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Document 62021CJ0554

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 11 de julho de 2024.
Financijska agencija e UDRUGA KHL MEDVEŠČAK ZAGREB contra HANN-INVEST d.o.o. e MINERAL-SEKULINE d.o.o.
Reenvio prejudicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União — Independência dos juízes — Tribunal previamente estabelecido por lei — Processo equitativo — Serviço do registo das decisões judiciais — Regulamentação nacional que prevê a instauração de um juiz responsável pelo registo, nos órgãos jurisdicionais de segunda instância, com o poder, na prática, de suspender a prolação de uma decisão, de dar instruções às formações de julgamento e de solicitar a convocação de uma reunião do Pleno — Regulamentação nacional que prevê o poder, nas reuniões do Pleno ou de todos os juízes de um órgão jurisdicional, de emitir “posições jurídicas” vinculativas, incluindo para os processos já deliberados.
Processos apensos C-554/21, C-622/21 e C-727/21.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:594

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

11 de julho de 2024 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União — Independência dos juízes — Tribunal previamente estabelecido por lei — Processo equitativo — Serviço do registo das decisões judiciais — Regulamentação nacional que prevê a instauração de um juiz responsável pelo registo, nos órgãos jurisdicionais de segunda instância, com o poder, na prática, de suspender a prolação de uma decisão, de dar instruções às formações de julgamento e de solicitar a convocação de uma reunião do Pleno — Regulamentação nacional que prevê o poder, nas reuniões do Pleno ou de todos os juízes de um órgão jurisdicional, de emitir “posições jurídicas” vinculativas, incluindo para os processos já deliberados»

Nos processos apensos C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21,

que têm por objeto três pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso, Croácia), por Decisões de 3 de agosto de 2021 (C‑554/21), de 21 de setembro de 2021 (C‑622/21) e de 10 de novembro de 2021 (C‑727/21), que deram entrada no Tribunal de Justiça em 8 de setembro de 2021, 7 de outubro de 2021 e 30 de novembro de 2021, nos processos

Financijska agencija

contra

HANN‑INVEST d.o.o. (C‑554/21),

MINERAL‑SEKULINE d.o.o. (C‑622/21),

e

UDRUGA KHL MEDVEŠČAK ZAGREB (C‑727/21)

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, C. Lycourgos, F. Biltgen e N. Piçarra, presidentes de secção, S. Rodin, I. Jarukaitis (relator), N. Jääskinen, N. Wahl, I. Ziemele, J. Passer, D. Gratsias e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 5 de junho de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Financijska agencija, por S. Pejaković, perita,

em representação do Governo Croata, por G. Vidović Mesarek, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por K. Herrmann, M. Mataija e P. J. O. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de outubro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de três litígios, opondo os dois primeiros a Financijska agencija (Agência Financeira, Croácia) à HANN‑INVEST d.o.o. (C‑554/21) e à MINERAL‑SEKULINE d.o.o. (C‑622/21), a respeito da recuperação das despesas desta agência relacionadas com as atividades por ela exercidas no quadro de um processo de insolvência, e sendo o terceiro relativo a um pedido, apresentado pela UDRUGA KHL MEDVEŠČCAK ZAGREB, de abertura de um processo de insolvência (C‑727/21).

Quadro jurídico

Lei Orgânica dos Tribunais

3

O artigo 14.o da Zakon o sudovima (Lei Orgânica dos Tribunais) (Narodne novine, br. 28/13, 33/15, 82/15, 82/16, 67/18, 126/19, 130/20) prevê:

«1.   Na Croácia, o poder judicial é exercido por órgãos jurisdicionais comuns, por órgãos jurisdicionais especializados e pelo Vrhovni sud (Supremo Tribunal, Croácia).

[…]

3.   Os órgãos especializados são os Trgovački sudovi (Tribunais de Comércio, Croácia), os Upravni sudovi (Tribunais Administrativos de Primeira Instância, Croácia), o Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso, Croácia), o Visoki upravni sud (Tribunal Administrativo de Recurso, Croácia), o Visoki prekršajni sud (Tribunal Correcional de Recurso, Croácia) e o Visoki kazneni sud (Tribunal Criminal de Recurso, Croácia).

4.   A mais alta instância jurisdicional da Croácia é o Vrhovni sud (Supremo Tribunal).

[…]»

4

Nos termos do artigo 24.o desta lei:

«O Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso)

1.   decide os recursos das decisões proferidas em primeira instância pelos Trgovački sudovi (Tribunais de Comércio),

2.   conhece dos conflitos de competência territorial entre os Trgovački sudovi (Tribunais de Comércio) e decide sobre a delegação de competência entre esses tribunais,

[…]»

5

O artigo 38.o da referida lei dispõe:

«1.   As reuniões do Pleno são consagradas à apreciação de questões que apresentam interesse para os seus trabalhos, a saber, a organização da atividade interna, as questões jurídicas controversas, a uniformização da jurisprudência e as questões pertinentes para a aplicação da legislação em cada domínio jurídico, bem como o acompanhamento do trabalho e da formação dos juízes, dos assessores jurídicos e dos juízes estagiários afetos ao Pleno.

2.   Nas reuniões do Pleno do Županijski sud (Tribunal Regional, Croácia), do Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso), do Visoki upravni sud (Tribunal Administrativo de Recurso), do Visoki kazneni sud (Tribunal Criminal de Recurso) e do Visoki prekršajni sud (Tribunal Correcional de Recurso) são igualmente examinadas questões de interesse comum para os órgãos jurisdicionais inferiores que pertencem à área de jurisdição destes tribunais.

