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Document 62021CC0491

Conclusões do advogado-geral M. Szpunar apresentadas em 27 de abril de 2023.
WA contra Direcţia pentru Evidenţa Persoanelor şi Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie.
Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.°, n.° 1, TFUE — Direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros — Artigo 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 4.° — Emissão de bilhete de identidade — Requisito de domicílio no Estado‑Membro de emissão do documento — Recusa das autoridades desse Estado‑Membro em emitir um bilhete de identidade a um dos seus nacionais domiciliado noutro Estado‑Membro — Igualdade de tratamento — Restrições — Justificação.
Processo C-491/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:362

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 27 de abril de 2023 ( 1 )

Processo C‑491/21

WA

contra

Direcţia pentru Evidenţa Persoanelor şi Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia)]

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.o TFUE — Direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 4.o — Requisito para a emissão do bilhete de identidade — Domicílio no Estado‑Membro de emissão do documento — Recusa pelas autoridades desse Estado‑Membro em emitir o bilhete de identidade a um dos seus nacionais com domicílio noutro Estado‑Membro — Igualdade de tratamento — Restrição — Justificação»

I. Introdução

1.

Como escreveu o advogado‑geral F. G. Jacobs nas suas Conclusões no processo Pusa, «[s]em prejuízo das limitações referidas no próprio artigo [21.o TFUE], não pode ser imposto um ónus injustificado a qualquer cidadão da União Europeia que pretenda exercer o seu direito de circulação e permanência» ( 2 ).

2.

No presente processo, foi submetido ao Tribunal de Justiça pela Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia) um pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação, por um lado, do artigo 26.o, n.o 2, e do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, bem como do artigo 20.o, do artigo 21.o, n.o 1, e do artigo 45.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e, por outro, dos artigos 4.o a 6.o da Diretiva 2004/38/CE ( 3 ).

3.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe WA, recorrente no processo principal, um nacional romeno que exerce a sua atividade profissional tanto em França como na Roménia, à Direcția pentru Evidența Persoanelor și Administrarea Bazelor de Date din Ministerul Afacerilor Interne (Direção do Registo Civil e da Gestão das Bases de Dados do Ministério do Interior, Roménia) (a seguir «Direção do Registo»), a respeito da recusa de emissão do bilhete de identidade ao recorrente no processo principal com o fundamento de este ter estabelecido o seu domicílio noutro Estado‑Membro.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

4.

Além de determinadas disposições de direito primário, a saber, o artigo 21.o, n.o 1, TFUE, e o artigo 20.o, n.o 2, o artigo 21.o, n.o 1, e o artigo 45.o, n.o 1, da Carta, são pertinentes no âmbito do presente processo o artigo 4.o, n.o 3, o artigo 5.o, n.os 1 e 4, bem como o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38.

B.   Direito romeno

5.

O Ordonanța de urgență a Guvernului nr. 97/2005 privind evidența, domiciliul, reședința și actele de identitate ale cetățenilor români (Despacho Urgente do Governo n.o 97/2005 sobre o registo civil, o domicílio, a residência e os documentos de identificação dos nacionais romenos, conforme alterado e completado posteriormente) ( 4 ) (a seguir «OUG n.o 97/2005»), enuncia, no seu artigo 12.o:

«(1)   São emitidos documentos de identificação aos nacionais romenos a partir dos [14] anos de idade.

[…]

(3)   Para efeitos do presente despacho urgente, entende‑se por documento de identificação: o bilhete de identidade, o bilhete de identidade simples, o bilhete de identidade eletrónico, o bilhete de identidade provisório e a caderneta de identidade válidos.»

6.

O artigo 13.o do OUG n.o 97/2005 prevê:

«(1)   O documento de identificação atesta a identidade, a nacionalidade romena, o domicílio e, sendo o caso, o endereço.

(2)   Nos termos da Legea nr. 248/2005 privind regimul liberei circulații a cetățenilor români în străinătate (Lei n.o 248/2005 relativa ao Regime de Livre Circulação dos Nacionais Romenos no Estrangeiro) [ ( 5 )], conforme alterada e completada posteriormente [a seguir “Lei relativa ao Regime de Livre Circulação”], o bilhete de identidade e o bilhete de identidade eletrónico constituem um documento de viagem nos Estados‑Membros da União.

(3)   O bilhete de identidade eletrónico permite ao seu titular autenticar‑se nos sistemas informáticos do Ministério do Interior e nos sistemas informáticos de outras instituições públicas ou privadas, bem como utilizar a assinatura eletrónica, nas condições previstas na lei.»

7.

O artigo 15.o, n.o 3, do OUG n.o 97/2005 enuncia:

«O pedido de emissão de um novo documento de identificação é apenas acompanhado dos documentos que, nos termos da lei, atestam o domicílio do interessado e, sendo o caso, a sua residência, salvo se:

a)

foram introduzidas alterações aos dados relativos ao apelido e nome próprio, à data de nascimento, ao estado civil e à nacionalidade romena, caso em que o requerente deve apresentar documentos que atestam estas alterações;

b)

o requerente é titular de um bilhete de identidade provisório ou de um certificado de identidade, caso em que o requerente deve apresentar todos os documentos referidos no n.o 2.»

8.

O artigo 20.o, n.o 1, alínea c), do OUG n.o 97/2005 dispõe:

«O bilhete de identidade provisório é emitido nos seguintes casos:

[…] aos cidadãos romenos com domicílio no estrangeiro que residem temporariamente na Roménia.»

9.

