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Document 62021CJ0210

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 23 de novembro de 2023.
    Ryanair DAC contra Comissão Europeia.
    Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE — Mercado francês dos transportes aéreos — Regime de auxílios notificado pela República Francesa — Moratória sobre o pagamento de taxas e de taxas aeronáuticas para apoio às companhias aéreas durante a pandemia de COVID‑19 — Quadro temporário relativo às medidas de auxílio de Estado — Decisão da Comissão Europeia de não suscitar objeções — Auxílio destinado a reparar os danos sofridos na sequência de um acontecimento extraordinário — Princípios da proporcionalidade e da não discriminação — Livre prestação de serviços.
    Processo C-210/21 P.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:908

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

    23 de novembro de 2023 ( *1 )

    «Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE — Mercado francês dos transportes aéreos — Regime de auxílios notificado pela República Francesa — Moratória sobre o pagamento de taxas e de taxas aeronáuticas para apoio às companhias aéreas durante a pandemia de COVID‑19 — Quadro temporário relativo às medidas de auxílio de Estado — Decisão da Comissão Europeia de não suscitar objeções — Auxílio destinado a reparar os danos sofridos na sequência de um acontecimento extraordinário — Princípios da proporcionalidade e da não discriminação — Livre prestação de serviços»

    No processo C‑210/21 P,

    que tem por objeto o recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 2 de abril de 2021,

    Ryanair DAC, com sede em Swords (Irlanda), representada por V. Blanc, F.‑C. Laprévote e E. Vahida, avocats, I.‑G. Metaxas‑Maranghidis, dikigoros, D. Pérez de Lamo e S. Rating, abogados,

    recorrente,

    sendo as outras partes no processo:

    Comissão Europeia, representada por L. Flynn, C. Georgieva, S. Noë e F. Tomat, na qualidade de agentes,

    recorrida em primeira instância,

    República Francesa, representada inicialmente por A.‑L. Desjonquères, P. Dodeller, T. Stéhelin e N. Vincent, em seguida, por A.‑L. Desjonquères, T. Stéhelin e N. Vincent e, por último, por A.‑L. Desjonquères e T. Stéhelin, na qualidade de agentes,

    interveniente em primeira instância,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

    composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, O. Spineanu‑Matei, J.‑C. Bonichot, S. Rodin (relator) e L. S. Rossi, juízes,

    advogado‑geral: G. Pitruzzella,

    secretário: M. Longar, administrador,

    vistos os autos e após a audiência de 19 de outubro de 2022,

    vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    Com o presente recurso, a Ryanair DAC pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 17 de fevereiro de 2021, Ryanair/Comissão (T‑259/20, a seguir acórdão recorrido, EU:T:2021:92), através do qual este negou provimento ao recurso de anulação da Decisão C(2020) 2097 final da Comissão, de 31 de março de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.56765 (2020/N) — França — COVID‑19 — Moratória sobre o pagamento de taxas aeronáuticas a favor das companhias de transporte aéreo público (JO 2020, C 294, p. 8, a seguir «decisão controvertida»).

    Antecedentes do litígio e decisão controvertida

    2

    Os antecedentes do litígio, conforme resultam do acórdão recorrido, podem ser resumidos da seguinte forma.

    3

    Em 24 de março de 2020, a República Francesa notificou à Comissão Europeia, em conformidade com o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, uma medida de auxílio sob a forma de moratória no pagamento da taxa de aviação civil e da taxa de solidariedade sobre os bilhetes de avião devidas pelas companhias aéreas (a seguir «regime de auxílios em causa»).

    4

    O regime de auxílios em causa tinha por objetivo que as companhias aéreas titulares de uma licença de exploração emitida em França em aplicação do artigo 3.o do Regulamento (CE) n.o 1008/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativo a regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade (JO 2008, L 293, p. 3) (a seguir «licença francesa»), pudessem ter liquidez suficiente até ao levantamento das restrições ou proibições de deslocação ligadas à pandemia de COVID‑19 e à retoma da atividade comercial normal. Este regime previa que o pagamento da taxa de aviação civil e da taxa de solidariedade sobre os bilhetes de avião, devidas relativamente ao período compreendido entre março e dezembro de 2020, seria diferido para 1 de janeiro de 2021 e repartido por um período de 24 meses, até 31 de dezembro de 2022. O montante exato das taxas devia ser determinado em função do número de passageiros transportados ou do número de voos efetuados a partir de um aeroporto francês. Além disso, o regime de auxílios em causa devia beneficiar as empresas de transporte aéreo público titulares de uma licença francesa, o que implicava que tivessem o seu «estabelecimento principal» em França.

    5

    Em 31 de março de 2020, a Comissão adotou a decisão impugnada, pela qual, após ter concluído que a medida em causa constituía um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, avaliou a sua compatibilidade com o mercado interno, mais concretamente à luz do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE.

    6

    A este respeito, em primeiro lugar, a Comissão considerou nomeadamente que a pandemia de COVID‑19 constituía um acontecimento extraordinário, na aceção do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, e que existia um nexo de causalidade entre os danos causados por esse acontecimento e o prejuízo compensado pelo regime de auxílios em causa, uma vez que esse último visava reduzir a crise de liquidez das companhias aéreas, devida a essa pandemia, dando uma resposta às necessidades de liquidez das empresas de transporte aéreo público titulares de uma licença francesa.

    7

    Em segundo lugar, após ter recordado que decorria da jurisprudência do Tribunal de Justiça que só podiam ser compensadas as desvantagens económicas causadas diretamente por um acontecimento extraordinário e que a compensação não podia exceder o montante dessas desvantagens, a Comissão considerou que o regime de auxílios em causa era proporcionado face ao montante dos prejuízos esperados, uma vez que o montante do auxílio previsional era inferior aos danos comerciais esperados devido à crise resultante da pandemia de COVID‑19.

    8

    Em seguida, a Comissão considerou que o regime de auxílios em causa estava estabelecido de forma não discriminatória, dado que os beneficiários do regime Incluíam todas as companhias aéreas titulares de licenças francesas. A este respeito, sublinhou que o facto de o auxílio ser concedido sob a forma de moratória sobre determinadas taxas que oneram também o orçamento das companhias aéreas titulares de licenças de exploração emitidas por outros Estados‑Membros não afetava o seu caráter não discriminatório, uma vez que o regime de auxílios em causa visava compensar os prejuízos sofridos pelas companhias aéreas titulares de licenças francesas. Por conseguinte, o regime de auxílio em causa continuava proporcionado à luz do seu objetivo de compensar os danos causados pela pandemia de COVID‑19. Designadamente, o regime de auxílio em causa contribuiria para preservar a estrutura do setor aéreo para as companhias aéreas titulares de licenças francesas. Consequentemente, a Comissão entendeu que as autoridades francesas demonstraram nessa fase que o regime de auxílios em causa não excederia os danos diretamente causados pela crise devida à pandemia de COVID‑19.

    9

    A Comissão decidiu, assim, tendo em conta os compromissos assumidos pela República Francesa, nomeadamente o de lhe transmitir e submeter à sua aprovação uma metodologia detalhada da forma como esse Estado‑Membro pretendia quantificar, a posteriori e para cada beneficiário, o montante dos danos relacionados com a crise causada pela pandemia de COVID‑19, não formular objeções em relação ao regime de auxílios em causa.

    Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

    10

    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 8 de maio de 2020, a Ryanair interpôs um recurso de anulação da decisão controvertida.

    11

    A Ryanair invocou quatro fundamentos de recurso, relativos, o primeiro, à violação dos princípios da não discriminação em razão da nacionalidade e da livre prestação de serviços, o segundo, a um erro manifesto de apreciação no exame da proporcionalidade do regime de auxílios em causa à luz dos danos causados pela pandemia de COVID‑19, o terceiro, ao facto de a Comissão ter violado os seus direitos processuais ao recusar dar início ao procedimento formal de investigação apesar da existência de sérias dúvidas que deveriam ter conduzido à abertura desse procedimento e, o quarto, ao facto de a Comissão ter violado o artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE.

    12

    No acórdão recorrido, o Tribunal Geral julgou improcedentes o primeiro, segundo e quarto fundamentos invocados pela Ryanair. Quanto ao terceiro fundamento, considerou, nomeadamente à luz das razões que conduziram à improcedência dos dois primeiros fundamentos de recurso, que não era necessário examinar o respetivo mérito. Por conseguinte, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso na sua totalidade, sem se pronunciar sobre a admissibilidade deste.