3.   As reuniões do Pleno do Vrhovni sud (Supremo Tribunal) são consagradas ao exame de questões de interesse comum para alguns ou todos os órgãos jurisdicionais do território da República da Croácia, bem como ao exame e à elaboração de um parecer sobre os projetos de regulamentação num domínio jurídico específico.»

6

Nos termos do artigo 39.o da mesma lei:

«1.   Sempre que necessário, e, pelo menos uma vez por trimestre, o presidente do Pleno, ou o presidente do tribunal em causa, convoca o Pleno e preside aos respetivos trabalhos. Quando o presidente do tribunal em causa participa nos trabalhos do Pleno, preside à reunião e participa no processo decisório.

2.   Quando o Pleno do tribunal em causa ou um quarto do coletivo dos juízes o solicitarem, deve ser convocada uma reunião em que participem todos os juízes desse tribunal.

3.   Nas reuniões dos juízes do tribunal em causa ou do Pleno, as decisões são tomadas por maioria dos votos dos juízes, ou dos juízes do Pleno.

4.   É lavrada uma ata dos trabalhos da reunião.

5.   O presidente do tribunal em causa ou do Pleno, pode também convidar académicos eminentes e peritos num domínio jurídico específico a participarem na reunião do Plenário ou do Pleno.»

7

O artigo 40.o da Lei Orgânica dos Tribunais dispõe:

«1.   Quando se verifique que existem diferenças de interpretação entre o Pleno, as secções ou juízes quanto às questões relativas à aplicação da lei ou quando uma secção ou um juiz do Pleno se afasta da posição jurídica anteriormente adotada, é convocada uma reunião do Plenário ou do Pleno das secções.

2.   A posição jurídica adotada pelo Plenário ou pelo Pleno do Vrhovni sud (Supremo Tribunal), do Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso), do Visoki upravni sud (Tribunal Administrativo de Recurso), do Visoki kazneni sud (Tribunal Criminal de Recurso), do Visoki prekršajni sud (Tribunal Correcional de Recurso) e pelo Pleno de um Županijski sud (Tribunal Regional), é vinculativa para todas as secções ou juízes de segunda instância deste Pleno ou deste tribunal.

3.   O presidente do Pleno pode, se for caso disso, convidar professores da Faculdade de Direito, académicos eminentes ou peritos num determinado domínio do direito a participar na reunião do Pleno.»

Regulamento de Processo dos Tribunais

8

O artigo 177.o, n.o 3, do Sudski poslovnik (Regulamento de Processo dos Tribunais) (Narodne novine, br. 37/14, 49/14, 8/15, 35/15,123/15, 45/16, 29/17, 33/17, 34/17, 57/17, 101/18, 119/18, 81/19, 128/19, 39/20, 47/20, 138/20, 147/20, 70/21, 99/21 e 145/21) prevê:

«Perante um órgão jurisdicional de segunda instância, o processo é considerado encerrado na data do envio da decisão pelo gabinete do juiz em causa, após a devolução pelo serviço de registo. A contar da data de receção dos autos em causa, o serviço de registo deve reenviá‑los ao gabinete do juiz o mais rapidamente possível. Em seguida, deve proceder‑se à notificação da decisão num novo prazo de oito dias.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

9

O Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso), que é o órgão jurisdicional de reenvio, foi chamado a pronunciar‑se em três recursos. Nos processos C‑554/21 e C‑622/21, os recursos têm por objeto o indeferimento dos pedidos da Agência Financeira no sentido de que lhe fossem reembolsadas as despesas relacionadas com as suas atividades no quadro de um processo de insolvência. No processo C‑727/21, o recurso tem por objeto o indeferimento do pedido de abertura de um processo de insolvência.

10

O órgão jurisdicional de reenvio, reunindo em formações de julgamento de três juízes, apreciou estes três recursos e negou‑lhes provimento por unanimidade, confirmando assim as decisões proferidas em primeira instância. Os juízes deste órgão jurisdicional assinaram as suas decisões e transmitiram‑nas em seguida ao seu serviço de registo das decisões judiciais, em conformidade com o artigo 177.o, n.o 3, do Regulamento de Processo dos Tribunais.

11

O juiz responsável pelo serviço de registo (a seguir «juiz responsável pelo registo») recusou, no entanto, registar essas decisões judiciais e devolveu‑as às respetivas formações de julgamento, acompanhadas de uma carta que explicava que não partilhava das soluções adotadas nas referidas decisões.

12

No processo C‑554/21, esta carta dava conta de processos nos quais, em circunstâncias semelhantes, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu de forma diferente, mas também de outro processo no qual este tinha decidido da forma que a formação de julgamento tinha decidido no processo principal. O juiz responsável pelo registo daí concluiu que o processo principal devia ser remetido à secção em causa e que, se esta última mantivesse a sua decisão, este processo principal devia ser examinado quando de uma «reunião do Pleno». O juiz responsável pelo registo subordinou, deste modo, o registo da decisão judicial no referido processo principal à adoção de uma solução diferente, privilegiando assim uma das duas orientações divergentes observadas na jurisprudência desse órgão jurisdicional, indicando que, na falta de reapreciação do processo em causa e de alteração da solução adotada por esta secção, transmitiria a decisão judicial, para exame, ao Pleno do contencioso comercial e outros litígios do referido órgão jurisdicional, para efeitos da adoção de uma «posição jurídica» relativa à maneira de decidir os processos desse tipo.

