — Exclusão do estatuto de refugiado — Apátrida de origem palestiniana registado na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) — Condições para que essa pessoa possa invocar ipso facto a Diretiva 2011/95 — Cessação da proteção ou da assistência da UNRWA» — Falta de assistência médica — Requisitos.
Processo C-294/22.

Sammlung der Rechtsprechung – allgemein

ECLI-Identifikator: ECLI:EU:C:2023:388

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 4 de maio de 2023 ( 1 )

Processo C‑294/22

Office français de protection des réfugiés et apatrides [Gabinete Francês de Proteção dos Refugiados e Apátridas (nome abreviado «OFPRA»)]

contra

SW

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Asilo — Estatuto de refugiado ou estatuto de proteção subsidiária — Diretiva 2011/95/UE — Condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas que beneficiem do estatuto de refugiado — Apátridas de origem palestiniana que recorreram à assistência da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) — Artigo 12.o, n.o 1, alínea a) — Exclusão da qualidade de refugiado — Cessação da proteção ou da assistência da UNRWA — Condições para ter direito ipso facto a beneficiar do disposto na Diretiva 2011/95 — Significado de “quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão”»

I. Introdução

1.

SW, requerente no processo principal, é apátrida de origem palestiniana, nascido no Líbano, sob a proteção da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA). Saiu do Líbano devido ao seu estado de saúde crítico e requer asilo em França, alegando que a proteção ou assistência da UNRWA que lhe foi prestada tinha «cessado», uma vez que lhe é impossível obter, no Líbano, os cuidados médicos e tratamento de que necessita para sobreviver ( 2 ).

2.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95/UE ( 3 ), uma vez mais ( 4 ). Concretamente, tem a oportunidade de determinar se e, nesse caso, em que circunstâncias se pode considerar que a proteção ou assistência da UNRWA relativamente a um apátrida de origem palestiniana «cess[ou]», na aceção desta disposição, e que essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto nesta diretiva, como refugiado, numa situação em que não pode receber os cuidados médicos de que necessita na área de operações da UNRWA.

II. Quadro jurídico

A. Direito internacional

1.   Convenção de Genebra

3.

O artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra ( 5 ) dispõe:

«Esta Convenção não será aplicável às pessoas que atualmente beneficiam de proteção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão, sem que a sorte dessas pessoas tenha sido definitivamente resolvida, em conformidade com as resoluções respetivas aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção.»

2.   Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a UNRWA

4.

A UNRWA foi instituída pela Resolução n.o 302 (IV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 8 de dezembro de 1949. O seu mandato tem sido regularmente renovado e o mandato atual termina em 30 de junho de 2023. A área de operações da UNRWA abrange o Líbano, a Síria, a Jordânia, a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e a Faixa de Gaza.

5.

Tendo em conta a natureza das suas operações, a UNRWA deve ser considerada «proteção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto‑Comissário das Nações Unidas para os Refugiados», na aceção do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra.

6.

Em conformidade com a Resolução n.o 74/83 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de dezembro de 2019, as operações da UNRWA devem ser realizadas «tendo em conta o bem‑estar, a proteção e o desenvolvimento humano dos refugiados palestinianos». Além disso, presta «assistência para responder às suas necessidades básicas de saúde, de educação e de subsistência».

B. Direito da União Europeia

7.

Nos termos do considerando 15 da Diretiva 2011/95:

«(15) Os nacionais de países terceiros ou os apátridas autorizados a permanecer em território dos Estados‑Membros, não por motivo de necessidade de proteção internacional mas, discricionariamente, por compaixão ou por motivos humanitários, não ficam abrangidos pela presente diretiva.»

8.

O artigo 12.o desta diretiva, sob a epígrafe «Exclusão», dispõe:

«1.   O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se:

a)

Estiver abrangido pelo âmbito do ponto D do artigo 1.o da Convenção de Genebra, relativo à proteção ou assistência de órgãos ou agências das Nações Unidas, com exceção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Quando essa proteção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente diretiva;

[…]».

C. Direito nacional

9.

A Diretiva 2011/95 foi transposta para o direito francês pela Loi n.o 2015‑925 du 29 juillet 2015 relative à la réforme du droit d’asile (Lei n.o 2015‑925, de 29 de julho de 2015, relativa à Reforma do Direito de Asilo) (JORF n.o 0174, de 30 de julho de 2015) e pelo Décret n.o 2015‑1166 du 21 septembre 2015 pris pour l’application de la loi n.o 2015‑925 du 29 juillet 2015 relative à la réforme du droit d’asile [Decreto n.o 2015‑1166, de 21 de setembro de 2015, de execução da Lei n.o 2015‑925, de 29 de julho de 2015, relativa à Reforma do Direito de Asilo (JORF n.o 0219, de 22 de setembro de 2015)].

10.

A Lei n.o 2015‑925, de 29 de julho de 2015, relativa à Reforma do Direito de Asilo, inseriu o artigo L. 711‑3 no Code de l’entrée et du séjour des étrangers et du droit d’asile (Código sobre a entrada e a residência de nacionais estrangeiros e o direito de asilo). O n.o 1 deste artigo, na versão aplicável ao litígio, dispõe:

«O estatuto de refugiado não será concedido a uma pessoa abrangida por uma das cláusulas de exclusão previstas no artigo 1.o, pontos D, E ou F, da Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951 […]»

III. Factos, processo nacional e questões prejudiciais

11.

SW é apátrida de origem palestiniana. Nasceu em 1976 no Líbano e, até fevereiro de 2019, viveu nesse país, que faz parte da área de operações da UNRWA. Está registado na UNRWA, sendo, portanto, elegível para beneficiar de proteção ou assistência deste organismo. Saiu do Líbano em fevereiro de 2019 e chegou a França em agosto de 2019, onde apresentou um pedido de asilo.

12.

O pedido de asilo de SW foi indeferido por Decisão de 11 de outubro de 2019 do Office Français de Protection des Réfugiés et des Apatrides (Gabinete Francês de Proteção dos Refugiados e Apátridas, França; a seguir «OFPRA») que lhe recusou tanto o estatuto de refugiado como a proteção subsidiária.

13.

SW interpôs recurso desta decisão para a Cour nationale du droit d’asile (Tribunal Nacional em matéria de Direito de Asilo, França; a seguir «CNDA»). A CNDA considerou relevantes os seguintes factos:

Ao longo da vida, SW tem sofrido de uma forma grave de talassémia, uma doença genética que afeta a produção de hemoglobina, que exige, nomeadamente, transfusões de sangue regulares;

À medida que foi crescendo, SW teve de recorrer cada vez mais a transfusões de sangue devido ao seu problema de saúde. Foi encaminhado pela UNRWA para um hospital palestiniano da Cruz Vermelha, no qual alega que não conseguiu, contudo, receber cuidados de saúde adequados. Assim, SW optou por recorrer a transfusões de sangue do seu pai;

Em 2014, o pai de SW, que tinha até então doado sangue a SW para as transfusões de que este necessitava para sobreviver, faleceu. SW começou a recorrer a transfusões de sangue de dadores compatíveis, que ele próprio solicitou;

Um médico indicou‑lhe também que precisava de tomar um medicamento específico para evitar complicações da sua doença para o seu fígado e coração, que nem a UNRWA, devido à falta de fundos suficientes, nem qualquer organização de ajuda palestiniana, devido ao facto de SW não estar filiado em partidos políticos palestinianos, aceitaram disponibilizar‑lhe; e

SW não dispunha de meios económicos suficientes para receber assistência médica de qualquer outra fonte e não conseguiu obter acesso a esse medicamento.

14.

Por Decisão de 9 de dezembro de 2020, a CNDA concedeu a SW o estatuto de refugiado, com o fundamento de que a UNRWA não tinha capacidade para lhe facultar um acesso suficiente aos cuidados médicos especializados exigidos pelo seu estado de saúde. Além disso, a UNRWA não lhe tinha assegurado condições de vida conformes à sua missão, tendo‑o colocado num estado pessoal de insegurança grave. Por conseguinte, tinha de se considerar que SW tinha sido obrigado a deixar o Líbano.