    Pedidos das partes no Tribunal de Justiça

    13

    Por meio do presente recurso, a Ryanair pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

    anular o acórdão recorrido;

    anular a decisão controvertida;

    condenar a Comissão e a República Francesa nas despesas ou, a título subsidiário;

    anular o acórdão recorrido, e

    remeter o processo ao Tribunal Geral e reservar para final a decisão quanto às despesas.

    14

    A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

    negar provimento ao presente recurso, e

    condenar a recorrente nas despesas.

    15

    A República Francesa conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne negar provimento ao presente recurso.

    Quanto ao presente recurso

    16

    A Ryanair invoca cinco fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo a erros de direito por o Tribunal Geral ter erradamente julgado improcedente o fundamento de recurso em primeira instância atinente à violação do princípio da não discriminação. O segundo fundamento é relativo a um erro de direito e a uma manifesta desvirtuação dos factos na apreciação do fundamento deste recurso, relativo à violação da livre circulação de serviços. O terceiro fundamento é relativo a um erro de direito e a uma manifesta desvirtuação dos factos na aplicação do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE e do princípio da proporcionalidade no que respeita ao montante dos danos sofridos pelos beneficiários do regime de auxílios em causa. O quarto fundamento é relativo a um erro de direito e a uma manifesta desvirtuação dos factos, visto que o Tribunal Geral declarou que a Comissão não violou o dever de fundamentação que lhe incumbe por força do artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE. O quinto fundamento é relativo a um erro de direito e a uma manifesta desvirtuação dos factos cometidos pelo Tribunal Geral quando decidiu não examinar, quanto ao mérito, o terceiro fundamento do recurso em primeira instância, relativo à violação dos direitos processuais da recorrente.

    Quanto ao primeiro fundamento

    Argumentos das partes

    17

    No primeiro fundamento, que compreende quatro partes e visa os n.os 28 a 51 do acórdão recorrido, a Ryanair sustenta que o Tribunal Geral cometeu erros de direito quando considerou que o regime de auxílios em causa não violava o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade.

    18

    Na primeira parte do primeiro fundamento, a Ryanair alega que o Tribunal Geral não aplicou devidamente o princípio da proibição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, o qual constitui um princípio essencial da ordem jurídica da União Europeia. Embora o Tribunal Geral tenha reconhecido, nos n.os 31 e 32 do acórdão recorrido, que a diferença de tratamento instituída pelo regime de auxílios em causa podia ser equiparada a uma discriminação relativamente a um dos critérios de elegibilidade, a saber, o da titularidade de uma licença francesa, considerou erradamente que esta discriminação só devia ser apreciada à luz do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, pelo facto de que esta disposição constituía uma disposição especial na aceção do artigo 18.o TFUE. Com efeito, a limitação do benefício do regime de auxílios em causa às empresas de transporte aéreo titulares de uma licença francesa equivale a uma discriminação direta em razão da nacionalidade, dado que, para obter essa licença, uma companhia aérea deve necessariamente ter o seu estabelecimento principal em França.

    19

    Além disso, a recorrente alega que o Tribunal Geral devia ter examinado se esta discriminação se justificava por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública, na aceção do artigo 52.o TFUE, ou, em todo o caso, se era baseada em considerações objetivas independentes da nacionalidade das pessoas em causa.

    20

    Na segunda parte deste fundamento, a recorrente sustenta que o Tribunal Geral, nos n.os 33 e 34 do acórdão recorrido, cometeu um erro de direito e desvirtuou de forma manifesta os factos no que respeita à determinação do objetivo do regime de auxílios em causa. Concretamente, a recorrente entende que o Tribunal Geral considerou de maneira errada que o objetivo desse regime visava remediar o dano resultante da pandemia de COVID‑19 para as «transportadoras aéreas afetadas duramente» ou atenuar o prejuízo sofrido pelas transportadoras aéreas que operam no território em causa e que esse objetivo era conforme com o artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, quando resultava da decisão controvertida que o referido objetivo era permitir às transportadoras aéreas «que são titulares uma licença francesa» ter liquidez suficiente.

    21

    Na terceira parte do primeiro fundamento, a Ryanair sustenta que o acórdão recorrido está viciado por um erro de direito e por uma desvirtuação dos factos, uma vez que o Tribunal Geral considerou, nos n.os 36 a 41 do acórdão recorrido, que o regime de auxílios em causa, de que apenas beneficiam as companhias aéreas titulares de uma licença francesa, era adequado para alcançar o seu objetivo.

    22

    A Ryanair sustenta, a título principal, que a decisão controvertida não contém nenhuma fundamentação que possa justificar o recurso a um critério de elegibilidade associado à titularidade de uma licença francesa e que o Tribunal Geral, ao basear‑se, a este respeito, em fundamentos não previstos na decisão controvertida, procedeu, nos n.os 37 a 39 do acórdão recorrido, a uma substituição de fundamentos, quando não tinha competência para o fazer.

    23

    A título subsidiário, a Ryanair alega que os três fundamentos apresentados pelo Tribunal Geral para esse efeito estão viciados por erros de direito ou desvirtuam os factos.

    24

    A este respeito, o Tribunal Geral interpretou erradamente o Regulamento n.o 1008/2008 ao considerar, nos n.os 37 a 39 do acórdão recorrido, primeiro, que um Estado‑Membro que concedeu uma licença de exploração a uma companhia aérea pode controlar a utilização do auxílio que concedeu a essa companhia, segundo, que esse Estado‑Membro pode assegurar‑se de que a referida companhia paga as taxas cujo pagamento foi diferido, para reduzir a sua perda de receitas fiscais a médio prazo, e, terceiro, que as companhias aéreas titulares de uma licença de exploração têm uma ligação mais estreita com a economia do Estado‑Membro que concedeu essa licença. Com efeito, não existe uma diferença, em termos dos controlos financeiros, de risco de incumprimento no pagamento das taxas e de ligações à economia do Estado‑Membro que concedeu o auxílio, entre as companhias aéreas titulares de uma licença de exploração concedida por esse Estado‑Membro e as titulares de uma licença de exploração emitida por outro Estado‑Membro. O Tribunal Geral introduziu, assim, no Regulamento n.o 1008/2008 competências em matéria de concessão e de acompanhamento dos auxílios que dele não constam e retirou conclusões jurídicas erradas das disposições desse regulamento relativas às condições financeiras fixadas para a concessão de uma licença de exploração.

    25

    Na quarta parte deste fundamento, a Ryanair sustenta, em substância, que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e uma manifesta desvirtuação dos factos visto que considerou, nos n.os 43 a 48 do acórdão recorrido, que o regime de auxílios em causa era proporcionado.

    26

    Em primeiro lugar, para apreciar a proporcionalidade do critério de elegibilidade associado à titularidade de uma licença francesa, o Tribunal Geral baseou‑se, no n.o 43 do acórdão recorrido, num fundamento relativo ao facto de as companhias aéreas titulares de uma licença francesa serem as mais duramente afetadas pelas medidas de restrição de transporte e de confinamento adotadas pelas autoridades francesas, que não figurava na decisão controvertida. Este fundamento não pode constituir um elemento de referência adequado para apreciar a proporcionalidade do regime de auxílios em causa se, como alega o Tribunal Geral, o acontecimento extraordinário apresentado como causa dos danos sofridos compreende tanto a pandemia de COVID‑19 como as medidas de restrição de transporte adotadas pelas autoridades francesas.

    27

    Segundo, o Tribunal Geral, no n.o 43 do acórdão recorrido, justificou esse critério de elegibilidade, quer arbitrário quer discriminatório, baseando‑se no argumento discutível segundo o qual os Estados‑Membros não dispõem de recursos ilimitados. Ora, segundo a Ryanair, podem ser instituídos regimes de auxílios para montantes limitados e com base em critérios não discriminatórios, para preservar os recursos orçamentais, respeitando simultaneamente os artigos 18.o e 56.o TFUE e preenchendo o objetivo declarado do auxílio.