13

No processo C‑622/21, a carta do juiz responsável pelo registo justifica a remessa do processo principal para a secção em causa com a existência de duas decisões do órgão jurisdicional de reenvio que adotam soluções contrárias à acolhida no processo principal. Este órgão jurisdicional indica, todavia, que essas decisões são posteriores à adoção da decisão proferida no referido processo principal. Na realidade, o processo de registo desta última decisão foi bloqueado e esta não foi enviada enquanto as decisões posteriores, refletindo um ponto de vista jurídico diferente, não o foram.

14

No processo C‑727/21, resulta da carta do juiz responsável pelo registo que este último discordava da interpretação jurídica adotada pela formação de julgamento que decidiu no processo principal. Todavia, esta carta não menciona outra decisão que vá num sentido diferente do dessa formação de julgamento.

15

Neste processo principal, após a recusa do registo da sua primeira decisão judicial, a referida formação de julgamento reuniu‑se para novas deliberações, nas quais reapreciou o recurso e o parecer do juiz responsável pelo registo antes de decidir não alterar a solução que tinha anteriormente adotado. Proferiu, portanto, uma nova decisão judicial e transmitiu‑a ao serviço de registo.

16

Privilegiando uma solução jurídica diferente, o juiz responsável pelo registo transmitiu o referido processo ao Pleno do contencioso comercial e outros litígios do órgão jurisdicional de reenvio para que a questão jurídica controvertida fosse examinada numa reunião desse Pleno.

17

Reunido o Pleno, foi adotada uma «posição jurídica» que seguiu a solução preconizada pelo juiz responsável pelo registo. Em seguida, o mesmo processo principal foi remetido à formação de julgamento em causa para que a mesma decidisse em conformidade com essa «posição jurídica».

18

Nos três processos, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, em aplicação do artigo 177.o, n.o 3, do Regulamento de Processo dos Tribunais, a atividade jurisdicional, num processo decidido em segunda instância, só está concluída quando a decisão judicial em causa for registada pelo serviço de registo. Este processo só fica encerrado após esse registo e o envio subsequente dessa decisão às partes. Assim, segundo as explicações do órgão jurisdicional de reenvio, embora essa decisão judicial tenha sido adotada de forma colegial por uma formação de julgamento, só é considerada definitiva quando é confirmada pelo juiz responsável pelo registo, que é designado pelo presidente do tribunal em causa, na sua qualidade de pessoa que exerce uma função de administração judiciária, no quadro do programa anual de afetação dos juízes. Este órgão jurisdicional explica também que a intervenção e o nome do juiz responsável pelo registo não são conhecidos pelas partes e que, embora o processo de registo não seja previsto pela lei como condição de adoção de uma decisão judicial, essa consequência resulta da prática dos tribunais de segunda instância, nos termos do Regulamento de Processo dos Tribunais.

19

O órgão jurisdicional de reenvio considera que um juiz como o juiz responsável pelo registo, que não é conhecido pelas partes, cujo papel não está previsto nas regras processuais aplicáveis aos recursos e que, apesar de não ser uma instância superior, é suscetível de levar a formação de julgamento encarregada do processo a alterar a sua decisão, pode ter uma influência considerável na independência judicial.

20

No processo C‑554/21, o órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, apesar de uma inversão da orientação jurisprudencial numa decisão anterior adotada por uma das suas formações de julgamento sobre a mesma questão jurídica, o juiz responsável pelo registo não tinha agido, aquando dessa inversão, da mesma maneira que no processo principal, e tinha aprovado e registado a decisão que procedeu à referida inversão, permitindo assim o envio dessa decisão às partes, o que, segundo esse órgão jurisdicional, demonstra o exercício de uma influência substancial do juiz responsável pelo registo na independência dos juízes que compõem a formação de julgamento competente.

21

No processo C‑622/21, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que essa influência é demonstrada pelo facto de o juiz responsável pelo registo ter decidido, sem submeter a questão à reunião do Pleno em causa, aceitar o registo e a notificação de decisões judiciais que tinham sido adotadas por outras secções posteriormente à adotada no processo principal, decidindo atrasar o registo da decisão judicial nesse processo principal e remetê‑la à secção, unicamente porque não estava de acordo com a solução adotada nesta última decisão.

22

O órgão jurisdicional de reenvio indica, nesses dois processos, que a existência de um mecanismo de registo das decisões judiciais foi justificada, até ao presente, pela necessidade de assegurar a coerência da jurisprudência. Contudo, no entender do órgão jurisdicional de reenvio, a forma de proceder deste serviço de registo após a adoção de uma decisão judicial é contrária à independência do poder judicial. Como testemunham as circunstâncias que envolvem os processos principais, o serviço de registo das decisões judiciais escolhe as decisões que serão enviadas por um tribunal de segunda instância e decide os casos em que convém ou não tornar pública uma decisão que se afasta da jurisprudência.

23

No processo C‑727/21, o órgão jurisdicional de reenvio indica também, a propósito das reuniões do Pleno, que estas não são previstas pelo Regulamento de Processos dos Tribunais e que só os juízes responsáveis pelo registo e os presidentes dos Plenos ou dos tribunais decidem os pontos que devem ser inscritos na ordem de trabalhos dessa reunião. As partes no processo não têm conhecimento do papel desta reunião e não podem nela participar. Ora, nos termos do artigo 40.o da Lei Orgânica dos Tribunais, as «posições jurídicas» adotadas pelo Pleno de um tribunal superior é vinculativa para todos os seus juízes ou secções nos processos específicos que tratam. O órgão jurisdicional de reenvio considera, portanto, que esse papel quase legislativo dos Plenos dos tribunais é contrário à separação tripartida dos poderes e ao Estado de direito, assim como ao princípio da independência dos juízes. Explica, todavia, que as «posições jurídicas» adotadas nas reuniões dos juízes dos tribunais de segunda instância não são vinculativas para os tribunais superiores e que, em muitos casos, os tribunais supremos, no quadro do exame de recursos que lhes foram submetidos, adotaram «posições jurídicas» diferentes das adotadas pelos tribunais de segunda instância.