15.

O OFPRA interpôs recurso dessa decisão para o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), alegando, primeiro, que a CNDA não tinha verificado se SW tinha sido obrigado a deixar a área de operações da UNRWA devido a ameaças à sua segurança; segundo, esse órgão jurisdicional tinha cometido um erro de direito ao declarar que a impossibilidade de a UNRWA pagar ou assegurar de outra forma os cuidados de saúde de SW constituía um motivo para se considerar que a proteção ou assistência efetiva prestada por esse organismo tinha cessado e, terceiro, que também tinha cometido um erro de direito ao considerar que o pagamento de cuidados médicos especializados ( 6 ) fazia parte da missão da UNRWA. O OFPRA alegou ainda que não estava demonstrado que SW não podia receber cuidados médicos adequados no Líbano.

16.

O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) recordou que, por força do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, uma pessoa é excluída da qualidade de refugiado se estiver abrangida pelo âmbito do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra, o que sucede quando a pessoa em causa é um apátrida de origem palestiniana que recorreu à proteção ou à assistência da UNRWA, a menos que se considere que essa proteção ou assistência «cess[ou]». Invocando o Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., este órgão jurisdicional observou que é esse o caso se a pessoa foi obrigada a deixar a área de operações deste organismo, porque há um risco real para a sua vida ou integridade física, se encontra num estado pessoal de insegurança grave e numa situação em que a UNRWA não tem a possibilidade de lhe assegurar condições de vida conformes à sua missão.

17.

Nestas circunstâncias, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Independentemente das disposições de direito nacional que, sob certas condições, autorizam a permanência de um estrangeiro devido ao seu estado de saúde e que, se necessário, o protegem de uma medida de afastamento, devem as disposições do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95/UE ser interpretadas no sentido de que se pode considerar que um [apátrida de origem palestiniana] que, depois de ter efetivamente recorrido à proteção ou assistência da UNRWA, deixa o Estado ou território situado na área de atuação desse organismo, no qual tinha a sua residência habitual, com o fundamento de que nesse local não pode ter acesso suficiente aos cuidados e tratamentos que o seu estado de saúde exige e de que essa falta de cuidados implica um risco real para a sua vida ou integridade física, se encontra num estado pessoal de insegurança grave e numa situação em que a UNRWA não tem a possibilidade de lhe assegurar condições de vida conformes à sua missão?

2.

Em caso de resposta afirmativa, que critérios — relacionados, por exemplo, com a gravidade da doença ou a natureza dos cuidados necessários — permitem identificar tal situação?»

18.

O pedido de decisão prejudicial, de 22 de março de 2022, deu entrada em 3 de maio de 2022. Foram apresentadas observações escritas por SW, pelos Governos belga e francês, bem como pela Comissão Europeia. SW, o Governo francês e a Comissão estiveram representados na audiência realizada em 26 de janeiro de 2023.

IV. Análise

19.

O artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, que aplica e integra no direito da União o teor do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra ( 7 ), contém tanto uma cláusula de exclusão como uma cláusula de inclusão ( 8 ).

20.

Por um lado, prevê que, se uma pessoa estiver abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra — no caso em apreço, porque se trata de um apátrida de origem palestiniana colocado sob a proteção ou assistência da UNRWA — é excluída da possibilidade de concessão do estatuto de «refugiado» por força da Diretiva 2011/95, da mesma forma que essa pessoa também é excluída da qualidade de «refugiado» ao abrigo da Convenção de Genebra ( 9 ).

21.

Por outro lado, se se puder considerar que essa proteção ou assistência «cess[ou]», essa pessoa «terá direito ipso facto a beneficiar» do disposto nesta diretiva (da mesma forma que terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na Convenção de Genebra). Decorre desta lex specialis que a cláusula de exclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 só deixa de se aplicar a um apátrida de origem palestiniana se se puder considerar que a proteção ou assistência da UNRWA «cess[ou]». Contudo, nesse caso, a pessoa em questão deve ser considerada um «refugiado» ao abrigo desta diretiva e pode beneficiar «de pleno direito» do regime aplicável aos refugiados por força da mesma diretiva ( 10 ), sem ter de preencher as condições aplicáveis aos outros requerentes de asilo ( 11 ). Como observou o advogado‑geral P. Mengozzi nas suas Conclusões no processo Alheto ( 12 ), as pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 já são reconhecidas como refugiados pela comunidade internacional. A razão pela qual estão sujeitas à cláusula de exclusão desta disposição é que já beneficiam de um programa de proteção diferente, confiado a um organismo ou a uma agência da ONU (neste caso, a UNRWA).

22.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas, no essencial, quanto a saber se a cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 é aplicável a um apátrida de origem palestiniana que foi colocado sob a proteção ou a assistência da UNRWA e se confronta com a impossibilidade de obter acesso ao tratamento médico que o seu estado de saúde exige, na área de operações deste organismo. A segunda questão, que depende da resposta que o Tribunal de Justiça der à primeira questão, visa obter orientações quanto aos critérios que os órgãos jurisdicionais nacionais devem aplicar para identificar, entre essas situações, aquelas a que esta cláusula se aplica efetivamente.

23.

Apreciarei sucessivamente cada uma destas questões.

A. Primeira questão: a cláusula de inclusão é aplicável?

24.

Antes de analisar a problemática suscitada pela primeira questão, gostaria de formular algumas observações preliminares de natureza contextual relativas à situação jurídica excecional dos apátridas de origem palestiniana que recorreram à proteção ou à assistência da UNRWA.

1.   Quanto à situação jurídica excecional dos apátridas de origem palestiniana que recorreram à proteção ou à assistência da UNRWA

25.

Até à data, e embora o artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra esteja formulado em termos gerais ( 13 ), é evidente que a cláusula de exclusão contida nesta disposição — que, como se fosse um reflexo, é a mesma que figura no artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 — só se aplica às pessoas que são colocadas sob a proteção ou assistência da UNRWA, ou seja, os apátridas de origem palestiniana localizados na área de operações deste organismo, que recorreram efetivamente a essa proteção ou assistência.

26.

Estas pessoas estão sujeitas a um regime único, uma vez que são a única categoria de pessoas que estão excluídas da possibilidade de lhes ser concedido o estatuto de refugiado ao abrigo desta convenção e desta diretiva por força das respetivas disposições.

27.

Como referiu a advogada‑geral E. Sharpston ( 14 ), o artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra foi redigido num quadro específico. Foi redigido pouco tempo após o conflito israelo‑árabe de 1948, com vista, nomeadamente, a evitar um êxodo em massa da área geográfica que costumava ser a Palestina e uma sobreposição de competências entre o ACNUR e a UNRWA ( 15 ). A exclusão dos apátridas de origem palestiniana desta convenção foi justificada pelo facto de essas pessoas deverem beneficiar de um nível de proteção adequado e equivalente da UNRWA na sua área de operações e, não terem, em princípio, nenhuma razão para invocar a proteção conferida por esse instrumento ( 16 ).

28.

Além disso, o tratamento único dos apátridas de origem palestiniana destinava‑se inicialmente a ter apenas uma duração limitada. O artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra tinha por objetivo garantir a continuidade da proteção desses apátridas até que a sua situação fosse definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da Assembleia Geral das Nações Unidas ( 17 ). Todavia, ainda não foi encontrada uma solução a este respeito. É por esta razão que o artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra ainda está em vigor e o seu conteúdo está refletido no artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

29.

Feitos estes esclarecimentos, observo que, no contexto da aplicação da Diretiva 2011/95, o regime único a que estão sujeitos os apátridas de origem palestiniana apenas diz respeito à possibilidade de lhes ser concedido o estatuto de refugiado, e não proteção subsidiária ( 18 ).

30.

