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Document 62021CJ0241

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 6 de outubro de 2022.
    I. L. contra Politsei- ja Piirivalveamet.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Riigikohus.
    Reenvio prejudicial — Diretiva 2008/115/CE — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Artigo 15.o, n.o 1 — Colocação em detenção — Motivos de detenção — Critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida — Risco de prática de uma infração penal — Consequências da investigação da infração e da aplicação de uma sanção — Complicação do processo de afastamento — Artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Limitação do direito fundamental à liberdade — Exigência de uma base legal — Exigências de clareza, de previsibilidade e de acessibilidade — Proteção contra a arbitrariedade.
    Processo C-241/21.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:753

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

    6 de outubro de 2022 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Diretiva 2008/115/CE — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Artigo 15.o, n.o 1 — Colocação em detenção — Motivos de detenção — Critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida — Risco de prática de uma infração penal — Consequências da investigação da infração e da aplicação de uma sanção — Complicação do processo de afastamento — Artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Limitação do direito fundamental à liberdade — Exigência de uma base legal — Exigências de clareza, de previsibilidade e de acessibilidade — Proteção contra a arbitrariedade»

    No processo C‑241/21,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), por Decisão de 30 de março de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de abril de 2021, no processo

    I. L.

    contra

    Politsei‑ ja Piirivalveamet

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

    composto por: A. Prechal (relatora), presidente de secção, J. Passer, F. Biltgen, N. Wahl e M. L. Arastey Sahún, juízes,

    advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

    secretário: C. Strömholm, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 17 de março de 2022,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação do Governo estónio, por N. Grünberg e M. Kriisa, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo espanhol, por A. Ballesteros Panizo e M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga, L. Grønfeldt e E. Randvere, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 2 de junho de 2022,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe I. L., um nacional moldavo residente na Estónia e que foi objeto de uma ordem de abandonar o território, à Politsei‑ja Piirivalveamet (Autoridade de Polícia e Proteção das Fronteiras, Estónia) (a seguir «PPA»), a respeito de uma decisão pela qual a PPA ordenou a detenção de I. L. pelo facto de este apresentar um risco real de cometer uma infração penal cuja investigação e punição foram suscetíveis de dificultar significativamente o processo de afastamento.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    Os considerandos 16 e 17 da Diretiva 2008/115 enunciam:

    «(16)

    O recurso à detenção para efeitos de afastamento deverá ser limitado e sujeito ao princípio da proporcionalidade no que respeita aos meios utilizados e aos objetivos perseguidos. A detenção só se justifica para preparar o regresso ou para o processo de afastamento e se não for suficiente a aplicação de medidas coercivas menos severas.

    (17)

    Os nacionais de países terceiros detidos deverão ser tratados de forma humana e digna, no respeito pelos seus direitos fundamentais e nos termos do direito internacional e do direito nacional. Sem prejuízo da detenção inicial pelas entidades competentes para a aplicação da lei, que se rege pelo direito nacional, a detenção deverá, por norma, ser executada em centros de detenção especializados.»

    4

    O artigo 3.o, ponto 7, desta diretiva define o «risco de fuga» como «a existência num caso concreto de razões, baseadas em critérios objetivos definidos por lei, para crer que o nacional de país terceiro objeto de um procedimento de regresso pode fugir».

    5

    O artigo 15.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

    «A menos que no caso concreto possam ser aplicadas com eficácia outras medidas suficientes mas menos coercivas, os Estados‑Membros só podem manter detidos nacionais de países terceiros objeto de procedimento de regresso, a fim de preparar o regresso e/ou efetuar o processo de afastamento, nomeadamente quando:

    a)

    Houver risco de fuga; ou

    b)

    O nacional de país terceiro em causa evitar ou entravar a preparação do regresso ou o procedimento de afastamento.

    A detenção tem a menor duração que for possível, sendo apenas mantida enquanto o procedimento de afastamento estiver pendente e for executado com a devida diligência.»