O artigo 28.o, n.o 1, do OUG n.o 97/2005 prevê:

«1) A prova da morada do domicílio pode ser feita por:

a)

atos celebrados em conformidade com as condições de validade previstas na lei romena em vigor, no que respeita ao documento público que atesta o direito de ocupar uma habitação;

b)

declaração escrita da pessoa singular ou coletiva que aloja, válida como atestado de alojamento, acompanhada de um dos documentos referidos na alínea a) ou, sendo o caso, na alínea d);

c)

declaração sob compromisso de honra do requerente, acompanhada da nota de fiscalização do agente da polícia, que certifica a existência de um imóvel destinado a habitação e o facto de o requerente residir efetivamente na morada declarada, no caso de uma pessoa singular que não possa apresentar os documentos referidos nas alíneas a) e b);

d)

documento emitido pela Administração Pública local que atesta que o requerente ou, sendo o caso, a pessoa que o aloja está inscrito no Registrul agricol (Registo Agrícola) como proprietário de um imóvel destinado a habitação;

e)

documento de identificação de um dos progenitores ou do seu representante legal ou certidão relativa ao exercício das responsabilidades parentais, acompanhado, sendo o caso, de um dos documentos referidos nas alíneas a) a d), no caso de menores que requerem a emissão de um documento de identificação.»

10.

Os artigos 6.o e 61 da Lei relativa ao Regime de Livre Circulação enunciam:

«Artigo 6.o

(1)

Os tipos de documentos de viagem com base nos quais os nacionais romenos podem viajar para o estrangeiro são os seguintes:

a)

passaporte diplomático;

b)

passaporte de serviço;

c)

passaporte diplomático eletrónico;

d)

passaporte de serviço eletrónico;

e)

passaporte simples;

f)

passaporte simples eletrónico;

g)

passaporte simples temporário;

h)

título de viagem.

Artigo 61

(1)

Para efeitos da presente lei, o bilhete de identidade, o bilhete de identidade simples e o bilhete de identidade eletrónico válidos constituem um documento de viagem com base no qual os nacionais romenos podem deslocar‑se aos Estados‑Membros da União, bem como aos Estados terceiros que os reconheçam como documento de viagem.

[…]»

11.

O artigo 171.o, n.o 1, alínea d), e n.o 2, alínea b), desta lei prevê:

«(1)   O passaporte simples temporário é emitido aos nacionais romenos que preencham os requisitos previstos na presente lei e que não estejam sujeitos a uma suspensão do direito de viajar para o estrangeiro, nos seguintes casos:

[…]

d) quando o titular tiver apresentado um passaporte simples ou um passaporte simples eletrónico para efeitos de obtenção de um visto e declarar dever deslocar‑se urgentemente ao estrangeiro;

[…]

2.   O passaporte simples temporário é emitido:

[…]

b) nas situações referidas nas alíneas b) a g) do n.o 1, no prazo máximo de três dias úteis a contar da data de apresentação do pedido;

[…]»

12.

O artigo 34.o, n.os 1, 2 e 6, da referida lei dispõe:

«1.   Um cidadão romeno que estabeleceu a sua residência no estrangeiro pode requerer a emissão de um passaporte simples eletrónico ou de um passaporte simples temporário que indique o seu país de domicílio, quando estiver numa das seguintes situações:

a)

tenha adquirido um direito de permanência de, pelo menos, um ano ou, consoante o caso, o seu direito de permanência no território desse Estado tenha sido reiteradamente renovado no decurso de um ano;

b)

tenha adquirido um direito de residência no território do referido Estado para efeitos de reagrupamento familiar com uma pessoa que tem domicílio no território do mesmo Estado;

c)

tenha adquirido um direito de residência de longa duração ou, sendo o caso, um direito de residência permanente no território do referido Estado;

d)

tenha adquirido a nacionalidade desse Estado;

e)

tenha adquirido o direito de trabalhar ou esteja inscrito num estabelecimento privado ou público com o objetivo principal de prosseguir estudos, incluindo uma formação profissional.

2.   Um cidadão romeno que seja titular de um certificado de registo ou de um documento que atesta a sua residência num Estado‑Membro da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou na Confederação Suíça, emitido pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou da Confederação Suíça, pode requerer a emissão de um passaporte simples eletrónico ou de um passaporte simples temporário que indique esse Estado como país de domicílio.

[…]

6.   Um nacional romeno que tenha estabelecido o seu domicílio no estrangeiro é obrigado, quando lhe é remetido um passaporte simples eletrónico ou um passaporte simples temporário que menciona o país de domicílio, a restituir o documento de identificação que atesta a existência de um domicílio na Roménia emitido pelas autoridades romenas.»

III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

13.

O recorrente no processo principal é um advogado de nacionalidade romena, que exerce a sua atividade profissional tanto em França como na Roménia e que, desde 2014, tem domicílio em França.

14.

Foi‑lhe emitido pelas autoridades romenas um passaporte simples eletrónico com a indicação de que está domiciliado em França. Como a sua vida privada e a sua vida profissional ocorrem tanto em França como na Roménia, declara também anualmente a sua residência na Roménia e recebe um bilhete de identidade provisório. Esta categoria de bilhete de identidade não constitui, porém, um documento que lhe permita viajar para o estrangeiro.

15.

Em 17 de setembro de 2017, o recorrente no processo principal apresentou à Direção do Registo um pedido de emissão do bilhete de identidade ou do bilhete de identidade eletrónico. Este pedido foi indeferido com o fundamento de que não tinha estabelecido o seu domicílio na Roménia.

16.

Em 18 de dezembro de 2017, o recorrente no processo principal interpôs recurso de contencioso administrativo na Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia), pedindo que a Direção do Registo fosse obrigada a emitir o documento pretendido.