Neste contexto, recordo que a Convenção de Genebra e a Diretiva 2011/95 exigem que seja concedido às pessoas que obtenham efetivamente o estatuto de refugiado ao abrigo destes instrumentos um conjunto de direitos pelo seu Estado de acolhimento e/ou Estado‑Membro. Estes direitos devem ser concedidos ao mesmo nível que o garantido aos nacionais desse Estado ou Estado‑Membro ou, pelo menos, ao mesmo nível que o garantido aos estrangeiros no mesmo Estado ou Estado‑Membro ( 19 ). No que respeita aos cuidados de saúde, observo que o artigo 30.o da Diretiva 2011/95 prevê que os «beneficiários de proteção internacional», ou seja, tanto os «refugiados» como os «beneficiários do estatuto de proteção subsidiária» na aceção desta diretiva, têm direito a ter acesso a cuidados de saúde de acordo com os mesmos critérios de elegibilidade que os nacionais do Estado‑Membro.

31.

Os apátridas de origem palestiniana que tenham recorrido à proteção ou à assistência da UNRWA não têm direito, devido à sua situação jurídica especial, a invocar esta disposição a menos que e até se demonstrar que a proteção ou assistência da UNRWA aos mesmos «cess[ou]», na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva, ou que lhes é concedida proteção subsidiária.

2.   Quando se deve considerar que a proteção ou assistência da UNRWA «cess[ou]»: jurisprudência do Tribunal de Justiça

32.

O Tribunal de Justiça já esclareceu várias questões relativas à interpretação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. Em especial, declarou que se deve considerar que a «proteção ou assistência» da UNRWA, na aceção desta disposição, «cess[ou]» todas as situações de impossibilidade de o mesmo cumprir a sua missão ( 20 ). A este respeito, basta que essa cessação tenha ocorrido «por qualquer razão», como indica o próprio artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva.

33.

Baseando‑se no significado destes termos («qualquer razão»), o Tribunal de Justiça declarou que não se referem apenas a acontecimentos que digam diretamente respeito à UNRWA (por exemplo, a dissolução deste organismo). Com efeito, a razão pela qual essa proteção ou assistência cessa pode igualmente resultar, de forma mais ampla, de circunstâncias que, sendo independentes da vontade da pessoa em causa, obrigam essa pessoa a deixar a área de operações da UNRWA ( 21 ).

34.

A este respeito, o Tribunal de Justiça indicou ainda que se deve considerar que uma pessoa foi obrigada a deixar a área de operações da UNRWA se, com base numa avaliação individual de todos os elementos pertinentes ( 22 ), se verificar que vive num estado pessoal de insegurança grave (primeiro critério) e que a UNRWA está impossibilitada de lhe garantir, nessa área, condições de vida conformes à missão de que está incumbida (segundo critério) ( 23 ).

35.

Todas as partes no processo principal e partes interessadas no presente processo concordam que estes dois critérios são aqueles à luz dos quais a situação no processo principal deve ser apreciada, a fim de determinar se a proteção ou assistência da UNRWA a SW «cess[ou]», na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, e, portanto, se lhe deve ser concedido o estatuto de refugiado. Observo que os mesmos critérios são mencionados pelo órgão jurisdicional de reenvio, na sua primeira questão, como constituindo os critérios de referências pertinentes à luz dos quais esta apreciação deve ser efetuada.

3.   Aplicação da cláusula de inclusão aos casos relativos à impossibilidade de obter acesso a tratamentos médicos na área de operações da UNRWA

a)   Primeiro critério: estado pessoal de insegurança grave

36.

Na minha opinião, é evidente que o primeiro critério, a saber, se a pessoa vive num estado pessoal de insegurança grave, pode ser preenchido em certos casos em que a pessoa em causa está impossibilitada de obter acesso a tratamentos médicos na área de operações da UNRWA.

37.

A este respeito, posso facilmente admitir que o conceito de «segurança pessoal» parece, à primeira vista, referir‑se a situações que implicam ameaças externas, e não internas, a uma pessoa. Parece mais fácil imaginar que a pessoa se encontra num estado pessoal de insegurança grave numa situação em que esteja em causa uma catástrofe natural (como uma inundação ou um tremor de terra) ou quando, como sustentam os Governos belga e francês, sejam intencionalmente causadas ofensas por outra pessoa, uma entidade ou força ( 24 ), por oposição aos casos em que a causa principal das ofensas à pessoa é uma doença que se manifestou de modo natural. Todavia, na minha opinião, e como sustenta a Comissão, este conceito é suficientemente amplo para abranger igualmente essas situações de natureza interna, em que uma pessoa sofre ofensas que não são intencionalmente infligidas ou causadas de forma externa, mas que se manifestaram de modo natural, e são apenas agravadas por fatores externos (por exemplo, a incapacidade de a UNRWA garantir condições materiais dignas ou disponibilizar cuidados médicos adequados) ( 25 ).

38.

Com efeito, o Tribunal de Justiça já deu a entender que a pessoa se pode encontrar num estado pessoal de insegurança grave numa situação em que essa pessoa alega que não consegue ter acesso a educação nem a assistência médica adaptadas às suas necessidades, tendo em conta a deficiência grave com que nasceu ( 26 ). O conceito de «segurança pessoal» já foi, portanto, aplicado em casos em que a causa principal ou original das ofensas à pessoa não é externa, mas está relacionada com uma deficiência ou doença congénita ou, em termos mais amplos, que se manifestou de modo natural e é puramente interna a essa pessoa ( 27 ), e em que só a causa agravante dessas ofensas, a impossibilidade de obter acesso a cuidados ou a tratamentos médicos, está relacionada com outros elementos contextuais externos à pessoa em causa ( 28 ).

39.

A este respeito, é evidente que não só a causa principal das ofensas à pessoa pode ser puramente interna como também, em termos mais amplos, a razão externa pela qual essas ofensas são agravadas (ou seja, a razão externa pela qual a pessoa não pode ter acesso aos cuidados e tratamentos médicos necessários, na área de operações da UNRWA) é irrelevante. Tal acesso pode ter sido deliberadamente retirado ou os cuidados médicos e tratamentos podem simplesmente ter deixado de estar disponíveis devido à falta de recursos materiais ou de fundos por parte da UNRWA ou por qualquer outra razão (com exceção, mais uma vez, daquelas sobre as quais a pessoa em causa tem controlo e que não lhe são externas). Contrariamente ao que alegaram os Governos belga e francês, não é necessário provar que a UNRWA ou o Estado em cujo território opera teve a intenção de praticar ofensas a essa pessoa, privando‑a dos cuidados médicos necessários, por ação ou omissão ( 29 ). Este aspeto não constitui uma condição prévia ( 30 ).

40.

É evidente que, além da existência de ameaças à segurança pessoal, me parece claro que devem ser cumpridos dois ou mais requisitos: primeiro, as ameaças devem ser de molde a que possa ser demonstrado um estado pessoal de «insegurança grave» e, segundo, o nível das ofensas que a pessoa sofreria se tivesse de permanecer na área de operações da UNRWA deve ser grave (caso contrário, não é possível considerar que essas ameaças são suficientemente graves para afetar a «segurança pessoal»). Quanto ao primeiro destes requisitos, a saber, a existência de uma «insegurança grave», parece‑me evidente que a expressão «insegurança grave» se refere à natureza real do risco de que as ameaças em causa para o estado pessoal de segurança se venham efetivamente a materializar e que o estado pessoal de segurança venha a ser afetado caso a pessoa permaneça na área de operações da UNRWA. Para ser claro, concordo com o requerente no processo principal que as ameaças não podem ser puramente hipotéticas. Devem ser suficientemente reais, para darem origem a um estado pessoal de insegurança grave.

41.

Quanto ao segundo destes requisitos, a saber, se o nível das ofensas sofridas é suficientemente grave para que seja possível considerar que as ameaças afetam a «segurança pessoal», exporei adiante mais pormenorizadamente o limiar exigido a este respeito na minha resposta à segunda questão. Todavia, basta referir, por ora, que pelo menos alguns casos de impossibilidade de obter acesso aos tratamentos médicos necessários, especialmente aqueles em que, na falta desses tratamentos, a pessoa em causa fique numa situação de vida ou de morte, atingirão, na minha opinião, esse limiar.

