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Document 62022CC0077

    Conclusões do advogado-geral P. Pikamäe apresentadas em 2 de março de 2023.
    Grupa Azoty S.A. e o. contra Comissão Europeia.
    Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Orientações relativas a determinadas medidas de auxílio estatal no âmbito do sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa — Setores económicos elegíveis — Exclusão do setor do fabrico de produtos azotados e de adubos — Recurso de anulação — Admissibilidade — Direito de recurso das pessoas singulares ou coletivas — Artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE — Requisito segundo o qual o recorrente deve ser diretamente afetado.
    Processos apensos C-73/22 P e C-77/22 P.

    Identificator ECLI: ECLI:EU:C:2023:157

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    M. PRIIT PIKAMÄE

    apresentadas em 2 de março de 2023 ( 1 )

    Processos apensos C‑73/22 P e C‑77/22 P

    Grupa Azoty S.A,

    Azomureș SA,

    Lipasmata Kavalas LTD Ypokatastima Allodapis

    contra

    Comissão Europeia (C‑73/22 P)

    e

    Advansa Manufacturing GmbH,

    Beaulieu International Group,

    Brilen, SA,

    Cordenka GmbH & Co KG,

    Dolan GmbH,

    Enka International GmbH & Co KG,

    Glanzstoff Longlaville,

    Infinited Fiber Company Oy,

    Kelheim Fibres GmbH,

    Nurel, SA,

    PHP Fibers GmbH,

    Teijin Aramid BV,

    Thrace Nonwovens & Geosynthetics monoprosopi AVEE mi yfanton yfasmaton kai geosynthetikon proïonton,

    Trevira GmbH

    contra

    Dralon GmbH,

    Comissão Europeia (C‑77/22 P)

    «Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Orientações relativas a determinadas medidas de auxílio estatal no âmbito do sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa após 2021 — Setores elegíveis — Exclusão do setor da fabricação de adubos e de compostos azotados — Recurso de anulação — Conceito de “ato impugnável”»

    1.

    Os presentes processos apensos têm por objeto os recursos pelos quais as empresas recorrentes pedem a anulação dos Despachos do Tribunal Geral da União Europeia de 29 de novembro de 2021, Grupa Azoty e o./Comissão (T‑726/20, não publicado), e de 29 de novembro de 2021, Advansa Manufacturing e o./Comissão (T‑741/20, não publicado) (a seguir «despachos recorridos»), pelos quais o Tribunal Geral julgou inadmissíveis os respetivos recursos destinados a obter a anulação parcial da Comunicação da Comissão de 25 de setembro de 2020 intitulada «Orientações relativas a determinadas medidas de auxílio estatal no âmbito do sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa após 2021» ( 2 ).

    2.

    O Tribunal de Justiça terá assim a oportunidade de prestar esclarecimentos de grande relevância no que respeita à interpretação de certos requisitos de admissibilidade do recurso interposto por particulares perante o Tribunal Geral, designadamente sobre o conceito de «ato impugnável» e o requisito da afetação direta, bem como a relação entre estes dois requisitos.

    Antecedentes dos litígios

    3.

    A Diretiva 2003/87/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 2003, relativa à criação de um regime de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa na Comunidade e que altera a Diretiva 96/61/CE do Conselho (JO 2003, L 275, p. 32), criou um sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa na União Europeia (a seguir «CELE») a fim de promover a redução das emissões de gases com efeito de estufa em condições que ofereçam uma boa relação custo‑eficácia e sejam economicamente eficientes. Esta diretiva foi alterada, nomeadamente, pela Diretiva (UE) 2018/410 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de março de 2018, que altera a Diretiva 2003/87/CE (JO 2018, L 76, p. 3), com o objetivo de, entre outros, melhorar e prolongar o CELE da União para o período 2021‑2030.

    4.

    O artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterado pela Diretiva 2018/410, tem a seguinte redação:

    «Os Estados‑Membros deverão adotar medidas financeiras em conformidade com o segundo e o quarto parágrafos a favor de setores ou subsetores expostos a um risco real de fuga de carbono, devido aos significativos custos indiretos efetivamente incorridos pelo facto de os custos das emissões de gases com efeito de estufa se repercutirem nos preços da eletricidade, desde que essas medidas financeiras estejam em conformidade com as regras relativas aos auxílios de Estado e, em especial, desde que não causem distorções indevidas da concorrência no mercado interno. […]»

    5.

    As Orientações controvertidas substituem, desde 1 de janeiro de 2021, a Comunicação de 5 de junho de 2012 intitulada «Orientações relativas a determinadas medidas de auxílio estatal no âmbito do regime de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa após 2012» (JO 2012, C 158, p. 4).

    6.

    No ponto 7 das Orientações controvertidas, a Comissão declara que estabelece nessas orientações as condições nos termos das quais as medidas de auxílio no contexto do CELE podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE.

    7.

    No ponto 9 das Orientações controvertidas, a Comissão estabelece que os princípios nelas enunciados «[se aplicam] apenas às medidas de auxílio específicas previstas nos artigos 10.o‑A, n.o 6, e 10.o‑B da Diretiva 2003/87/CE».

    8.

    Nos termos do ponto 21 das Orientações controvertidas:

    «Para limitar o risco de distorção da concorrência no mercado interno, o auxílio deve limitar‑se aos setores expostos a um risco real de fuga de carbono devido aos significativos custos indiretos efetivamente incorridos em consequência da repercussão efetiva dos custos das emissões de gases com efeito de estufa no preço da eletricidade. Para efeito das presentes Orientações, só se considera que existe um risco real de fuga de carbono quando o beneficiário exerce as suas atividades num setor constante do anexo I.»

    9.

    As recorrentes, Grupa Azoty S.A., Azomureș SA e Lipasmata Kavalas LTD Ypokatastima Allodapis, são empresas que exercem a sua atividade no setor da fabricação de adubos e de compostos azotados, atualmente abrangido pelo código NACE 20.15.

    10.

    Este setor não aparece na lista do anexo I das Orientações controvertidas, apesar de constar da lista do anexo II das Orientações de 2012, que foram aplicáveis até 31 de dezembro de 2020.

    Tramitação processual no Tribunal Geral e despachos recorridos

    11.

    Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral em 15 e 16 de dezembro de 2020, as recorrentes interpuseram recursos de anulação do anexo I das Orientações controvertidas, ao abrigo do artigo 263.o TFUE.

    12.

    Pelos despachos recorridos, o Tribunal Geral declarou os recursos inadmissíveis.

    13.