17.

Em 28 de março de 2018, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, com o fundamento de que a decisão de indeferimento da Direção do Registo era legitimada pelo direito romeno, que prevê que os bilhetes de identidade só são emitidos aos nacionais romenos domiciliados na Roménia. Considerou que o direito romeno não era contrário ao direito da União, uma vez que a Diretiva 2004/38 não impõe aos Estados‑Membros a obrigação de emitir bilhetes de identidade aos seus próprios nacionais. Por outro lado, entendeu que o recorrente no processo principal não foi objeto de discriminação, na medida em que as autoridades romenas lhe emitiram um passaporte simples, que constitui um documento de viagem que lhe permite viajar para o estrangeiro.

18.

Considerando que o acórdão da Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste) violava várias disposições do Tratado FUE, da Carta e da Diretiva 2004/38, o recorrente no processo principal interpôs recurso de cassação no órgão jurisdicional de reenvio, a Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça).

19.

Esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à conformidade com o direito da União da recusa de emissão do bilhete de identidade ao recorrente nas circunstâncias do processo principal.

20.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, embora a Diretiva 2004/38 tenha por objetivo harmonizar as condições exigidas pelos Estados‑Membros para a entrada no território de outro Estado‑Membro, a legislação nacional em causa procede a uma interpretação restritiva do artigo 4.o, n.o 3, desta diretiva, que prevê que os Estados‑Membros devem emitir aos seus nacionais bilhetes de identidade ou passaportes nos termos do respetivo direito. Além disso, o critério do domicílio pode constituir um tratamento discriminatório que, para poder ser justificado à luz do direito da União, deve basear‑se em considerações objetivas independentes da nacionalidade das pessoas em causa e proporcionadas ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional. Por último, no caso em apreço, a Direção do Registo não indicou a consideração objetiva de interesse geral que pode justificar a diferença de tratamento e o facto de recusar aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro da União o direito de dispor de um bilhete de identidade nacional. O órgão jurisdicional de reenvio refere não ter identificado tal justificação.

21.

Foi nestas circunstâncias que a Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 26.o, n.o 2, TFUE, os artigos 20.o, 21.o, n.o 1, e 45.o, n.o 1, da [Carta], e os artigos 4.o [a] 6.o da [Diretiva 2004/38] ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que não permite a emissão de um bilhete de identidade, passível de ser utilizado como documento de viagem no interior da União Europeia, a um cidadão de um Estado‑Membro em virtude de [este] ter estabelecido o seu domicílio noutro Estado‑Membro?»

22.

Foram apresentadas observações escritas pelo recorrente no processo principal, pelo Governo romeno e pela Comissão Europeia. Estas mesmas partes participaram na audiência realizada em 8 de fevereiro de 2023.

IV. Análise

23.

Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 26.o, n.o 2, TFUE, o artigo 20.o, o artigo 21.o, n.o 1, e o artigo 45.o, n.o 1, da Carta, bem como os artigos 4.o a 6.o da Diretiva 2004/38, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual se recusa a um cidadão da União, nacional desse Estado‑Membro que exerceu o seu direito de livre circulação e residência noutro Estado‑Membro, a emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem na União, simplesmente por ter estabelecido o seu domicílio no território desse outro Estado‑Membro.

24.

O recorrente no processo principal e a Comissão são de opinião que a legislação nacional em causa constitui uma desigualdade de tratamento que afeta o direito de livre circulação e permanência na União dos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro. Em contrapartida, o Governo romeno alega que os Estados‑Membros dispõem de um poder de apreciação no que respeita à emissão dos bilhetes de identidade e que a legislação em causa não constitui uma restrição ao direito de livre circulação e permanência desses nacionais.

25.

Nas presentes conclusões, apresentarei algumas observações preliminares destinadas a resumir os factos, recordando a legislação pertinente em causa, e a clarificar as disposições aplicáveis do direito da União, antes de examinar o problema suscitado pela questão prejudicial à luz destas disposições.

A.   Observações preliminares

26.

Segundo os factos expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio, o presente processo diz respeito a um nacional romeno, com domicílio em França desde 2014, que exerce a sua atividade profissional de advogado tanto em França como na Roménia ( 6 ). As autoridades romenas emitiram‑lhe um passaporte simples eletrónico, que menciona o facto de estar domiciliado em França, e um bilhete de identidade provisório ( 7 ). Este bilhete de identidade, que não constitui um documento de viagem, é emitido aos nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro que residem temporariamente na Roménia e deve ser renovado anualmente. O recorrente no processo principal apresentou à Direção de Registo um pedido de emissão do bilhete de identidade (simples ou eletrónico) que constitui um documento de viagem que lhe permite deslocar‑se a França (pedido) que foi indeferido. Interpôs recurso desta decisão para a Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste), ao qual foi negado provimento, essencialmente, com o fundamento de que a legislação romena não é contrária ao direito da União.

27.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, nos termos do direito romeno, todos os nacionais romenos, independentemente do lugar do seu domicílio, têm direito à emissão do passaporte ( 8 ). Explica, igualmente, que, ao abrigo desse direito, os nacionais romenos com domicílio na Roménia têm, a partir dos 14 anos de idade, o direito à emissão do bilhete de identidade simples ou do bilhete de identidade eletrónico que vale como documento de viagem ( 9 ). Em contrapartida, os nacionais romenos com domicílio noutro Estado‑Membro não têm o direito de obter estes documentos de identificação ( 10 ). A este respeito, esse órgão jurisdicional precisa que estes nacionais são obrigados, quando recebem um passaporte que menciona o Estado‑Membro do seu domicílio, a restituir o documento de identificação que vale como documento de viagem e que atesta a existência de um domicílio na Roménia ( 11 ). No entanto, se permanecerem temporariamente nesse Estado‑Membro, é‑lhes emitido um bilhete de identidade provisório que não vale como documento de viagem ( 12 ).