24

Nestas condições, o Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, que é formulada em termos idênticos nos processos C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21:

«Pode a regra enunciada na segunda parte do primeiro período e no segundo período do artigo 177.o, n.o 3, do [Regulamento de Processo dos Tribunais], que prevê que “[p]erante um órgão jurisdicional de segunda instância, [o] processo é considerado encerrado na data do envio da decisão pelo gabinete do juiz, após a devolução do processo pelo serviço de registo, [a] contar da data da receção dos autos, o serviço de registo deve reenviá‑lo ao gabinete do juiz o mais rapidamente possível [procedendo‑se, em] seguida, [à notificação] da decisão num novo prazo de oito dias”, está em conformidade com o artigo 19.o, n.o 1, TUE e com o artigo 47.o da [Carta]?»

25

Além disso, no processo C‑727/21, o Visoki trgovački sud (Tribunal de Comércio de Recurso) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A disposição do artigo 40.o, n.o 2, [da Lei Orgânica dos Tribunais], que prevê que “[a] posição jurídica adotada [pelo Plenário ou pelo Pleno] do Vrhovni sud (Supremo Tribunal), do Visoki trgovački sud (Tribunal de [Comércio de Recurso]), do Visoki upravni sud (Tribunal Administrativo de Recurso), do Visoki kazneni sud (Tribunal Criminal de Recurso), do Visoki prekršajni sud (Tribunal Correcional de Recurso) e [pelo Pleno de um] Županijski sud (Tribunal Regional, Croácia), é vinculativa para todas as secções ou juízes de segunda instância [deste Pleno ou deste tribunal]”, é conforme com o artigo 19.o, n.o 1, TUE e com o artigo 47.o da [Carta]?»

Tramitação processual no Tribunal de Justiça

26

Por Decisões do presidente do Tribunal de Justiça de 8 e 15 de novembro de 2021, os processos C‑554/21 e C‑622/21 foram suspensos até à decisão que pusesse termo à instância no processo C‑361/21, PET‑PROM.

27

Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 4 de fevereiro de 2022, o processo C‑727/21 foi suspenso até à receção da resposta do órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑361/21, PET‑PROM, quanto ao estado do processo principal, tendo em conta as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no quadro do processo C‑727/21.

28

Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 14 de março de 2022, a instância foi retomada nos processos C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21, tendo em conta que a existência do litígio no processo principal na origem do processo C‑361/21 levantava dúvidas. Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça do mesmo dia, os processos C‑554/21, C‑622/21 e C‑727/21 foram apensados para efeitos das fases escrita e da fase oral do processo, bem como para efeitos do acórdão.

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

29

A título liminar, há que recordar que, conforme jurisprudência constante, cabe ao próprio Tribunal de Justiça examinar as condições em que o pedido lhe é submetido pelo juiz nacional, com vista a verificar a sua própria competência ou a admissibilidade do pedido que lhe é submetido [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 59 e jurisprudência referida].

30

A este propósito, importa, em primeiro lugar, lembrar que, no âmbito de um reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça só pode interpretar o direito da União nos limites das competências que lhe são atribuídas [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 77 e jurisprudência referida].

31

O âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros, quando aplicam o direito da União, confirmando esta disposição a jurisprudência constante segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União se destinam a ser aplicados em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora delas [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 78 e jurisprudência referida].

32

No caso em apreço, no que concerne, mais precisamente, ao artigo 47.o da Carta, o órgão jurisdicional de reenvio não forneceu qualquer indicação de que os litígios nos processos principais respeitam à interpretação ou à aplicação de uma regra do direito da União implementada a nível nacional.

33

Por conseguinte, nos presentes processos, o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o artigo 47.o da Carta enquanto tal.

34

Em segundo lugar, importa recordar que, nos termos do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, os Estados‑Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar aos particulares o respeito pelo seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União. Assim, compete aos Estados‑Membros prever um sistema de vias de recurso e de processos que permita assegurar uma fiscalização jurisdicional efetiva nos referidos domínios (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 32 e jurisprudência referida).

35

Quanto ao âmbito de aplicação ratione materiae do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, esta disposição visa «os domínios abrangidos pelo direito da União», independentemente da situação em que os Estados‑Membros apliquem esse direito (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.o 29, e de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 33 e jurisprudência referida).

36

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE é nomeadamente aplicável a todas as instâncias nacionais que sejam suscetíveis de decidir, como órgãos jurisdicionais, sobre questões relativas à aplicação ou à interpretação do direito da União e abrangidas por domínios cobertos por esse direito (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 34 e jurisprudência referida).

37

Ora, é esse o caso do órgão jurisdicional de reenvio, o qual pode, com efeito, ser chamado a decidir questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação do direito da União e que faz parte, enquanto «órgão jurisdicional», na aceção deste direito, do sistema croata de vias de recurso nos «domínios abrangidos pelo direito da União», na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, pelo que esse órgão jurisdicional deve satisfazer as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva (v., por analogia, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 35 e jurisprudência referida).

38

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE nos presentes processos.

Quanto à admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial

39

Nos termos de jurisprudência constante, o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução dos litígios que lhes cabe decidir. A justificação do reenvio prejudicial não se baseia na emissão de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas na necessidade inerente à efetiva resolução de um litígio [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 60 e jurisprudência referida].