    Direito estónio

    6

    O artigo 68 da väljasõidukohustuse ja sissesõidukeelu seadus (Lei Relativa à Obrigação de Abandonar o Território e à Proibição de Entrada no Território), de 21 de outubro de 1998 (RT I 1998, 98, 1575), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «VSS»), epigrafado «Risco de fuga do estrangeiro», tem a seguinte redação:

    «A emissão de uma ordem de abandonar o território ou a colocação em detenção de um estrangeiro implicam uma avaliação do seu risco de fuga. Um estrangeiro apresenta risco de fuga quando:

    1)

    não abandonou a Estónia ou um Estado‑Membro da Convenção Schengen após o termo do prazo de partida voluntária fixado pela ordem de abandonar o território;

    2)

    forneceu informações falsas ou documentos falsificados quando do pedido de residência legal na Estónia, do pedido de prorrogação dessa residência, do pedido de nacionalidade estónia, do pedido de proteção internacional ou do pedido de documentos de identidade;

    3)

    existe uma dúvida legítima quanto à sua identidade ou à sua nacionalidade;

    4)

    cometeu diversas infrações dolosas ou uma infração penal pelas quais foi condenado em pena privativa de liberdade;

    5)

    não respeitou as medidas de vigilância a que estava sujeito para garantir a observância da ordem de abandonar o território;

    6)

    informou a [PPA] ou a Kaitsepolitseiamet (Agência de Segurança Interna, Estónia) da sua intenção de não cumprir a ordem de abandonar o território, ou a autoridade administrativa chegou a essa conclusão dada a atitude e o comportamento do estrangeiro;

    7)

    entrou na Estónia durante o período de validade da proibição de entrada de que foi objeto;

    8)

    foi colocado em detenção devido a travessia ilegal da fronteira exterior da Estónia e não obteve a autorização ou o direito de residir na Estónia;

    9)

    abandonou sem autorização o local de residência designado ou outro um Estado‑Membro da Convenção Schengen;

    10)

    a ordem de abandonar o território emitida ao estrangeiro tornou executória por decisão judicial.»

    7

    O artigo 15.o da VSS, epigrafado «Detenção do estrangeiro e mecanismo de afastamento», dispõe:

    «(1)   O estrangeiro pode ser colocado em detenção ao abrigo do n.o 2, infra, quando as medidas de vigilância previstas na presente lei não possam ser eficazmente aplicadas. A colocação em detenção deve respeitar o princípio da proporcionalidade e ter em conta, em cada caso, os elementos pertinentes relativos ao estrangeiro.

    (2)   O estrangeiro pode ser colocado em detenção quando a aplicação das medidas de vigilância definidas na presente lei não garante a execução efetiva da ordem de abandonar o território e, em especial, quando:

    1)

    existe um risco de fuga do cidadão estrangeiro;

    2)

    o estrangeiro não cumpre o seu dever de cooperação, ou

    3)

    o estrangeiro não possui os documentos necessários para a viagem de regresso ou esses documentos tardam a ser obtidos no país de acolhimento ou de trânsito.

    […]»

    Litígio no processo principal e questão prejudicial

    8

    I. L. é um nacional moldavo que residia na Estónia ao abrigo de uma isenção de visto.

    9

    Em 12 de outubro de 2020, I. L. foi colocado em detenção enquanto pessoa suspeita de ter causado sofrimento físico e danos à saúde da sua parceira, bem como a uma outra mulher.

    10

    Por Sentença de 13 de outubro de 2020, o Harju Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Harju, Estónia) declarou I. L. culpado da prática da infração de sevícias corporais e proferiu uma pena de prisão de um ano, um mês e vinte e oito dias acompanhada de um período de regime de prova de dois anos. No entanto, este órgão jurisdicional ordenou que I. L. fosse posto em liberdade.