    28

    Terceiro, no acórdão recorrido, o Tribunal Geral não avaliou o efeito concorrencial do auxílio para apreciar a proporcionalidade desse auxílio. Ora, tal apreciação é essencial para determinar, segundo os próprios termos do Tribunal Geral, se o regime de auxílios não vai «além do que é necessário» para atingir o seu objetivo declarado.

    29

    Quarto, o Tribunal Geral recusou erradamente, no n.o 46 do acórdão recorrido, examinar outro cenário de auxílio com o fundamento de que a Comissão não podia ser encarregada de «avaliar qualquer medida alternativa a encarar». A este respeito, o Tribunal Geral baseou‑se erradamente no seu Acórdão de 6 de maio de 2019, Scor/Comissão (T‑135/17, EU:T:2019:287), do qual resulta apenas que a Comissão não tinha o dever de avaliar todas as medidas alternativas na sua fundamentação.

    30

    Além disso, o fundamento apresentado pelo Tribunal Geral no n.o 47 do acórdão recorrido, segundo o qual a medida alternativa hipotética, que consiste em estender o regime de auxílios em causa a companhias não estabelecidas na França, não teria permitido alcançar o objetivo do regime de auxílios em causa, baseia‑se, por remissão para os n.os 37 a 41 desse acórdão, na hipótese jurídica errada segundo a qual, por força do Regulamento n.o 1008/2008, as companhias aéreas titulares de uma licença de exploração emitida por outro Estado‑Membro podem mais facilmente interromper as suas ligações com destino ou origem em França.

    31

    A Comissão e a República Francesa sustentam que o primeiro fundamento do recurso deve ser julgado improcedente.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    32

    A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma medida nacional como «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, requer que estejam preenchidos todos os seguintes requisitos. Primeiro, deve tratar se de uma intervenção do Estado ou ser proveniente de recursos estatais. Segundo, essa intervenção deve ser suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Terceiro, deve conferir uma vantagem seletiva ao seu beneficiário. Quarto, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência (Acórdão de 28 de junho de 2018, Alemanha/Comissão,C‑208/16 P, EU:C:2018:506, n.o 79 e jurisprudência referida).

    33

    É, por conseguinte, em relação a medidas que apresentam estas características e que produzem tais efeitos, por serem suscetíveis de falsear o jogo da concorrência e de prejudicar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, que o artigo 107.o, n.o 1, TFUE consagra o princípio da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno.

    34

    Concretamente, a exigência de seletividade resultante do artigo 107.o, n.o 1, TFUE pressupõe que a Comissão demonstre que a vantagem económica, considerada em sentido lato, decorrente direta ou indiretamente de uma dada medida beneficia especificamente uma ou várias empresas. Incumbe‑lhe, para tal, demonstrar, especialmente, que a medida em causa introduz diferenciações entre as empresas que estão, tendo em conta o objetivo prosseguido, numa situação comparável. É pois necessário que essa vantagem seja concedida de maneira seletiva e seja suscetível de colocar certas empresas numa situação mais favorável do que outras (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 103 e jurisprudência referida).

    35

    O artigo 107.o, n.os 2 e 3, TFUE prevê, todavia, certas derrogações ao princípio da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno, referido no n.o 33 do presente acórdão, como a prevista no artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, relativa aos auxílios «destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários». Assim, são compatíveis ou suscetíveis de ser declarados compatíveis com o mercado interno os auxílios de Estado concedidos para os fins e nas condições previstas nestas disposições derrogatórias, não obstante o facto de apresentarem as características e produzirem os efeitos referidos no n.o 32 do presente acórdão.

    36

    Daqui resulta que, sob pena de privar as referidas disposições derrogatórias de qualquer efeito útil, os auxílios de Estado que são concedidos em conformidade com estas exigências, isto é, para efeitos de um objetivo que aí é reconhecido e dentro dos limites do que é necessário e proporcionado à realização deste objetivo, não podem ser considerados incompatíveis com o mercado interno apenas à luz das características ou dos efeitos referidos no n.o 32 do presente acórdão, ou dos efeitos que são inerentes a qualquer auxílio de Estado, ou seja, nomeadamente, por razões ligadas ao facto de o auxílio ser seletivo ou de falsear a concorrência (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 107 e jurisprudência referida).

    37

    Por conseguinte, um auxílio não pode ser considerado incompatível com o mercado interno apenas por razões relacionadas com o facto de o auxílio ser seletivo ou de falsear ou ameaçar falsear a concorrência (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 108).

    38

    Todavia, no que respeita à primeira parte do seu primeiro fundamento, em que a Ryanair invoca um erro de direito pelo facto de o Tribunal Geral não ter aplicado, no n.o 32 do acórdão recorrido, o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, consagrado no artigo 18.o TFUE, mas ter examinado a medida em causa à luz do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, importa recordar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o procedimento previsto no artigo 108.o TFUE não deve nunca conduzir a um resultado que seja contrário às disposições específicas do TFUE. Assim, um auxílio que, enquanto tal ou por algumas das suas modalidades, viole disposições ou princípios gerais do direito da União não pode ser declarado compatível com o mercado interno (Acórdãos de 31 de janeiro de 2023, Comissão/Braesch e o., C‑284/21 P, EU:C:2023:58, n.o 96, e de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 109).

    39

    Contudo, no que respeita especificamente ao artigo 18.o TFUE, é jurisprudência constante que este artigo se destina apenas a ser aplicado autonomamente em situações reguladas pelo direito da União para as quais o TFUE não preveja regras específicas de não discriminação (Acórdãos de 18 de julho de 2017, Erzberger,C‑566/15, EU:C:2017:562, n.o 25, e de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 110).

    40

    Uma vez que, como foi recordado no n.o 35 do presente acórdão, o artigo 107.o, n.os 2 e 3, TFUE, prevê derrogações ao princípio, referido no n.o 1 deste artigo, da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno, e admite assim, de modo especial, diferenças de tratamento entre empresas, sob reserva do cumprimento das exigências previstas por estas derrogações, estas últimas devem ser consideradas «disposições específicas» previstas pelos Tratados, na aceção do artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 111).

    41

    Daqui resulta que o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito quando considerou, no n.o 32 do acórdão recorrido, que o artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE constituía uma disposição específica deste tipo e que importava apenas examinar se a diferença de tratamento induzida pela medida em causa era permitida ao abrigo desta disposição.

    42

    Daqui decorre que as diferenças de tratamento decorrentes desta medida em causa também não têm de ser justificadas à luz dos motivos enunciados no artigo 52.o TFUE, contrariamente ao que sustenta a Ryanair.

    43

    Atendendo ao exposto, há que julgar improcedente a primeira parte do primeiro fundamento.

    44

    Na segunda parte desse fundamento de recurso, a Ryanair sustenta, em substância, que o Tribunal Geral, nos n.os 33 e 34 do acórdão recorrido, identificou mal o objetivo do regime de auxílios em causa, conforme resulta da decisão controvertida, e que considerou, erradamente, que este objetivo consistia em atenuar o prejuízo sofrido pelas transportadoras aéreas que operam no território em causa.

    45

    A este respeito, o Tribunal Geral salientou, no n.o 33 do acórdão recorrido, em substância, que o objetivo do regime de auxílios em causa consistia, de acordo com o artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, de forma geral, em remediar, no setor do transporte aéreo, o dano resultante de um acontecimento extraordinário, a saber, a pandemia de COVID‑19, e, de forma mais específica, em reduzir, pela concessão de uma moratória, os encargos das transportadoras aéreas duramente afetadas pelas medidas de restrição de transporte e de confinamento tomadas pela República Francesa para enfrentar essa pandemia.

    46

    Esta descrição do objetivo prosseguido por este regime está em conformidade com a que é exposta na decisão controvertida, nomeadamente nos seus considerandos 2 e 3, que figura na parte 2.1, intitulada «Objetivo da medida», citados no acórdão recorrido. Em contrapartida, contrariamente ao que a Ryanair sustenta, não resulta dessa decisão que o facto de ser titular de uma licença francesa constituía um objetivo em si mesmo do regime de auxílios em causa, mas que essa titularidade constituía antes, como o Tribunal Geral considerou, em substância, no n.o 33 do acórdão recorrido, um critério de elegibilidade desse regime.