40

Como decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária ao julgamento da causa» a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio [Acórdão de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 61 e jurisprudência referida].

41

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio explica que as três formações de julgamento em causa nos processos principais são confrontadas, nos processos C‑554/21 e C‑622/21, com as instruções do juiz responsável pelo registo e, no processo C‑727/21, com a obrigação de decidir de acordo com uma «posição jurídica» da reunião do Pleno do contencioso comercial e outros litígios desse tribunal. Refere que estas instruções e esta «posição jurídica» visam os conteúdos das decisões já adotadas por estas três formações de julgamento e que o seu respeito condiciona o encerramento definitivo dos processos principais e o registo e a notificação dessas decisões às partes. Ora, com as suas questões prejudiciais, procura precisamente saber se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a «intervenções», como as que estão em causa no processo principal, na atividade jurisdicional de uma formação de julgamento de um órgão jurisdicional, por parte de outras pessoas que exercem uma função nessa instituição. Por conseguinte, a resposta do Tribunal de Justiça a essas questões prejudiciais é necessária para permitir ao órgão jurisdicional de reenvio encerrar definitivamente os três processos principais.

42

Tendo em conta as considerações precedentes, há que declarar que os pedidos de decisão prejudicial são admissíveis.

Quanto às questões prejudiciais

43

Com as suas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o direito nacional preveja um mecanismo interno a um órgão jurisdicional nacional nos termos do qual, por um lado, uma decisão judicial só pode ser notificada às partes para efeitos de encerramento do processo em causa se um juiz responsável pelo registo, que não faz parte da formação de julgamento que adotou essa decisão, aprovar o conteúdo da referida decisão e, por outro, uma reunião do Pleno desse tribunal nacional tem competência para adotar «posições jurídicas» que vinculam todas as secções ou juízes do referido órgão jurisdicional.

44

A título liminar, importa recordar que, embora a organização judiciária nos Estados‑Membros, nomeadamente o estabelecimento, a composição, as competências e o funcionamento dos órgãos jurisdicionais nacionais seja da competência desses Estados, no exercício dessa competência estes não deixam de estar vinculados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União e, em especial, do artigo 19.o TUE [v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes), C‑204/21, EU:C:2023:442, n.o 63 e jurisprudência referida].

45

A este propósito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva a que se refere o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE constitui um princípio geral do direito da União que foi consagrado, nomeadamente, no artigo 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), a que corresponde o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 219 e jurisprudência referida). Esta última disposição deve, por conseguinte, ser tomada devidamente em conta para efeitos da interpretação desse artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo [Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑487/19, EU:C:2021:798, n.o 102 e jurisprudência referida].

46

Por outro lado, na medida em que a Carta enuncia direitos correspondentes aos garantidos pela CEDH, o artigo 52.o, n.o 3, da Carta visa assegurar a coerência necessária entre os direitos nela contidos e os direitos correspondentes garantidos pela CEDH, sem que isso prejudique a autonomia do direito da União. Segundo as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta corresponde ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH. O Tribunal de Justiça deve, assim, assegurar que a sua interpretação nos presentes processos garante um nível de proteção que não vai contra o garantido pelo artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑487/19, EU:C:2021:798, n.o 123 e jurisprudência referida].

47

Feita esta precisão, há que recordar que todos os Estados‑Membros devem, em virtude do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, assegurar que as instâncias que, enquanto «órgãos jurisdicionais», na aceção do direito da União, são chamadas a pronunciar‑se sobre questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação desse direito e que fazem parte do seu sistema de vias de recurso nos domínios abrangidos pelo direito da União, satisfazem as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva, nomeadamente em matéria de independência [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito das decisões de um tribunal constitucional), C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 40 e jurisprudência referida].

48

Logo, qualquer medida ou prática nacional que vise evitar divergências jurisprudenciais, ou remediá‑las, e assegurar assim a segurança jurídica inerente ao princípio do Estado de direito deve ser conforme às exigências decorrentes do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

49

A este respeito, importa lembrar, em primeiro lugar, que a exigência de independência dos órgãos jurisdicionais, que é inerente à missão de julgar, faz parte do conteúdo essencial do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e do direito fundamental a um processo equitativo, que revestem importância essencial enquanto garantias da proteção de todos os direitos que o direito da União confere aos particulares e da preservação dos valores comuns aos Estados‑Membros, enunciados no artigo 2.o TUE, designadamente do valor do Estado de direito [Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 58 e jurisprudência referida].

50

De acordo com jurisprudência constante, o referido conceito de independência comporta dois aspetos. O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra as intervenções ou as pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 121].

51

O segundo aspeto, de ordem interna, está ligado ao conceito de «imparcialidade» e visa o igual distanciamento em relação às partes no litígio e aos respetivos interesses, tendo em conta o objeto deste. Este aspeto exige o respeito pela objetividade e a inexistência de qualquer interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da regra de direito [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 122].

52

Estas garantias de independência e de imparcialidade pressupõem a existência de regras relativas, designadamente, à composição da instância em causa, que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade dessa instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto [v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 123].

53

A este propósito, importa que os juízes estejam ao abrigo de intervenções ou de pressões externas que possam pôr em risco a sua independência. As regras aplicáveis ao estatuto dos juízes e ao exercício da sua função devem, especialmente, não só permitir afastar qualquer influência direta, sob a forma de instruções, mas também formas de influência mais indireta suscetíveis de orientar as decisões dos juízes em causa, e permitir afastar, assim, qualquer falta de aparência de independência ou de imparcialidade desses juízes que possa pôr em causa a confiança que a justiça deve inspirar aos particulares numa sociedade democrática e num Estado de direito [Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 60 e jurisprudência referida].