    11

    No mesmo dia, a PPA pôs termo antecipadamente à residência de I. L. no território estónio e ordenou, nas instalações do Harju Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Harju), a sua colocação em detenção. A PPA justificou esta última decisão pela existência de «risco de fuga», na aceção do artigo 15.o, n.o 2, ponto 1, da VSS. O auto de colocação em detenção indica que a pessoa em causa foi detida tendo em conta a sua atitude a respeito da infração penal praticada e o seu comportamento após a sua condenação. Segundo a PPA, havia razões para crer, nestas condições, que o interessado poderia tentar subtrair‑se ao afastamento, apesar da sua promessa de abandonar voluntariamente o país e do seu pedido de que lhe fosse emitida uma ordem de partida voluntária.

    12

    A PPA dirigiu igualmente a I. L. uma ordem para abandonar o território estónio, com o fundamento de que estava em situação irregular.

    13

    Por um Despacho de 15 de outubro de 2020, ao deferir o pedido da PPA, o Tallinna Halduskohus (Tribunal Administrativo de Talin, Estónia) autorizou a colocação de I. L. num centro de detenção até à data do seu afastamento, sem que esta detenção pudesse prolongar‑se para além de 15 de dezembro de 2020.

    14

    Por um Despacho de 2 de dezembro de 2020, o Tallinna Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Talin, Estónia) negou provimento ao recurso interposto por I. L. de anulação do despacho do Tallinna Halduskohus (Tribunal Administrativo de Talin).

    15

    Entretanto, em 23 de novembro de 2020, I. L. tinha sido repatriado para a Moldávia.

    16

    I. L. interpôs para o Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia) um recurso destinado a obter a anulação do despacho do Tallinna Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Talin) e a declaração da ilegalidade da sua detenção. No seu recurso, I. L. precisou que teria fundamento para intentar uma ação de indemnização contra a PPA se o Riigikohus (Supremo Tribunal) proferisse uma decisão que declarasse a ilegalidade da sua detenção.

    17

    O órgão jurisdicional de reenvio precisa que o litígio no processo principal tem unicamente por objeto a autorização da colocação de I. L. em detenção.

    18

    Contrariamente à apreciação da PPA, este órgão jurisdicional considera que a colocação de I. L. em detenção não podia ser ordenada com fundamento num «risco de fuga», na aceção do artigo 15.o, n.o 2, ponto 1, da VSS. O referido órgão jurisdicional observa, a este respeito, que nenhuma das situações enumeradas no artigo 68 desta lei, cujo objeto é definir o conceito de «risco de fuga», está preenchida nas circunstâncias do litígio no processo principal.

    19

    No que respeita, em particular, ao critério estabelecido no artigo 68, ponto 4, da VSS, que prevê a hipótese de condenação numa pena privativa de liberdade, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que este pressupõe a existência de uma decisão definitiva. Ora, a decisão em que é proferida a condenação de I. L. só se tornou definitiva depois de a decisão do Tallinna Halduskohus (Tribunal Administrativo de Talin) autorizar a sua colocação em detenção.

    20

    O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que colocação em detenção também não se podia basear no artigo 15.o, n.o 2, pontos 2 e 3, da VSS, os quais preveem, respetivamente, um incumprimento do dever de cooperação e a falta dos documentos necessários para a viagem de regresso.

    21

    Consequentemente, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a legalidade da colocação em detenção de I. L. depende do eventual caráter exaustivo da enumeração estabelecida no artigo 15.o, n.o 2, da VSS.

    22

    Segundo uma primeira interpretação, os três motivos de colocação em detenção enunciados no artigo 15.o, n.o 2, da VSS são exaustivos. Uma vez que I. L. não preenchia nenhum destes três motivos, a sua detenção deveria ser considerada ilegal.

    23

    De acordo com uma segunda interpretação, os referidos motivos não são exaustivos, antes ilustrando um critério geral, a saber, o risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, o qual resulta do artigo 15.o, n.o 2, primeiro período, da VSS.

    24

    O órgão jurisdicional de reenvio considera que as circunstâncias do caso em apreço no processo principal poderiam efetivamente comportar esse risco, na medida em que existia um risco real de I. L. procurar resolver o conflito que o opunha à sua antiga companheira e, nessa ocasião, de cometer uma nova infração penal. Ora, a declaração e a punição dessa infração através de uma decisão judicial, e, sendo caso disso, a execução da pena pronunciada, poderiam ter sido de molde a adiar a execução do seu afastamento para uma data indeterminada.