42.

A este respeito, observo que a Comissão considera, por exemplo, que a situação de SW é um desses casos. Recordo que SW sofre de uma doença genética grave. Sem prejuízo da verificação pelos órgãos jurisdicionais nacionais, afigura‑se, e de facto não é contestado pelas partes no processo principal, que, se SW não obtiver acesso aos tratamentos médicos necessários, a sua esperança de vida e as suas possibilidades de sobrevivência serão significativamente reduzidas. É certo que, em tais circunstâncias, o nível das ofensas sofridas deve ser considerado grave.

43.

Após ter procedido a estes esclarecimentos e explicado por que razão considero que a pessoa se pode encontrar num estado pessoal de insegurança grave numa situação em que alega não conseguir ter acesso a assistência médica adequada às suas necessidades na área de operações da UNRWA, apresentarei duas observações adicionais.

44.

Primeiro, entendo, novamente ao contrário do que sustentam os Governos belga e francês, que, para demonstrar um estado pessoal de insegurança grave, não é necessário avaliar se uma pessoa como SW tem um «receio fundado de ser perseguido» ou corre um «risco real de sofrer ofensa grave», na aceção do artigo 5.o, n.o 1, e artigo 6.o da Diretiva 2011/95. O requisito de que a pessoa se encontre num estado pessoal de insegurança grave não está relacionado, como explicou a Comissão, com a existência desse «receio fundado de ser perseguido» ou «risco real de sofrer ofensa grave», na aceção destas disposições que, designadamente, diz apenas respeito à perseguição ou a ofensa grave infligida por certos intervenientes.

45.

Caso contrário, um apátrida de origem palestiniana, como SW, teria de demonstrar, para ser abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva, que cumpre os mesmos requisitos que as pessoas que não são abrangidas pelo âmbito desta disposição. Tal frustraria o propósito da lex specialis contida nesta disposição, nos termos da qual alguém abrangido pela mesma tem direito ipso facto ao estatuto de «refugiado», se puder demonstrar que a proteção ou assistência da UNRWA que lhe é prestada «cess[ou]», sem ter de preencher as condições gerais enumeradas nesta diretiva, que apenas se aplicam aos outros requerentes de asilo ( 31 ). Além disso, confundiria, no essencial, estas duas questões jurídicas muito distintas.

46.

Segundo, gostaria igualmente de esclarecer que, para demonstrar que a pessoa se encontra num estado pessoal de insegurança grave, não é necessário apreciar sistematicamente se esse risco grave existe, para a pessoa em causa, em cada um dos territórios em que a UNRWA opera. Tal seria totalmente descabido. Pelo contrário, basta ter em conta todos os setores da área de operações da UNRWA a cujos territórios a pessoa em causa tenha a possibilidade concreta de aceder e nos quais possa permanecer em segurança ( 32 ).

b)   Segundo critério: saber se a UNRWA ficou impossibilitada de garantir que as condições de vida da pessoa, na área de operações deste organismo, serão à missão de que está incumbida

47.

Quanto ao segundo critério, a saber, se a UNRWA ficou impossibilitada de garantir que as condições de vida da pessoa, na área de operações deste organismo, serão conformes à missão de que está incumbida, observo que os debates entre as partes no processo principal e as partes interessadas no presente processo se centraram na forma como a «missão» da UNRWA deve ser entendida, em geral (1), e relativamente às necessidades médicas ou de saúde, especificamente (2).

48.

O Governo francês considera, a este respeito, que a missão da UNRWA inclui apenas a prestação de cuidados médicos primários e básicos, estando excluída a prestação de tratamentos médicos especializados e mais complexos, como aqueles de que SW necessita. Em seu entender, não se pode considerar que a missão da UNRWA «cess[ou]», na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, numa situação em que um apátrida de origem palestiniana é confrontado com a impossibilidade de obter acesso a tratamentos médicos relativamente pouco comuns e/ou complexos e que vão além desses cuidados médicos básicos.

49.

Explicarei adiante por que razão não concordo.

1) Quanto à missão da UNRWA, em geral

50.

Para começar, recordo que a UNRWA é financiada principalmente por contribuições voluntárias dos Estados‑Membros da ONU. Consequentemente, a sua capacidade operacional varia consoante as decisões periódicas tomadas por esses Estados‑Membros, que podem, obviamente, sofrer alterações ao longo do tempo, em função das restrições orçamentais e de uma multiplicidade de outros fatores. No entanto, em meu entender, este facto não significa que a missão da UNRWA em si mesma varie, concomitantemente com essa capacidade operacional. Com efeito, as duas são muito diferentes: a «capacidade operacional» está relacionada com os «meios» disponíveis, ao passo que a «missão» diz respeito à «finalidade principal» (ou raison d’être) da UNRWA. Em termos gerais, os meios para fazer algo podem sofrer alterações frequentes, mas a finalidade principal deverá ser de alguma forma fixa no tempo e duradoura.

51.

Na minha opinião, é esta finalidade principal ou raison d’être da UNRWA, que é fixa no tempo e duradoura, que o Tribunal de Justiça pretendeu apreender quando qualificou a «missão» da UNRWA como elemento pertinente para determinar «se a UNRWA ficou impossibilitada de garantir que as condições de vida da pessoa, na área de operações deste organismo, serão conformes à missão de que está incumbida» e, por conseguinte, se está em causa a aplicação da cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. A questão de saber se a UNRWA dispõe de meios materiais suficientes, bem como a sua capacidade operacional, não se prendem com o âmbito da missão em si mesma, mas com a (im)possibilidade de este organismo prosseguir a sua missão.

52.

Neste contexto, recordo que, como assinalou a Comissão, a missão da UNRWA (ou seja, a sua finalidade principal) não está definida em nenhum diploma, mas decorre das resoluções pertinentes da Assembleia Geral da ONU. Assim, essa missão não pode ser deduzida de uma única fonte. Além disso, a redação utilizada nas diferentes resoluções da Assembleia Geral da ONU a este respeito é bastante ampla. Em especial, em conformidade com a Resolução n.o 74/83 da Assembleia Geral da ONU, de 13 de dezembro de 2019, a UNRWA realiza as suas operações «tendo em conta o bem‑estar, a proteção e o desenvolvimento humano dos refugiados palestinianos» em geral.

53.

Esta redação foi invocada pelo Tribunal de Justiça, na sua jurisprudência, na qual observou que a UNRWA foi instituída para proteger e prestar assistência às pessoas que estão registadas na mesma «no intuito de servir o seu bem‑estar como [refugiados]» ( 33 ).

54.

O Tribunal de Justiça afirmou igualmente que, como resulta da leitura de várias resoluções da Assembleia Geral da ONU, o objetivo subjacente ao regime específico aplicável aos apátridas de origem palestiniana é garantir a continuidade da proteção deste grupo de pessoas e que lhes seja concedida uma proteção ou uma assistência efetiva e não apenas garantir‑lhes a existência de um organismo ou de uma instituição encarregado de fornecer essa assistência ou proteção ( 34 ). Consequentemente, afigura‑se que o Tribunal de Justiça entende que a missão da UNRWA inclui a prestação de uma proteção ou assistência efetiva (e não meramente abstrata) às pessoas registadas na mesma, com vista a promover o seu «bem‑estar».

55.

À luz das considerações anteriores, analisarei agora, especialmente, o que a «missão» da UNRWA inclui relativamente às necessidades médicas ou de saúde dessas pessoas.

2) Quanto à missão da UNRWA relativamente às necessidades médicas ou de saúde, especificamente

56.

Uma vez que a missão da UNRWA de prestar uma proteção ou assistência efetiva às pessoas registadas na mesma não está claramente definida e não pode ser deduzida de uma única fonte, o Tribunal de Justiça pediu às partes no processo principal e às partes interessadas, na audiência, que esclarecessem o que implica a missão da UNRWA no que respeita às necessidades médicas ou de saúde dessas pessoas.

57.