    47

    Uma vez que, nesta segunda parte, a Ryanair acusa ainda o Tribunal Geral de ter desvirtuado os elementos de facto que lhe foram submetidos, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, resulta do artigo 256.o, n.o 1, segundo parágrafo, TFUE e do artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia que o Tribunal Geral tem competência exclusiva, por um lado, para apurar os factos, salvo no caso de a inexatidão material das suas conclusões resultar dos elementos dos autos que lhe foram submetidos, e, por outro, para apreciar esses factos (Acórdão de 25 de junho de 2020, CSUE/KF,C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.o 103 e jurisprudência referida).

    48

    Daqui decorre que a apreciação dos factos não constitui, exceto em caso de desvirtuação dos elementos de prova apresentados no Tribunal Geral, uma questão de direito sujeita, enquanto tal, à fiscalização do Tribunal de Justiça (Acórdão de 25 de junho de 2020, CSUE/KF,C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.o 104 e jurisprudência referida).

    49

    Quando o recorrente alega uma desvirtuação de elementos de prova pelo Tribunal Geral, deve, em aplicação do artigo 256.o TFUE, do artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e do artigo 168.o, primeiro parágrafo, alínea d), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, indicar de modo preciso os elementos que foram desvirtuados por este e demonstrar os erros de análise que, na sua apreciação, levaram o Tribunal Geral a essa desvirtuação. Por outro lado, é jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma desvirtuação deve resultar de modo manifesto dos documentos dos autos, sem que seja necessário proceder a uma nova apreciação dos factos e das provas (Acórdão de 25 de junho de 2020, CSUE/KF,C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.o 105 e jurisprudência referida).

    50

    No caso em apreço, há que constatar que, para sustentar o referido fundamento parcial, a Ryanair não enumera os elementos de prova que o Tribunal Geral teria desvirtuado quando determinou o objetivo do regime de auxílios em causa e, a fortiori, não demonstra em que medida estes elementos foram desvirtuados.

    51

    Nestas condições, há que julgar improcedente a segunda parte do primeiro fundamento.

    52

    Na terceira parte deste fundamento, a Ryanair sustenta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e uma manifesta desvirtuação dos factos quando declarou, nos n.os 36 a 41 do acórdão recorrido, que o regime de auxílios em causa, uma vez que apenas beneficiava as companhias aéreas titulares de uma licença francesa era adequado para alcançar o seu objetivo.

    53

    A este respeito, a Ryanair defende, a título principal, em substância, que, ao afirmar, nomeadamente, no n.o 37 do acórdão recorrido, que o critério da titularidade de uma licença emitida pelo Estado‑Membro que concedeu o auxílio permitia controlar a forma como este é utilizado pelos beneficiários, o Tribunal Geral apresentou uma justificação que não figurava na decisão controvertida, pelo que substituiu pelos seus próprios fundamentos os invocados pela Comissão em apoio desta decisão.

    54

    É certo que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no âmbito da fiscalização da legalidade referida no artigo 263.o TFUE, o Tribunal de Justiça e o Tribunal Geral não podem, em todo o caso, substituir a fundamentação do autor do ato impugnado pela sua (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, World Duty Free Group e Espanha/Comissão, C‑51/19 P e C‑64/19 P, EU:C:2021:793, n.o 70 e jurisprudência referida). No entanto, há que constatar que, nos considerandos 45 e 46 da decisão controvertida, a Comissão refere o facto de as companhias aéreas titulares de uma licença francesa terem o seu estabelecimento principal em França e estarem aí sujeitas a um controlo regular da sua situação financeira. Assim, no n.o 37 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral limitou‑se explicar a fundamentação da decisão controvertida e, mais especificamente, a retirar certas indicações dos elementos que dela constam, sem, contudo, substituir os fundamentos dessa decisão.

    55

    A título subsidiário, a Ryanair contesta as afirmações do Tribunal Geral, que constam dos n.os 37 a 39 do acórdão recorrido, segundo as quais, primeiro, um Estado‑Membro que concedeu uma licença a uma companhia aérea podia controlar a utilização do auxílio que concedeu a essa companhia, segundo, esse Estado‑Membro podia assegurar‑se de que a referida companhia pagava as taxas, cujo pagamento foi diferido para reduzir a sua perda de receitas fiscais a médio prazo, as menos elevadas possível e, terceiro, que as companhias aéreas titulares de uma licença tinham uma ligação mais estreita com a economia do Estado‑Membro que concedeu essa licença. Foi com base nestas afirmações que o Tribunal Geral considerou, no n.o 40 desse acórdão, que, ao limitar o benefício do regime de auxílios em causa apenas às companhias aéreas titulares de uma licença francesa e que, por conseguinte, têm o seu estabelecimento principal em França, a República Francesa tinha legitimamente procurado, em substância, assegurar a existência de um vínculo duradouro entre ela própria e as companhias aéreas beneficiárias da moratória e, no n.o 41 do referido acórdão, que o critério de elegibilidade associado à titularidade dessa licença era, por isso, adequado para atingir o objetivo de sanar os danos causados por um acontecimento extraordinário na aceção do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE.

    56

    A este respeito, primeiro, o Tribunal Geral apenas se baseou no Regulamento n.o 1008/2008, nos n.os 37 a 39 do acórdão recorrido, para demonstrar a especificidade e a estabilidade do vínculo entre as companhias aéreas titulares de uma licença de exploração e o Estado‑Membro que concedeu essa licença, tendo em conta as disposições do referido regulamento que regulam as suas relações e, nomeadamente, os controlos financeiros que as autoridades desse Estado‑Membro exercem sobre essas companhias aéreas. Ora, o facto de esses controlos não incidirem especificamente sobre os auxílios concedidos às companhias aéreas titulares de uma licença francesa ou de o controlo da utilização dos auxílios poder ser igualmente efetuado em relação a companhias aéreas não titulares de uma licença francesa, como sustenta a Ryanair, não tem, por si só, incidência na apreciação desse vínculo para efeitos de determinar a adequação dos critérios de elegibilidade para atingir o objetivo prosseguido pelo regime de auxílios em causa.

    57

    Segundo, embora a Ryanair invoque uma desvirtuação dos factos no que respeita às considerações mencionadas no n.o 55 do presente acórdão, basta constatar que não apresentou nenhum argumento suscetível de demonstrar que o Tribunal Geral cometeu tal desvirtuação, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 49 do presente acórdão.

    58

    Atendendo ao que precede, há que julgar improcedente a terceira parte do primeiro fundamento.

    59

    Na quarta parte deste fundamento, a Ryanair acusa o Tribunal Geral, em substância, de ter cometido um erro de direito e uma desvirtuação manifesta dos factos, visto que este considerou, nos n.os 43 a 48 do acórdão recorrido, que o regime de auxílios em causa era proporcionado.

    60

    As duas primeiras acusações desta parte são dirigidas contra o n.o 43 do acórdão recorrido, no qual o Tribunal Geral declarou que, «ao adotar o critério da licença francesa, o Estado‑Membro em causa, tendo em conta […] o facto de os Estados‑Membros não terem recursos ilimitados, reservou o benefício do regime de auxílios em causa às companhias aéreas mais duramente afetadas pelas medidas de restrição de transporte e de confinamento adotadas por esse mesmo Estado e que têm, por definição, efeitos no seu território».

    61

    A este respeito, há que salientar que, nesse mesmo n.o 43, o Tribunal Geral se referiu, para apreciar a proporcionalidade do regime de auxílios em causa, a dados apresentados pela Comissão relativos aos voos efetuados em França, a partir de França ou com destino a França, respetivamente, pelas companhias aéreas titulares de uma licença francesa e pelas que não são titulares de tal licença. O Tribunal Geral deduziu destes dados, no n.o 44 do acórdão recorrido, que estas primeiras companhias aéreas, as únicas elegíveis para o regime de auxílios em causa, eram proporcionalmente mais duramente afetadas do que a recorrente, que, tendo em conta os referidos dados, só realizava 8,3 % da sua atividade em França, com destino a França e a partir de França, contra 100 % no caso de algumas das companhias elegíveis.

    62

    Não resulta da argumentação apresentada pela recorrente no âmbito das duas primeiras acusações que o raciocínio acima referido está juridicamente errado ou assenta numa apreciação manifestamente errada que constitui uma desvirtuação dos elementos de prova.