    25

    Este órgão jurisdicional interroga‑se sobre a compatibilidade desta interpretação com o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115.

    26

    Em particular, este órgão jurisdicional pergunta‑se se o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 pode ser interpretado no sentido de que autoriza a colocação em detenção com fundamento no critério geral identificado acima, a saber, o risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, ou se deve estar preenchido um dos dois motivos expressamente enunciados nesta disposição.

    27

    Nestas condições, o Riigikohus (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «Deve o artigo 15.o, n.o 1, primeiro período, da [Diretiva 2008/115], ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros podem colocar em detenção um nacional de um Estado terceiro que representa um risco efetivo de, enquanto se encontra em liberdade e antes do afastamento, cometer uma infração cuja investigação e punição possa dificultar significativamente a execução do afastamento?»

    Quanto à questão prejudicial

    28

    Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 deve ser interpretado no sentido de que permite a um Estado‑Membro ordenar a colocação em detenção de um nacional de um país terceiro em situação irregular com fundamento unicamente num critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, sem que esteja preenchido um dos motivos de detenção específicos previstos e claramente definidos pela legislação que visa transpor esta disposição para o direito nacional.

    29

    Segundo as explicações por si fornecidas ao Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio constata que nenhum dos motivos específicos de detenção previstos no artigo 15.o, n.o 2, da VSS, o qual visa transpor o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 para o direito estónio, baseados, respetivamente, na existência de um risco de fuga, num incumprimento do dever de cooperação e na falta dos documentos necessários para a viagem de regresso, está preenchido nas circunstâncias do litígio no processo principal. Este órgão jurisdicional considera, pelo contrário, que o critério geral identificado na questão submetida, a saber, o risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, está preenchido na medida em que existia um risco real de o interessado cometer uma infração penal cuja investigação e punição poderiam ter adiado o afastamento para data indeterminada.

    30

    Há que salientar que, nos termos do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, a detenção do interessado só é permitida «a fim de preparar o regresso e/ou de efetuar o processo de afastamento».

    31

    O Tribunal de Justiça precisou, a este respeito, que só no caso de a execução da decisão de regresso sob a forma de afastamento fazer correr o risco de, atendendo à apreciação de cada situação específica, ficar comprometida pelo comportamento do interessado, é que os Estados‑Membros podem proceder à privação de liberdade deste último mediante detenção (Acórdão de 10 de março de 2022, Landkreis Gifhorn, C‑519/20, EU:C:2022:178, n.o 37 e jurisprudência referida).

    32

    Daqui resulta que, quando ordenada para efeitos de afastamento, a detenção de um nacional de um país terceiro em situação irregular destina‑se unicamente a assegurar a efetividade do procedimento de regresso e não prossegue nenhuma finalidade punitiva (Acórdão de 10 de março de 2022, Landkreis Gifhorn, C‑519/20, EU:C:2022:178, n.o 38).

    33

    Assim, uma medida de detenção ordenada por um Estado‑Membro com fundamento na legislação nacional que visa transpor o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 deve preencher um critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida.

    34

    Isso não significa, porém, que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 deva ser entendido no sentido de que o critério geral estabelece, enquanto tal, um motivo de detenção e permite a Estado‑Membro ordenar uma medida de detenção unicamente com esse fundamento.

    35

    Com efeito, o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 prevê expressamente dois motivos de detenção baseados, por um lado, na existência de um risco de fuga, conforme definido no artigo 3.o, ponto 7, desta diretiva, e, por outro, na circunstância de a pessoa interessada evitar ou impedir a preparação do regresso ou do procedimento de afastamento.

    36

    É certo que, como foi salientado pelo advogado‑geral nos n.os 30 a 34 das suas conclusões, resulta do primeiro período do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, e em particular do termo «nomeadamente», que estes dois motivos não são exaustivos. Por conseguinte, os Estados‑Membros podem prever outros motivos de detenção específicos, em complemento dos dois motivos expressamente previstos nesta disposição.