54

Embora a parte «externa» da independência tenha essencialmente como objetivo preservar a independência dos órgãos jurisdicionais em relação aos poderes legislativo e executivo, em conformidade com o princípio da separação de poderes que caracteriza o funcionamento de um Estado de direito, essa parte deve, todavia, ser entendida como visando também a proteção dos juízes contra influências indevidas provenientes do interior do órgão jurisdicional em causa (v., neste sentido, TEDH, 22 de dezembro de 2009, Parlov‑Tkalčić c. Croácia, CE:ECHR:2009:1222JUD002481006, § 86).

55

Em segundo lugar, atendendo aos laços indissociáveis que existem entre as garantias de independência e de imparcialidade dos juízes, bem como de acesso a um tribunal previamente estabelecido por lei [v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, Krajowa Rada Sądownictwa (Manutenção em funções de um juiz), C‑718/21, EU:C:2023:1015, n.o 59 e jurisprudência referida], o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE exige também a existência de um tribunal «previamente estabelecido por lei». Esta expressão, que reflete nomeadamente o princípio do Estado de direito, diz respeito não só à base legal da própria existência do tribunal mas também à composição da formação de julgamento em cada processo [v., neste sentido, Acórdãos de 26 de março de 2020, Reapreciação Simpson/Conselho e HG/Comissão, C‑542/18 RX‑II e C‑543/18 RX‑II, EU:C:2020:232, n.o 73, e de 22 de março de 2022, Prokurator Generalny (Secção Disciplinar do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑508/19, EU:C:2022:201, n.o 73]. Este princípio implica, nomeadamente, que a formação de julgamento encarregada do processo tome sozinha a decisão que põe fim à instância.

56

A expressão «previamente estabelecido por lei» tem nomeadamente por objetivo evitar que a organização do sistema judicial seja deixada à discrição do poder executivo e assegurar que essa matéria seja regulada por lei. Além disso, em países nos quais vigora um sistema de direito codificado, a organização do sistema judicial também não pode ser deixada à discrição das autoridades judiciárias, o que não exclui, no entanto, que lhes seja reconhecido um certo poder de interpretação da legislação nacional nesta matéria [v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 168 e jurisprudência referida].

57

Um «tribunal estabelecido por lei» caracteriza‑se pela sua função jurisdicional, ou seja, decidir, com base em normas de direito e após um procedimento organizado, qualquer questão da sua competência. Deve, portanto, além da independência e da imparcialidade dos seus membros, satisfazer também outras condições, em particular, a relativa à existência de garantias oferecidas pelo processo que nele decorre (v., neste sentido, TEDH, 22 de junho de 2000, Coëme e o. c. Bélgica, CE:ECHR:2000:0622JUD003249296, § 99).

58

Entre estas garantias figura, em terceiro lugar, o princípio do contraditório, que é parte integrante do direito a um processo equitativo e a uma tutela jurisdicional efetiva [v., neste sentido, Acórdãos de 17 de dezembro de 2009, Reapreciação M/EMEA, C‑197/09 RX‑II, EU:C:2009:804, n.o 59; de 16 de outubro de 2019, Glencore Agriculture Hungary, C‑189/18, EU:C:2019:861, n.o 61; de 29 de abril de 2021, Bank BPH, C‑19/20, EU:C:2021:341, n.o 92; e de 10 de fevereiro de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Prazo de prescrição), C‑219/20, EU:C:2022:89, n.o 46]. Este princípio implica, nomeadamente, que as partes possam discutir em contraditório todos os elementos de facto e de direito que sejam determinantes para a decisão da causa (Acórdãos de 2 de dezembro de 2009, Comissão/Irlanda e o., C‑89/08 P, EU:C:2009:742, n.o 56, e de 17 de dezembro de 2009, Reapreciação M/EMEA, C‑197/09 RX‑II, EU:C:2009:804, n.o 41).

59

As exigências mencionadas nos n.os 47 a 58 do presente acórdão pressupõem assim, nomeadamente, a existência de regras transparentes e conhecidas dos particulares relativas à composição das formações de julgamento, que sejam suscetíveis de excluir qualquer ingerência indevida, no processo decisório relativo a um dado processo, de pessoas estranhas à formação de julgamento encarregada desse processo e perante as quais as partes não puderam apresentar o seus argumentos.

60

Embora, é certo, incumba ao órgão jurisdicional de reenvio aplicar todos os princípios agora recordados, o Tribunal de Justiça pode, porém, no âmbito da cooperação judiciária estabelecida nesse artigo 267.o TFUE, a partir dos elementos dos autos, fornecer a esse órgão jurisdicional os elementos de interpretação do direito da União que lhe possam ser úteis para a apreciação dos efeitos de uma determinada disposição deste [Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑487/19, EU:C:2021:798, n.o 133 e jurisprudência referida].

61

No que respeita à intervenção do juiz responsável pelo registo em causa no processo principal, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o artigo 177.o, n.o 3, do Regulamento de Processo dos Tribunais não prevê que esse juiz é competente para fiscalizar o conteúdo de uma decisão judicial seja de que maneira for, e para impedir que esta seja formalmente proferida e notificada às partes se não estiver de acordo com o seu conteúdo.

62

Resulta ainda desses autos que essa competência também não está prevista na Lei Orgânica dos Tribunais, em particular no seu artigo 40.o, n.o 2, que respeita ao caráter vinculativo das «posições jurídicas» das reuniões do Pleno.