Nas suas respostas, as partes no processo principal e as partes interessadas referiram o que está incluído na Resolução 74/83 da Assembleia Geral da ONU, de 13 de dezembro de 2019, da qual deduzem que a missão da UNRWA consiste numa efetiva«assistência para satisfazer as necessidades básicas de saúde […]». No entanto, as partes no processo principal e as partes interessadas entenderam estes termos de forma diferente.

58.

Com efeito, por um lado, o requerente no processo principal, com o qual a Comissão está de acordo, sublinhou que pouco importa apurar se um determinado tipo de tratamento médico está incluído ou excluído da missão da UNRWA em geral. Há que adotar uma abordagem teleológica, centrando‑se ao invés no grau de proteção ou de assistência que deve ser concedido aos apátridas de origem palestiniana na área de operações da UNRWA e avaliar, em cada caso concreto, se as necessidades médicas ou de saúde específicas da pessoa em causa são satisfeitas, tendo em conta esse nível. O tipo de tratamento médico, ainda que altamente especializado, é irrelevante.

59.

Por outro lado, o Governo francês alegou, como já referi no n.o 48, supra, que «assistência para satisfazer as necessidades básicas de saúde […]» inclui apenas a prestação de cuidados médicos primários e básicos ( 35 ). Este governo considera que a UNRWA não é responsável pela prestação de tratamentos médicos mais complexos ou especializados.

60.

Não partilho deste ponto de vista. Parece‑me que o Governo francês confunde a missão de assistência efetiva da UNRWA para satisfazer necessidades médicas ou de saúde básicas (que é concebida para assegurar, com base numa abordagem orientada para os fins e não para os meios, a satisfação das necessidades médicas ou de saúde básicas das pessoas registadas na UNRWA, independentemente dos meios necessários para esse fim) com um dever de prestar cuidados de saúde mínimos, ou seja, um dever de disponibilizar a essas mesmas pessoas certos recursos médicos básicos (por exemplo, fornecendo kits de primeiros socorros ou medicamentos básicos, que não seja complexa ou especializada).

61.

A este respeito, entendo que é evidente que a UNRWA não pode garantir o acesso a todos os medicamentos ou tratamentos médicos disponíveis. Todavia, no âmbito da sua missão de «assistência para satisfazer necessidades básicas de saúde […]», deve efetivamente prestar assistência às pessoas registadas na mesma na obtenção de acesso aos cuidados ou tratamentos médicos necessários para satisfazer as suas necessidades básicas de saúde ou médicas, especialmente quando esses cuidados ou tratamentos forem essenciais para combater uma doença que, sem os mesmos, poderia infelizmente ter como consequência a morte. Debruçar‑me‑ei sobre o nível de gravidade ou seriedade exigido a este respeito, a fim de delimitar o que é considerado necessidade básica de saúde ou médica, no ponto B, infra, no âmbito da minha resposta à segunda questão. Contudo, posso desde já afirmar, nesta fase, que, se uma pessoa se encontrar numa situação de vida ou de morte, como parece ser o caso de SW ( 36 ), porque a UNRWA não pode prestar‑lhe assistência, ou não lhe presta‑lhe assistência, efetivamente para obter acesso aos cuidados ou tratamentos médicos que a sua doença ou o seu estado exigem, há que considerar que a UNRWA fica impossibilitada de garantir a satisfação das necessidades básicas de saúde ou médicas dessa pessoa e, portanto, que as suas «condições de vida, na área de operações deste organismo, serão conformes à missão de que está incumbida».

62.

Para ser claro, posso facilmente admitir que o tratamento médico a que SW precisa de ter acesso é algo complexo e/ou especializado. As informações prestadas nos autos indicam que SW necessita não só de transfusões de sangue mas também de tomar um medicamento especializado, que só está disponível a um determinado custo (que a UNRWA alega não poder financiar). Ora, na minha opinião, a complexidade do tratamento, o seu custo ou a sua natureza especializada não são relevantes para o alcance da missão da UNRWA em si mesma, mas antes para a questão de saber se é ou não possível que esse organismo cumpra a sua missão ( 37 ).

63.

A este respeito, recordo que, para determinar «se a UNRWA ficou impossibilitada de garantir que as condições de vida da pessoa, na área de operações deste organismo, serão proporcionadas à missão de que está incumbida», as autoridades administrativas ou judiciárias competentes devem apreciar se a pessoa em causa estará concretamente em condições de beneficiar da proteção ou da assistência necessária ou não ( 38 ). O facto de a UNRWA não estar de todo em condições de prestar a proteção ou a assistência necessária para satisfazer as necessidades médicas ou de saúde básicas da pessoa em causa, ou de o poder fazer, mas não efetivamente (por exemplo, porque o medicamento ou o tratamento não é facilmente acessível ou porque a UNRWA carece de fundos ou de orçamento), é relevante para determinar se essa impossibilidade pode ser demonstrada, mas não exclui a situação do âmbito da missão da UNRWA ( 39 ).

4.   Conclusão quanto à primeira questão

64.

Tendo em conta as constatações que acabo de expor, entendo que os dois critérios, enunciados no n.o 34, supra, utilizados para determinar se a proteção ou assistência da UNRWA «cess[ou]», na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, podem ser preenchidos numa situação em que um apátrida de origem palestiniana, que recorreu à proteção ou à assistência da UNRWA, é confrontado com a impossibilidade de obter acesso ao tratamento médico que o seu estado de saúde exige, na área de operações desse organismo. Consequentemente, tal situação pode ser abrangida ‑ e não está excluída ‑ pelo âmbito de aplicação da cláusula de inclusão prevista nesta disposição.

65.

Considerações de ordem prática reforçam, na minha opinião, esta interpretação. Com efeito, se o Tribunal de Justiça decidisse de forma diferente, não só uma pessoa que se encontrasse na situação de SW não teria direito ipso facto a beneficiar do disposto nesta diretiva (por força da cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95) como estaria igualmente impedida de beneficiar do estatuto de «refugiado» ao abrigo de qualquer das outras disposições da Diretiva 2011/95, visto que seria excluída desta diretiva como um todo, em aplicação da cláusula de exclusão que a mesma contém. Por outras palavras, essa pessoa encontrar‑se‑ia numa situação menos favorável do que aquela de que beneficiam outros requerentes de asilo (aqueles a quem não se aplica o artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95), pois essas outras pessoas poderiam, pelo menos, invocar essas condições gerais para beneficiar do estatuto de refugiado, enquanto essa pessoa não o poderia fazer. Esta solução seria, em meu entender, claramente contrária ao objetivo do artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra, que recordei no n.o 27, supra, e que consiste em garantir proteção e assistência aos apátridas de origem palestiniana.

66.

Dito isto, considero que uma resposta afirmativa à primeira questão não significa que todos os apátridas de origem palestiniana que se limitem a queixar‑se dos cuidados médicos que recebem (ou não) na área de operações da UNRWA tenham direito ipso facto a ser reconhecidos como refugiados ao abrigo da Diretiva 2011/95. Abordarei agora este aspeto de forma mais pormenorizada, no que se refere à segunda questão.

B. Segunda questão: quando se aplica a cláusula de inclusão em situações médicas?

67.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre os critérios que os órgãos jurisdicionais nacionais devem aplicar para determinar que situações — entre aquelas em que um apátrida de origem palestiniana, que recorreu à «proteção ou assistência» da UNRWA, alega estar confrontado com a impossibilidade de obter acesso aos cuidados ou tratamentos médicos exigidos pelo seu estado de saúde, na área de operações em causa da UNRWA — estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

68.

Antes de mais, formularei três observações importantes.

69.

Primeiro, pretendo dizer algumas palavras sobre a solução proposta pelo Governo francês. Segundo este governo, um caso como o que está em apreço no processo principal não deve ser resolvido tendo em conta a cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, mas antes baseando‑se unicamente nas disposições de direito nacional ( 40 ) que concedem, em determinadas circunstâncias limitadas, aos nacionais de países terceiros ou aos apátridas a possibilidade de permanecerem no território dos Estados‑Membros, nomeadamente, devido à sua saúde.

70.