    37

    Dito isto, importa sublinhar que a possibilidade conferida aos Estados‑Membros de adotarem motivos de detenção complementares é estritamente enquadrada tanto pelas exigências resultantes da própria Diretiva 2008/115, como pelas que decorrem da proteção dos direitos fundamentais, em particular do direito fundamental à liberdade consagrado no artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

    38

    A este respeito, importa, em primeiro lugar, sublinhar que, como foi recordado nos n.os 30 a 33 do presente acórdão, uma medida de detenção só pode ser ordenada no caso de a execução da decisão de regresso mediante afastamento fazer correr o risco de ficar comprometida em razão do comportamento do interessado e ter como único objetivo assegurar a efetividade do procedimento de regresso.

    39

    No caso em apreço, deve concluir‑se que cumpre essa exigência o critério geral, como o identificado na questão submetida, relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida.

    40

    Em segundo lugar, o recurso à detenção para efeitos de afastamento deverá ser limitado e sujeito ao respeito do princípio da proporcionalidade, como corrobora igualmente o considerando 16 da Diretiva 2008/115.

    41

    Importa recordar que a Diretiva 2008/115 visa implementar uma política eficaz de afastamento e repatriamento, com pleno respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade das pessoas em causa (Acórdão de 10 de março de 2022, Landkreis Gifhorn, C‑519/20, EU:C:2022:178, n.o 39 e jurisprudência referida).

    42

    Assim, qualquer detenção que seja abrangida por esta diretiva é estritamente enquadrada pelas disposições do capítulo IV da referida diretiva, de modo a garantir, por um lado, o respeito do princípio da proporcionalidade no que toca aos meios utilizados e aos objetivos prosseguidos e, por outro, o respeito dos direitos fundamentais dos nacionais de países terceiros (Acórdão de 10 de março de 2022, Landkreis Gifhorn, C‑519/20, EU:C:2022:178, n.o 40 e jurisprudência referida).

    43

    Daqui resulta que o aditamento de um motivo de detenção complementar por um Estado‑Membro não pode, em caso algum, visar uma situação em que a aplicação de medidas menos coercivas, nomeadamente as que respeitam os direitos fundamentais das pessoas em causa, é suficiente para garantir a efetividade do procedimento de regresso.

    44

    No que respeita, mais especificamente, às exigências que decorrem da proteção do direito fundamental à liberdade, consagrado no artigo 6.o da Carta, há que fazer referência aos ensinamentos do Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor (C‑528/15, EU:C:2017:213).

    45

    Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça salientou que o artigo 28.o do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31), ao autorizar a colocação em detenção de um requerente para garantir os procedimentos de transferência previstos neste regulamento quando exista um risco significativo de fuga desse requerente, prevê uma limitação ao exercício do direito fundamental à liberdade (Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 36).

    46

    Do mesmo modo, ao autorizar a colocação em detenção de um nacional de um país terceiro objeto de procedimentos de regresso, a fim de preparar o regresso e/ou de proceder ao afastamento, o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 prevê uma limitação do direito fundamental à liberdade, consagrado no artigo 6.o da Carta.

    47

    A este respeito, resulta do artigo 52.o, n.o 1, da Carta que qualquer restrição ao exercício desse direito deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial deste e o princípio da proporcionalidade. Na medida em que a Carta contém direitos correspondentes aos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o artigo 52.o, n.o 3, da Carta prevê que o sentido e o âmbito desses direitos são os mesmos que os que lhes confere a CEDH, ao mesmo tempo que precisa que o direito da União lhes pode conferir uma proteção mais ampla. Para efeitos da interpretação do artigo 6.o da Carta, há, por conseguinte, que ter em conta o artigo 5.o da CEDH como limiar de proteção mínima (Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 37).