28.

É evidente que a situação em causa no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União e, em especial, pelas regras que regem o exercício do direito de livre circulação e residência.

29.

A este respeito, recordo, por um lado, que o artigo 20.o TFUE confere a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União ( 13 ). No caso em apreço, o recorrente no processo principal tem a nacionalidade romena e goza, portanto, do estatuto de cidadão da União que, como salientou por diversas vezes o Tribunal de Justiça, «é tendencialmente o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros» ( 14 ). Na qualidade de cidadão da União que exerceu a sua liberdade de circular e de residir num Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem, pode invocar direitos respeitantes a esse estatuto, designadamente os previstos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, «incluindo, se for caso disso, no que diz respeito ao seu Estado‑Membro de origem» ( 15 ).

30.

Por outro lado, recordo igualmente que o artigo 21.o, n.o 1, TFUE confere ao recorrente no processo principal o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação. Em especial, essas limitações e condições são as previstas pela Diretiva 2004/38, cujo artigo 1.o enuncia que esta tem, nomeadamente, por objeto fixar as condições que regem o exercício desse direito, bem como as suas restrições.

31.

Por último, observo que, embora a questão prejudicial faça referência ao artigo 26.o, n.o 2, TFUE, bem como ao artigo 20.o e ao artigo 21.o, n.o 1, da Carta, a resolução do litígio no processo principal não requer, porém, que o Tribunal de Justiça se refira especificamente a estas disposições.

32.

No que respeita ao artigo 45.o da Carta, ao qual a questão prejudicial também faz referência, importa recordar que garante, no seu n.o 1, o direito a qualquer cidadão da União de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, direito que, segundo as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais ( 16 ), corresponde ao garantido pelo artigo 20.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), TFUE e é exercido, em conformidade com o artigo 20.o, n.o 2, segundo parágrafo, TFUE e com o artigo 52.o, n.o 2, da Carta, nas condições e limites previstos pelos Tratados e pelas medidas adotadas em aplicação destes ( 17 ).

33.

Por conseguinte, basta, a meu ver, fazer referência às disposições pertinentes da Diretiva 2004/38 e ao artigo 21.o TFUE para responder à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio ( 18 ).

B.   Quanto à interpretação do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 e à existência de uma diferença de tratamento suscetível de restringir o direito à liberdade de circulação e residência

34.

Em primeiro lugar, parece‑me útil recordar que, a fim de permitir que os seus nacionais exerçam o direito de circular e residir livremente na União, o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 impõe aos Estados‑Membros, em conformidade com a sua legislação, que emitam aos seus nacionais um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular ( 19 ). A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que cabe aos Estados‑Membros, por força desta disposição, emitir aos seus cidadãos, ou renovar, um bilhete de identidade ou um passaporte ( 20 ).

35.

Em segundo lugar, devo salientar que resulta claramente da redação do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 e, nomeadamente, da opção efetuada pelo legislador da União de utilizar a conjunção coordenativa disjuntiva «ou», que, no âmbito da respetiva obrigação de emitir um documento de viagem aos seus próprios nacionais, esta disposição deixa aos Estados‑Membros a escolha do tipo de documento de viagem, a saber, um bilhete de identidade ou um passaporte.

36.

No entanto, importa sublinhar que resulta dos considerandos 1 a 4 e 11 da Diretiva 2004/38 que esta visa, antes de mais, facilitar e reforçar o exercício do direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, que o Tratado confere a cada cidadão da União ( 21 ). A este respeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tendo em conta o contexto em que esta diretiva se inscreve e as finalidades que prossegue, as suas disposições não podem ser interpretadas de modo restritivo e não devem, de qualquer modo, ser privadas do seu efeito útil ( 22 ).

37.

Além disso, embora, no estado atual do direito da União, os Estados‑Membros sejam competentes no que respeita à emissão dos bilhetes de identidade, recordo, todavia, que devem exercer esta competência no respeito pelo direito da União e, em particular, pelas disposições do Tratado relativas à liberdade de circular e permanecer no território dos Estados‑Membros conforme conferida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União ( 23 ).

38.

No caso em apreço, como decorre da decisão de reenvio, a interrogação subjacente à questão prejudicial diz respeito à diferença de tratamento estabelecida pela legislação romena em causa entre os nacionais romenos domiciliados na Roménia e os nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro. Com efeito, esta legislação prevê que os nacionais romenos domiciliados na Roménia têm o direito de obter dois documentos válidos para viajar na União, a saber, um bilhete de identidade e um passaporte, ao passo que os nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro apenas têm o direito de obter um único documento de viagem, a saber, um passaporte ( 24 ).

39.

Por conseguinte, há que determinar se esta diferença de tratamento é compatível com as disposições do direito da União relativas à liberdade de circulação e residência das pessoas e, em especial, com a Diretiva 2004/38.

40.