    63

    Concretamente, por um lado, o Tribunal Geral não pode ser acusado de ter substituído a fundamentação da decisão impugnada pela sua fundamentação, na aceção da jurisprudência referida no n.o 54 do presente acórdão, uma vez que resulta, nomeadamente, dos considerandos 2 e 3 dessa decisão que o regime de auxílios em causa tinha por objetivo compensar as companhias aéreas duramente afetadas pelas medidas de restrição de transporte adotadas na sequência da pandemia de COVID‑19. Para apreciar se o critério de elegibilidade associado à titularidade de uma licença francesa permitia assegurar a proporcionalidade desse regime, o Tribunal Geral limitou‑se a constatar, com base nos elementos de prova que lhe foram apresentados, que as companhias titulares dessa licença eram efetivamente as mais afetadas por essas medidas.

    64

    Por outro lado, o Tribunal Geral não pode ser acusado de ter justificado esse critério de elegibilidade, no n.o 43 do acórdão recorrido, com o facto de «os Estados‑Membros não terem recursos ilimitados», uma vez que esta afirmação se insere apenas na explicação do contexto em que esse critério de elegibilidade foi adotado.

    65

    Daqui resulta que há que julgar improcedentes as duas primeiras acusações da quarta parte.

    66

    Uma vez que, com a terceira acusação da quarta parte do primeiro fundamento, a Ryanair acusa o Tribunal Geral de não ter examinado, no âmbito da proporcionalidade do regime de auxílios em causa, os efeitos concorrenciais desse auxílio, há que constatar que a recorrente não apresentou, em primeira instância, uma acusação relativa ao facto de que havia que examinar, para efeitos da proporcionalidade, os efeitos concorrenciais do auxílio ou, mais especificamente, proceder a uma ponderação desses efeitos.

    67

    Ora, segundo o artigo 170.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, no recurso não pode ser alterado o objeto do litígio perante o Tribunal Geral. Assim, segundo jurisprudência constante, a competência do Tribunal de Justiça em sede de recurso de uma decisão do Tribunal Geral está limitada à apreciação da solução jurídica dada aos fundamentos debatidos em primeira instância. Assim sendo, as partes não podem invocar pela primeira vez no Tribunal de Justiça uma acusação que não invocaram perante o Tribunal Geral, uma vez que isso equivaleria a permitir‑lhes submeter ao Tribunal de Justiça, que tem competência limitada em matéria de recursos de decisões do Tribunal Geral, um litígio mais alargado do que o que foi submetido ao Tribunal Geral (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sigma Alimentos Exterior/Comissão,C‑50/19 P, EU:C:2021:792, n.os 37 e 38).

    68

    Por conseguinte, a terceira acusação da quarta parte, relativa à necessidade de examinar os efeitos concorrenciais do auxílio, deve ser julgada inadmissível, uma vez que esta acusação foi apresentada pela primeira vez no âmbito do presente recurso.

    69

    Quanto à quarta acusação desta parte do primeiro fundamento da recorrente, dirigida contra o n.o 46 do acórdão recorrido, há que observar que foi apenas a título exaustivo que o Tribunal Geral considerou, nesse n.o 46, que a Comissão não tinha de se pronunciar sobre todas as medidas alternativas ao regime de auxílios em causa. Com efeito, o Tribunal Geral declarou, no n.o 47 do seu acórdão que, em todo o caso, as medidas alternativas propostas pela recorrente em primeira instância não teriam permitido atingir com precisão e sem risco de sobrecompensação o objetivo prosseguido pelo regime de auxílios em causa. Para o efeito, baseou‑se nos n.os 37 a 41 do referido acórdão, que, como resulta dos n.os 55 a 57 do presente acórdão, não estão viciados por um erro de direito.

    70

    Esta acusação deve, pois, ser julgada improcedente por ser inoperante.

    71

    Face ao exposto, há que julgar improcedente a quarta parte do primeiro fundamento e, consequentemente, este fundamento na íntegra.

    Quanto ao segundo fundamento

    Argumentos das partes

    72

    No seu segundo fundamento, a Ryanair sustenta que o Tribunal Geral, nos n.os 55 a 57 do acórdão recorrido, cometeu um erro de direito e uma manifesta desvirtuação dos factos ao julgar improcedente a quarta parte do primeiro fundamento de recurso em primeira instância, através da qual invocava uma violação do princípio da livre prestação de serviços.

    73

    Na primeira parte deste fundamento, a Ryanair alega que, contrariamente ao que é indicado no n.o 56 do acórdão recorrido, invocou, no Tribunal Geral, uma violação do Regulamento n.o 1008/2008, sustentando que o princípio da livre prestação de serviços no setor dos transportes aéreos tinha sido violado. Ao ter rejeitado os seus argumentos com o fundamento errado de que «a recorrente não alega qualquer violação desse regulamento», o Tribunal Geral desvirtuou manifestamente os seus articulados e não fundamentou suficientemente a sua decisão.

    74

    Na segunda parte deste fundamento, a Ryanair sustenta que o Tribunal Geral declarou, no n.o 57 do acórdão recorrido, de forma contraditória e errada, que aquela não tinha demonstrado em que medida a sua exclusão do regime de auxílios em causa era suscetível de a dissuadir de prestar serviços de e para França. O facto de as companhias aéreas serem excluídas de uma vantagem reservada ao que designa por «companhias aéreas francesas» seria, com efeito, suficiente para demonstrar que a livre prestação de serviços é desincentivada, sem que seja necessária nenhuma outra demonstração. Em todo o caso, a Ryanair apresentou um grande número de elementos de prova que demonstram que uma medida como o regime de auxílios em causa, que subordina a concessão de uma vantagem por um Estado‑Membro à titularidade de uma licença emitida por esse Estado‑Membro, prejudica, na prática, apenas as transportadoras aéreas com sede noutro Estado‑Membro.

    75

    Por conseguinte, o Tribunal Geral desvirtuou os elementos de prova ao não ter examinado os importantes elementos fornecidos pela recorrente quanto ao efeito restritivo do regime de auxílios em causa sobre a livre prestação de serviços.

    76

    Na terceira parte do segundo fundamento, a Ryanair sustenta que, no âmbito do seu recurso em primeira instância, demonstrou de forma juridicamente bastante, ao contrário daquilo que o Tribunal Geral considerou no n.o 57 do acórdão recorrido, que os efeitos restritivos do regime de auxílios em causa sobre a livre prestação de serviços não se justificavam.

    77

    Primeiro, o Tribunal Geral não examinou corretamente esta restrição à luz dos critérios pertinentes de adequação e proporcionalidade, que não são os do artigo 107.o TFUE.

    78

    Segundo, de acordo com a Ryanair, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando considerou, nomeadamente no n.o 46 do acórdão recorrido, que não era necessário examinar, no âmbito da apreciação do caráter adequado e proporcionado da restrição à livre prestação de serviços, se não havia medidas alternativas potencialmente menos restritivas.

    79

    Ora, a este respeito, a Ryanair apresentou múltiplos elementos que demonstram que o regime de auxílios em causa apresentava efeitos restritivos sobre a livre prestação de serviços que eram inúteis, inadequados e desproporcionados à luz do objetivo desse regime, a saber, o de remediar os danos causados pela ocorrência da pandemia de COVID‑19. Além disso, a recorrente mencionou, neste contexto, um critério alternativo de elegibilidade do auxílio, baseado nas quotas de mercado, que teria sido menos prejudicial para a livre prestação de serviços. Mencionou ainda expressamente este critério na correspondência dirigida, antes da adoção da decisão impugnada, ao Secretário de Estado francês responsável pelos transportes e à comissária europeia responsável pela Concorrência, que anexou à petição inicial em primeira instância.

    80

    A Comissão e a República Francesa sustentam que o segundo fundamento do recurso deve ser julgado improcedente.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    81

    Na segunda e terceira partes do segundo fundamento, que importa examinar em conjunto e em primeiro lugar, a Ryanair alega, em substância, que o Tribunal Geral viciou o acórdão recorrido de erros de direito, no n.o 57 do acórdão recorrido, visto que examinou o facto de o regime de auxílios em causa só beneficiar o que designa por «companhias aéreas francesas», a saber, as companhias aéreas titulares de uma licença francesas, unicamente à luz dos critérios do artigo 107.o TFUE, em vez de verificar se essa medida se justificava à luz dos fundamentos previstos nas disposições do TFUE relativas à livre prestação de serviços. Ora, a Ryanair submeteu ao Tribunal Geral elementos de facto e de direito que demonstram uma violação destas disposições.