    O Tribunal Geral recordou, no n.o 26 dos referidos despachos, que a admissibilidade de um recurso interposto por uma pessoa singular ou coletiva, ao abrigo do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, de um ato do qual não é destinatária, está subordinada ao requisito de lhe ser reconhecida legitimidade processual ativa, a qual se apresenta em duas situações. Por um lado, tal recurso pode ser interposto desde que o referido ato em questão lhe diga direta e individualmente respeito. Por outro lado, essa pessoa pode interpor um recurso contra um ato regulamentar que não necessite de medidas de execução se o mesmo lhe disser diretamente respeito.

    14.

    Concluiu, no n.o 27 dos referidos despachos, que e era necessário analisar se as recorrentes, que não são destinatárias das Orientações controvertidas, se enquadram numa destas duas situações. Uma vez que cada uma das situações requer que o recorrente seja diretamente afetado pelo ato impugnado, o Tribunal Geral considerou ser pertinente examinar, antes de mais, este requisito.

    15.

    A este respeito, o Tribunal Geral recordou, no n.o 29 dos mesmos despachos, que o requisito segundo a qual uma pessoa singular ou coletiva deve ser diretamente afetada pela decisão objeto do recurso requer a reunião de dois critérios cumulativos, a saber, que o ato contestado, por um lado, produza diretamente efeitos na situação jurídica do particular e, por outro, não deixe nenhum poder de apreciação aos destinatários que estão encarregados da sua execução, uma vez que esta tem caráter puramente automático e decorre apenas da regulamentação da União, sem aplicação de outras regras intermédias.

    16.

    Segundo o Tribunal Geral, as Orientações em questão não afetam diretamente a situação jurídica das recorrentes.

    17.

    Em apoio desta apreciação, o Tribunal Geral declarou, nos n.os 40 a 42 dos despachos recorridos, que o entendimento, nas Orientações controvertidas, de que só existe um risco real de fuga de carbono quando o beneficiário do auxílio exerce a sua atividade num dos setores enumerados no anexo I das referidas Orientações não exclui do ponto de vista jurídico ‑ ainda que, por razões de oportunidade, seja pouco provável que tal aconteça ‑ que os Estados‑Membros possam notificar à Comissão medidas de auxílio a favor de empresas que operem em setores distintos dos enumerados no referido anexo e possam procurar demonstrar que, apesar de não satisfazerem um dos critérios estabelecidos nas referidas Orientações, um auxílio a essas empresas corresponde ao disposto no artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE. Embora reconhecendo ser muito provável que, em tal caso, a Comissão adote, ao abrigo do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o [TFUE] (JO 2015 L 248, p. 9), uma decisão que declare que o auxílio proposto é incompatível com o mercado interno, o Tribunal Geral indicou que só esta decisão seria suscetível de produzir efeitos jurídicos diretos relativamente às empresas que deveriam ter beneficiado do auxílio e, na medida em que tal decisão afetaria diretamente essas empresas, poderia ser objeto de um recurso de anulação por parte das mesmas.

    18.

    O Tribunal Geral declarou ainda, no n.o 38 dos despachos recorridos, que, no caso de um Estado‑Membro decidir não adotar nenhuma medida de auxílio abrangida pelo âmbito de aplicação das Orientações controvertidas, a Comissão não adotará nenhuma decisão ao abrigo do Regulamento n.o 2015/1589. Por conseguinte, também neste caso, essas Orientações não produzem efeitos diretos sobre a situação jurídica das recorrentes.

    Pedidos das partes

    19.

    Com os seus recursos, as recorrentes concluem pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

    anular os despachos recorridos;

    declarar os recursos admissíveis;

    a título subsidiário, anular os despachos recorridos com o fundamento de que o Tribunal Geral deveria ter reservado a decisão sobre a admissibilidade até à apreciação do mérito dos recursos;

    remeter os processos ao Tribunal Geral para apreciação do mérito;

    condenar a Comissão nas despesas do presente processo;

    reservar a questão das despesas do processo perante o Tribunal Geral para depois de este ter concluído a sua apreciação quanto ao mérito.

    20.

    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

    negar provimento aos recursos, e

    condenar as recorrentes nas despesas;

    a título subsidiário, se o Tribunal de Justiça anular os despachos recorridos, que se pronuncie sobre os recursos julgando‑os inadmissíveis, e condene as recorrentes nas despesas.

    21.

    Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça, de 16 de setembro de 2022, os processos C‑73/22 P e C‑77/22 P foram apensados para efeitos da possível fase oral do processo e do acórdão.

    Quanto ao recurso

    22.

    O presente recurso assenta em dois fundamentos. O primeiro é relativo à insuficiência da fundamentação dos despachos recorridos, enquanto, no segundo, as recorrentes alegam, a título principal, que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que as recorrentes não são diretamente afetadas pelas Orientações controvertidas e, a título subsidiário, que o Tribunal Geral deveria ter examinado os recursos quanto ao mérito antes de se pronunciar sobre a sua admissibilidade.

    23.

    A pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões versarão apenas sobre o segundo fundamento.

    Argumentos das partes

    24.

    De acordo com as recorrentes, a apreciação da afetação direta exposta nos despachos recorridos baseia‑se em três pressupostos não pertinentes ou até mesmo erróneos.

    25.

    Em primeiro lugar, o Tribunal Geral presumiu que, para efeitos do artigo 263.o TFUE, todas as orientações da Comissão devem ser qualificadas da mesma maneira, o que reflete uma abordagem incorreta. A este respeito, o Tribunal Geral baseou‑se erradamente em precedentes relativos a orientações que deixam uma margem de apreciação aos Estados‑Membros ou que estabelecem exceções que podem ser invocadas por estes. Além disso, o Tribunal Geral considera que as Orientações controvertidas vinculam apenas a Comissão. Ao fazê‑lo, parece esquecer que as Orientações controvertidas foram publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, série C, se dirigem diretamente aos Estados‑Membros, não lhes deixam nenhuma margem de apreciação ou exceção no que respeita aos setores económicos elegíveis para auxílios que podem ser concedidos ao abrigo do artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, e, ao conterem uma formulação obrigatória, visam desempenhar o papel de legislação normativa.

    26.