É decerto verdade que, como já expus, o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 não impõe aos Estados‑Membros a emissão de dois documentos de identificação com valor de documentos de viagem aos seus nacionais, a saber, um bilhete de identidade e um passaporte. Pelo contrário, esta disposição permite que os Estados‑Membros escolham emitir aos seus nacionais um bilhete de identidade ou um passaporte. No entanto, a referida disposição, lida à luz do artigo 21.o TFUE, não pode permitir aos Estados‑Membros efetuar essa escolha tratando os seus nacionais de forma menos favorável devido ao exercício do seu direito de livre circulação e permanência na União. Por outras palavras, a escolha legítima dos Estados‑Membros referente ao regime nacional de emissão de documentos de viagem aos seus nacionais, conforme previsto no artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, não pode conduzir, como no caso em apreço, a introduzir uma desigualdade de tratamento que consiste em emitir aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro um único documento de viagem, a saber, um passaporte.

41.

Com efeito, como salientou acertadamente a Comissão, os nacionais romenos que residem noutros Estados‑Membros e que pretendem beneficiar simultaneamente do seu passaporte e do seu bilhete de identidade (simples ou eletrónico) devem ter o seu domicílio na Roménia. Decorre da decisão de reenvio que a prova desse domicílio é fornecida, nomeadamente, por um registo de propriedade, um contrato de arrendamento ou um certificado de alojamento. Isto significa que esses nacionais devem não só ser proprietários, arrendatários ou hóspedes num alojamento na Roménia, mas também ter um alojamento, que é necessário para exercer o seu direito de livre circulação e residência noutro Estado‑Membro. Essa exigência implica claramente um tratamento menos favorável devido ao exercício deste direito. Os nacionais romenos que exerceram o seu direito à livre circulação devem assim conservar um domicílio na Roménia para beneficiar dos dois documentos de viagem, ao passo que os nacionais romenos que não exerceram este direito e que têm o seu domicílio na Roménia podem beneficiar dos mesmos sem terem de preencher outros requisitos.

42.

Por conseguinte, parece‑me que, enquanto tal, esta diferença de tratamento poderia ser suscetível de privar o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 do seu efeito útil.

43.

Além disso, recordo, por um lado, que o artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva enuncia que «[s]em prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, têm direito a sair do território de um Estado‑Membro a fim de se deslocar a outro Estado‑Membro todos os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido […]». Por outro lado, o artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva prevê que «[s]em prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, os Estados‑Membros devem admitir no seu território os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido».

44.

Verifica‑se, portanto, que a obrigação de estar munido de um bilhete de identidade ou de um passaporte não condiciona o direito de saída nem o direito de entrada, mas constitui uma formalidade que visa uniformizar e, assim, facilitar os controlos de identidade que, nos casos delimitados pelo Regulamento (CE) n.o 562/2006 ( 25 ), podem ser efetuados ( 26 ). O facto de um cidadão da União poder viajar munido apenas do seu bilhete de identidade constitui, assim, uma facilidade para esse cidadão que não tem, portanto, necessidade de estar munido de um passaporte. Por conseguinte, a diferença de tratamento que introduz a legislação em causa é suscetível de privar tanto o artigo 4.o, n.o 1, como o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38 do seu efeito útil.

45.

Assim sendo, considero que, na medida em que a regulamentação em causa no processo principal permite às autoridades nacionais optar por emitir ou não um bilhete de identidade com valor de documento de viagem aos nacionais romenos consoante tenham estabelecido ou não o seu domicílio noutro Estado‑Membro e, portanto, consoante tenham exercido ou não o seu direito de livre circulação e residência, há que examinar se existe uma restrição à livre circulação na aceção do artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

C.   Quanto à existência de uma restrição à livre circulação dos cidadãos da União na aceção do artigo 21.o, n.o 1, TFUE

46.

Decorre dos números anteriores que a legislação em causa no processo principal introduz uma diferença de tratamento suscetível de afetar o direito dos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro de circular e permanecer na União na aceção do artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

47.

A este respeito, recordo, em primeiro lugar, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma legislação nacional desfavorável a certos cidadãos nacionais, pelo simples facto de estes terem exercido o seu direito de livre circulação e permanência noutro Estado‑Membro, constitui uma restrição às liberdades reconhecidas pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União ( 27 ).

48.

Devo salientar, em segundo lugar, que o Tribunal de Justiça declarou de forma reiterada que as facilidades concedidas pelo Tratado em matéria de livre circulação e permanência não poderiam produzir a plenitude dos seus efeitos se um nacional de um Estado‑Membro pudesse ser dissuadido de as exercer em virtude dos obstáculos colocados à sua permanência no Estado‑Membro de acolhimento por uma regulamentação do seu Estado‑Membro de origem que penalizasse o facto de as ter exercido ( 28 ).

49.

Ora, sou de opinião que a desigualdade de tratamento introduzida pela legislação em causa constitui uma restrição à liberdade de circulação e permanência dos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro ( 29 ).

50.

Em primeiro lugar, devo sublinhar que, ao recusar emitir um bilhete de identidade com valor de documento de viagem com o simples fundamento de que o recorrente no processo principal estabeleceu o seu domicílio noutro Estado‑Membro, a saber, em França, esta legislação é suscetível de dissuadir os nacionais romenos que se encontram numa situação como a do recorrente no processo principal de exercerem a sua liberdade de circular e permanecer na União.

51.

Como já expus, o problema não tem origem no facto de um Estado‑Membro emitir aos seus próprios nacionais quer um passaporte quer um bilhete de identidade. Essa escolha é simplesmente legítima. O problema reside no facto de, ao fazer tal escolha, um Estado‑Membro introduzir uma diferença de tratamento que, como no caso em apreço, afeta o direito de livre circulação e residência de cidadãos da União.

52.

Em segundo lugar, há que salientar que, contrariamente ao que alega o Governo romeno, mesmo que sejam titulares de um passaporte, os nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro exercem mais dificilmente a sua liberdade de circulação.