63

Todavia, segundo as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e como ilustram as circunstâncias factuais que caracterizam os três processos principais, estas disposições parecem, na prática, ser aplicadas de tal modo que o papel do juiz responsável pelo registo vai além da função de registo.

64

Com efeito, embora este juiz não possa substituir a sua apreciação pela da formação de julgamento encarregada do processo em causa, pode, de facto, bloquear o registo da decisão judicial adotada e, assim, obstar à conclusão do processo decisório e à notificação dessa decisão às partes, remetendo o processo para essa formação de julgamento para uma reapreciação da referida decisão à luz das suas próprias observações jurídicas e, em caso de persistência de desacordo com a referida formação de julgamento, convidando o presidente do Pleno em causa a convocar uma reunião para efeitos da adoção, por este último, de uma «posição jurídica» vinculativa, nomeadamente, para a mesma formação de julgamento.

65

Essa prática tem por efeito permitir a ingerência do juiz responsável pelo registo no processo em causa, podendo essa ingerência conduzir a que esse juiz influencie a solução definitiva que será adotada nesse processo.

66

Ora, primeiro, como resulta dos n.os 61 e 62 do presente acórdão, não se afigura que a regulamentação nacional em causa no processo principal preveja uma intervenção dessa natureza do juiz responsável pelo registo.

67

Segundo, essa intervenção ocorre após a formação de julgamento a que o processo em causa foi atribuído ter adotado, no termo das suas deliberações, a sua decisão judicial, ainda que esse juiz não pertença a essa formação de julgamento e não tenha, portanto, participado nas etapas anteriores do processo que conduziram a essa decisão. O referido juiz pode assim exercer a sua influência no conteúdo de decisões judiciais proferidas por formações de julgamento de que não faz parte.

68

Terceiro, o poder de intervenção do juiz responsável pelo registo não parece sequer enquadrado por critérios claramente enunciados, que reflitam uma justificação particular e sejam adequados a evitar o exercício de um poder discricionário. Assim, no litígio no processo principal que deu lugar ao processo C‑554/21, o juiz responsável pelo registo declarou que a decisão judicial que lhe foi submetida era coerente com uma outra decisão anterior, mas não com duas outras decisões anteriores, e privilegiou uma das duas soluções jurídicas divergentes. No litígio no processo principal que deu lugar ao processo C‑622/21, o juiz responsável pelo registo justificou a remessa do processo à formação de julgamento em causa com a existência de decisões que tinham, posteriormente à decisão em causa no processo principal, privilegiado um ponto de vista contrário. No litígio no processo principal que deu lugar ao processo C‑727/21, foi por não partilhar do ponto de vista jurídico expresso na decisão em causa no processo que o juiz responsável pelo registo o remeteu, sem referir qualquer decisão anterior, à formação de julgamento em causa que tinha, contudo, mencionado, na sua própria decisão, uma decisão anterior que tinha adotado uma solução semelhante.

69

Tendo em conta os elementos expostos, uma prática como a que está em causa no processo principal, devido à qual a decisão judicial adotada pela formação de julgamento encarregada do processo só pode ser considerada definitiva e enviada às partes se o seu conteúdo tiver sido aprovado por um juiz responsável pelo registo que não faz parte desta formação de julgamento não é conciliável com as exigências inerentes ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

70

No que respeita à realização de uma reunião do Pleno como a que está em casa no processo principal, resulta da redação do artigo 40.o, n.os 1 e 2, da Lei Orgânica dos Tribunais que uma reunião do Pleno ou dos juízes de um tribunal pode ser convocada quando existam, nomeadamente, diferenças de interpretação entre Plenos, secções ou juízes desse tribunal sobre questões relativas à aplicação da lei e que, em seguida, essa reunião formule uma «posição jurídica» que vincule todas as secções ou juízes desse Pleno ou do referido tribunal.

71

Resulta, além disso, das explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que essa reunião de Pleno pode ser convocada por um presidente do mesmo a pedido do juiz responsável pelo registo quando este último não admite o registo da decisão judicial que lhe foi transmitida pela formação de julgamento encarregada do processo em causa, pelo menos quando essa formação de julgamento pretenda manter a sua decisão após ter procedido à reapreciação da mesma exigida por esse juiz.

72

Segundo estas explicações, todos os juízes do Pleno em causa podem participar nessa reunião, incluindo os juízes que decidem no processo em causa e o juiz responsável pelo registo. A este respeito, importa salientar que, mesmo que, como resulta dos autos relativos ao processo C‑727/21, o ou os juízes da formação de julgamento em causa pareçam ter participado na reunião do Pleno, a maioria dos juízes que participaram nessa reunião do Pleno são outros juízes membros do tribunal em causa, mas que não fazem parte dessa formação. Além disso, nos termos do artigo 40.o, n.o 3, da Lei Orgânica dos Tribunais, «professores da Faculdade de Direito, académicos eminentes ou peritos num determinado domínio do direito», que são personalidades externas ao tribunal em causa, podem, em certas condições, participar nessa reunião do Pleno e, portanto, no processo judicial.

73

Resulta também das referidas explicações que não cabe a uma reunião do Pleno decidir definitivamente o processo que lhe foi submetido ou propor uma solução concreta nesse processo. Todavia, mesmo que a «posição jurídica» dessa reunião do Pleno seja formulada de forma mais ou menos abstrata e vincule todos os juízes, na referida reunião, para se emitir essa posição jurídica, interpreta‑se o direito à luz de casos concretos.