    82

    A este respeito, como foi recordado no n.o 38 do presente acórdão, o processo previsto no artigo 108.o TFUE não deve nunca conduzir a um resultado que seja contrário às disposições específicas do Tratado. Assim, um auxílio que, enquanto tal ou por algumas das suas modalidades, viole disposições ou princípios gerais do direito da União não pode ser declarado compatível com o mercado interno.

    83

    Todavia, por um lado, os efeitos restritivos que uma medida de auxílio produziria na livre prestação de serviços não constituem, no entanto, uma restrição proibida pelo Tratado, dado que se pode tratar de um efeito inerente à própria natureza de um auxílio de Estado, como o seu caráter seletivo (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 132).

    84

    Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando as modalidades de um auxílio estão de tal modo indissoluvelmente ligadas ao objeto do auxílio que não é possível apreciá‑las isoladamente, o seu efeito sobre a compatibilidade ou incompatibilidade do auxílio no seu conjunto com o mercado interno deve ser necessariamente apreciado através do procedimento previsto no artigo 108.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de março de 1977, Iannelli & Volpi, 74/76, EU:C:1977:51, n.o 14; de 31 de janeiro de 2023, Comissão/Braesch e o., C‑284/21 P, EU:C:2023:58, n.o 97; e de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 133).

    85

    Ora, no caso em apreço, como resulta dos n.os 45 e 46 do presente acórdão, embora o facto de ser titular de uma licença francesa não constituísse, em si mesmo, o objetivo do regime de auxílios em causa, mas um critério de elegibilidade desse regime, esse critério estava, enquanto tal, indissoluvelmente ligado ao objeto do referido regime, que consistia, de forma geral, em remediar, no setor do transporte aéreo, o dano resultante de um acontecimento extraordinário, a saber, a pandemia de COVID‑19, e, de forma mais específica, em reduzir, pela concessão de uma moratória, os encargos das transportadoras aéreas afetadas duramente pelas medidas de restrição de transporte e de confinamento tomadas pela República Francesa para enfrentar essa pandemia. Daqui decorre que o efeito resultante desse critério de elegibilidade do regime de auxílios em causa no mercado interno não pode ser objeto de um exame separado do da compatibilidade desta medida de auxílio no seu todo com o mercado interno através do procedimento previsto no artigo 108.o TFUE.

    86

    Resulta dos fundamentos precedentes e da jurisprudência recordada nos n.os 36 e 37 do presente acórdão que o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito quando declarou, no n.o 57 do acórdão recorrido, em substância, que, para demonstrar que a medida em causa constituía, pelo facto de beneficiar apenas as companhia aéreas titulares de uma licença de exploração emitida em França, e não, nomeadamente, a Ryanair, um entrave à livre prestação de serviços, esta devia ter demonstrado, no caso concreto, que esta medida produzia efeitos restritivos que iam além dos que são inerentes a um auxílio de Estado concedido em conformidade com os requisitos previstos no artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 28 de setembro de 2023, Ryanair/Comissão,C‑320/21 P, EU:C:2023:712, n.o 135).

    87

    Ora, a argumentação apresentada pela Ryanair em apoio da segunda e da terceira partes do segundo fundamento visa, no seu conjunto, criticar o regime de auxílios em causa porque só as companhias aéreas titulares de uma licença francesa eram elegíveis para esse regime e os efeitos restritivos desse critério de elegibilidade na livre prestação de serviços, apesar de esses efeitos serem inerentes ao caráter seletivo do referido regime.

    88

    Além disso, quanto aos elementos de prova que apresentou no Tribunal Geral, há que constatar que a Ryanair não expôs nenhum argumento suscetível de demonstrar que este desvirtuou estes elementos de prova.

    89

    Daqui resulta que há que julgar improcedentes a segunda e a terceira partes do segundo fundamento.

    90

    Por último, a primeira parte deste fundamento deve ser julgada inoperante, uma vez que visa contestar o n.o 56 do acórdão recorrido, cujos fundamentos têm caráter supérfluo relativamente aos expostos no n.o 57 desse acórdão. Atendendo ao que precede, o segundo fundamento deve ser julgado totalmente improcedente.

    Quanto ao terceiro fundamento

    Argumentos das partes

    91

    No seu terceiro fundamento, a Ryanair sustenta que o Tribunal Geral se contradisse e cometeu um erro de direito ao fiscalizar, nos n.os 59 a 74 do acórdão recorrido, a proporcionalidade do montante do regime de auxílios em causa relativamente aos danos sofridos devido ao acontecimento extraordinário.

    92

    Na primeira parte deste fundamento, a Ryanair alega que, ao considerar, no n.o 68 do acórdão recorrido, que o montante dos danos sofridos pelos beneficiários do auxílio devido ao acontecimento extraordinário era nominalmente superior ao montante do regime de auxílios em causa, o Tribunal Geral teve em conta todos os danos causados pela ocorrência da pandemia de COVID‑19. O Tribunal Geral entrou assim em contradição, uma vez que, ao apreciar a proporcionalidade do critério de elegibilidade associado à titularidade de uma licença francesa, se baseou unicamente nos danos resultante das medidas de restrição dos transportes adotadas pelas autoridades francesas.

    93

    Na segunda parte do terceiro fundamento, a recorrente acusa o Tribunal Geral de, no n.o 73 do acórdão recorrido, ter considerado erradamente, com base no Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão/Aer Lingus e Ryanair Designated Activity (C‑164/15 P e C‑165/15 P, EU:C:2016:990), que a vantagem concorrencial conferida aos beneficiários do auxílio devido à exclusão das companhias aéreas que não dispunham de uma licença francesa não devia ser tida em conta na comparação do montante do auxílio concedido com o montante dos danos sofridos, em aplicação do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE. Esse acórdão não é pertinente, uma vez que diz respeito ao cálculo do montante de um auxílio para efeitos da sua recuperação. Ao confundir este cálculo com o exame da proporcionalidade de um auxílio concedido com base nesta disposição e ao não ter em conta a natureza essencialmente económica desse exame de proporcionalidade, o Tribunal Geral cometeu, por isso, um erro de direito.

    94

    A Comissão e a República Francesa consideram que o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente. Segundo a República Francesa, este fundamento é, além disso, parcialmente inadmissível, porque visa pôr em causa uma apreciação dos factos efetuada pelo Tribunal Geral.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    95

    Dado que, na primeira parte do terceiro fundamento, a Ryanair contesta a conclusão do Tribunal Geral, no n.o 68 do acórdão recorrido, segundo a qual o montante dos prejuízos sofridos pelos beneficiários do auxílio devido ao acontecimento extraordinário é, com toda a probabilidade, nominalmente superior ao montante do regime de auxílios em causa, há que julgar esta parte inadmissível, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 49 do presente acórdão, uma vez que, sem alegar uma eventual desvirtuação dos factos, a recorrente pretende assim pôr em causa uma apreciação soberana dos factos que o Tribunal Geral efetuou nesse número.

    96

    Em todo o caso, tendo em conta o nexo estreito entre a ocorrência da pandemia de COVID‑19 e as medidas restritivas adotadas pelas autoridades francesas neste contexto, conforme o Tribunal Geral constatou no n.o 26 do acórdão recorrido, não resulta desse n.o 68 nenhuma contradição entre a apreciação feita pelo Tribunal Geral para apreciar a proporcionalidade do montante do auxílio e a sua apreciação da proporcionalidade do critério de elegibilidade associado à titularidade de uma licença francesa.

    97

    Na segunda parte deste fundamento, a Ryanair alega, em substância, que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 73 do acórdão recorrido, que a Comissão não era obrigada, para efeitos da apreciação da compatibilidade do regime de auxílios em causa com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, e nomeadamente da sua proporcionalidade, a tomar em consideração a vantagem concorrencial resultante para os beneficiários devido à exclusão das companhias aéreas que não dispõem de uma licença francesa.