Em apoio desta conclusão, o Governo francês refere o considerando 15 da Diretiva 2011/95, que recorda que os Estados‑Membros podem autorizar essas pessoas a permanecer no seu território de forma discricionária, por compaixão ou por motivos humanitários. O mesmo considerando indica que as pessoas que beneficiam desta possibilidade não ficam abrangidas pelo âmbito de aplicação desta diretiva, sendo excluídas da mesma.

71.

Na minha opinião, e contrariamente ao que sustenta este governo, este considerando não pode ser entendido no sentido de que uma pessoa deve ser excluída do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/95 sempre que possa ter a oportunidade de invocar disposições de direito nacional que concedam um direito de permanência por compaixão ou por motivos humanitários. Ao invés, limita‑se a afirmar que, se foi efetivamente concedido a uma pessoa esse direito de permanência, essa pessoa fica excluída do âmbito de aplicação desta diretiva. Daqui resulta que, exceto neste conjunto específico de circunstâncias, as autoridades administrativas ou judiciárias competentes devem verificar, num primeiro momento, se a pessoa em causa tem direito a proteção internacional (ou, se se tratar de um apátrida de origem palestiniana, se está abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95) e, apenas em caso negativo, deverão posteriormente apreciar se essa pessoa pode beneficiar de proteção nacional por compaixão ou por motivos humanitários por força do direito nacional. Por conseguinte, não vejo razão para que este último tipo de proteção prevaleça, como sugere o Governo francês, sobre o primeiro tipo de proteção.

72.

Segundo, para determinar se a proteção ou assistência da UNRWA «cess[ou]» na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, deve proceder‑se a uma apreciação tanto de facto como de direito. Para a apreciação de facto, recordo que, como já referi no n.o 34, supra, é necessário proceder a essa avaliação a título individual, tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes, que podem estar relacionadas com a pessoa em causa (a saber, o seu estado de saúde, o tratamento de que necessita e, com o apoio de peritos, as consequências reais para essa pessoa, se não receber esse tratamento) ou serem de natureza contextual, nomeadamente se os cuidados ou tratamentos médicos necessários estariam disponíveis nos Estados‑Membros e a situação específica do Estado ou Estados em que a UNRWA opera ( 41 ). Este aspeto é, na minha opinião, muito importante: com efeito, numa situação como a do presente processo, as condições de vida, no seu conjunto, a que os apátridas de origem palestiniana estão sujeitos no Líbano, bem como aquelas com que SW se confronta individualmente são pertinentes para a questão de saber se a proteção ou assistência da UNRWA «cess[ou]».

73.

No caso em apreço, isto significa que, para apreciar se SW tem direito a beneficiar do disposto na Diretiva 2011/95, há que ter em conta o tratamento médico de que pode beneficiar tanto diretamente da UNRWA como do sistema de saúde libanês com a assistência deste organismo, uma vez que está registado na UNRWA no Líbano. A um nível mais amplo, é impossível isolar as ações da UNRWA (ou a sua inexistência) do contexto em que este organismo opera ( 42 ).

74.

Terceiro, no que respeita à apreciação de direito, partilho da opinião dos Governos belga e francês segundo a qual nem todos os problemas de saúde ou doenças para os quais não estejam disponíveis tratamentos na área em que a UNRWA opera permitem concluir que a «proteção ou assistência» deste organismo cessou. É exigido um limiar de gravidade, e apenas situações excecionais podem, na minha opinião, permitir deslocações de uma área de proteção (área de operações da UNRWA) para outra (um Estado‑Membro). Se assim não fosse, poder‑se‑ia facilmente chegar a uma situação em que qualquer pessoa sujeita à cláusula de exclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95 que considere que os cuidados ou tratamentos médicos que recebeu (ou poderia receber) na área de operações da UNRWA não são tão eficazes ou do mesmo nível que os que poderia receber de um Estado‑Membro poderia alegar que a «proteção ou assistência» desse organismo que lhe era prestada «cess[ou]», pedindo que lhe fosse concedido o estatuto de refugiado ao abrigo da Diretiva 2011/95.

75.

O limiar de gravidade deve, por conseguinte, ser suficientemente elevado para atuar como um fator limitativo e evitar estes casos de «ter por onde escolher», bem como uma situação de «inundação» com pedidos intermináveis de asilo por parte de apátridas de origem palestiniana. Ao mesmo tempo, se o limiar de gravidade for «demasiado elevado», poderá tornar praticamente impossível para uma pessoa invocar a cláusula de inclusão do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95, incluindo em circunstâncias em que sejam violados os direitos dessa pessoa consagrados na Carta, como, especialmente, o seu direito à dignidade do ser humano, o seu direito à vida e o seu direito a ser livre de tortura ou de tratos ou penas desumanos ou degradantes ( 43 ), que não podem ser derrogados ( 44 ). Por conseguinte, é necessário encontrar um equilíbrio adequado.

76.

Tendo procedido a estes esclarecimentos, recordo que, como expliquei no ponto A, supra, para que se considere que a «proteção ou assistência» da UNRWA «cess[ou]», devem ser preenchidos dois critérios: o requerente deve viver num estado pessoal de insegurança grave (primeiro critério) e a UNRWA deve estar impossibilitada de lhe garantir, nessa área, condições de vida proporcionadas à missão de que está incumbida (segundo critério).

77.

Ao passo que, numa situação como a do processo principal, o segundo critério exige, essencialmente, que se determine se a UNRWA ficou impossibilitada de garantir a satisfação das necessidades médicas e de saúde básicas da pessoa, se esta dever permanecer na área de operações deste organismo, o primeiro critério pode, em meu entender, decompor‑se em três requisitos. Primeiro, deve existir uma ou várias ameaças para a segurança da pessoa em causa, que, nessa situação, será a doença que se manifestou de modo natural de que essa pessoa padece (uma ameaça interna), agravada por fatores externos. Segundo, essas ameaças devem ser tais que possa ser demonstrado um estado pessoal de «insegurança grave» (por outras palavras, não podem ser meramente hipotéticas e devem ser suficientemente reais). Terceiro, a ofensa que a pessoa sofreria se permanecesse na área de operações da UNRWA deve ser grave (senão, as mesmas ameaças não podem ser consideradas suficientemente graves para afetar a «segurança pessoal»).

78.

Neste contexto, parece‑me claro que, no que respeita a este terceiro requisito, deve ser estabelecido um determinado limiar relativo à gravidade das ofensas. Do mesmo modo, o segundo critério, que exige que se estabeleça uma linha entre as situações em que se pode considerar que são satisfeitas as «necessidades médicas e de saúde básicas» de uma pessoa e aquelas em que tal não pode ser considerado, exige igualmente que seja estabelecido um determinado limiar. Com efeito, na minha opinião, necessidades médicas e de saúde «básicas» incluem apenas determinadas necessidades médicas e de saúde essenciais, que, se não forem satisfeitas, provocariam a morte ou uma ofensa grave. Daqui resulta que, também relativamente a esse critério, cumpre procurar a existência de uma ofensa grave.

79.

Relativamente ao que se deve entender por «ofensa grave», recordo que o considerando 16 da Diretiva 2011/95 refere a importância do respeito dos direitos fundamentais reconhecidos na Carta ( 45 ), conforme interpretados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça e, por força do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) relativa a direitos equivalentes. É igualmente pacífico que o artigo 4.o da Carta, que protege o direito à vida e a liberdade da tortura ou de tratos ou penas desumanos ou degradante, equivale ao artigo 3.o da CEDH ( 46 ).

80.

No que respeita a esta última disposição, a jurisprudência do TEDH esclarece que a dor causada por uma doença que se manifestou de modo natural, seja física ou mental, será suficientemente grave ( 47 ) quando, nomeadamente, existam motivos sérios e comprovados para crer que, embora não exista um risco de morte iminente, a pessoa ficaria sujeita, devido à falta de tratamentos adequados ou à falta de acesso a estes, a um risco real de ser exposta a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde, de que decorreriam dores intensas ou uma redução significativa da sua esperança de vida.

81.