    Em segundo lugar, o Tribunal Geral baseou‑se erradamente na possibilidade de um Estado‑Membro notificar à Comissão medidas de auxílio a favor de empresas que operam em setores diferentes dos enumerados no anexo I das Orientações controvertidas, procurando demonstrar que tais medidas são, no entanto, compatíveis com o mercado interno, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE. A este respeito, as recorrentes alegam que, embora seja certo que, juridicamente, existe essa possibilidade, essa circunstância não altera o facto de as Orientações controvertidas excluírem a concessão do auxílio previsto no artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, aos operadores económicos que exercem atividades em setores não mencionados no anexo I da mesma. Esta exclusão não é, de modo nenhum, compensada pela possibilidade geral de concessão de auxílios de Estado ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE. Na realidade, qualquer previsão sobre a concessão de tais auxílios seria puramente especulativa, enquanto os auxílios previstos no referido artigo 10.o‑A, n.o 6, estão formalmente previstos e são encorajados por esta disposição.

    27.

    Em terceiro lugar, o Tribunal Geral baseou‑se no pressuposto erróneo de que um operador económico só pode ser diretamente afetado se a Comissão adotar uma decisão ao abrigo do Regulamento 2015/1589. As recorrentes ver‑se‑iam assim desprovidas de qualquer meio de recurso. De facto, não sendo os Estados‑Membros obrigados a estabelecer um regime de auxílios ao abrigo do artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, afigura‑se plausível que não seja feita nenhuma notificação e, por conseguinte, que não seja adotada nenhuma decisão pela Comissão. Tal situação, caracterizada pela inexistência de auxílios a favor das recorrentes, seria idêntica àquela em que um regime de auxílios incluindo o setor do fabrico de adubos e de compostos azotados, estabelecido ao abrigo do artigo 10.o‑A, n.o 6, e notificado à Comissão, é objeto de uma decisão desfavorável por parte da Comissão. No entanto, a diferença reside no facto de, na primeira situação, as recorrentes não disporem de nenhuma via de recurso, enquanto na segunda situação podem recorrer do ato, o que seria inadmissível, uma vez que, em ambos os casos, as recorrentes são afetadas da mesma maneira.

    28.

    A título subsidiário, as recorrentes pedem ao Tribunal de Justiça que anule os despachos recorridos com o fundamento de que o Tribunal Geral deveria ter examinado o mérito dos recursos antes de se pronunciar sobre a sua admissibilidade.

    29.

    A Comissão opõe‑se a todos estes argumentos.

    Apreciação

    30.

    Nas presentes conclusões, o meu raciocínio será estruturado da seguinte forma: vertidas algumas observações introdutórias, começarei por expor as razões pelas quais me parece que as Orientações controvertidas não podem ser classificadas de «ato impugnável» e, como tais, ser recorríveis ao abrigo do artigo 263.o TFUE. Em segundo lugar, defenderei que a análise do cumprimento do requisito da afetação direta não pode ser realizada de forma útil em relação a um instrumento como as Orientações controvertidas, o que sustenta a interpretação de que estas não são impugnáveis. Em terceiro lugar, explicarei por que razão o raciocínio seguido no Acórdão Deutsche Post e Alemanha/Comissão ( 3 ) não é aplicável às Orientações controvertidas. Em quarto lugar, defenderei que o Tribunal Geral não tinha a obrigação de apreciar os recursos quanto ao mérito antes de decidir sobre a sua admissibilidade.

    Observações preliminares

    31.

    Tanto quanto sei, a problemática da admissibilidade dos recursos interpostos por pessoas coletivas na área do direito dos auxílios de Estado, tal como suscitada perante o Tribunal de Justiça até agora, apenas dizia respeito a recursos de decisões da Comissão adotadas na sequência de uma análise preliminar (artigo 4.o do Regulamento 2015/1589) ou aquando do encerramento de um procedimento formal de investigação (artigo 9.o do Regulamento 2015/1589), e determinando se uma medida de auxílio proposta e notificada, ou concedida na ausência de notificação, constituía um auxílio estatal na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE e, se fosse o caso, se essa medida é compatível com o mercado interno com base em alguma das justificações enumeradas no artigo 107.o, n.os 2 e 3, TFUE.

    32.

    A questão jurídica suscitada pelo presente fundamento, que se refere precisamente à possibilidade de impugnar as Orientações da Comissão é, portanto, inédita para o Tribunal de Justiça e, além disso, por incidir sobre o acesso à justiça da União, é sem dúvida delicada.

    33.

    Com os despachos recorridos, é a terceira vez que o Tribunal Geral se pronuncia sobre esta questão. Nas duas ocasiões anteriores ( 4 ), o Tribunal Geral adotou o mesmo raciocínio jurídico seguido no presente caso, o que torna ainda mais importante que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a exatidão de tal raciocínio no acórdão a proferir.

    34.

    Importa recordar o contexto pertinente. O artigo 108.o, n.o 3, TFUE estabelece uma fiscalização preventiva dos projetos de novos auxílios (bem como das alterações aos auxílios existentes). O mecanismo preventivo organizado deste modo visa assegurar que apenas sejam implementadas medidas compatíveis com o mercado interno. A avaliação da compatibilidade destas medidas com o mercado interno, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, é da competência exclusiva da Comissão, sujeita à fiscalização dos órgãos jurisdicionais da União. A este respeito, a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação, cujo exercício implica avaliações de ordem económica e social, e tem assim o direito de estabelecer os critérios com base nos quais tenciona avaliar a compatibilidade das medidas de auxílio previstas pelos Estados‑Membros com o mercado interno.

    35.

    Para o efeito, na sua prática administrativa, a Comissão recorre amplamente a instrumentos de direto indicativo (soft law), como orientações, enquadramentos e comunicações, para estruturar o exercício do seu poder discricionário de apreciação. Como reconhece o Tribunal de Justiça ( 5 ), estes instrumentos contribuem para a transparência, previsibilidade e segurança jurídica da ação levada a cabo pela Comissão.

    36.

    Os instrumentos em questão incluem regras horizontais que regulam determinadas categorias de auxílios (designadamente, auxílios regionais; auxílios à investigação, desenvolvimento e inovação; auxílios de emergência e à reestruturação de empresas em situação difícil); regras sobre instrumentos de auxílio específicos (em matéria de garantias, fiscalidade, seguro de crédito à exportação a curto prazo); regras setoriais (designadamente nos setores da agricultura, energia e ambiente, da finança, dos meios de comunicação); e regras sobre os auxílios à economia no contexto do surto da pandemia de COVID‑19 e na sequência da agressão Federação da Rússia contra a Ucrânia. As Orientações controvertidas contêm regras setoriais relacionadas com os auxílios no contexto do sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa.

    As Orientações controvertidas não constituem um ato impugnável

    37.

    Como referido anteriormente, nos despachos recorridos o Tribunal Geral examinou unicamente a questão de saber se as recorrentes eram diretamente afetadas pelas Orientações controvertidas, a fim de determinar se as mesmas tinham a legitimidade processual necessária para interporem recurso do ato em causa. A troca de articulados entre as recorrentes e a Comissão no processo em apreço incidiu sobre esta questão jurídica.