53.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, durante um período de doze dias, o recorrente no processo principal não pôde deslocar‑se a França porque não dispunha de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem, enquanto o seu passaporte se encontrava na embaixada de um Estado terceiro em Bucareste para a obtenção de um visto. Segundo esse órgão jurisdicional, neste caso, um nacional romeno com domicílio na Roménia poderia ter‑se deslocado a outro Estado‑Membro com o seu bilhete de identidade. Explica que o recorrente no processo principal não dispunha, todavia, dessa possibilidade, uma vez que o seu pedido de emissão do bilhete de identidade tinha sido indeferido pela Direção do Registo.

54.

O Governo romeno alega que, numa situação em que um nacional romeno entrega o seu passaporte na embaixada de um Estado terceiro para efeitos de obtenção de um visto para entrar nesse Estado terceiro, é‑lhe emitido um passaporte temporário no prazo de três dias úteis após a data de apresentação do pedido. Segundo este Governo, esse documento visa garantir que, em circunstâncias como as do processo principal, os nacionais romenos possam, independentemente do seu domicílio, exercer rapidamente e sem obstáculos o seu direito à livre circulação. No entanto, o recorrente no processo principal sustentou na audiência que, em período de afluência, um cidadão romeno deve esperar um mês para conseguir uma marcação e poder apresentar o seu pedido de passaporte temporário.

55.

Em meu entender, isto mostra a pesada carga administrativa dos procedimentos de emissão dos bilhetes de identidade e/ou dos passaportes imposta aos cidadãos da União, como o nacional do processo principal, o que cria obstáculos ao seu direito de circular e permanecer livremente na União.

56.

Em terceiro lugar, partilho da opinião da Comissão segundo a qual os cidadãos da União que exercem o seu direito de livre circulação e de residência têm geralmente interesses em diferentes Estados‑Membros e manifestam, portanto, um certo grau de mobilidade dentro da União.

57.

Por último, em quarto lugar, como sublinhou o advogado‑geral F. G. Jacobs, «é evidente que a liberdade de circulação implica mais do que a simples abolição do direito de um particular entrar, permanecer ou sair de um Estado‑Membro. Essa liberdade só pode ser assegurada se forem também abolidas todas as medidas que imponham um ónus injustificado a quem a exerce. Independentemente do contexto — incluindo a saída ou o regresso ao Estado‑Membro de origem, ou a circulação ou permanência noutro lugar no interior da União Europeia — não se pode impor esse ónus» ( 30 ).

58.

Resta‑me, portanto, determinar se a restrição à livre circulação dos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro, na aceção do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, criada pela legislação em causa, pode ser justificada à luz do direito da União.

1. Quanto à justificação da restrição

59.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de pessoas que, como no processo principal, é independente da nacionalidade das pessoas em causa, pode ser justificada se assentar em considerações objetivas de interesse geral e se for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional ( 31 ). Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma medida é proporcionada quando, ao mesmo tempo que é adequada à realização do objetivo prosseguido, não vai além do necessário para o alcançar ( 32 ).

60.

Há no presente processo uma consideração objetiva de interesse geral que permita justificar a restrição à livre circulação e residência das pessoas?

61.

O órgão jurisdicional de reenvio indica que não identificou a consideração objetiva de interesse geral que poderia justificar a diferença de tratamento e o facto de recusar aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro da União o direito de dispor de um bilhete de identidade nacional com valor de documento de viagem.

62.

O Governo romeno justificou, nas suas observações escritas e na audiência, a recusa de emissão deste bilhete de identidade aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro, essencialmente, pela impossibilidade de nele fazer constar o domicílio fora da Roménia desses nacionais. Esse Governo alegou, desde logo, que, ao abrigo do artigo 91.o, n.o 1, do Código Civil romeno, é feita prova do domicílio e da residência pelas informações constantes do bilhete de identidade, que serve, portanto, principalmente para provar este elemento intrínseco da identidade do nacional romeno, a fim que este possa exercer os seus direitos e cumprir as suas obrigações (designadamente, em matéria civil ou administrativa), e, subsidiariamente, constitui, nos termos da Diretiva 2004/38, um dos documentos que permitem exercer o direito à livre circulação. O referido governo sublinha, em seguida, que a indicação da morada do domicílio no bilhete de identidade é, por conseguinte, suscetível de tornar a identificação mais eficaz e de prevenir o tratamento excessivo dos dados pessoais dos nacionais romenos. Por último, precisa que, mesmo no caso de indicar a morada do domicílio de um nacional romeno noutro Estado‑Membro no seu bilhete de identidade, as autoridades nacionais não podem assumir a responsabilidade de certificar a mesma, uma vez que, além da falta de competência para o efeito, não têm meios para a verificação dessa morada sem que se torne um encargo administrativo desproporcionado, ou mesmo impossível.

63.

Devo confessar que tenho dificuldades em considerar essa justificação como uma consideração objetiva de interesse geral pelas seguintes razões.

64.

Em primeiro lugar, no que respeita ao valor probatório da morada indicada no bilhete de identidade, embora possa compreender a «utilidade» de tal indicação para as autoridades administrativas, tenho dificuldade em entender a ligação entre essa justificação e o facto de recusar a emissão do bilhete de identidade aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro.

65.

Em segundo lugar, no que respeita ao facto de a indicação da morada no bilhete de identidade poder tornar mais eficaz a identificação e o controlo do domicílio dos nacionais romenos pela Administração, isto não constitui, porém, uma consideração objetiva de interesse geral que possa justificar a restrição de uma liberdade fundamental do direito da União. A este respeito, recordo que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, considerações de ordem administrativa não podem justificar uma derrogação, por parte de um Estado‑Membro, às regras do direito da União, isto tanto mais quando a derrogação em causa equivale à exclusão ou à restrição do exercício de uma das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado ( 33 ).