Na minha opinião, o mesmo limiar deve ser invocado no presente processo. Deve considerar‑se que uma pessoa corre um risco grave de sofrer uma ofensa grave, devendo considerar‑se que as suas necessidades médicas ou de saúde básicas não estão satisfeitas numa situação em que i) corre um risco de morte iminente ou ii) existem motivos sérios e comprovados para crer que, embora não exista um risco de morte iminente, a pessoa ficaria sujeita, devido à falta de tratamentos adequados ou à falta de acesso a estes, a um risco real de ser exposta a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde, de que decorreriam dores intensas ou uma redução significativa da sua esperança de vida.

82.

Trata‑se de um limiar bastante elevado. É importante observar que este limiar se baseia unicamente no nível da ofensa que a pessoa em causa corre o risco grave ou real de enfrentar, independentemente do tipo de doença em questão e da sua raridade ou vulgaridade.

83.

A título de nota final, gostaria de acrescentar que o limiar que acabo de sugerir está, na minha opinião, estreitamente relacionado com o respeito da dignidade humana. Recordo que o considerando 16 da Diretiva 2011/95 esclarece que esta diretiva procura «em especial» assegurar o respeito integral da dignidade humana. Por outro lado, o Tribunal de Justiça já fez referência à dignidade humana, no seu Acórdão Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), no qual afirmou que não se pode considerar que uma pessoa foi compelida a deixar a área de operações da UNRWA se podia viver aí em segurança, com condições de vida dignas e sem correr o risco de repulsão para o território da sua residência habitual enquanto não puder regressar em segurança ( 48 ).

84.

Tanto a Comissão como o requerente no processo principal consideram que a questão de saber se uma pessoa registada na UNRWA pode viver em «condições de vida dignas» na área de operações deste organismo é pertinente para avaliar se essa pessoa corre um risco grave ou real de sofrer uma ofensa grave e se as suas necessidades médicas e de saúde básicas serão satisfeitas.

85.

Concordo com essa abordagem. Na minha opinião, o limiar que indiquei no n.o 81, supra, mais não é do que uma expressão mais detalhada desta mesma exigência ( 49 ).

V. Conclusão

86.

Tendo em conta todas as considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) do seguinte modo:

1.

O artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida,

deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa que recorreu à proteção ou à assistência da UNRWA pode viver num estado pessoal de insegurança grave e pode encontrar‑se numa situação em que este organismo está impossibilitado de lhe garantir condições de vida conformes à missão de que está incumbido, numa situação em que padeça de uma doença e em que se encontre impossibilitada de obter acesso aos tratamentos ou cuidados médicos necessários na área de operações da referida UNRWA.

2.

O artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95

deve ser interpretado no sentido de que, nessa situação, é necessário demonstrar que a pessoa se encontra perante um risco grave de ofensa grave e que a UNRWA estará impossibilitada de assegurar a satisfação das suas necessidades médicas e de saúde básicas, se essa pessoa permanecer na área de operações deste organismo. Os dois requisitos estão preenchidos quando se demonstre que, se a pessoa permanecer nessa área, i) corre um risco de morte iminente ou ii) existem motivos sérios e comprovados para crer que, embora não exista um risco de morte iminente, a pessoa ficaria sujeita, devido à falta de tratamentos adequados ou à falta de acesso a estes, a um risco real de ser exposta a um declínio grave, rápido e irreversível do seu estado de saúde, de que decorreriam dores intensas ou uma redução significativa da sua esperança de vida.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) No final de 2021, 5,8 milhões de refugiados palestinianos estavam abrangidos pelo mandato da UNRWA, enquanto 21,3 milhões de refugiados estavam sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (v. ACNUR, 16 de junho de 2022, «Global displacement hits another record, capping decade‑long rising trend» [Os números do deslocamento global atingem um novo recorde e confirmam uma tendência ascendente de uma década], disponível em linha em: https://www.unhcr.org/news/press/2022/6/62a9d2b04/unhcr‑global‑displacement‑hits‑record‑capping‑decade‑long‑rising‑trend.html).

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).

( 4 ) V. Acórdãos de 17 de junho de 2010, Bolbol (C‑31/09, EU:C:2010:351; a seguir «Acórdão no processo Bolbol»); de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, EU:C:2012:826; a seguir «Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o.»); de 25 de julho de 2018, Alheto (C‑585/16, EU:C:2018:584; a seguir «Acórdão no processo Alheto»); de 13 de janeiro de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana) [C‑507/19, EU:C:2021:3; a seguir «Acórdão no processo Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana)»]; e de 3 de março de 2022, Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana) (C‑349/20, EU:C:2022:151; a seguir «Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana»). Vários destes acórdãos têm por objeto a interpretação do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12), que foi revogada e substituída pela Diretiva 2011/95. No entanto, uma vez que essa disposição é igual à do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, referir‑me‑ei indistintamente aos acórdãos relativos a um ou outro instrumento.

( 5 ) A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 (United Nations Treaty Series, Vol. 189, n.o 2545, 1954, p. 150), entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi complementada e aditada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).

( 6 ) No pedido de decisão prejudicial, são utilizados os termos «cuidados de saúde terciários». Estes termos devem ser entendidos, como as partes e as partes interessadas explicaram na audiência, como referentes a cuidados médicos que implicam diagnósticos, procedimentos e tratamentos avançados e complexos.

( 7 ) Nos termos do considerando 3 da Diretiva 2011/95, o sistema de asilo da União baseia‑se na «aplicação integral e global da Convenção de Genebra» e várias disposições desta diretiva remetem para disposições desta convenção ou reproduzem o seu conteúdo. Por outro lado, o artigo 18.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») dispõe que «[é] garantido o direito de asilo, no quadro da Convenção de Genebra» e, nos termos do artigo 78.o, n.o 1, TFUE, a política comum em matéria de asilo «deve estar em conformidade» com esta Convenção. Daqui resulta que, embora a União Europeia não seja signatária da Convenção de Genebra, o quadro jurídico da União em matéria de asilo deve ser interpretado no respeito desta convenção (v. também, neste sentido, Acórdão no processo Bolbol, n.o 37).

( 8 ) V., neste sentido, Acórdão no processo Alheto, n.o 87. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça designou a cláusula de exclusão como a «causa de exclusão do estatuto de refugiado» e a cláusula de inclusão como a «causa para deixar de se aplicar essa causa de exclusão». Por uma questão de simplicidade, prefiro utilizar os termos «cláusula de exclusão» e «cláusula de inclusão».

( 9 ) A cláusula de exclusão só se aplica às pessoas que recorreram efetivamente à proteção ou assistência prestada pela UNRWA. Não pode ter também por destinatários as pessoas que apenas são ou podiam ser elegíveis para beneficiar de proteção ou de assistência desta agência, mas que não beneficiaram efetivamente da mesma (v. Acórdão no processo Bolbol, n.o 51).

( 10 ) V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 71.

( 11 ) Em especial, a pessoa em causa não tem de demonstrar que receia com razão ser perseguida, na aceção do artigo 2.o, alínea d), da Diretiva 2011/95. No entanto, as autoridades nacionais devem ainda assim verificar se não está abrangida por alguma das causas de exclusão enunciadas no artigo 12.o, n.o 1, alínea b), no artigo 12.o, n.o 2, e no artigo 12.o, n.o 3, desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão no processo Alheto, n.o 86 e jurisprudência referida). Além disso, a pessoa deve apresentar um pedido de estatuto de refugiado. Assim, o facto de os interessados terem direito ipso facto a beneficiar do disposto na Diretiva 2011/95 não implica um direito incondicional ao reconhecimento do estatuto de refugiado. (v. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 75).

( 12 ) C‑585/16, EU:C:2018:327, n.o 36.

( 13 ) O artigo 1.o, ponto D, da Convenção de Genebra não se refere especificamente à UNRWA. Ao invés, menciona, de um modo mais geral, um «organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o [ACNUR].»

( 14 ) V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Bolbol (C‑31/09, EU:C:2010:119, n.o 41).

( 15 ) Ibidem, n.o 43.