    38.

    No entanto, acredito firmemente que, no acórdão a proferir, o Tribunal de Justiça deveria, antes de mais, analisar se as Orientações controvertidas constituem um ato suscetível de recurso na aceção do artigo 263.o TFUE, isto é, um «ato impugnável». Com efeito, importa recordar que a questão de saber se estas Orientações são impugnáveis, no que respeita à admissibilidade do recurso de anulação interposto no Tribunal Geral, constitui um fundamento de ordem pública que incumbe ao Tribunal de Justiça suscitar oficiosamente em sede de recurso ( 6 ).

    39.

    Segundo jurisprudência constante, todos os atos adotados pelas instituições da União, seja qual for a sua forma, que visem produzir efeitos jurídicos vinculativos, podem ser impugnados. Esses efeitos devem ser apreciados em função de critérios objetivos, tais como o conteúdo do ato em causa, tendo em conta, se for caso disso, o contexto da adoção deste último, bem como os poderes da instituição que dele é autora ( 7 ). Igualmente de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quando o recorrente é uma pessoa singular ou coletiva, só pode ser interposto o recurso se os referidos efeitos jurídicos vinculativos forem suscetíveis de afetar os interesses do recorrente, alterando de forma caracterizada a sua situação jurídica ( 8 ). Por outras palavras, nesta hipótese, só é passível de impugnação um ato que produza efeitos jurídicos vinculativos na esfera jurídica do recorrente.

    40.

    Tendo em conta estes elementos, as Orientações controvertidas não me parecem suscetíveis de ser objeto de um recurso de anulação por parte das recorrentes ao abrigo do artigo 263.o TFUE.

    41.

    A título preliminar, saliente‑se que a intensidade normativa resultante da natureza exaustiva da lista do anexo I das Orientações controvertidas não leva à conclusão de que estas constituem um ato impugnável. De facto, se as Orientações não forem suscetíveis de produzir efeitos jurídicos vinculativos na esfera jurídica dos recorrentes ‑ como tentarei demonstrar nestas conclusões ‑ não é necessário, como já foi explicado acima, considerar o conteúdo desse ato (ou o contexto em torno da sua adoção).

    42.

    A este respeito, importa recordar, antes de mais, que, na sua jurisprudência em matéria de auxílios de Estado, o Tribunal de Justiça já definiu o efeito das orientações ao considerar que, ao adotar regras de conduta e ao anunciar, através da sua publicação, que as aplicará aos casos a que dizem respeito, a Comissão se autolimita no exercício do seu poder de apreciação e não pode desrespeitar essas regras sob pena de poder ser sancionada, eventualmente, por violação de princípios gerais de direito, tais como os da igualdade de tratamento ou da proteção da confiança legítima ( 9 ). Por outras palavras, o referido efeito é uma limitação ao exercício do poder de apreciação da Comissão. A Comissão é assim obrigada a aprovar medidas de auxílio que respeitem as orientações e não pode desviar‑se delas, a menos que apresente uma razão válida para o fazer, de acordo com o mecanismo conhecido como «comply or explain». Caso contrário, o incumprimento das regras autoimpostas pela Comissão poderia levar a uma violação dos princípios gerais supramencionados.

    43.

    Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça esclareceu, no Acórdão Kotnik e o. ( 10 ), que o efeito das orientações se circunscreve à referida autolimitação do poder de apreciação da Comissão, rejeitando o argumento segundo o qual estas produzem de facto efeitos vinculativos para os Estados‑Membros, uma vez que seria no mínimo improvável que um Estado‑Membro notificasse uma medida de auxílio que não cumprisse os requisitos das orientações, expondo‑se assim ao risco de uma eventual decisão desfavorável da Comissão quanto à aplicação da medida de auxílio em questão. Com efeito, o Tribunal de Justiça observou a este respeito que os Estados‑Membros mantêm a possibilidade de notificar à Comissão os projetos de auxílios de Estado que não satisfazem os critérios previstos nas orientações e que a Comissão pode autorizar esses projetos em circunstâncias excecionais, em virtude de uma aplicação direta do artigo 107.o, n.o 3, TFUE ( 11 ).

    44.

    Portanto, de acordo com a jurisprudência analisada nos dois números anteriores, a força jurídica reconhecida às orientações não é uma característica intrínseca das mesmas, mas está ligada à sua aplicação no contexto da prática decisória da Comissão. Por outras palavras, só uma decisão da Comissão sobre a compatibilidade de uma medida de auxílio com o mercado interno é suscetível de produzir efeitos jurídicos vinculativos em relação a terceiros.

    45.

    Esta perspetiva parece ser acolhida pela jurisprudência relativa às orientações em matéria antitrust. Embora seja verdade que o Tribunal de Justiça, nos processos Dansk Rørindustri e o./Comissão e Ziegler/Comissão, considerou que «[p]or conseguinte, não se pode excluir que, sob determinadas condições e em função do seu conteúdo, tais regras de conduta que tenham um alcance geral possam produzir efeitos jurídicos» ( 12 ), é igualmente certo que, nesses processos, os recorrentes contestavam a legalidade de uma decisão da Comissão à luz das disposições das orientações então em causa. O Tribunal de Justiça pronunciou‑se, pois, sobre a questão de saber se essas disposições pertenciam ao quadro jurídico que rege a adoção da decisão da Comissão e, assim sendo, produziam efeitos jurídicos para a Comissão no sentido de que esta não podia renunciar às referidas disposições sem ser penalizada por infringir os princípios gerais do direito da União ( 13 ).

    46.

    Em contrapartida, uma interpretação que reconheça o caráter impugnável das Orientações controvertidas seria pouco convincente na medida em que implicaria que efeitos jurídicos vinculativos em relação a terceiros pudessem preceder a notificação da medida de auxílio em causa pelo Estado‑Membro e a sua apreciação pela Comissão no âmbito do procedimento administrativo. Assim, parece‑me que a conformidade desta interpretação com os princípios fundamentais que regem o controlo dos auxílios de Estado seria, no mínimo, questionável, por duas razões principais.

    47.