    48

    No que respeita às exigências a cumprir pela base legal de uma limitação ao direito à liberdade, o Tribunal de Justiça salientou, à luz do Acórdão do TEDH de 21 de outubro de 2013, Del Río Prada/Espanha (CE:ECHR:2013:1021JUD004275009), que uma lei nacional que autoriza uma privação de liberdade deve, para responder às exigências do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, ser suficientemente acessível, precisa e previsível na sua aplicação a fim de evitar qualquer risco de arbitrariedade [Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 38, e v., neste sentido, Acórdão de 17 de setembro de 2020, JZ (Pena de prisão em caso de proibição de entrada), C‑806/18, EU:C:2020:724, n.o 41].

    49

    A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinhou igualmente que o objetivo das garantias relativas à liberdade, como consagradas no artigo 6.o da Carta e no artigo 5.o da CEDH, é, em particular, constituído pela proteção do indivíduo contra a arbitrariedade. Assim, a execução de uma medida de privação de liberdade, para estar em conformidade com esse objetivo, implica, nomeadamente, que não sofra de nenhum tipo de má‑fé ou de engano por parte das autoridades (Acórdãos de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 39, e de 12 de fevereiro de 2019, TC, C‑492/18 PPU, EU:C:2019:108, n.o 59).

    50

    Decorre do exposto que a colocação em detenção de um nacional de um país terceiro que é objeto de procedimentos de regresso, uma vez que constitui uma ingerência grave no direito à liberdade deste último, está sujeita ao respeito de garantias estritas, a saber, a existência de uma base legal, a clareza, a previsibilidade, a acessibilidade e a proteção contra a arbitrariedade (Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 40).

    51

    No caso em apreço, no que respeita à exigência de uma base legal, há que observar que a limitação do direito à liberdade, nas circunstâncias do litígio no processo principal, assenta no artigo 15.o da VSS, ou seja, uma disposição legislativa de direito nacional destinada a aplicar o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115.

    52

    Feita esta precisão, há que se interrogar sobre o respeito das restantes garantias mencionadas acima na hipótese, referida na questão submetida, de o interessado ser colocado em detenção com fundamento unicamente num critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, sem que esteja preenchido um dos motivos de detenção específicos previstos por esta disposição legislativa nacional.

    53

    Em conformidade com a jurisprudência recordada nos n.os 47 a 49 do presente acórdão, há que sublinhar, a este respeito, que o poder de apreciação individual de que dispõem as autoridades em questão deve inscrever‑se no âmbito de determinados limites preestabelecidos. Por conseguinte, é essencial que os critérios que definem o motivo de uma colocação em detenção sejam claramente definidos por um ato vinculativo e previsível quanto à sua aplicação (v., neste sentido, Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 42).

    54

    Ora, impõe‑se constatar que um critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida não cumpre as exigências de clareza, de previsibilidade e de proteção contra a arbitrariedade, como alegou, com razão, a Comissão Europeia. Com efeito, devido à sua falta de precisão, nomeadamente no que respeita à determinação dos elementos que devem ser tidos em consideração pelas autoridades nacionais competentes para efeitos da apreciação da existência do risco em que assenta, esse critério não permite às pessoas interessadas preverem, com o nível de certeza exigido, em que casos poderiam ser colocadas em detenção. Pelas mesmas razões, tal critério não oferece a estas pessoas uma proteção adequada contra a arbitrariedade.

    55

    Atentas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 deve ser interpretado no sentido de que não permite a um Estado‑Membro ordenar a colocação em detenção de um nacional de um país terceiro em situação irregular com fundamento unicamente num critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, sem que esteja preenchido um dos motivos de detenção específicos previstos e claramente definidos pela legislação que visa transpor essa disposição para o direito nacional.

    Quanto às despesas

    56

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

     

    O artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular,

     

    deve ser interpretado no sentido de que:

     

    não permite a um Estado‑Membro ordenar a colocação em detenção de um nacional de um país terceiro em situação irregular com fundamento unicamente num critério geral relativo ao risco de a execução efetiva do afastamento ficar comprometida, sem que esteja preenchido um dos motivos de detenção específicos previstos e claramente definidos pela legislação que visa transpor essa disposição para o direito nacional.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: estónio.

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