66.

É por isso que considero que a legislação romena em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de circulação e de residência na União dos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro, que não pode ser justificada nem pelo valor probatório da morada indicada no bilhete de identidade nem pela eficácia da identificação e do controlo desta morada pela Administração competente.

67.

Para o caso de o Tribunal de Justiça considerar, porém, que a justificação invocada pelo Governo romeno permite servir de fundamento a tal restrição, examinarei, brevemente, a questão de saber se a legislação em causa respeita o princípio da proporcionalidade.

2. A legislação em causa respeita o princípio da proporcionalidade?

68.

Conforme recordei, para que a legislação em causa seja proporcionada, deve ser adequada à realização do objetivo prosseguido e não ir além do necessário para o alcançar ( 34 ).

a) Quanto à adequação

69.

Considero que a recusa de emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro não é adequada à realização do objetivo prosseguido. Com efeito, o facto de as autoridades nacionais recusarem emitir o bilhete de identidade sem, no entanto, exigir a esses nacionais que mantenham um domicílio na Roménia não é uma medida adequada para assegurar o valor probatório da morada indicada no bilhete de identidade, bem como a eficácia do controlo da identificação do domicílio desses nacionais pela Administração romena.

70.

Designadamente, uma pessoa pode ter mudado de casa sem, no entanto, pedir um novo bilhete de identidade ou, simplesmente, deixar de residir temporária ou definitivamente no domicílio indicado no seu bilhete de identidade. Com efeito, parece‑me que as autoridades nacionais dispõem de outros meios mais adequados para verificar o domicílio ou a residência, tais como a emissão pelas autoridades romenas de um certificado de domicílio ou de registo ou de um comprovativo de residência a partir das bases de dados sobre a população.

71.

No que respeita ao controlo efetuado pela Administração para verificar se uma pessoa habita efetivamente numa determinada morada, o recorrente no processo principal sublinhou, na audiência, a falta, na prática, de tal verificação sistemática pelas autoridades romenas, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

72.

Daqui resulta, na minha opinião, que a legislação em causa não garante de maneira coerente e sistemática o objetivo prosseguido e, por conseguinte, não é adequada para alcançá‑lo.

b) Quanto à necessidade

73.

Parece‑me difícil sustentar que, para tornar mais eficaz a identificação da morada na Roménia de um nacional romeno domiciliado noutro Estado‑Membro, é necessário emitir bilhetes de identidade com valor de documento de viagem apenas aos nacionais domiciliados na Roménia.

74.

Como a Comissão sublinhou na audiência, seria perfeitamente possível para a Roménia manter o seu sistema, a saber, exigir a indicação no bilhete de identidade da morada na Roménia relativamente aos nacionais domiciliados nesse Estado‑Membro sem, no entanto, recusar a emissão do bilhete de identidade como documento de viagem aos nacionais romenos domiciliados noutro Estado‑Membro.

75.

Por conseguinte, esta recusa das autoridades romenas não é necessária para alcançar o objetivo prosseguido pelo Governo romeno.

V. Conclusão

76.

Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial submetida pela Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia) do seguinte modo:

O artigo 21.o, n.o 1, TFUE e artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual se recusa a um cidadão da União, nacional desse Estado‑Membro que exerceu o seu direito de livre circulação e residência noutro Estado‑Membro, a emissão de um bilhete de identidade com valor de documento de viagem na União, simplesmente por ter estabelecido o seu domicílio no território desse outro Estado‑Membro.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) C‑224/02, EU:C:2003:634, n.o 22.

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77).

( 4 ) Republicado no Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 719 de 12 de outubro de 2011.

( 5 ) Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 682 de 29 de julho de 2005.

( 6 ) O recorrente no processo principal indicou na audiência que, além da sua atividade de advogado, ensina numa universidade francesa.

( 7 ) O Governo romeno sublinha, em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça na audiência, que o «bilhete de identidade provisório» não inclui os elementos de segurança do bilhete de identidade, na aceção do artigo 2.o, alínea a), e do artigo 3.o do Regulamento (UE) 2019/1157 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, que visa reforçar a segurança dos bilhetes de identidade dos cidadãos da União e dos títulos de residência emitidos aos cidadãos da União e seus familiares que exercem o direito à livre circulação (JO 2019, L 188, p. 67).

( 8 ) V. artigo 6.o, n.o 1, alíneas f) e g), e artigo 34.o, n.os 1 e 2, da Lei relativa ao Regime de Livre Circulação.

( 9 ) V. artigo 12.o, n.os 1 e 2, do OUG n.o 97/2005, bem como artigo 61, n.o 1, da Lei relativa ao Regime de Livre Circulação.

( 10 ) A Comissão indicou nas suas observações escritas que o artigo 14.o, n.o 2, do OUG n.o 97/2005 prevê que só os nacionais romenos domiciliados na Roménia que permaneçam temporariamente no estrangeiro podem requerer a emissão do bilhete de identidade.

( 11 ) V. artigo 34.o, n.o 6, da Lei relativa ao Regime de Livre Circulação.

( 12 ) V. artigo 20.o, n.o 1, alínea c), do OUG n.o 97/2005. Decorre dos documentos apresentados pelo recorrente no processo principal, ao abrigo do artigo 62.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, que o bilhete de identidade provisório menciona a morada do lugar de residência temporária na Roménia do seu titular.

( 13 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 11 de julho de 2002, D’Hoop (C‑224/98, EU:C:2002:432, n.o 27), e de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques (C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 49 e jurisprudência aí referida).