    Primeiro, esta interpretação não tem suficientemente em conta o papel central da notificação na fiscalização dos auxílios de Estado. A este respeito, é importante recordar que a obrigação de notificação estabelecida pelo artigo 108.o, n.o 3, TFUE é um dos elementos fundamentais do sistema de fiscalização estabelecido pelos Tratados neste domínio. Como já precisou o Tribunal de Justiça ( 14 ), esta obrigação de notificação é essencial para permitir à Comissão exercer plenamente a missão de fiscalização que lhe foi confiada pelos artigos 107.o e 108.o TFUE em matéria de auxílios de Estado e, especialmente, para apreciar, no exercício da competência exclusiva de que goza a este respeito, sob a fiscalização dos órgãos jurisdicionais da União, a compatibilidade de medidas de auxílio com o mercado interno, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, TFUE.

    48.

    Ora, o argumento segundo o qual os Estados‑Membros são induzidos a notificar um regime de auxílios apenas a favor das empresas que operam nos setores efetivamente enumerados no anexo I, com exclusão das recorrentes, não me convence, na medida em que, por um lado, os Estados são encorajados («deverão»), ao abrigo do artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, a adotar medidas financeiras a favor de setores expostos a um risco real de fuga de carbono devido a custos indiretos, e, por outro, o anexo I contém uma lista exaustiva desses setores, que não inclui o setor em que as recorrentes operam. Constato, com efeito, que, recentemente, o Tribunal de Justiça julgou implicitamente improcedente o fundamento avançado nas conclusões do advogado‑geral de que a impugnabilidade de um instrumento de soft law depende unicamente da capacidade desse instrumento para provocar uma modificação no comportamento dos destinatários, sem que seja necessário que produza efeitos formalmente vinculativos para os mesmos ( 15 ).

    49.

    Segundo, e mais importante, a referida interpretação tornaria, a meu ver, inútil o princípio de que as orientações não podem afetar o alcance do direito primário. É, de facto, ponto assente que a Comissão está vinculada pelos enquadramentos e comunicações (bem como pelas orientações) que adota em matéria de auxílios de Estado unicamente na medida em que esses textos não se afastem de uma boa aplicação das normas do Tratado, pois esses textos não podem ser interpretados num sentido que reduza o âmbito dos artigos 107.o e 108.o TFUE ou que contradiga os seus objetivos ( 16 ).

    50.

    Ora, a determinação correta do alcance do artigo 107.o TFUE num caso individual não pode ser garantida se não for adotada uma decisão da Comissão, encerrando o procedimento administrativo (ou uma fase deste), através da qual a Comissão decide se a situação factual e económica prevalecente no momento da adoção da sua decisão a obriga a afastar‑se das disposições das orientações, a fim de dar cumprimento aos artigos 107.o e 108.o TFUE ( 17 ).

    51.

    À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que considere que as Orientações controvertidas não constituem um ato impugnável, suscetível, enquanto tal, de recurso judicial ao abrigo do artigo 263.o TFUE.

    A análise destinada a verificar se as Orientações controvertidas preenchem o requisito da afetação direta revela que estas não são um ato impugnável

    52.

    A meu ver, uma vez que o requisito «digam diretamente respeito» na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE foi decomposto com rigor, decorre da análise destinada a verificar o cumprimento deste requisito no caso das Orientações controvertidas que o pressuposto relativo à impugnabilidade do ato em questão está errado, o que consolida a interpretação proposta na secção precedente das presentes conclusões.

    53.

    É ponto assente que o requisito da afetação direta exige o cumprimento de dois critérios cumulativos ( 18 ), a saber, que a medida impugnada, primeiro, produza diretamente efeitos na situação jurídica do recorrente e, segundo, não deixe nenhum poder de apreciação aos destinatários encarregados da sua implementação, revestindo esta um caráter puramente automático e decorrendo apenas da regulamentação da União, sem aplicação de outras regras intermédias ( 19 ).

    54.

    O primeiro critério exige que se determine se o compromisso assumido pela Comissão nas Orientações controvertidas, que consiste em considerar os auxílios ao abrigo do artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, compatíveis com o mercado interno quando concedidos aos setores enumerados taxativamente no anexo I dessas orientações, afeta diretamente a posição jurídica das recorrentes.

    55.

    Nos n.os 38 a 42 dos despachos recorridos, o Tribunal Geral, antes de mais, considerou, em substância, que o facto de os Estados‑Membros terem a faculdade de notificar à Comissão uma medida de auxílio que não cumpre as condições estabelecidas nas Orientações controvertidas, impede o reconhecimento do referido caráter direto. No caso em apreço, a existência da lista taxativa dos setores suscetíveis de beneficiar do auxílio, constante do anexo I das referidas Orientações, não pode excluir «do ponto de vista jurídico», segundo o Tribunal Geral, a possibilidade de os Estados‑Membros notificarem à Comissão uma medida de auxílio a favor de empresas que exerçam as suas atividades em setores diferentes dos enumerados no referido anexo.

    56.

    O Tribunal Geral salientou em seguida, em substância, que o facto de um Estado‑Membro poder não estar sempre pronto a correr o risco de notificar à Comissão as medidas de auxílio que não são conformes com as Orientações controvertidas não é pertinente neste caso, uma vez que, «do ponto de vista jurídico», um Estado Membro poderá estar em condições de provar que, embora não preenchendo as condições contidas nessas Orientações, um auxílio concedido a uma empresa que opere num setor diferente dos enumerados no anexo I é compatível com o artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE. Embora seja muito provável que a Comissão adote, em aplicação das Orientações controvertidas, uma decisão que considere o auxílio incompatível com o mercado interno, «só essa decisão seria suscetível de produzir efeitos jurídicos diretos relativamente às empresas que deveriam ter beneficiado do auxílio» ( 20 ).

    57.

    Na minha opinião, o raciocínio do Tribunal Geral seria correto se fosse desenvolvido no contexto da análise da questão de saber se essas Orientações podem ser classificadas de ato impugnável. Este raciocínio baseia‑se, de facto, na ausência de efeitos jurídicos vinculativos para os Estados‑Membros, o que leva, como explicado anteriormente, à conclusão de que as Orientações controvertidas não produzem tais efeitos em relação às recorrentes.

    58.

    A este respeito, é importante notar que o cerne da argumentação do Tribunal Geral, concretamente o n.o 41 dos despachos recorridos, apenas transpõe o caminho jurídico seguido pelo advogado‑geral N. Wahl nos n.os 43 e 44 das suas Conclusões no processo Kotnik e o. ( 21 ). Como se viu anteriormente, este processo dizia nomeadamente respeito à questão de saber se as orientações adotadas no domínio dos auxílios de Estado eram suscetíveis de produzir efeitos jurídicos vinculativos relativamente aos Estados‑Membros.

    59.