( 16 ) V. n.o 21, supra.

( 17 ) V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 62.

( 18 ) Ibidem, n.o 68.

( 19 ) V., por exemplo, a liberdade religiosa (artigo 4.o da Convenção de Genebra); o acesso aos tribunais, a assistência judiciária e a isenção da exigência de prestar caução pelas custas judiciais (artigo 16.o); a assistência pública (artigo 23.o); a legislação do trabalho e segurança social (artigo 24.o, n.o 1).

( 20 ) V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 56.

( 21 ) Ibidem, n.os 58 e 59. Por uma questão de exaustividade, acrescento que o Tribunal de Justiça afirmou que, evidentemente, uma simples ausência dessa zona ou uma simples decisão voluntária de sair da mesma não pode ser considerada uma cessação de proteção ou assistência.

( 22 ) A este respeito, há que ter em conta as circunstâncias pertinentes como estas se apresentam não apenas no momento da partida dessa pessoa da área de operações da UNRWA, mas também no momento em que as autoridades administrativas ou judiciárias competentes examinam um pedido de concessão do estatuto de refugiado ou uma decisão de recusa de concessão desse estatuto [v. Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.o 58].

( 23 ) V. Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 63.

( 24 ) Por exemplo, nas situações em causa no processo que deu origem ao Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., as pessoas em causa tinham sido insultadas, maltratadas, detidas arbitrariamente, torturadas ou humilhadas por soldados libaneses, e a sua casa tinha sido incendiada ou danificada e/ou tinham recebido ameaças de morte.

( 25 ) Entendo que o Governo belga considera que, em princípio, só são pertinentes as ameaças ou deficiências que afetam os apátridas de origem palestiniana como um grupo ou as que são de natureza sistémica (por oposição a ameaças individuais ou isoladas). Tal interpretação restritiva é, na minha opinião, errada. Com efeito, se fosse seguida a abordagem desse governo, a avaliação individual a que as autoridades nacionais devem proceder deixaria de ter sentido. Por outro lado, o Tribunal de Justiça já confirmou que basta demonstrar que a assistência ou a proteção da UNRWA cessou efetivamente independentemente da razão, entre as quais figuram «razões objetivas ou relacionadas com a situação individual da referida pessoa» [v. Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.o 72].

( 26 ) Ibidem, n.os 24 e 50.

( 27 ) Como salientou o requerente no processo principal, a «saúde» e a «deficiência» figuram entre as «circunstâncias pessoais» que podem conferir a um apátrida de origem palestiniana o direito de obter o estatuto de refugiado, nas Diretrizes do ACNUR sobre Proteção Internacional n.o 13, ponto 24.

( 28 ) Na minha opinião, é importante que o estado de saúde da pessoa seja agravado por tais fatores externos. A situação é diferente, no meu entender, quando não existe tratamento ou cuidado médico suscetível de atenuar as dores ou o sofrimento da pessoa, ou se esta se recusar simplesmente a receber o tratamento médico necessário (caso em que o fator agravante é interno, não externo).

( 29 ) V. Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.os 70 e 71.

( 30 ) Acrescento que a jurisprudência do Tribunal de Justiça na qual estes governos baseiam os seus argumentos [segundo a qual, no essencial, não tem de ser concedida proteção internacional a uma pessoa que padeça de uma doença grave pelo simples facto de não poder obter tratamentos adequados no seu país de origem, salvo se for intencionalmente privada de tais tratamentos [v. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, M’Bodj (C‑542/13, EU:C:2014:2452, n.o 36)] não diz respeito a apátridas de origem palestiniana, mas a outros requerentes de asilo. Como referi nos n.os 26 a 28, supra, os apátridas de origem palestiniana não se encontram na mesma situação nem estão sujeitos às mesmas condições que os outros requerentes de asilo.

( 31 ) V. n.o 21, supra.

( 32 ) V. Acórdão no processo Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.o 67.

( 33 ) V. Acórdãos no processo Alheto, n.o 84, e no processo Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.o 48.

( 34 ) V., neste sentido, Acórdão no processo Abed El Karem El Kott e o., n.o 60.

( 35 ) Observo que, segundo a carta da UNRWA para o ACNUR de 22 de setembro de 2021, que descreve o mandato e os serviços da UNRWA (disponível no seguinte endereço: https://www.unrwa.org/resources/about‑unrwa/UNRWA_letter_to_UNHCR), afigura‑se que os serviços da UNRWA incluem a prestação, entre outros, de educação básica e cuidados de saúde primários. À primeira vista, os cuidados médicos terciários não parecem, portanto, estar incluídos, mas, na minha opinião, esta lacuna não conduz necessariamente a uma resposta negativa à primeira questão.

( 36 ) Evidentemente, é aos órgãos jurisdicionais nacionais que compete verificar esta situação.

( 37 ) V. n.os 51 e 52, supra.

( 38 ) V. Acórdão no processo Bundesrepublik Deutschland (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.os 55 e 56.

( 39 ) Com efeito, caso contrário, como assinalou a Comissão, considerações relacionadas, por exemplo, com restrições orçamentais — que são pertinentes para apreciar se a UNRWA está concretamente em condições de prestar uma proteção ou assistência efetiva — passariam a ser precisamente a razão pela qual não se pode considerar que essa mesma proteção ou assistência «cess[ou]», na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95.

( 40 ) O Governo francês referiu, a este respeito, o artigo L 425‑9 do Código sobre a entrada e a residência de nacionais estrangeiros e o direito de asilo.

( 41 ) Com efeito, o Tribunal de Justiça afirmou que «o papel do Estado, no qual a UNRWA opera, pode também ser determinante para permitir que este organismo cumpra o seu mandato de maneira eficaz e para garantir que as pessoas em causa vivam em condições dignas» [v. Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.os 82 e 83]. Observo que o Tribunal de Justiça também declarou, nesse acórdão, que a necessidade de tomar em consideração todas as circunstâncias individuais pertinentes, incluindo as respeitantes ao(s) Estado(s) em que a UNRWA opera, decorre diretamente do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2011/95 (v. n.o 54 deste acórdão). Esta disposição enumera os fatores que devem ser tidos em conta pelas autoridades administrativas ou judiciárias competentes na apreciação de um pedido de proteção internacional.

( 42 ) Para dar um exemplo simples, é evidente que uma guerra no Estado em que a UNRWA opera pode ter um impacto direto na possibilidade de a UNRWA assegurar ou não a sua «proteção ou assistência» na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/95. Acrescento que, no Acórdão no processo Secretary of State for the Home Department (Estatuto de refugiado de um apátrida de origem palestiniana), n.o 80, o Tribunal de Justiça indicou igualmente que qualquer assistência prestada por agentes da sociedade civil, como as ONG, deverá ser tomada em consideração desde que a UNRWA mantenha com aqueles agentes da sociedade civil uma relação formal de cooperação, que revista um caráter estável, no âmbito da qual estes últimos assistem a UNRWA no cumprimento do seu mandato.

( 43 ) V. artigos 1.o, 2.o e 4.o da Carta.

( 44 ) O Tribunal de Justiça afirmou, por exemplo, que a proibição dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, prevista no artigo 4.o da Carta, reveste caráter absoluto [v. Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 85)].

( 45 ) V., também, Acórdão no processo Bobol, n.o 38 e jurisprudência referida.

( 46 ) V. Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica) (C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 65 e jurisprudência referida) [a seguir «Acórdão no processo Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica)»].

( 47 ) V., neste sentido, Acórdão do TEDH de 13 de dezembro de 2016, Paposhvili/Bélgica (CE:ECHR:2016:1213JUD004173810, §§ 178 e 183). V., também, Acórdão no processo Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), n.os 63 e 66. Esta jurisprudência diz respeito a situações de afastamento de uma pessoa gravemente doente. Ora, considero que é pertinente para efeitos do presente processo.

( 48 ) V. n.o 54 desse acórdão e jurisprudência referida.

( 49 ) Tanto o limiar de duas vertentes que indiquei como o conceito de «dignidade humana» foram invocados pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), n.os 63 e 71.

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