( 14 ) Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk (C‑184/99, EU:C:2001:458, n.o 31), e de 1 de agosto de 2022, Familienkasse Niedersachsen‑Bremen (C‑411/20, EU:C:2022:602, n.o 28).

( 15 ) Acórdão de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 42 e jurisprudência aí referida).

( 16 ) JO 2007, C 303, p. 29.

( 17 ) Acórdão de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains (C‑817/19, EU:C:2022:491, n.o 275). Importa recordar, igualmente, que resulta da jurisprudência que uma medida nacional que é suscetível de colocar entraves ao exercício da livre circulação das pessoas só pode ser justificada quando essa medida for conforme com os direitos fundamentais garantidos pela Carta, cujo respeito o Tribunal de Justiça assegura. Por conseguinte, conforme sublinhou, acertadamente, a Comissão, qualquer restrição aos direitos previstos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE seria necessariamente contrária ao artigo 45.o, n.o 1, da Carta, na medida em que, como já recordei, o direito de qualquer nacional da União de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, previsto na Carta, reflete o direito conferido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE. V., nomeadamente, Acórdãos de 18 de junho de 1991, ERT (C‑260/89, EU:C:1991:254, n.o 43); de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 58); de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains (C‑817/19, EU:C:2022:491, n.os 275 e 281); e Despacho de 24 de junho de 2022, Rzecznik Praw Obywatelskich (C‑2/21, EU:C:2022:502, n.o 46).

( 18 ) V., igualmente, nota 27 das presentes conclusões.

( 19 ) Acórdão de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 43). O artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 prevê que «[o]s Estados‑Membros, em conformidade com a sua legislação, devem emitir ou renovar aos seus nacionais um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular».

( 20 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras em navio de recreio) (C‑35/20, EU:C:2021:813, n.o 53).

( 21 ) Acórdãos de 25 de julho de 2008, Metock e o. (C‑127/08, EU:C:2008:449, n.o 82), e de 19 de setembro de 2013, Brey (C‑140/12, EU:C:2013:565, n.o 71).

( 22 ) Acórdãos de 11 de dezembro de 2007, Eind (C‑291/05, EU:C:2007:771, n.o 43); de 25 de julho de 2008, Metock e o. (C‑127/08, EU:C:2008:449, n.o 84); de 7 de outubro de 2010, Lassal (C‑162/09, EU:C:2010:592, n.o 31); de 18 de dezembro de 2014, McCarthy e o. (C‑202/13, EU:C:2014:2450, n.o 32); de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 39); e de 11 de abril de 2019, Tarola (C‑483/17, EU:C:2019:309, n.o 38).

( 23 ) V., nomeadamente, neste sentido, Acórdãos de 26 de outubro de 2006, Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, EU:C:2006:676, n.o 22); de 22 de maio de 2008, Nerkowska (C‑499/06, EU:C:2008:300, n.o 24); e de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 35 a 38). V., igualmente, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras em navio de recreio) (C‑35/20, EU:C:2021:813, n.o 53).

( 24 ) Recordo, tal como a Comissão realçou em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça na audiência, que na perspetiva do direito de livre circulação e de residência estas duas situações são comparáveis.

( 25 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2006, L 105, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 610/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (JO 2013, L 182, p. 1).

( 26 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras em navio de recreio) (C‑35/20, EU:C:2021:813, n.o 73).

( 27 ) Acórdãos de 8 de junho de 2017, Freitag (C‑541/15, EU:C:2017:432, n.o 35 e jurisprudência aí referida), e de 19 de novembro de 2020, ZW (C‑454/19, EU:C:2020:947, n.o 30 e jurisprudência aí referida). V., neste sentido, no que respeita ao artigo 45.o, n.o 1, da Carta, Acórdão de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains (C‑817/19, EU:C:2022:491, n.o 277).

( 28 ) V. Acórdãos de 29 de abril de 2004, Pusa (C‑224/02, EU:C:2004:273, n.o 19); de 26 de outubro de 2006, Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, EU:C:2006:676, n.o 30); de 22 de maio de 2008, Nerkowska (C‑499/06, EU:C:2008:300, n.o 32); e de 14 de outubro de 2010, van Delft e o. (C‑345/09, EU:C:2010:610, n.o 97).

( 29 ) V. n.os 38 e 41 das presentes conclusões.

( 30 ) Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Pusa (C‑224/02, EU:C:2003:634, n.o 21).

( 31 ) Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 41 e jurisprudência aí referida).

( 32 ) Acórdãos de 18 de julho de 2006, De Cuyper (C‑406/04, EU:C:2006:491, n.o 42); de 26 de outubro de 2006, Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, EU:C:2006:676, n.o 35), e de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 41).

( 33 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 3 de fevereiro de 1983, van Luipen (29/82, EU:C:1983:25, n.o 12); de 26 de janeiro de 1999, Terhoeve (C‑18/95, EU:C:1999:22, n.o 45); e de 21 de julho de 2011, Comissão/Portugal (C‑518/09, não publicado, EU:C:2011:501, n.o 66).

( 34 ) V. n.o 59 das presentes conclusões. Recordo que o artigo 3.o, n.o 8, do Regulamento n.o 2019/1157 prevê que «[s]empre que for necessário e proporcionado ao fim prosseguido, os Estados‑Membros podem incluir os dados e observações que, por força do direito nacional, poderão ser necessários para utilização interna. A eficiência das normas mínimas de segurança e a compatibilidade transfronteiriça dos bilhetes de identidade não podem ser reduzidas em consequência disso».

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