    Assim, a constatação pelo Tribunal Geral de que a existência de uma afetação direta das recorrentes pelas Orientações controvertidas sobre as não é influenciada pelo facto de um Estado‑Membro nem sempre querer suportar o risco inerente à notificação de uma medida de auxílio que não respeite plenamente as orientações, assenta no seguinte raciocínio: «[t]rata‑se de considerações de oportunidade que podem ser pertinentes para a adoção de decisões políticas por um Estado‑Membro, mas que não podem afetar a natureza e os efeitos de um ato da União decorrentes das regras dos Tratados» ( 22 ). Este raciocínio, que reproduz quase textualmente as conclusões do advogado‑geral N. Wahl, mostra de forma particularmente clara, a meu ver, que o raciocínio do Tribunal Geral, tal como estabelecido nos n.os 38 a 42 dos despachos recorridos, não corresponde a uma análise do preenchimento do requisito da afetação direta.

    60.

    Quanto ao segundo critério da afetação direta, qualquer tentativa de aplicá‑lo ao presente caso parece‑me votada ao fracasso. Este critério foi, com efeito, invocado pelo Tribunal de Justiça para excluir a existência da afetação direta quando tal afetação resulta do uso d poder discricionário pelo destinatário responsável pela execução do ato em questão, que é invariavelmente outra instituição europeia ou as autoridades nacionais.

    61.

    No domínio dos auxílios de Estado, os «destinatários» são geralmente os Estados‑Membros, consistindo o procedimento administrativo aplicado principalmente num diálogo entre a Comissão e o Estado‑Membro em causa. Parece‑me, contudo, que os Estados‑Membros não poderiam ser qualificados de «destinatários encarregados da sua execução» das Orientações. Pelo contrário, decorre do Acórdão Kotnik que só a Comissão é responsável pela execução das suas orientações.

    62.

    Esta constatação parece‑me indicar que o critério em consideração, que visa identificar a possível interposição de uma vontade autónoma entre um ato jurídico da União e as suas repercussões sobre o requerente ( 23 ), não pode ser aplicado de forma útil a um instrumento de soft law, como as Orientações controvertidas, que produz um mero efeito de autolimitação para a instituição que o adotou. Neste caso, não é útil, com efeito, considerar se existe tal vontade autónoma, uma vez que os efeitos das Orientações controvertidas permanecem na esfera jurídica da Comissão, visto que só uma decisão da Comissão sobre a compatibilidade com o mercado interno de uma medida de auxílio adotada na aceção do artigo 10.o‑A, n.o 6, da Diretiva 2003/87, conforme alterada pela Diretiva 2018/410, é suscetível de produzir efeitos jurídicos vinculativos para as recorrentes.

    63.

    Acrescentaria, para ser mais exaustivo, que a inaplicabilidade da análise da afetação direta às Orientações controvertidas implica logicamente que a solução adotada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão (ao seguir «Acórdão Montessori») ( 24 ) não seja pertinente para o caso em apreço. Além disso, esta solução está plenamente de acordo com a interpretação proposta nas presentes conclusões no que respeita à inexistência de efeitos jurídicos vinculativos sobre terceiros das Orientações controvertidas.

    64.

    No Acórdão Montessori, o Tribunal de Justiça consagrou, em substância, uma interpretação do requisito da afetação direta que permite que a empresa que apresentou uma denúncia à Comissão em matéria de auxílios de Estado tenha acesso ao Tribunal Geral para que este fiscalize a legalidade da decisão adotada pela Comissão sobre a medida nacional objeto dessa denúncia, desde que essa empresa exponha de modo pertinente ao Tribunal Geral que corre o risco de sofrer uma desvantagem concorrencial devido a essa decisão ( 25 ). Na minha opinião, o direito de qualquer operador económico a não sofrer distorções de concorrência em resultado de uma medida nacional, no qual se baseia esta interpretação, não pode justificar a transposição deste critério para situações como o caso em apreço, que não diz respeito a uma decisão da Comissão, mas a orientações da Comissão que não produzem efeitos jurídicos vinculativos para as empresas recorrentes.

    O raciocínio do Acórdão Deutsche Post não é aplicável quando se trata de um instrumento de soft law destinado unicamente a limitar o poder da instituição que o adota

    65.

    Nesta fase, é necessário esclarecer que o raciocínio do Tribunal de Justiça no Deutsche Post não é aplicável no presente processo. No referido acórdão, o Tribunal de Justiça começou por realçar que a jurisprudência segundo a qual um ato só é impugnável quando os efeitos jurídicos vinculativos que produz forem de molde a afetar os interesses do recorrente, modificando de forma caracterizada a sua situação jurídica, foi desenvolvida no quadro de recursos interpostos por pessoas singulares ou coletivas contra atos de que eram destinatárias. Em seguida e mais importante, considerou que, quando um recurso de anulação é interposto por uma pessoa singular ou coletiva contra um ato de que não é destinatária, a exigência supramencionada confunde‑se com as condições consagradas no artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE (afetação direta e individual ou apenas afetação direta no caso de um ato regulamentar) ( 26 ).

    66.

    A meu ver, esta fundamentação não se adequa a um instrumento de soft law, como as Orientações em questão, cujo único efeito é limitar o poder discricionário de que dispõe o seu autor.

    67.

    O instrumento cujo caráter impugnável estava em discussão no processo que deu origem ao Acórdão Deutsche Post era uma Decisão da Comissão que ordenava a um Estado‑Membro que fornecesse informações sobre um auxílio alegadamente ilegal, tal como previsto no artigo 10.o, n.o 3, do antigo Regulamento que rege o procedimento em matéria de auxílios de Estado (atualmente artigo 12.o, n.o 3 do Regulamento n.o 2015/1589) ( 27 ). Não se tratava, portanto, de um instrumento de soft law destinado a limitar o poder discricionário da instituição que o adotava, mas de um ato que servia os objetivos do procedimento administrativo e que tinha um destinatário (qualquer Estado‑Membro) bem distinto do seu autor (a Comissão), e o Tribunal de Justiça era chamado a pronunciar‑se, nomeadamente, sobre a admissibilidade de um recurso interposto contra o referido ato pela Deutsche Post, beneficiária da medida a que as informações constantes na decisão de injunção se referiam.

    68.

    É igualmente importante notar que, até agora, o Tribunal de Justiça nunca analisou este acórdão no domínio dos auxílios de Estado e que o mesmo só foi analisado numa ocasião, num processo relativo a outro ramo do direito da União ( 28 ) ao qual se aplicam as mesmas considerações que as expostas no número anterior. Com efeito, estava em causa a admissibilidade de um recurso interposto por gestores de fundos de investimento que detinham vários tipos de instrumentos de fundos próprios do Banco Popular Español SA contra uma carta do Conselho Único de Resolução que indicava as razões pelas quais este organismo não tencionava efetuar uma avaliação ex post definitiva do referido banco na sequência da adoção de um dispositivo de resolução relativamente ao mesmo.