    98

    A este respeito, há que observar que, contrariamente ao que sustenta a Ryanair, o Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão/Aer Lingus e Ryanair Designated Activity (C‑164/15 P e C‑165/15 P, EU:C:2016:990), a que o Tribunal Geral se referiu no n.o 73 do acórdão recorrido, embora diga respeito à determinação do montante de um auxílio ilegal para efeitos da sua recuperação, é pertinente no caso em apreço, porquanto se pode deduzir do n.o 92 desse acórdão que a vantagem que o auxílio confere ao seu beneficiário não inclui o eventual benefício económico por este realizado através da exploração desta vantagem.

    99

    Assim, no caso do regime de auxílios em causa, a saber, um auxílio sob a forma de uma moratória para o pagamento de certas taxas a favor dos beneficiários elegíveis, com um pagamento diferido sem juros, o montante do auxílio concedido, que a Comissão deve ter em conta para determinar a existência de uma eventual sobrecompensação dos prejuízos sofridos pelos beneficiários devido ao acontecimento extraordinário em causa, corresponde, em princípio, tendo em conta a Comunicação da Comissão sobre a revisão do método de fixação das taxas de referência e de atualização (JO 2008, C 14, p. 6) e como a Comissão considerou na decisão controvertida, ao montante dos juros que os beneficiários da medida deveriam ter pago no mercado para obter liquidez equivalente. Em contrapartida, para efeitos desta determinação, a Comissão não tem de ter em conta eventuais vantagens que os beneficiários desse regime dela possam indiretamente ter retirado desse auxílio, como a vantagem concorrencial alegada pela Ryanair.

    100

    Daqui resulta que o Tribunal Geral não cometeu nenhum erro de direito ao declarar, no n.o 73 do acórdão recorrido, que a Comissão não era obrigada a ter em conta a vantagem concorrencial cuja existência a Ryanair alegava.

    101

    Em face do exposto, há que julgar improcedente a segunda parte do terceiro fundamento e, consequentemente, este fundamento na íntegra.

    Quanto ao quarto fundamento

    Argumentos das partes

    102

    No seu quarto fundamento, a Ryanair alega que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e uma manifesta desvirtuação dos factos ao declarar erradamente, nos n.os 79 a 85 do acórdão recorrido, que a Comissão não tinha violado o dever de fundamentação que lhe incumbe por força do artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE.

    103

    Segundo a recorrente, o Tribunal Geral reconheceu que o contexto em que foi adotada a decisão controvertida, marcado pela ocorrência da pandemia de COVID‑19 e pelas dificuldades que esta situação pôde suscitar para a redação das decisões da Comissão, podia justificar que faltassem certos elementos cruciais na fundamentação da decisão controvertida, apesar de esses elementos lhe terem sido necessários para que compreendesse o raciocínio subjacente às conclusões da Comissão. A interpretação do Tribunal Geral do artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE é contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça e priva o dever de fundamentação de qualquer efeito útil.

    104

    A Comissão e a República Francesa sustentam que o quarto fundamento do recurso deve ser julgado improcedente.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    105

    Há que recordar que, segundo jurisprudência constante, a fundamentação exigida pelo artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE deve ser adaptada à natureza do ato em causa e revelar clara e inequivocamente o raciocínio da instituição autora do ato para permitir aos interessados conhecerem as justificações da medida tomada e à jurisdição competente exercer a sua fiscalização. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente do conteúdo do ato, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários ou outras pessoas direta e individualmente interessadas no mesmo podem ter em obter explicações. Não se exige que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, uma vez que a questão de saber se a fundamentação de um ato satisfaz as exigências do artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE deve ser apreciada tendo em conta não só o seu teor mas também o seu contexto e o conjunto das regras jurídicas que regulam a matéria em causa (Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 198 e jurisprudência referida).

    106

    Quando, como no caso em apreço, esteja mais especificamente em causa uma decisão, tomada em aplicação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, de não levantar objeções a uma medida de auxílio, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que a mesma decisão, que é tomada em prazos curtos, deve conter apenas as razões pelas quais a Comissão considera não estar perante dificuldades sérias de apreciação da compatibilidade do auxílio em causa com o mercado interno e que mesmo uma fundamentação sucinta desta decisão deve ser considerada suficiente face à exigência de fundamentação prevista no artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE, desde que revele de forma clara e inequívoca as razões pelas quais a Comissão considerou não estar em presença de tais dificuldades, sendo a questão do mérito desta fundamentação estranha a esta exigência (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 199 e jurisprudência referida).

    107

    É à luz destas exigências que há que examinar se o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que a decisão controvertida estava suficientemente fundamentada.

    108

    A este respeito, por um lado, uma vez que a Ryanair acusa o Tribunal Geral de, em substância, ter flexibilizado as exigências relativas ao dever de fundamentação à luz do contexto da pandemia de COVID‑19 em que a decisão controvertida tinha sido adotada, há que observar que, ao referir‑se, nos n.os 79 e 80 do acórdão recorrido, ao contexto em que a decisão controvertida tinha sido adotada, a saber, o de uma pandemia e da extrema urgência em que a Comissão tinha examinado as medidas que lhe tinham sido notificadas pelos Estados‑Membros e adotado as decisões relativas a essas medidas, entre as quais essa decisão, o Tribunal Geral tomou corretamente em consideração, como exige a jurisprudência mencionada nos n.os 105 e 106 do presente acórdão, os elementos pertinentes para determinar se, com a adoção da referida decisão, a Comissão tinha cumprido o seu dever de fundamentação.

    109

    Por outro lado, visto que a Ryanair apresenta elementos específicos sobre os quais a Comissão, em violação do dever de fundamentação que lhe incumbe, não se pronunciou ou que não apreciou na decisão controvertida, como a conformidade do regime de auxílios em causa com o princípio da igualdade de tratamento e com a livre prestação de serviços, os seus efeitos concorrenciais para a aplicação do critério da proporcionalidade e do cálculo do montante do auxílio, resulta dos n.os 81 e 83 do acórdão recorrido que o Tribunal Geral considerou que esses elementos não eram relevantes para efeitos dessa decisão ou que a sua referência nessa decisão era suficiente, em termos legais, para que o raciocínio da Comissão fosse entendido a este respeito.

    110

    Ora, não se afigura que, com estas apreciações, o Tribunal Geral tenha ignorado as exigências de fundamentação de uma decisão da Comissão, tomada em aplicação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, de não levantar objeções, conforme decorrem da jurisprudência recordada nos n.os 105 e 106 do presente acórdão, uma vez que esta fundamentação permite, no caso em apreço, à Ryanair conhecer as justificações desta decisão e ao juiz da União exercer a sua fiscalização a este respeito, como resulta, aliás, do acórdão recorrido.

    111

    Além disso, uma vez que a argumentação apresentada no âmbito do quarto fundamento visa, na realidade, demonstrar que a decisão controvertida foi adotada com base numa apreciação insuficiente ou juridicamente errada da Comissão, esta argumentação, sobretudo relativa ao mérito desta decisão e não à exigência de fundamentação enquanto formalidade essencial, deve ser julgada improcedente à luz da jurisprudência recordada no n.o 106 do presente acórdão.

    112

    Resulta do que precede que o Tribunal Geral não cometeu nenhum erro de direito quando declarou, no n.o 84 do acórdão recorrido, que decisão controvertida estava suficientemente fundamentada.

    113

    Por último, há que constatar que a Ryanair não apresentou nenhum argumento suscetível de demonstrar que o Tribunal Geral desvirtuou elementos de prova, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 49 do presente acórdão, ao examinar o quarto fundamento do recurso em primeira instância.

    114

    Por conseguinte, o quarto fundamento do recurso deve ser julgado improcedente.

    Quanto ao quinto fundamento

    Argumentos das partes

    115

    No seu quinto fundamento, a Ryanair alega que, ao ter considerado, nos n.os 86 e 87 do acórdão recorrido, que o terceiro fundamento de recurso em primeira instância, relativo à recusa da Comissão em dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, se encontrava privado da sua finalidade manifestada pela rejeição dos dois primeiros fundamentos de recurso e não tinha conteúdo autónomo relativamente a esses dois fundamentos, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e desvirtuou os factos de forma manifesta.