74

Segundo o artigo 40.o, n.o 2, da Lei Orgânica dos Tribunais, o respeito por uma «posição jurídica» de uma reunião de um Pleno vincula nomeadamente a formação de julgamento que adotou a decisão judicial no processo que lhe foi submetido se essa decisão ainda não foi registada nem notificada. Com efeito, o juiz responsável pelo registo, que, na prática, tem por missão zelar pelo respeito das «posições jurídicas» adotadas pela reunião do Pleno em causa, poderá assim recusar o registo da «nova» decisão judicial adotada por essa formação de julgamento se se afastar dessa «posição jurídica».

75

A intervenção da reunião do Pleno permite, de facto, a ingerência, na solução definitiva de um processo previamente deliberado e decidido pela formação de julgamento competente, mas ainda não registada e enviada, de um conjunto de juízes que participam nessa reunião do Pleno.

76

Com efeito, a perspetiva, para essa formação de julgamento, caso mantenha um ponto de vista jurídico oposto ao do juiz responsável pelo registo, de a sua decisão judicial ser submetida à fiscalização de uma reunião do Pleno, assim como a obrigação, da referida formação de julgamento, de respeitar, depois de terminadas as deliberações, a «posição jurídica» definida por essa reunião de Pleno, são suscetíveis de influenciar o conteúdo final dessa decisão.

77

Ora, primeiro, não se afigura que o poder de intervenção da reunião do Pleno em causa no processo principal seja suficientemente enquadrado por critérios objetivos e aplicados enquanto tais. Com efeito, embora o artigo 40.o, n.o 1, da Lei Orgânica dos Tribunais preveja, é certo, a convocação de uma reunião do Pleno «[q]uando se verifique que existem diferenças de interpretação entre o Pleno, as secções ou juízes quanto às questões relativas à aplicação da lei ou quando uma secção ou um juiz do Pleno se afasta da posição jurídica anteriormente adotada», resulta da descrição dos factos que figuram na decisão de reenvio no processo C‑727/21 que a reunião do Pleno em causa foi convocada simplesmente porque o juiz responsável pelo registo não partilhava do ponto de vista jurídico da formação de julgamento competente, sem sequer fazer referência a uma qualquer decisão que traduza uma divergência desse ponto de vista em relação a decisões judiciais anteriores.

78

Segundo, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça no processo C‑727/21 que, à semelhança da intervenção do juiz responsável pelo registo, a convocação de uma reunião do Pleno e a emissão por este de uma «posição jurídica» vinculativa, nomeadamente, para a formação de julgamento encarregada desse processo, em nenhum momento são levados ao conhecimento das partes. Estas partes não parecem assim dispor da possibilidade de exercer os seus direitos processuais perante tal reunião do Pleno.

79

Tendo em conta os elementos expostos, uma regulamentação nacional que permite a uma reunião do Pleno de um órgão jurisdicional nacional, através da emissão de uma «posição jurídica», obrigar a formação de julgamento encarregada do processo a alterar o conteúdo da decisão judicial que adotou anteriormente, quando essa reunião inclui também juízes diferentes dos que compõem essa formação de julgamento e, sendo caso disso, pessoas estranhas ao tribunal em causa perante as quais as partes não tiveram a possibilidade de apresentar os seus argumentos, não é conciliável com as exigências inerentes ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo.

80

Importa ainda precisar que, para evitar divergências jurisprudenciais ou para as sanar e assegurar assim a segurança jurídica inerente ao princípio do Estado de direito, um mecanismo processual que permite a um juiz de um órgão jurisdicional nacional que não tem assento na formação de julgamento competente remeter um processo a uma formação alargada desse tribunal não viola as exigências decorrentes do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, desde que o processo não tenha ainda sido deliberado pela formação de julgamento inicialmente designada, as circunstâncias em que tal remessa possa ser operada sejam claramente enunciadas na legislação aplicável e a referida remessa não prive as pessoas em causa da possibilidade de participar no processo perante essa formação de julgamento alargada. Além disso, a formação de julgamento inicialmente designada pode sempre decidir sobre essa remessa.

81

Tendo em conta as considerações expostas, há que responder às questões submetidas que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o direito nacional preveja um mecanismo interno a um órgão jurisdicional nos termos do qual:

a decisão judicial adotada pela formação de julgamento encarregada de um processo só pode ser enviada às partes para efeitos do seu encerramento se o seu conteúdo tiver sido aprovado por um juiz responsável pelo registo que não faz parte da formação de julgamento;

uma reunião do Pleno desse órgão jurisdicional nacional tem o poder, através da emissão de uma «posição jurídica», de obrigar a formação de julgamento encarregada de um processo a alterar o conteúdo da decisão judicial que adotou anteriormente, quando essa reunião também inclua juízes diferentes daqueles que compõem essa formação de julgamento e, sendo caso disso, pessoas estranhas ao tribunal em causa perante as quais as partes não tiveram a possibilidade de apresentar os seus argumentos.

Quanto às despesas

82

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

se opõe a que o direito nacional preveja um mecanismo interno a um órgão jurisdicional nos termos do qual:

 

a decisão judicial adotada pela formação de julgamento encarregada de um processo só pode ser enviada às partes para efeitos do seu encerramento se o seu conteúdo tiver sido aprovado por um juiz responsável pelo registo que não faz parte da formação de julgamento;

uma reunião do Pleno desse órgão jurisdicional nacional tem o poder, através da emissão de uma «posição jurídica», de obrigar a formação de julgamento encarregada de um processo a alterar o conteúdo da decisão judicial que adotou anteriormente, quando essa reunião também inclua juízes diferentes daqueles que compõem essa formação de julgamento e, sendo caso disso, pessoas estranhas ao tribunal em causa perante as quais as partes não tiveram a possibilidade de apresentar os seus argumentos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: croata.

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