    69.

    Por conseguinte, considero que a interpretação proposta, segundo a qual as Orientações controvertidas não podem produzir efeitos jurídicos vinculativos para as recorrentes e, portanto, não constituem um ato suscetível de recurso ao abrigo do artigo 263.o TFUE, não pode ser posta em causa invocando a aplicação no presente processo do raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Deutsche Post.

    Breves observações finais: direito a uma tutela jurisdicional efetiva e acesso à justiça na União

    70.

    Por último, gostaria de fazer duas observações.

    71.

    Em primeiro lugar, parece‑me claro que, se se considerar que as Orientações controvertidas não têm caráter impugnável, as recorrentes no presente processo também não poderiam, na falta de medidas de execução nacionais, recorrer ao tribunal nacional para contestar a legalidade do anexo I das Orientações controvertidas. A este respeito, bastará lembrar que, embora o requisito dos efeitos jurídicos vinculativos deva ser interpretado à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, conforme garantido pelo artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), o Tribunal de Justiça já declarou que este direito não tem por objeto alterar o sistema de fiscalização jurisdicional previsto pelos Tratados, designadamente as regras relativas à admissibilidade dos recursos interpostos diretamente perante os órgãos jurisdicionais da União. Por conseguinte, a interpretação do conceito de «ato impugnável» à luz do artigo 47.o da Carta não pode levar a que se afaste esse requisito sem exceder as competências atribuídas pelo Tratado FUE aos tribunais da União ( 29 ).

    72.

    Além disso, embora esteja consciente da opinião prevalecente quanto à necessidade de alargar as vias de acesso à justiça europeia para os particulares, pergunto‑me se seria desejável, como regra geral, que o Tribunal de Justiça concluísse que um instrumento de soft law como as Orientações controvertidas é um ato impugnável e que qualquer recorrente que possa demonstrar que preenche o requisito da afetação direta, tal como estabelecido no Acórdão Montessori, tem assim o direito de o impugnar judicialmente se esse ato constituir um «ato regulamentar» na aceção do último parágrafo do artigo 263.o, quarto parágrafo, último período, TFUE. Constato, a este respeito, que, devido à rapidez da sua adoção e à sua adaptabilidade a situações económicas contingentes, estes instrumentos de soft law têm sido utilizados, por exemplo, para enquadrar a resposta dos Estados‑Membros às recentes situações de crise geradas pelo colapso do sistema bancário, pelo surto da pandemia de COVID‑19 e pela guerra na Ucrânia. Em tais situações, poderemos exigir que a Comissão adote atos destinados a tornar o exercício do seu poder discricionário mais previsível e transparente, embora sabendo que a legalidade de certas disposições pode ser impugnada diretamente perante o Tribunal Geral? Não seria a multiplicação destes recursos jurisdicionais, que me parece facilmente previsível, capaz de paralisar a ação clarificadora desta instituição? Não será a revisão das disposições problemáticas destes atos pela própria Comissão suficientemente satisfatória para os operadores económicos em causa?

    A título subsidiário: o Tribunal Geral não estava obrigado a analisar os recursos quanto ao mérito antes de se pronunciar sobre a sua admissibilidade

    73.

    A título subsidiário, como exposto anteriormente, as recorrentes pedem ao Tribunal de Justiça que anule os despachos recorridos com o fundamento de que o Tribunal Geral deveria ter apreciado os recursos quanto ao mérito antes de se pronunciar sobre a admissibilidade dos mesmos.

    74.

    A este respeito, referem as recorrentes que, em conformidade com o artigo 130.o, n.o 7, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, este, além da apreciação das exceções ou outros incidentes processuais, aprecia o mérito, «se circunstâncias especiais o justificarem». Alegam que, no interesse de uma boa administração da justiça, o Tribunal Geral deveria ter considerado que tais circunstâncias existem no caso em apreço, devido à sobreposição entre as apreciações que o Tribunal Geral devia efetuar, relativas à natureza, conteúdo e contexto dessas Orientações, para determinar se as Orientações controvertidas afetavam diretamente os recorrentes, bem como as apreciações que devia efetuar para se pronunciar sobre o mérito do primeiro fundamento. Este último dizia respeito à competência da Comissão para impor obrigações jurídicas independentes aos Estados‑Membros, transferindo desta forma competências de que, segundo as recorrentes, os referidos Estados dispõem legalmente.

    75.

    Na minha opinião, o artigo 130.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral deixa ao critério soberano deste decidir sobre a admissibilidade do recurso o mais rapidamente possível, ou reservar esta questão para quando se pronunciar quanto ao mérito, tendo em conta a existência de circunstâncias particulares. Daqui decorre que, ao decidir pronunciar‑se unicamente sobre a exceção da inadmissibilidade, o Tribunal Geral não incorre no que lhe é imputado ( 30 ). Em todo o caso, as tais circunstâncias especiais não existem no processo em apreço, dado que, mesmo que se sobreponham as apreciações a efetuar para determinar se as Orientações controvertidas afetavam os recorrentes e para decidir sobre o primeiro fundamento quanto ao mérito, a boa administração da justiça não exigia que o Tribunal Geral reservasse a sua decisão sobre a admissibilidade do recurso dos recorrentes para um momento posterior. Pelo contrário, este princípio obrigou‑o a decidir, em conformidade com o artigo 130.o, n.o 7, do Regulamento de Processo, o mais rapidamente possível. O fundamento em questão é, portanto, improcedente.

    76.

    Tendo em conta o que precede, considero que, ao basear‑se na constatação de que as Orientações controvertidas não afetavam diretamente os recorrentes para declarar inadmissíveis os recursos destinados a obter a anulação parcial das mesmas, o Tribunal Geral qualificou‑as, implícita mas necessariamente, de ato suscetível de recurso, cometendo assim um erro de direito.

    77.

    Na minha opinião, o erro de direito cometido pelo Tribunal Geral não pode, contudo, dar lugar à anulação dos despachos recorridos, visto que os dispositivos desses despachos, que julgam os recursos contra as Orientações controvertidas inadmissíveis, continuam fundados na natureza não impugnável das mesmas. Assim sendo, o Tribunal de Justiça deve substituir a fundamentação errónea do Tribunal Geral por esta fundamentação ( 31 ).