    116

    Com efeito, ao contrário daquilo que o Tribunal Geral considerou, este terceiro fundamento tinha um conteúdo autónomo em relação aos dois primeiros fundamentos do recurso em primeira instância. A fiscalização jurisdicional da existência de dificuldades sérias que deveriam ter conduzido a que fosse dado início a um procedimento formal de investigação difere da relativa ao erro de direito ou ao erro manifesto de apreciação cometido pela Comissão no exame do mérito da medida de auxílio. A existência de dificuldades sérias podia assim ser constatada, apesar de, contrariamente ao que a recorrente sustentou nos seus dois primeiros fundamentos em primeira instância, o exame do regime de auxílios em causa pela Comissão não estar viciado por um erro manifesto de apreciação ou por um erro de direito.

    117

    Do mesmo modo, o terceiro fundamento do recurso em primeira instância não ficou privado da sua finalidade manifestada, porquanto a demonstração da existência de um erro manifesto de apreciação por parte da Comissão é totalmente diferente da demonstração da existência de dificuldades sérias que deveriam ter conduzido a que fosse dado início a um procedimento formal de investigação. Além disso, a Ryanair apresentou argumentos autónomos para este efeito, demonstrando, nomeadamente, que a Comissão não dispunha de dados de mercado relativos à estrutura do setor da aviação no que respeita, nomeadamente, às companhias aéreas titulares de uma licença emitida por um Estado‑Membro que não a França, que revestiam uma importância crucial para examinar a compatibilidade do regime de auxílios em causa à luz do seu objetivo alegado. No Tribunal Geral, a Ryanair identificou lacunas na informação da Comissão e evidenciou dificuldades sérias que conferiam ao seu fundamento um «conteúdo autónomo» em relação aos dois primeiros fundamentos de recurso.

    118

    A Comissão e a República Francesa sustentam que o quinto fundamento do recurso deve ser julgado improcedente.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    119

    Quando um recorrente pede a anulação de uma decisão da Comissão de não levantar objeções a respeito de um auxílio de Estado, põe essencialmente em causa o facto de esta decisão ter sido adotada sem que esta instituição tivesse aberto o procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o n.o 2, TFUE, violando, assim, os seus direitos processuais. Para que o seu pedido de anulação proceda, o recorrente pode invocar qualquer fundamento suscetível de demonstrar que a apreciação das informações e dos elementos de que a Comissão dispôs, no âmbito da fase preliminar de análise da medida notificada, devia ter suscitado dúvidas quanto à respetiva compatibilidade com o mercado interno. A utilização destes argumentos não pode, no entanto, ter por efeito alterar o objeto do recurso nem alterar os pressupostos da sua admissibilidade. Pelo contrário, a existência de dúvidas sobre essa compatibilidade é precisamente a prova que deve ser apresentada para demonstrar que a Comissão estava obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE e no artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o [TFUE] (JO 2015, L 248, p. 9) (v., neste sentido, Acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex, C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.o 59 e jurisprudência referida).

    120

    Assim, cabe ao autor de um pedido de anulação de uma decisão de não levantar objeções demonstrar que existiam dúvidas sobre a compatibilidade do auxílio com o mercado interno, pelo que a Comissão estava obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação. Essa prova deve ser procurada tanto nas circunstâncias da adoção da decisão como no seu conteúdo, a partir de um conjunto de indícios concordantes (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 40 e jurisprudência referida).

    121

    De modo especial, o caráter insuficiente ou incompleto da análise levada a cabo pela Comissão no procedimento de análise preliminar constitui um indício de que esta instituição foi confrontada com sérias dificuldades para apreciar a compatibilidade da medida notificada com o mercado interno, o que a deveria ter levado a dar início ao procedimento formal de investigação (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Tempus Energy e Tempus Energy Technology, C‑57/19 P, EU:C:2021:663, n.o 41 e jurisprudência referida).

    122

    A este respeito, no que se refere, antes de mais, à acusação relativa ao facto de o Tribunal Geral ter declarado, no n.o 87 do acórdão recorrido, que o terceiro fundamento do recurso em primeira instância não tinha conteúdo autónomo, importa salientar que é exato, como a Ryanair alegou no seu recurso, que, se a existência de dificuldades sérias, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.o 121 do presente acórdão, tivesse sido demonstrada, a decisão controvertida só podia ter sido anulada por este motivo, ainda que não se demonstrasse que as apreciações da Comissão quanto à materialidade dos factos padeciam de um erro de direito ou de facto (v., por analogia, Acórdão de 2 de abril de 2009, Bouygues e Bouygues Télécom/Comissão, C‑431/07 P, EU:C:2009:223, n.o 66).

    123

    Além disso, a existência de tais dificuldades pode ser procurada, designadamente, nestas apreciações e pode, em princípio, ser demonstrada através de fundamentos ou argumentos apresentados por um recorrente para contestar o mérito da decisão de não levantar objeções, ainda que o exame destes fundamentos ou destes argumentos não leve à conclusão de que as apreciações da Comissão quanto à materialidade dos factos padecem de um erro de direito ou de facto (v., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2009, Bouygues e Bouygues Télécom/Comissão, C‑431/07 P, EU:C:2009:223, n.os 63 e 66 e jurisprudência referida).

    124

    No caso em apreço, há que constatar que o terceiro fundamento do recurso em primeira instância da Ryanair dizia, em substância, respeito ao caráter incompleto e insuficiente do exame efetuado pela Comissão no procedimento de investigação preliminar e à apreciação diferente da compatibilidade do regime de auxílios em causa a que a Comissão teria chegado se tivesse decidido dar início a um procedimento formal de investigação. Ora, resulta também deste recurso que, em apoio deste fundamento, a recorrente, no essencial, retomou de forma condensada argumentos desenvolvidos no âmbito dos fundamentos primeiro e segundo do referido recurso, relativos ao mérito da decisão controvertida, ou remeteu diretamente para estes argumentos.

    125

    Nestas condições, o Tribunal Geral considerou corretamente, no n.o 87 do acórdão recorrido, que o terceiro fundamento do recurso em primeira instância «não [tinha] conteúdo autónomo» em relação aos dois primeiros fundamentos do mesmo, no sentido de que, tendo examinado o mérito destes últimos fundamentos, incluindo os argumentos relativos ao caráter incompleto e insuficiente do exame efetuado pela Comissão, não estava obrigado a apreciar o mérito do terceiro fundamento deste recurso em separado, tanto mais que, como o Tribunal Geral salientou, também com razão, nesse n.o 87, a Ryanair não tinha, através deste último fundamento, destacado elementos específicos suscetíveis de demonstrar a existência de eventuais «dificuldades sérias» encontradas pela Comissão para apreciar a compatibilidade da medida em causa com o mercado interno.

    126

    Daqui resulta que o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito quando considerou, no n.o 87 do acórdão recorrido, que não havia que conhecer do mérito do terceiro fundamento do recurso em primeira instância. A este respeito, não é necessário examinar, por outro lado, se foi com razão que o Tribunal Geral declarou, no n.o 86 do acórdão recorrido, que esse fundamento tinha caráter subsidiário e que estava privado da sua finalidade manifestada.

    127

    Por último, há que constatar que a Ryanair não apresentou nenhum argumento suscetível de demonstrar que o Tribunal Geral desvirtuou elementos de prova, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 49 do presente acórdão, no âmbito da sua análise do terceiro fundamento do recurso em primeira instância.

    128

    Resulta do que precede que o quinto fundamento deve ser julgado improcedente.

    129

    Uma vez que nenhum dos fundamentos invocados pela recorrente foi julgado procedente, há que negar provimento ao recurso na íntegra.

    Quanto às despesas

    130

    Por força do disposto no artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas.

    131

    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do mesmo regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do seu 184.o, n.o 1, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida e tendo a Comissão pedido a sua condenação, há que condená‑la a suportar as despesas do presente recurso.

    132

    Nos termos do artigo 184.o, n.o 4, do Regulamento de Processo, um interveniente em primeira instância que participe na fase escrita ou oral do processo no Tribunal de Justiça pode ser condenado nas despesas. O Tribunal de Justiça pode decidir que essa parte suporte as suas próprias despesas. Por conseguinte, tendo a República Francesa, interveniente em primeira instância, participado no processo no Tribunal de Justiça, suportará as suas próprias despesas.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

     

    1)

    É negado provimento ao recurso.

     

    2)

    A Ryanair DAC suporta, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela Comissão Europeia.

     

    3)

    A República Francesa suporta as suas próprias despesas.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: inglês.

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