    Conclusão

    78.

    À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que julgue o segundo fundamento de recurso improcedente e, se o primeiro fundamento de recurso for igualmente julgado improcedente, negue provimento aos recursos na sua totalidade.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) JO 2020, C 317, p. 5.

    ( 3 ) Acórdão de 13 de outubro de 2011 (C‑463/10 P e C‑475/10 P, a seguir «Acórdão Deutsche Post», EU:C:2011:656).

    ( 4 ) Despachos de 23 de novembro de 2015, Milchindustrie‑Verband e Deutscher Raiffeisenverband/Comissão (T‑670/14, EU:T:2015:906), e de 23 de novembro de 2015, EREF/Comissão (T‑694/14, não publicado, EU:T:2015:915), que não foram objeto de recurso.

    ( 5 ) Acórdão de 12 de março de 2020, Comissão/Itália (Auxílios ilegais concedidos ao setor hoteleiro na Sardenha) (C‑576/18, não publicado, EU:C:2020:202, n.o 136 e jurisprudência referida).

    ( 6 ) Despacho de 16 de maio de 2013, Internationaler Hilfsfonds/Comissão (C‑208/11 P‑DEP, não publicado, EU:C:2013:304, n.o 34 e jurisprudência referida).

    ( 7 ) Acórdão de 25 de fevereiro de 2021, VodafoneZiggo Group/Comissão (C‑689/19 P, EU:C:2021:142, n.os 46 e 47).

    ( 8 ) Acórdão de 22 de setembro de 2022, IMG/Comissão (C‑619/20 P e C‑620/20 P, EU:C:2022:722, n.o 98 e jurisprudência referida).

    ( 9 ) V., designadamente, Acórdão de 11 de setembro de 2008, Alemanha e o./Kronofrance (C‑75/05 P e C‑80/05 P, EU:C:2008:482, n.o 60).

    ( 10 ) Acórdão de 19 de julho de 2016 (C‑526/14, EU:C:2016:570) (a seguir «Acórdão Kotnik»).

    ( 11 ) Acórdão Kotnik, n.o 43.

    ( 12 ) Acórdãos de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.o 209), e de 11 de julho de 2013, Ziegler/Comissão (C‑439/11 P, EU:C:2013:513, n.o 60) (o sublinhado é meu).

    ( 13 ) V. Tridimas T., «Indeterminacy and Legal Uncertainty in EU Law», in Mendes J. (ed.), EU executive discretion and the limits of law, Oxford University Press, 2019, p. 59, segundo o qual «the self‑binding effect of guidelines does not mean that such instruments acquire the status of rule of law: instead, they are rules of practice from which the Commission may not depart without giving good reasons» [«o efeito “auto‑vinculativo” das orientações não significa que tais instrumentos adquiram o estatuto de regras jurídicas. Em contrapartida, trata‑se de regras práticas das quais a Comissão não se pode afastar sem dar boas razoes para tal»] (tradução livre).

    ( 14 ) Acórdão de 4 de março de 2021, Comissão/Futbol Club Barcelona (C‑362/19 P, EU:C:2021:169, n.o 90 e 91).

    ( 15 ) V. Acórdão de 20 de fevereiro de 2018, Bélgica/Comissão (C‑16/16 P, EU:C:2018:79, n.o 31), e Conclusões do advogado‑geral M. Bobek neste processo (C‑16/16 P, EU:C:2017:959, n.os 109 a 113).

    ( 16 ) Acórdão de 11 de setembro de 2008, Alemanha e o./Kronofrance (C‑75/05 P e C‑80/05 P, EU:C:2008:482, n.o 65).

    ( 17 ) V. Bacon K., European Union Law of State Aid, Oxford University Press, Oxford, 2017, p. 104, que se refere, neste contexto, à «natureza subordinada» das orientações, quadros e comunicações. V., igualmente, Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Mitteldeutsche Flughafen e Flughafen Leipzig‑Halle/Comissão (C‑288/11 P, EU:C:2012:821, n.os 38 e 39).

    ( 18 ) Acórdão de 12 de julho de 2022, Nord Stream 2/Parlamento e Conselho (C‑348/20 P, EU:C:2022:548, n.o 74).

    ( 19 ) Acórdão de 30 de junho de 2022, Danske Slagtermestre/Comissão (C‑99/21 P, EU:C:2022:510, n.o 45 e jurisprudência referida).

    ( 20 ) N.os 38 a 42 dos despachos recorridos (o sublinhado é meu).

    ( 21 ) Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:102).

    ( 22 ) O sublinhado é meu.

    ( 23 ) Nas palavras da advogada‑geral J. Kokott para descrever este segundo critério nas suas Conclusões relativas aos processos apensos Comissão/Ente per le Ville Vesuviane e Ente per le Ville Vesuviane/Comissão (C‑445/07 P e C‑455/07 P, EU:C:2009:84, n.o 54).

    ( 24 ) Acórdão de 6 de novembro de 2018 (C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, a seguir «Acórdão Montessori»).

    ( 25 ) Acórdão Montessori, n.os 43 a 47. V., igualmente, Acórdão de 30 junho de 2022, Danske Slagtermestre/Comissão (C‑99/21 P, EU:C:2022:510, n.os 47 a 49).

    ( 26 ) Acórdão Deutsche Post, n.o 38).

    ( 27 ) Regulamento (CE) n.o 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo 93.o do Tratado CE (JO 1999, L 83, p. 1).

    ( 28 ) Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Algebris (UK) e Anchorage Capital Group/UK (C‑934/19 P, EU:C:2021:1042, n.o 87).

    ( 29 ) V., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2020, República Checa/Comissão (C‑575/18 P, EU:C:2020:530, n.o 52 e jurisprudência referida).

    ( 30 ) V., designadamente, Despacho de 8 de dezembro de 2006, Polyelectrolyte Producers Group/Comissão e Conselho (C‑368/05 P, não publicado, EU:C:2006:771, n.o 46).

    ( 31 ) Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, se os fundamentos de uma decisão do Tribunal Geral revelarem uma violação do direito da União, mas o dispositivo da mesma estiver justificado por outros fundamentos de direito, essa violação não é suscetível de implicar a anulação dessa decisão e há que proceder a uma substituição de fundamentos. V., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2021, Autostrada Wielkopolska/Comissão e Polónia (C‑933/19 P, EU:C:2021:905, n.o 58 e jurisprudência referida). V., igualmente, Despacho de 15 de fevereiro de2012, Internationaler Hilfsfonds/Comissão (C‑208/11 P, não publicado, EU:C:2012:76, n.os 33 a 35).

    Sus